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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão impressa ISSN 1679-3390versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.16 no.2 Florianópolis dez. 2015

 

SEÇÃO ESPECIAL

 

Inovação em orientação e aconselhamento de carreira: mitos e realidades1

 

Innovation in career guidance and counseling: Myths and realities

 

Innovación en orientación y asesoramiento profesional: mitos y realidades

 

 

Maria Eduarda Duarte

Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretende-se enquadrar o conceito de orientação e o conceito de aconselhamento de carreira à luz do que se considera inovação. Para tal, começa-se por descrever a origem da palavra inovação, com o objectivo de se relacionar o que se considera constituir os grandes momentos inovadores no âmbito da orientação e do aconselhamento de carreira. Parte-se dos marcos históricos, desde Frank Parsons até se chegar ao estado da arte nos dias de hoje, considerando as principais diferenças entre os conceitos de orientação e aconselhamento, com as consequentes implicações para a intervenção. A ênfase, na actualidade, coloca-se no paradigma Life Design, procurando deste modo salientar os seus contributos para um melhor entendimento do processo de aconselhamento de carreira. Nas conclusões, procura-se encontrar alguma simbiose entre orientação, aconselhamento de carreira e inovação.

Palavras-chave: aconselhamento de carreira, paradigma Life Design, inovação


ABSTRACT

The article looks to frame guidance and career counseling concepts relative to what is considered as innovation. The presentation begins with a description of the origin of the word 'innovation', with the objective of drawing a comparison with those which are considered as the main innovative developments in guidance and career counseling. The presentation gets underway with those who have left their mark on the history of the topic, beginning with Frank Parsons and progressing though until reaching the state of the art today, considering the main differences in guidance and counseling concepts, as well as the consequences for intervention. The present-day emphasis is placed on the Life Design paradigm, in doing so looking to highlight its contributions for a better understanding of the career counseling process. In conclusion, a form of symbiosis between guidance, career counseling and innovation is discussed.

Keywords: career counseling, Life Design paradigm, innovation


RESUMEN

El artículo analiza los conceptos de orientación y asesoramiento profesional a la luz de lo que se considera innovación. La presentación comienza con una descripción del origen de la palabra "innovación", con el objetivo de relacionar aquellos que son considerados los principales desarrollos innovadores en materia de orientación y asesoramiento profesional. Se inicia con los que han dejado su huella en la historia del tema, a partir de Frank Parsons, y progresa hasta alcanzar el estado del arte actual, teniendo en cuenta las principales diferencias en los conceptos de orientación y asesoramiento, así como las consecuencias para intervención. El énfasis actual se coloca en el paradigma Life Design y, al hacerlo, se busca resaltar sus contribuciones para una mejor comprensión del proceso de orientación profesional. En conclusión, se discute una forma de simbiosis entre orientación profesional, asesoramiento e innovación.

Palabras clave: orientación profesional, paradigma Life Design, innovación


 

 

Palavras como inovar e inovação, com todos os valores e significados que lhes estão associados, parecem ocupar, cada vez mais, o centro das atenções no mundo contemporâneo. E mais, têm vindo a adquirir o estatuto de referência, por vezes, mais do que pela qualidade ou pela eficácia, é pelo carácter de novidade que se tende a avaliar as coisas. Parece que a nossa sociedade tem horror ao que não é novidade e, quando confrontada com algo que não conhece, antes de perguntar para que serve ou se é bom, procura indagar se é algo de novo. Como se o novo fosse, por definição, o melhor. Ou seja - diga-se agora numa perspectiva semasiológica -, valorizam-se os significantes inovar, inovação, novidade ou novo, e deles se parte para analisar os significados do que se julga estar-lhes subjacente - valorizando o que se tem por novidade e recusando tudo o resto.

Mas de que é que se fala quando se fala de novidade ou de inovação?

Para os Gregos antigos, o novo era a terra novamente lavrada e posta em descanso para receber as sementeiras: νέος. Daí, chamar-se novidade às colheitas de tais sementeiras. Mas a palavra também designava juventude e, por alargamento, aquilo que era inesperado ou fora do vulgar. Os Romanos pegaram-lhe, adaptaram-na, e dela fizeram novus - e daí a nova palavra (sim, nova) se foi desmultiplicando em outras formas e sentidos, mas sempre mantendo a sua matriz: innovare, por exemplo, significava o que hoje, nas línguas latinas ou que delas se alimentaram, se diz por renovar - ou seja, fazer a mesma coisa outra vez.

Depende, no entanto, de como se fazem as coisas. Ou então da maneira como se valoriza aquilo que se faz de novo - que tanto pode ser repetindo (que na sua origem latina significava, entre os militares, atacar outra vez) como recomeçando (que vem do latim popular cominitiare, ou seja, iniciar outra vez algo com alguém).

Seja em qual destes sentidos for, o conceito actual de inovação é positivo e valorizado primeiro pelas elites - escritores, artistas, intelectuais, cientistas - que se assumem como dissidentes, ou seja, como pessoas que pensam "de outra maneira" e que recusam o lugar-comum em que se baseia a linguagem do poder quando se dirige às massas (que assim melhor o entendem), e só depois é aceite e interiorizado pelo vulgo. Mas nem sempre assim foi.

Na retórica antiga, os oradores - que falavam de improviso - recorriam ao topos koinós, como diziam os Gregos, ou ao locus communis, no dizer dos Romanos, como peça estruturante do discurso para definirem os argumentos (inventio), ordená-los (dispositio) e depois transformá-los em palavras (elocutio). Para tal, necessitavam de encontrar as palavras mais adequadas, variando entre os "signos seguros" (ou seja, aqueles que exprimiam rigorosamente aquilo que pretendiam dizer), os "signos menos seguros" (que permitiam a polissemia), e os "signos verosímeis" (que deixavam aos ouvintes um espaço para a introdução dos seus próprios discursos, condicionados pelas suas experiências pessoais). Estas palavras ou expressões, a que hoje se poderia chamar "bordões linguísticos", na medida em que serviam de apoio ao orador para não se perder nos seus raciocínios, eram organizadas em silogismos simples que exigiam a comparação entre pares de elementos, e, com o tempo e o uso, foram-se transformando naquilo a que hoje se chama lugares-comuns e que já nada têm a ver com o topos koinós ou o locus communis dos Antigos, facilmente identificáveis no discurso das pessoas pouco escolarizadas.

Entre uma e outra destas situações - o conceito de lugar-comum dos Antigos e o actual conceito de lugar-comum -, mediou um período multi-secular, correspondente a toda a Idade Média e que veio até ao século XVII, em que a comunicação, incluindo a transmissão de conhecimento, se baseava na repetição do que já fora dito anteriormente por outrem, sendo rejeitados, porque valorizados negativamente, quaisquer tipos de inovação ou de originalidade. Os professores universitários eram lentes porque liam perante os seus estudantes os livros do passado: nesses tempos, "falar bem" era mostrar que se conhecia os saberes do passado, de preferência os dos Antigos ou dos livros bíblicos. Os discursos e os textos escritos eram então alimentados por exempla retirados daqueles livros; eram povoados de referências à literatura antiga, de onde se retiravam valores morais; e eram entremeados de parcelas de linguagem que já tinham sido proferidas por alguém e reconhecidas pelos ouvintes ou leitores, e que o orador assumia como suas. Nesses tempos, aquilo que hoje se designa e condena como plágio era uma virtude da arte de bem falar e escrever. Ou, como acontecia na cultura chinesa, onde, como escreveu Walter Benjamin, a "prática de copiar livros era então uma garantia incomparável de cultura literária, e a transcrição uma chave para [entender] os enigmas da China" (Benjamin, 1928/1979, p. 50).

Hoje é o contrário: a repetição é sinónimo de incultura (e quando o fazemos, usamos aspas e referências bibliográficas, não vá o diabo tecê-las e alguém dar por isso), enquanto a recusa do lugar-comum é um critério de cultura. Ou seja, quem é culto não repete, inova; é dissidente, e procura ser original - até que, no caso de aquilo em que inova e é original vier a entrar na linguagem comum, se venha a transformar num novo lugar-comum até que o próprio, ou a elite que se lhe seguir, inicie um novo processo de inovação.

Ser inovador é, assim, ser dissidente: sendo o lugar-comum uma arma do poder - como tão bem o demonstra Berthold Brecht no seu livro póstumo, Histórias do Senhor Keuner (Geschichten vom Herrn Keuner, 1926), onde são desmontados os clichés (lugares-comuns) e as verdades instituídas, a que o dramaturgo chamava "o grande uso" -, a sua desmistificação é um acto de dissidência, assumido pelas elites culturais (intelectuais, escritores, artistas): dissidente é aquele que pensa de outra maneira, e que recusa ou questiona o poder. Uma realidade que nem é nossa nem é apenas dos nossos tempos: os romanos já a conheciam e chamavam-lhe aquilo que hoje se continua a chamar dissidentia: não estar de acordo, ser diferente - o que, invariavelmente, conduz à inovação.

Mas como é que tudo isto poderá funcionar no contexto da orientação e do aconselhamento da carreira?

Inovação e orientação e aconselhamento de carreira

No contexto da orientação e do aconselhamento, a palavra inovação (e as suas cognatas) carregam uma história ao mesmo tempo impregnada de realidades, de factos, mas também - e considere-se atrevidamente -, de mitos que vão estabelecendo modelos de comportamento, perspectivando-se, aqui, o mito, e de acordo com E. Cassirer (1972), como a primeira forma cultural humana, a forma simbólica estruturadora das primeiras experiências da consciência. Atrevidamente clarifica-se já! Com Parsons (1909), nos princípios do século XX, assumiu-se como forma simbólica o sentido radicalmente humano e social da disciplina (e não importa agora diferenciar vocacional, orientação ou aconselhamento). Um sonho ou um mito? Claro que um mito porque abriu caminho à noção estruturadora das primeiras experiências da consciência neste, então novo, domínio da ciência.

Inovação, realidades e mitos podem assim servir de alavancas para abrir o tempo ao tempo de inovar em orientação e em aconselhamento de carreira. Para se dar forma e conteúdo à ideia do que é, ou do que pode ser entendido por inovação na disciplina abrangente que acolhe, actualmente, o vocacional e a orientação e que especifica o aconselhamento, procurar-se-á, aqui, fundamentar aquilo que parece ser uma verdade muito simples: inovar é a história contada por personagens que carregam as suas realidades, mas também os seus mitos, e os procuram integrar nos contextos em que vivem e a que se procuram adaptar.

Procura-se sustentar, também, que inovar em orientação e aconselhamento não designa uma operação quantitativa (por exemplo, considerar o número de teorias existentes), mas sim uma operação de natureza qualitativa, na medida em que o objectivo é encontrar o conjunto geral de relações que definem a singularidade individual, e no qual nada pode ser esquecido ou ignorado. À semelhança de um texto - cujo étimo latino, textum, significava entrecruzar fios para elaborar um tecido - o indivíduo, do ponto de vista social e cultural, é o resultado da interacção de múltiplos e diversos factores que o rodeiam e com os quais, por sua vez, interage, de acordo com uma gramática que é, ela também, um produto cultural e social indispensável para que um discurso - um texto - faça sentido.

Poder-se-á recordar aqui, a propósito, uma passagem do semiólogo Roland Barthes: numa "obra [num texto], tudo é significante: uma gramática não está bem descrita se através dela não podem explicar-se todas as frases; um sistema de sentido está incompleto se nele não podem arrumar-se todas as falas" (Barthes, 1966, p. 62). Porém, esta regra de exaustividade, sempre supostamente saída de modelos quantitativos que tanto marcaram o pensamento positivista, não se adequa à inovação em particular no que respeita ao aconselhamento de carreira no século XXI: o aconselhamento não se constitui num corpo teórico por repetição, mas sim por articular as diferenças e as ler/explicar no preciso contexto em que elas ocorrem. Ou seja, o aconselhamento fala, reclama para si próprio o direito de se refazer, tal como o indivíduo, nos seus actos de fala, se apropria do sistema linguístico, que é social, e o transforma num instrumento individual (Saussure, 1916/1971), através do qual se manifesta e se expõe. Mas esta capacidade de falar define-se pela impossibilidade de quantificar e de normalizar: até que ponto se poderia dizer que, num discurso individual, se encontram todas as frases necessárias, e todas elas "bem construídas"? - tal como, num processo de aconselhamento, até que ponto se identificam todas as respostas do indivíduo e a sua adequação à gramática social?

Sobretudo porque cada indivíduo é portador da sua própria história (que é exclusivamente sua), que narra através de um discurso (que, porque acto de fala, é exclusivamente seu), que o conselheiro, tal como o leitor crítico de um texto, tem a missão e a responsabilidade de aceitar como útil no processo de aconselhamento. Sem nunca pretender, porque não pode, substituir-se ao conselheiro: o conselheiro é um leitor que lê o texto do indivíduo que é, assim, um autor. Assim sendo, o aconselhamento é mais do que um processo, um conceito, é mais explicativo do que explorativo ou descritivo.

Para se chegar ao actual significado de aconselhamento de carreira tem que se olhar, uma vez mais, para o passado. Os primeiros serviços de aconselhamento tiveram origem no princípio do século XX, no processo que Frank Parsons (1909) designou por orientação vocacional. Este terá sido, porventura e nesta matéria, o primeiro acto de dissidência, e portanto de inovação, na medida em que com ele se procurou ajudar os indivíduos, principalmente os mais jovens, que viviam e sentiam os primeiros resultados da revolução industrial, a escolher a profissão: um novo contexto exigiu novas soluções e, sobretudo, novas maneiras de encarar os problemas que entretanto se foram colocando. Porém, o verdadeiro acto de dissidência não se produziu de um dia para o outro: uma prática de intervenção que foi emergindo do trabalho social permitiu dar corpo, criar uma nova identidade profissional, que Parsons apelidou de conselheiro vocacional, em 1908 (Allen, 1921, citado por Savickas, 2015).

Com efeito, foi só na sequência da II Guerra Mundial que os trabalhos de Ginzberg, Ginsburg, Axelrad e Herma (1951) e, posteriormente, os de Donald Super (1957), marcaram a evolução da orientação vocacional, começando a palavra carreira a assumir um peso conceptual. É a Super, com o seu modelo desenvolvimentista de avaliação e aconselhamento e desenvolvimento de carreira, que se deve o grande contributo (que hoje poderemos avaliar como um modo de encarar a ruptura com o estabelecido) para considerar a carreira como um processo desenvolvimentista (Duarte, 2009). Tem-se aqui o segundo momento de ruptura: da ênfase nas profissões (Parsons, 1909) - a primeira dissidência -, à ênfase no desenvolvimento da carreira (Super, 1957; 1980) - a segunda dissidência -, até se chegar ao estudo da relação entre o indivíduo e a sociedade e os outros indivíduos, ou seja, a uma perspectiva construtivista - a terceira dissidência.

Mas é necessário clarificar conceptualmente o significado e o processo que poderiam dar corpo a esta nova conceptualização de aconselhamento de carreira, o que conduziu à definição de significados distintos para conceitos como vocacional, orientação, e aconselhamento, empreendida por um grupo de investigadores (Savickas & Lent, 1994). Mas seria isto inovação, na acepção do termo que aqui se tem vindo a considerar? Qual foi e em que consistiu o momento de ruptura introduzido por um conjunto de cientistas que decidiu pensar de outra maneira, estabelecendo assim um espaço de dissidência, ao não estarem de acordo com o anteriormente aceite, ou, dito de maneira mais suave, ao sentirem a necessidade de dar uma perspectiva mais actual à solução dos problemas, à medida que se ia lendo a maneira como a tradição os encarava, o que conduziu, seguramente, à inovação?

Enquanto tal, e porque é uma realidade socialmente construída, o aconselhamento tem, consequentemente, uma história. Uma história que os investigadores quase sempre encaram em várias perspectivas, mas a resposta a estas perguntas parece evidente: o terceiro momento de dissidência aconteceu quando se iniciou a introdução de uma distinção entre as teorias de desenvolvimento de carreira e as teorias de aconselhamento de carreira (Savickas, 2011). A ênfase coloca-se, então, no construtivismo, mas mais importante do que qualquer sistema teórico é o princípio da realidade socialmente construída, encontrando aí o aconselhamento uma realidade objectiva como um modo de conhecimento e de reconhecimento relativamente consensual.

Desmontar os lugares-comuns e as verdades instituídas até então - como a teoria dos tipos, de Holland (1997), ou a teoria de fases, de Super (1957), anteriormente classificadas como teorias de aconselhamento de carreira, que foram reavaliadas como teorias de escolha vocacional e desenvolvimentistas (Savickas, 2011), foi, na realidade, uma inovação decorrente de um acto de ruptura. Mas, para que a inovação tenha o cunho de cominitiare, ou seja, de iniciar outra vez algo com alguém (e, melhor do que ninguém, os cientistas sabem que, cada vez mais, não podem trabalhar isoladamente), é necessário que tenha sustentação científica - que, neste caso, foi obtida, e considerando unicamente como um ponto de referência, com a II Conferência da Society of Vocational Psychology (SVP) (Savickas & Walsh, 1996), onde se discutiram conceitos e se apresentaram teorias de aconselhamento de carreira, as quais podem ser analisadas na obra editada por Savickas e Walsh (1996), e de onde ressalta que as teorias de psicologia vocacional não são o mesmo que as teorias de aconselhamento de carreira. Porém, este novo conceito já se tornou um lugar-comum, aceite por (quase) todos os investigadores e conselheiros.

Esta importante distinção abre caminhos diferentes para a preparação da intervenção: a evidência de que existem enormes diferenças no tipo de questões, de dúvidas, de esclarecimentos, e desafios que as pessoas enfrentam, e das competências que têm que desenvolver para lidar com elas. Ela sugere, ou melhor, pode determinar o princípio orientador para o estabelecimento de diferentes níveis de intervenção, enquadrados numa perspectiva mais ampla, integrados em serviços de orientação e aconselhamento de carreira. Quer isto dizer que o pressuposto é fácil de entender: para cada nível de intervenção são necessários diferentes profissionais, com formações diferenciadas, mas em todos os níveis a presença da exigência e da formação de cada um dos profissionais que apontam caminhos que visam ou a informação, ou a educação das carreiras, ou o aconselhamento.

A função antecipadora da orientação obriga a promover a participação activa dos seus agentes, gerando oportunidades de intervenção, durante todo o desenvolvimento pessoal. De facto, a orientação já não é o que era, já não pode ser o que era. A orientação, no sentido lato da palavra, tem que distinguir diferentes níveis de intervenção: a intervenção ao nível da informação sobre o que é a organização do trabalho, a intervenção de natureza psico-pedagógica para ajudar no desenvolvimento de competências; e o aconselhamento de carreira. Este assunto abre o caminho para a reflexão sobre os princípios orientadores que delimitam os campos conceptuais da orientação e do aconselhamento de carreira.

Usurpando as ideias de um relatório que surgiu na sequência de um seminário que ocorreu em Lisboa, em 2011, designado Lifelong guidance: discussions, reflections and considerations elaborado por R. Van Esbroeck, J. Guichard, M. Savickas, I. Janeiro, P. Paixão e C. Taveira (2011). Este grupo de académicos debateu durante dois dias temas relacionados com a criação de serviços de orientação e aconselhamento de carreira, considerando o contexto português. Elaborou um relatório e deu conta do seu trabalho. E aponta 3 grandes níveis de intervenção, que sintetizo.

O primeiro nível de intervenção centra-se, fundamentalmente, nas questões em torno da informação escolar e profissional. As intervenções neste primeiro nível são de natureza educativa.

O que é necessário neste nível de intervenção? Atrevo-me a responder. Os técnicos devem ter formação para "pensar global, actuar local": ter técnicos preparados para responder ao que se considere no âmbito da informação escolar e profissional. E que técnicos? Professores, empregadores, trabalhadores sociais, outros profissionais, desde que previamente treinados na recolha de informação, em metodologias de sistematização de informação, em suma, nas ferramentas que podem ser utilizadas no domínio da informação escolar e profissional (Duarte, 2015).

O segundo nível de intervenção pode ser designado por intervenções de natureza psico-pedagógica. O núcleo central a este nível de intervenção trata de competências que são exigidas para o desempenho desta ou daquela actividade laboral. O "bilan" de competências, trabalhados em seminários ou workshops sobre educação para as carreiras, podem servir como exemplo para este nível de intervenção.

O que é necessário neste segundo nível de intervenção? Atrevo-me, novamente a responder. Os técnicos devem ter formação para pensar global e actuar local. Os programas de educação para as carreiras podem servir como um bom exemplo da diversidade de práticas de orientação. Os técnicos que trabalhem neste nível de intervenção devem ter formação específica no domínio da psicologia vocacional e da psicologia da orientação e desenvolvimento de carreira.

O terceiro nível de intervenção emerge por causa das intervenções de natureza psicopedagógica. Assim sendo, as intervenções a este nível podem ser designadas de intervenções de aconselhamento de carreira. Este tipo de intervenção é da competência exclusiva de psicólogos, porque revestidas de variáveis unicamente psicológicas.

E o que é necessário neste nível de intervenção? Mais uma vez, atrevo-me a responder: pensar como um psicólogo co-construtor. Fica, deste modo, assinalado a relação estreita entre orientação e aconselhamento de carreira, mas também a distinção que se torna cada vez mais real entre os dois conceitos. Uma abordagem abrangente e funcional necessita de alguns pilares, e estes devem começar por ser de natureza teórica.

A noção de co-construção emerge de um novo paradigma, o paradigma Life Design (Duarte, 2009; Savickas et al., 2009) e que consiste na capacidade em alcançar sucesso num diálogo, sucesso para o cliente e para o conselheiro, considerando os contextos socio-culturais; co-construção é a capacidade de capitalizar as forças e compensar as fraquezas do indivíduo; co-construção é baseada na definição ideográfica de sucesso; co-construção é reconhecer que o aconselhamento é socialmente produzido.

Na sua obra póstuma e inacabada, Theses on the Philosophy of History, Walter Benjamin afirma que "todos os mentores são os herdeiros daqueles que conquistaram antes deles" (Benjamin, 1942/1969, p. 256), e, num fragmento que deixou manuscrito no seu espólio (Fragm. 72), sem dúvida destinado a este ensaio, lê-se que "a História é o choque entre a tradição e a organização política". Embora correndo o risco de uma leitura descontextualizada, esta tese de Benjamin poderá ajudar a perceber o processo histórico das teorias do aconselhamento, e, de um modo particular, a recuperação do humano e da sua singularidade após décadas de teorias e práticas de orientação e aconselhamento que, em vez de considerarem as organizações ao serviço das pessoas, procuravam encontrar a melhor maneira de colocar as pessoas - felizes ou pelo menos satisfeitas - ao serviço das organizações - um pouco no espírito daquele lugar-comum, tão bem sintetizado por Brecht como "o grande uso" e por ele criticado, e que constituía de certa forma um Zeitgeist - o "espírito da época" - tal como definido por Hegel (Hegel, 1837/1935). Resta-nos agora saber se os "vencedores" de hoje, os mentores do aconselhamento de carreira, fizeram um corte epistemológico com os seus antecessores, construindo um novo paradigma, e se os conflitos resultantes, para os indivíduos, da tradicional sujeição das teorias da psicologia vocacional às necessidades da organização política das sociedades, terão sido na realidade resolvidos.

Embora não se possa dizer que haja vencedores e vencidos na história da orientação, a verdade é que as novas teorias vieram estabelecer um novo paradigma que, sendo o herdeiro natural dos paradigmas anteriores (ou seja, os actuais detentores do poder são herdeiros daqueles que antes foram vencedores), neles introduziram consideráveis alterações, necessárias não só para a sobrevivência deles no seu essencial, mas também para melhor os adaptar às novas realidades.

Com efeito, talvez se possa dizer que a grande diferença na mudança de paradigma - ou seja, o carácter inovador das teorias de aconselhamento de carreira face às que as antecederam, designadamente as teorias desenvolvimentistas - consiste na percepção de que o cliente do aconselhamento já não é o indivíduo que é "catalogado" na sequência da aplicação de instrumentos de medida validados para grupos (etários, de género, ou de estatuto socioprofissional), como acontecia com os modelos pioneiros, mas sim aquele que é interveniente activo no processo de aconselhamento e que, através da auto-narração da sua história de vida, é capaz de interferir activamente no processo, aduzindo-lhe as suas próprias vozes que são, inevitavelmente, condicionadas pelo contexto em que vive e pela interacção com as mudanças que as novas tecnologias lhe disponibilizam.

No modelo desenvolvimentista de aconselhamento de Donald Super (1980), o conselheiro segmentava, por exemplo, aptidões e interesses, valores e personalidade, e, porque lhe era permitido, através da força do seu conhecimento, tornava legíveis os resultados obtidos através da aplicação de instrumentos e de metodologia quantitativa. De acordo com Mark Savickas, as teorias de desenvolvimento de carreira centram-se no conhecimento sobre o que se sabe sobre um problema, e as teorias de aconselhamento centram-se sobre o que se pode fazer (Savickas, 2011). Isto é inovação.

Em aconselhamento, a inovação pode ser vista como um referencial teórico que se alimenta da relação dialógica, por meio da qual se definem os argumentos (inventio), se ordenam (dispositio), para depois os transformar em palavras que dão sentido e significado à narrativa de cada um (elocutio). O papel do conselheiro, que por sua vez também é produtor de fala, nesta relação dialógica consiste na devolução, ou seja, na resposta (ou não resposta), ajudando o cliente a encontrar as palavras mais adequadas para a construção do seu discurso, desta maneira abrindo um espaço na relação para a introdução do discurso individual decorrente da história de vida, da singularidade individual. Conselheiro e cliente são, assim, duas vozes em diálogo.

Como refere Reid (2015), "a linguagem em torno da inovação é positiva e evoca imagens de progresso, lidando com problemas para se ir avançando. Mas trata-se de um discurso específico relacionado com a linguagem dos mercados, com resultados específicos, focando-se em soluções e metas quantitativas quando se está num momento de poucos recursos. A linguagem pode mascarar a realidade das práticas onde a inovação é muitas vezes difícil de implementar - dado o elevado constrangimento das culturas de trabalho, e onde o desejo de inovar está condicionado por pressões contextuais" (p. 139). De acordo com este pensamento, realista e muito adequado, só a simples utilização da palavra inovação é, por si só, a constatação do que se tem vindo a inovar no domínio do orientação e do aconselhamento de carreira. Porém, é preciso agir-se aqui com alguma cautela: não conseguir implementar a inovação pode ser, e é com certeza, uma dificuldade, mas pode também fazer lembrar a força dos sistemas ditatoriais - sejam eles quais forem: a ditadura do "novo", que corporiza o "grande uso" de hoje e reflecte o nosso Zeitgeist, acaba por colocar fora de jogo quem não consegue inovar.

Resumindo, o estatuto epistemológico que é hoje reconhecido ao aconselhamento de carreira como parte relevante da actividade de utilidade manifesta-se de muitas maneiras, na medida em que, como qualquer outra actividade social, está envolvido com o mundo social mais vasto. Por isso, o aconselhamento não pode ser exercido fora de uma consciência das considerações intersubjectivas que lhe permitem ter lugar nos paradigmas de conhecimento: o aconselhamento de carreira pode assim ser encarado simultaneamente como um conceito subjectivo no conjunto das realidades sociais objectivas, tal como Reid (2015) o afirma de uma forma muito pragmática.

O aconselhamento de carreira à procura da singularidade

O legado do século XX no que respeita às teorias sobre orientação da carreira e o nível de teorização que grande parte delas alcançou (como, por exemplo, a adequação entre as aptidões e a escolha de uma profissão; ou, a perspectiva desenvolvimentista life span - life space (Super, 1980) foi um pequeno grande passo para se entender a individualidade enraizada num sistema de generalidade conceptual, permitindo que hoje se trabalhe a orientação e o aconselhamento no instrumental do construtivismo (Savickas, 2012) e do construcionismo social (Gergen, 2001) procurando deste modo seguir o trilho para o conhecimento mais profundo do indivíduo.

Hoje, as mudanças sociais, económicas e políticas que estão a ocorrer por todo o mundo, os problemas que afectam grandes sectores da população - desemprego, falta de qualidade de vida, transições da escola para o trabalho ou trabalhos -, tem contribuído para a consolidação das novas perspectivas sobre orientação; de facto, a orientação emparceira com a vida na medida em que pode ajudar os indivíduos a tomarem consciência das suas próprias carreiras, dos seus estilos de vida e das suas opções, e pode ajudar a atribuir maior importância à vida das pessoas (Duarte, 2009). Carreiras, vistas agora como a história de vida de cada um, porque a carreira como percurso ou trajecto caracterizado por sucessivas promoções profissionais e ascendência profissional tende a circunscrever-se a um número cada vez mais limitado de profissões.

As realidades do século XXI são, obviamente, diferentes das realidades que proporcionaram a ideia, o desenvolvimento, a implementação de modelos e paradigmas durante quase todo o século XX. De facto, as realidades do século XXI já são outras.

Assim sendo, para a compreensão da orientação no século XXI, terá que se considerar novos e vários aspectos, nomeadamente os parâmetros que balizam a sua utilização: o conhecimento de novos modelos e técnicas, de novos utensílios de trabalho, para proporcionar uma relação de ajuda mais rica com o orientando no sentido de lhe permitir melhor enquadramento nesta sociedade em que cada um é responsável pelo que quer fazer de si (Duarte, 2015).

A temporalidade identitária, decorrente da incerteza e da instabilidade, como que obriga o cientista a uma permanente construção com o outro, procurando encontrar a singularidade, ajudar o indivíduo na procura da "individuação", no sentido junguiano (Jung, 1939) da palavra: a procura para a maneira de ser completo, a procura do caminho para a integração (Duarte, 2015).

A procura de inovação, e os actos de dissidência e de ruptura a isso inerentes, e a procura de respostas para as diferentes necessidades do indivíduo (necessidades decorrentes desta era de incerteza e de risco), têm vindo a permitir um conjunto de novas abordagens. Alguns exemplos podem ser referidos: a abordagem socio-dinâmica de Peavy (1998); o modelo da narrativa em aconselhamento de carreira de Cochran (1997); o modelo de contar a história de McMahon e Watson (2010); o modelo de construção de carreira de Maree (2013); ou a teoria-acção de Young et al. (2011).

Um outro exemplo é o paradigma Life Design (Savickas, et al, 2009): embora dissidente, não renega as suas raízes na psicologia vocacional, e procura implementar uma teoria de comportamento vocacional, que é a teoria de construção de carreira (Savickas, 2005). É também, aqui, possível assumir a dissidência ao considerar-se que as ideias nucleares do paradigma Life Design e o aconselhamento em construção de carreira podem facilitar a integração em psicoterapia: a ênfase no individual como um construtor de significados contextualizados (isto quer dizer singularidade); e, ainda, a relação com o conceito temas de vida, presente em aconselhamento de carreira e em psicoterapia, consideradas temáticas fundamentais para explicar como é que o indivíduo organiza a sua auto-experiência (Cardoso, 2016).

Existem alguns aspectos comuns às várias teorias / modelos / abordagens referidas: um deles está, genericamente, nos vários jogos de coordenação que envolvem uma cooperação tácita (aliança de trabalho) entre conselheiro e cliente: ambos devem compreender-se mutuamente e ser capazes de coordenar os diálogos, tal como os remadores de um barco se coordenam para chegarem a algum lugar. Um outro ponto comum é que parece que é possível identificar uma evidente afinidade entre os dispositivos processuais da "disciplina", a que se poderá chamar identidade disciplinar, e os três modos possíveis através dos quais uma ciência se desenvolve, bem como as três ordens pelas quais a definição é encarada: 1. há uma ordem histórica da definição: por exemplo, a tentativa de relacionar um conceito com aquilo que é já historicamente conhecido acerca dele; 2. há uma ordem lógica, na qual uma ciência que evolui até um certo nível de estabilidade decide reorganizar os seus termos de uma forma mais conveniente do que a sequência dispersa apresentada pela história; e 3. há uma tentativa de estabelecer algumas disposições básicas para uma disciplina quando se relacionam algumas operações fundamentais com certos conceitos básicos (Caws, 1965).

Entenda-se aqui o termo "conceito" na perspectiva kantiana: "categoria", ou seja, os predicados, atributos, características ou qualidades de um objecto em geral, formulados a partir da experiência e do conhecimento dos objectos do mundo real: os chamados conceitos a posteriori ou empíricos, as representações gerais ou não específicos daquilo que é comum a vários objectos específicos (Kant, 1752/1992). Assim, convém considerar a diferença existente entre definição do conceito de aconselhamento de carreira e as teorias em que eles são operacionalizados.

A utilização do conceito de aconselhamento, por um ou por outro quadro teórico, pressupõe a consideração das três ordens da definição referidas. Porém, uma coisa é a afinidade básica entre processos de conhecimento que permitem às várias teorias afirmarem-se e progredirem, e outra coisa é a definição do conceito de aconselhamento. A definição é vista pelo seu carácter instrumental, mas, inovadoramente, deve assumir-se que qualquer máxima informação que possa ser proposta pela teoria, nunca coincide com a máxima área coberta pela definição que a contempla. Há sempre fenómenos que escapam à definição - entre eles o indivíduo; daí, uma vez mais, a singularidade.

Mas o que está realmente em jogo quando se cola a palavra inovação à designação aconselhamento de carreira? Ter-se-á que começar por considerar a diferença existente entre definição do conceito e as teorias em que ele é operacionalizado, começando por reconhecer que se dificilmente há definição de aconselhamento sem uma teoria de aconselhamento implícita, a construção de uma teoria de aconselhamento não passa obrigatoriamente pelo estabelecimento de uma definição de aconselhamento. Dito de outra maneira: o estudo do aconselhamento de carreira, em algumas teorias, não isolou uma classe de coisas através de uma definição. A classe de coisas a que se chama aconselhamento de carreira existe e manifesta-se, quer por um legado histórico sempre presente na memória social e cultural, quer por contingências de época que permitem a reconstrução desse legado. É por isso que o paradigma do Life Design (Savickas et al., 2009) é valorizável (ou contestável) não por ter proposto uma qualquer definição de aconselhamento de carreira, mas por ter fixado as propriedades do aconselhamento de carreira em função de um modelo teórico radicado na psicologia vocacional, e na implementação de uma teoria de comportamento vocacional.

O que parece importante é que o paradigma Life Design permite separar definição de teoria, mostrando que, de facto, a teoria pode ser usada como alternativa dinâmica de definição. Dito de outra maneira, ao separar definição de teoria, distingue-se também, e consequentemente, a atitude que formula uma definição, da atitude que se exprime através da teoria. Ao contrário da definição, a teoria tem condições para não encarar o aconselhamento como uma construção ideal, mas sim como um processo aberto que se objectiva de diferentes maneiras e que cumpre diferentes funções em tempos diferentes. Ao contrário da definição, a teoria tem condições para estar disponível para a descoberta de construir a carreira através de histórias de vida, para a reconstrução da narrativa, e para a co-construção de uma identidade narrativa. O paradigma Life Design não encara o aconselhamento como um conceito fechado, sendo capaz de integrar novos elementos, como é o caso da utilização do modelo sistema de código de momentos inovadores, radicado numa concepção narrativa de self (Cardoso, Silva, Gonçalves, & Duarte, 2014).

É certo que não existe uma teoria universalmente aceite, ou seja, o que é tido como aconselhamento está diluído num número considerável de teorias, de que aqui se deu uma breve perspectiva. É também certo que, mesmo numa análise crítica em que não se faça um uso explícito de uma qualquer teoria, pode sempre identificar-se uma terminologia que de algum modo revela uma determinada perspectiva teórica acerca do aconselhamento. Isto acontece porque qualquer análise decorre de uma aprendizagem, e a aprendizagem decorre de um conhecimento, e o conhecimento decorre do contacto empírico que se pode ter com uma teoria. Um conhecimento cuja análise só a teoria está em condições de permitir. Por isso mesmo, e ao contrário da definição, a teoria pode também estar atenta às intersecções com as manifestações sociais, gerando a possibilidade de um pensamento auto-reflexivo, e por conseguinte a capacidade de se regenerar a si mesma. Daí, por exemplo, a terminologia de construção, re-construção e co-construção, que representa a perspectiva teórica do paradigma do Life Design.

 

Conclusão

Voltando ao início, a recusa do lugar-comum é um critério de cultura. Inovar também pode ser flexibilidade e exigência pessoal de expressão disso mesmo, muitas vezes travada por pressões sociais e outras; a expressão implica saber utilizar uma linguagem colectiva (no sentido de universal), compreendida pelo interlocutor (a transformação no lugar-comum, na acepção que o conceito tinha na Antiguidade). Portanto, enfrentar a inovação é positivo, e ainda bem para a orientação e para o aconselhamento de carreira que existem teóricos dissidentes, ou seja, pessoas que pensam "de outra maneira" e que recusam o lugar-comum.

Estão a abrir-se novos caminhos nas teorias de orientação e de aconselhamento, quer do ponto de vista teórico, quer do ponto de vista da intervenção, permitindo que a orientação e o aconselhamento possam ser entendidos como um processo interrogativo do pensamento crítico. É este o caminho por onde se vai descortinando um eventual novo objectivo para uma nova teoria que, qualquer dia, será anunciada numa qualquer publicação ou conferência. Ou seja, estar-se-á perante um novo começo de um novo estudo de novos problemas que o aconselhamento irá proporcionar. Assim sendo, as abordagens construtivistas ou construcionistas, ou a teorização da narrativa, vão continuamente a caminho de um fim, embora não sejam elas esse mesmo fim. Porque o fim é sempre o início de um novo caminho.

Para terminar, repega-se na pergunta que desde o início se deixou por formular: onde estão os mitos e as realidades na inovação em orientação e aconselhamento de carreira? Onde se verificou a revolução que transformou um paradigma num outro paradigma, nos termos definidos por Thomas Kuhn (1962/1970)? Por onde e como se caminhou até se chegar aqui?

Parece que as realidades vão dando corpo histórico à orientação e ao aconselhamento, porque se tratam de campos específicos da própria realidade. Por exemplo, o paradigma Life Design assume-se como um modo de olhar com a consistência e a coerência suficientes para se construir como uma determinada verdade, sempre transitória, marcada pelo tempo, e por uma certeza que é sempre probabilística; um modo de olhar que arrasta consigo a existência de uma ontologia própria, na medida em que o modo de olhar prefigura o modo de ser olhado; isto é, as coisas não são, as coisas só tendem a ser.

A orientação e o aconselhamento de carreira já percorreram um longo caminho, na sequência dos caminhos abertos pelos seus antecessores. Um caminho que se fez caminhando, como apetece dizer, parafraseando o poeta espanhol Antonio Machado: "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar." Ou um caminho encarado como uma viagem, nas palavras do grande poeta português Fernando Pessoa:

Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são. Se imagino vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir . A vida é que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos (2011, p. 402).

Mas sempre tendo a consciência de que a percepção que se tem do caminho, ou da viagem, que se percorre é diferente consoante se caminha ao longo dele ou o vemos de cima. Um quarto momento de dissidência? Talvez o paradigma Life Design que pode fornecer uma visão de helicóptero, ao mesmo tempo que caminha lado a lado com o cliente, no entendimento que cada indivíduo deixa a sua própria marca no caminho que vai desbravando afinal o paradigma Life Design em sintonia com o poeta: conta-me a tua história, re-conta-me a tua história, construir, reconstruir, co-construir mais não são do que "nomes", designações para se entender que a vida é o que se faz dela, e o que se vê não é o que se vê, mas aquilo que se é.

Tudo é relativo, mesmo a novidade que se julga como nossa, e que afinal não é nova mas apenas o resultado de um olhar diferente. E é preciso que disso se tenha consciência, para que não se vejam como mitos, histórias que são bem reais, e que, a cada etapa do caminho se seja capaz de avaliar o modo como se caminhou e o objectivo que se alcançou. Já disse algures que os criadores artísticos, porque não sujeitos às limitações dos modelos teóricos, são capazes de sentir primeiro aquilo que a ciência só mais tarde consegue entender; por isso, termino com um poema de Cecília Meireles que poderá ser, de certa maneira, uma síntese do que aqui deixo:

Caminho do campo verde,
Estrada depois de estrada.
Cercas de flores, palmeiras, serra azul, água calada.

Eu ando sozinha
No meio do vale.
Mas a tarde é minha.

Meus pés vão pisando a terra
Que é a imagem da minha vida:
tão vazia, mas tão bela,

Tão certa, mas tão perdida!
Eu ando sozinha
Por cima das pedras.

Mas a flor é minha.
Os meus passos no caminho
São como os passos da lua:

Vou chegando, vais fugindo,
Minha alma é a sombra da tua
Eu ando sozinha

Por dentro de bosques.
Mas a fonte é minha.
De tanto olhar para longe,

Não vejo o que passa perto.
Subo monte, desço monte,
meu peito é puro deserto.

Eu ando sozinha
Ao longo da noite.
Mas a estrela é minha.

(Cecília Meireles, pp. 396-7)

 

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Endereço para correspondência:
Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia.
Alameda da Universidade, P-1649-013
Lisboa, Portugal.
E-mail: mecduarte@fp.ul.pt

Recebido 24/07/2015
Aceite Final 08/11/2015

 

 

Sobre a autora
Maria Eduarda Duarte é Doutorada em Psicologia, Área de Orientação Escolar e Profissional pela Universidade de Lisboa, é Professora Catedrática (Professora Titular) da mesma Universidade, coordenadora do Programa de Mestrado e de Doutoramento em Psicologia, Área de Psicologia dos Recursos Humanos.
1 Conferência de encerramento proferida no I Congresso Ibero-Americano de Orientação de Carreira da ABOP e XII Simpósio Brasileiro de Orientação Vocacional & Ocupacional, realizado em Bento Gonçalves, Brasil, de 16 a 18 de Setembro 2015.

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