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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.20 no.2 Florianópolis jul./dez. 2019

 

ARTIGO

 

É muita pressão! Percepções sobre o desgaste mental entre estudantes de medicina

 

It is too much pressure! Perceptions about mental strain among medical students

 

¡Es mucha presión! Percepciones sobre el desgaste mental entre estudiantes de medicina

 

 

Juliana Gomes Bergo DâmasoI; Bruna Schipmann PereiraI; Cássia Beatriz BatistaI; Ludmila de Souza ConceiçãoI; Gabriel dos Santos PereiraI; Rafael Cevolani CarnieleI

IUniversidade Federal de São João del Rei, São João del Rei, MG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Diante da prevalência de adoecimento mental entre acadêmicos de medicina no Brasil, buscou-se conhecer os significados atribuídos pelos estudantes às situações de sofrimento vivenciadas durante a trajetória universitária. Um curso em implantação em uma universidade pública mineira foi escolhido para a realização de grupos focais com estudantes. A análise aponta manifestações e condicionantes do adoecimento como sentimentos de culpa e insegurança, aliados a pressões sociais para um alto desempenho escolar e profissional. São citadas como estratégias de enfrentamento das condições adoecedoras a realização de atividades recreativas, o apoio de colegas e familiares e o desenvolvimento de bloqueios emocionais. Destaca-se uma naturalização do sofrimento psíquico que requer mais estudos, assim como mais respostas institucionais para questão no campo da educação médica.

Palavras-chave: saúde mental; educação médica; ensino superior.


ABSTRACT

Given the prevalence of mental illness among medical students in Brazil, the meanings attributed to their endured sufferings during the university major were studied. An ongoing course implemented at a public university in Minas Gerais, Brazil, was chosen to organize focal groups with students. The analysis reveals manifestations and conditioning factors of mental illnesses such as feelings of guilt and insecurity, allied to social pressures for high school and professional performance. Strategies for coping with mental illness conditions are mentioned: leisure activities, friends and family support and the development of some emotional blockages. As this suffering tends to be considered ordinary, it is crucial to continue studying the issue as well as finding more answers to this matter in the medical educational field.

Keywords: mental health; medical education; higher education.


RESUMEN

Ante la prevalencia de enfermedades mentales entre estudiantes de medicina de Brasil, se propuso conocer los significados atribuidos por los estudiantes a las situaciones de sufrimiento vivenciadas durante la trayectoria universitaria. Fueron realizados grupos focales con estudiantes de una carrera en curso en una universidad pública del estado de Minas Gerais . El análisis evidencia manifestaciones y condicionantes de enfermedades mentales como sentimientos de culpa e inseguridad asociados a presiones sociales para un alto desempeño escolar y profesional. Se citan como estrategias de enfrentamiento a los condicionantes que enferman la realización de actividades recreativas, el apoyo de colegas y familiares y el desarrollo de bloqueos emocionales. Se destaca una naturalización del sufrimiento psíquico que requiere más estudios, así como más respuestas institucionales ante la problemática en el campo de la formación médica .

Palabras clave: salud mental; educación médica; enseñanza superior.


 

 

Introdução

Taxas mais elevadas de sofrimento psíquico em relação à população em geral como esgotamento, doença mental diagnosticada, ideação suicida e tentativa de suicídio são apontadas em diferentes estudos com estudantes do curso de medicina no Brasil e no mundo (Baldassin et al., 2013; Fiorotti, Rossoni, Borges, & Miranda, 2010; Lima, Domingues, & Cerqueira, 2006; Serra, Dinato, & Caseiro, 2015; Ward & Outram, 2016). Nessa perspectiva, constatou-se uma prevalência de transtornos depressivos quatro vezes maior nestes estudantes do que a média da população americana geral, e sete vezes maior que na população brasileira (Porcu, Fritizen, & Helber, 2001).

Vários sintomas evidenciam o início do processo de sofrimento e adoecimento psíquico, como angústia, isolamento, irritabilidade, insônia, esquecimento, e distúrbios físicos como diarreia, cefaleia e emagrecimento. Esses sintomas são sugestivos dos chamados Transtornos Mentais Comuns (TMC) ou leves que, embora representem quadros menos graves de transtornos psíquicos, frequentemente indicam sofrimento relevante e merecedor de intervenção profissional adequada, afinal, esses transtornos tornam-se incapacitantes na ausência do diagnóstico formal (Fiorotti et al., 2010; Lima et al., 2006).

Estresse, ansiedade e bournot são adoecimentos comuns entre os estudantes de medicina, sendo considerados uma forma de adaptação – mesmo que inadequada – frente às dificuldades enfrentadas no curso (Alves, Tenório, Anjos, & Figueroa, 2010; Andrade et al., 2014; Benevides-Pereira & Gonçalves, 2009 ; Fares, Al Tabosh, Saadeddin, El Mouhayyar, & Aridi, 2016). No contexto universitário brasileiro, alguns estudos (Figueiredo et al., 2014; Fiorotti et al., 2010; Kloster, Perotta, Junior, Paro, & Tempski, 2013) apontam que o estado de saúde mental apresentado pelos acadêmicos de medicina se mostra extremamente fragilizado em decorrência de inúmeros fatores, com destaque para o período integral do curso e a falta de serviços nas universidades voltados para o acolhimento ou lazer.

Andrade et al. (2014) apontam estudos nacionais e internacionais que retratam aspectos da relação pedagógica como geradores de sofrimento mental – desde a preparação dos professores e sua relação com os alunos, até metodologia de ensino e avaliação e estruturação curricular, podendo, portanto, serem estes fatores de estresse e adoecimento.

Ratificando a afirmação de Benevides-Pereira & Gonçalves (2009), muitos estudos com amostragens significativas demonstram o elevado índice de estresse e outros adoecimentos entre os discentes de medicina, contudo, estudos qualitativos e longitudinais são poucos e se fazem necessários para compreender, prevenir e intervir nas condições de adoecimento.

A diversidade das formas de adoecimento indica uma multiplicidade de fatores envolvidos na produção e manutenção de condicionantes do sofrimento psíquico entre estudantes de medicina. Nesse sentido, fatores de cunho individual, relacional, organizacional, social e cultural interagem de forma complexa na produção do adoecimento. Frente a esse panorama, propõe-se um modelo psicossocial de análise desse fenômeno, evitando-se partir de binômios do tipo causa/efeito ou vítima/culpado, o que reduziria a compreensão do cenário como um todo.

Vários componentes envolvidos na produção do adoecimento partem de singularidades da atividade formativa do estudante de medicina, a partir das quais é possível identificar situações de agravos evitáveis. Dentre essas singularidades, são de grande peso a natureza do exercício profissional; a organização da ação educativa universitária do curso; e expectativas sociais em relação à profissão e à própria escola médica.

Além disso, há um movimento de perpetuação e silenciamento do adoecimento dos sujeitos, inseridos em um grupo que vive condições similares, e que, por vezes, não transparecem o sofrimento. Isso leva ao desenvolvimento de estratégias individuais de enfrentamento, como o isolamento e a negação, a culpa ou racionalização sobre o acometimento, naturalizando a situação (Oliveira e Sousa Leão, Nogueira Martins, Menezes, & Bellodi, 2011). Assim, o estudante acaba prisioneiro em um ciclo vicioso de esgotamento – tido como normal por ele e pelos que o cercam.

Visando aproximar-se dessa cadeia de produção do adoecimento dos alunos nas escolas médicas, a abordagem adotada aqui sustenta que esse fenômeno é gerado através da interação entre a cultura, a educação médica e a subjetividade dos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, este estudo buscou conhecer as percepções sobre a saúde mental dos estudantes de medicina de uma universidade pública mineira e, mais especificamente, identificar as formas de manifestação, os condicionantes e as estratégias individuais e coletivas adotadas entre os alunos para confrontarem as situações de adoecimento mental.

 

Método

Na busca de conhecer os significados atribuídos pelos estudantes às situações de sofrimento vivenciadas durante a trajetória universitária, um curso de medicina em implantação em uma universidade pública mineira foi estudado. O presente estudo é produto de uma pesquisa mais abrangente sobre a saúde mental de estudantes de medicina, que adotou três modos de aproximação desta realidade. Neste artigo, será apresentado apenas a análise qualitativa (Minayo, 2012) realizada através dos grupos focais. O projeto dessa pesquisa foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética (número de aprovação do CEPSSJ: 56958116.7.0000.5151), bem como autorizado pela coordenação do curso de medicina em questão.

Os dois grupos focais de estudantes de medicina foram distribuídos por tempo de curso: Grupo 1 com alunos de 1º a 3º períodos e grupo 2 alunos de 4º a 6º períodos , distinguindo períodos iniciais e períodos intermediários da graduação. Sendo o curso em implantação, não haviam, na ocasião, períodos finais do curso. A divisão de grupos por períodos justifica-se por outros estudos (Benevides-Pereira & Gonçalves, 2009) que identificam diferenças entre os momentos curriculares, principalmente em relação à aprendizagem prática da profissão com aumento de carga horária de estágios e internato médico.

O grupo focal (Kind, 2004) foca-se na dinâmica grupal para produzir informações que dificilmente seriam alcançadas em entrevistas individuais; ou seja, as argumentações e reações advindas da interação entre os componentes do grupo são observadas e registradas para análise, que, por sua vez, foi orientada pelos estudos de enunciação de Bardin (2004).

O convite para participação nos grupos focais foi feito em todas as salas de aula durante as atividades curriculares. Estabeleceu-se o número de nove integrantes para cada grupo (média recomendada pela literatura consultada). Assim, seriam necessários 18 estudantes para compor os dois grupos, sendo três estudantes de cada período do curso estudado – no qual, no momento da realização da pesquisa, constavam 141 alunos matriculados. Diante da manifestação de muitos interessados (30 estudantes), realizou-se um sorteio (que foi gravado e arquivado). Ainda assim, no momento do grupo focal, houve uma ausência, configurando, ao final, um grupo com oito e outro com nove participantes.

Cada grupo focal se reuniu uma vez em sala livre de ruídos externos e com privacidade, localizada no prédio em que funciona o curso de medicina. Duas moderadoras, mestrandas de psicologia e duas auxiliares de pesquisa (estudantes de medicina) mediaram os grupos focais que tiveram, aproximadamente, uma hora de duração cada. Após uma breve apresentação e leitura coletiva do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), iniciou-se com a leitura de um caso desenvolvido pela equipe de pesquisadores intitulado Caso Roberta (Anexo A) seguido pelo debate orientado por um roteiro de questões disparadoras. A utilização do caso facilitou a expressão e a discussão dos estudantes, a partir da identificação (ou não) de vivências similares e permitiu retratar de forma mais detalhada os aspectos individuais e coletivos para atenuar possíveis situações de sofrimento.

Os encontros foram gravados e transcritos fielmente, sendo analisados de forma detalhada por grupo, a fim de evidenciar, qualitativamente, os significados emergentes (Minayo, 1994). Na transcrição, os grupos e integrantes foram numerados a fim de facilitar a análise de cada equipe, sendo que a identificação de cada aluno nas respectivas falas se deu conforme os seguintes exemplos: Grupo 1, aluno 1 – G1A1; Grupo 2, aluno 6 – G2A6 – e, assim, sucessivamente.

Ambos os grupos foram compostos por estudantes entre 18 e 22 anos, homens e mulheres, que passaram, em algum momento da vida universitária, por experiências extracurriculares em ligas acadêmicas, monitorias, projetos de pesquisa e extensão, movimento estudantil, atléticas e baterias. Todos os integrantes da pesquisa mostraram interesse ao se candidatarem de forma espontânea.

 

Resultados e discussão

Os alunos do grupo 1, mais recentes no curso, demostraram rapidamente vontade de expressar suas angústias e impressões sobre o tema. Durante a conversa, muitos dos relatos de colegas sobre vivências difíceis foram acompanhadas por risadas que pareciam, por vezes, uma maneira de diminuir a tensão de uma situação conflituosa ou desconfortante. Em outros momentos, alguns soltaram piadas seguidas de risos despreocupados. O processo do grupo demostrou que os alunos sabem que sofrem, percebem que isso não está certo e esperam que esse panorama mude. Após a finalização do grupo focal, alguns alunos procuraram as moderadoras relatando o quanto gostaram de participar da atividade, que se sentiram acolhidos por uma proposta de compartilhar sobre sua saúde mental com colegas que passam por situações semelhantes. Os estudantes mostraram interesse em continuar com esses encontros com um caráter terapêutico.

O outro grupo, por outro lado, seus integrantes demoraram um pouco a se manifestar, apresentando-se mais fechados, com respostas curtas ou divagando sobre outros assuntos, e ainda com pouca circulação da fala que ficou concentrada em alguns estudantes. O grupo relata a existência de sofrimento, contudo com pouca disponibilidade para refletir sobre ela, indicam menos crença em mudanças das condições adoecedoras e relatam a criação de bloqueios bem como de distanciamento interpessoal como forma de lidar com o sofrimento. Coerente com a dinâmica grupal relatada, nenhum integrante deste grupo procurou as moderadoras no final para fazer qualquer comentário.

Os dois grupos focais apresentaram percepções muito similares em relação a manifestação e condições da saúde mental dos estudantes do curso de medicina. Ao contrário de estudos (Aguiar, Vieira, Vieira, Aguiar & Nóbrega, 2009; Almeida et al., 2007; Moro & Barros, 2003) que revelaram níveis de estresse mais elevados a partir do 4º período ou piora da condição de saúde com o avanço do curso (Edméa Costa et al., 2010; Edméia Costa et al., 2014), devido ao início das disciplinas clínicas – e, portanto, mais contato com o paciente, a doença e o sofrimento –, na universidade mineira do estudo em questão, não se observaram diferenças nos períodos. Possivelmente, essa tendência está relacionada à implantação do novo currículo (Brasil, 2014.), em que a inserção dos estudantes de medicina nos serviços de saúde – como cenários de aprendizagem – é preconizada a se iniciar nos três primeiros períodos do curso, de forma precoce, o que diminui a fragmentação entre ciclo básico e ciclo clínico, algo que distanciava as universidades da prática nos serviços de saúde e da aprendizagem em relação ao processo saúde-doença.

Contextualizada a dinâmica de cada grupo focal, passaremos a analisar alguns aspectos relevantes do debate grupal reunidos em três grandes categorias – a saber: Manifestações do adoecimento, Condicionantes do sofrimento mental e Estratégias de enfrentamento.

Manifestações do adoecimento

O adoecimento dos estudantes de medicina é expresso de diferentes modos na literatura, sendo frequentes os chamados Transtornos Mentais Comuns, ou Transtornos Psiquiátricos Menores, manifestados através de alterações no sono e na alimentação, dores de cabeça e estomacais, náuseas, fadiga, irritabilidade, dificuldade de concentração e de tomar decisões (Benevides-Pereira & Gonçalves, 2009; Cunha et al., 2009; Fiorotti et al., 2010; Pagnin & de Queiroz, 2015).

Nesse sentido, as alterações no sono e na alimentação, bem como a ocorrência de crises de ansiedade, foram os indícios de adoecimento observados e relatados com certa frequência pelos discentes.

Eu deito na cama e penso assim 'vou dormir', daí eu não consigo dormir, daí eu falo 'então vou estudar', aí eu levanto e vou estudar, aí eu não consigo fazer nada sabe, e tá bem complicado isso assim, a parte do sono principalmente, porque não tô conseguindo fazer nada direito, nem estudar de madrugada nem dormir de madrugada, então assim, tá bem complexa essa parte. (G1A4)

Essa semana eu tô tendo muita crise de ansiedade, eu nunca tive crise de ansiedade tão forte assim. Mas tá muito... antes eu tava, no primeiro módulo, comendo muito, só que nesse eu tava tão mal que eu não consigo comer e quando eu comia dava vontade de vomitar, de tão ansiosa que eu tava com tudo. E isso é muito ruim, porque a gente tá na área da saúde e a gente devia cuidar, e a gente se prejudica... (G1A3)

Bebo muito café pra aguentar mas só que quando eu fico nervosa, começa a me dar muita ânsia e aí meu estômago fica péssimo. (G1A3)

Alguns sentimentos apontados pelos estudantes em sofrimento e presentes na literatura são de culpa, insegurança, medo de errar, impotência, inferioridade e frustração (Benevides-Pereira & Gonçalves, 2009; Fiorotti et al., 2010; Moreira et al., 2015; Santa & Cantilino, 2016; Vasconcelos et al., 2015). A sensação de insegurança sobre si e sobre a profissão, os sentimentos de não pertença e não merecimento, e o prejuízo nas relações afetivas e sociais também são características deste adoecimento, expressas no grupo focal.

Porque se sair algum dia da semana você fica com uma culpa né, nossa eu devia tá estudando, tem prova essa semana, tá cheio de prova e não sei o quê. (G1A8)

Essa questão da insegurança também é muito complexa, assim, porque a gente, (...) tem medo, de não ta sabendo estudar e tudo, porque você fica, poxa eu vou lidar com vidas, aí você vai mal numa prova, não necessariamente porque você não estudou, mas por que o professor cobrou de uma forma excessiva e aí você fica se culpando, sabe, e, quando você vai pra prática, você fica inseguro, tipo, ah, fui mal na teórica, então eu to aqui na prática e você fica inseguro de ta ali com o paciente. Acho que o que mais teve presente assim até agora... é... nessa vivência dentro do curso é: insegurança e culpabilização. Fica inseguro e fica se culpando. (G2A7)

Quando os professores vêm apresentar o currículo e falam de tantos pós doutorados, e tantos isso e aquilo... E eu fico 'então eu não sei estudar', ou senão eu durmo muito, eu começo a pensar que sei lá, eu devia não dormir e pronto, porque, pra dar tempo. [...]. (G1A3)

De modo geral, os sentimentos supracitados culminam em uma baixa qualidade de vida, com alto nível de estresse, ausências nas aulas, somatizações, desgastes físicos e até mesmo crises de ansiedade, depressão e ideação suicida.

Condicionantes do adoecimento

O contexto de aprendizagem em sua organização de conteúdo, tempo e espaço em uma graduação com alta carga horária e sobrecarga de conhecimento, com a especificidade de lidar com dores, doenças e mortes, além de relações competitivas entre os estudantes, tornam a vida acadêmica estressante. (Pagnin & de Queiroz, 2015; Quintana et al., 2008).

Os fatores causais ou agravantes que contribuem constantemente para o sofrimento mental, bem como fatores situacionais, que causam sofrimento pontualmente mas reverberam posteriormente na vida do estudante, se referem majoritariamente à universidade, ao currículo, e à educação e cultura médicas. Isso fez-se presente nas falas dos alunos e condiz com o que é encontrado na literatura acerca do tema, como apresentado a seguir.

As horas que a gente passa aqui, muito tempo, muitas aulas. (G1A1)

Ah vou estudar pra isso que isso vale mais ponto", mas também não pode deixar de lado essa outra, também tem essa que é na terça, e a outra é segunda, e sei lá, a outra é na quinta, e também tem, não sei, é, tem treinamento da atlética, tem reunião de liga, tem que sei lá, pagar uma conta, e nunca dá tempo pra nada direito. (G1A8)

O paciente geriátrico é muito complexo, e aí aconteceu comigo: eu vi a minha paciente duas semanas, a gente fez algumas alterações na medicação, ela até melhorou na semana que a gente reencontrou e agora ela tá internada faz 3 semanas... aí você fica com aquele negócio na cabeça: será que foi alguma coisa que a gente fez...(...) ou não fez, e aí né... por mais que o professor fale: não... você fica com aquele negócio, aí você começa a se cobrar, se eu tivesse estudando essa matéria lá no primeiro ano, será que eu to esquecendo alguma coisa que eu não vi, porque, porque tem isso também, qualquer coisa que você, ah isso não vai dar tempo de estudar, vou estudar o básico, e daí você fica o resto do curso falando: eu não estudei essa matéria direito, eu não, sei... vai chegando a hora. (G2A9)

A competitividade entre os alunos é um acentuado fator causal, e se correlaciona com a sensação de necessidade de se envolver em vários projetos extracurriculares, como monitorias, ligas acadêmicas e projetos de pesquisa, visando aperfeiçoar o currículo para a aprovação em residências médicas e inserção na vida profissional futura (Figueiredo et al., 2014). Também se expressa a competitividade na comparação com o rendimento do colega nos estudos, no sentido de se sentir inferior e precisar alcançar o melhor que se pode ser.

Alguém faz uma pergunta inocente sobre a matéria, aí você já fica assim 'ah meu Deus eu não sei essa parte da matéria, então eu tenho que estudar'; e às vezes a pessoa tá estudando, daí manda uma pergunta no grupo da sala, e se você não tá estudando naquele momento, você acaba pensando, inevitavelmente, 'poxa essa pessoa tá estudando, ela já tá um passo à minha frente'. (G1A4)

Uma coisa que acontece muito lá na nossa sala, não sei se o 8 vai concordar, a 5, mas é a competitividade. (...)lá na minha sala tem muito isso, assim, de ficar competindo por nota e, tipo, chegar na sala com um monte de resumo 'ah... eu estudei demais essa noite', tipo assim, sabe? Te causa insegurança, sabe? Talvez você ainda não estudou tanto, sabe?(G2A7)

Esse tanto de coisa que a gente tem que fazer pra poder ter uma nota na residência. (G1A1)

(...) às vezes tem gente que não tem vontade, não tem dom, não tem vocação, não tem nada pra ser, monitor, vamos supor, ou então pra ser qualquer outra coisa, mas aí a pessoa se sente tão pressionada a fazer que ela se força a fazer, aí ela se prejudica, prejudica os outros alunos. (G1A4)

Outros fatores que contribuem para desencadear distúrbios emocionais e desgastes físicos nesses estudantes são: falta de tempo para atividades sociais e prática de exercícios físicos, perda da liberdade pessoal, baixa autoestima, sentimento de inutilidade, dificuldade de gerir o tempo de estudos e de lazer, expectativas sociais do papel do médico, medo de cometer erros, morar longe da família, individualismo (Cunha et al., 2009; Fiorotti et al., 2010; Rezende, Abrão, Coelho, & Passos, 2008). O contato limitado com pessoas que não sejam do curso – seja pelo fato de o curso ser integral ou pela pouca afinidade –, juntamente com a distância da família e o escasso tempo para lazer torna a rotina desses estudantes, além de desgastante, solitária.

Eu falto muito na natação, muito, pra estudar, e aí eu fico estudando até tarde, e aí fico tomando café pra ficar acordada, e aí minhas amigas ficam "nossa vamo tomar cafeína, vamo fazer isso e aquilo", e aí a gente se acaba muito. (G1A3)

Eu queria, sei lá, ter uma hora do dia de lazer, fazer alguma coisa, sair andar, mas não dá tempo porque você tem que estudar. Tem trabalho, tem prova, tem relatório, tem estágio, sei lá... (G2A4)

E eu fico me perguntando muito também, será que eu vou ser um bom médico? Aí depois a gente tira um 7; 7,5 aí a gente ... e agora? Aí a gente: não... eu não vou ser um bom médico. Aí a gente começa a estudar mais e mais, aí começa a pensar: mas e a minha vida? (G2A4)

É difícil pra mim, no caso, não ter a família por perto. (G1A8)

A minha família tá a 1200 km daqui, entendeu? Então, seu eu tivesse meu pai, minha mãe, alguém aqui pra eu conversar, talvez seria mais fácil. (G2A2)

Nossa, todas as minhas matérias são muito difíceis, às vezes eu vou comentar isso com as minhas amigas e parece que eu tô subestimando o curso delas, aí elas viram e falam assim "eu também tenho muita coisa" aí eu tento falar "nossa realmente você também tem muita coisa", pra eu não falar que eu tô sofrendo mais sabe, porque às vezes parece assim 'nossa eu faço medicina e eu sofro mais que você', eu não queria transparecer isso. (G2A3)

(...) É, as únicas pessoas que sobram pra você falar sobre isso são as pessoas que estão passando por isso também. (G2A6)

A fala dos estudantes transmite uma exigência vivida de ser um aluno modelo, que obtém excelentes notas, e que, para tal, deve dedicar-se exclusivamente para a medicina, com o objetivo final de ser um bom médico na "expectativa de sucesso absoluto em qualquer atividade" (Figueiredo et al, 2014, p.438). Ou seja, corroborada pela escola médica e pela sociedade em geral, há uma cobrança de domínio integral do conhecimento, com uma responsabilização excessiva pela vida das pessoas. Tal discurso contribui para uma naturalização do adoecimento dos estudantes, colocando o sofrimento como parte intrínseca e indissociável do processo de tornar-se médico.

Todas as vezes que eu vou pra casa, e acabo reclamando ou fazendo algum comentário negativo com meus pais ou minha família, é sempre a mesma resposta: 'você tá lá pra sofrer, você tá fazendo medicina... médico não dorme, médico tem que estudar'. (G1A2)

Eu acho que a carga de responsabilidade que todo mundo e a gente coloca... é muito grande... parece que a gente tá ... é a gente tá lidando com outra vida, é uma coisa muito importante, só que parece que todo mundo põe uma ideia parece que a gente é um deus, assim, sei lá, sabe? (G2A3)

Todos os professores viram e falam "você tem que saber tudo isso, porque tudo isso é muito importante, você não vai ser um bom médico se você não souber tudo isso", e aí você fica com isso na cabeça o tempo todo. E você não tem tempo pra estudar. (G1A6)

Mas eles falam, 'vocês escolheram esse curso, eu sou médico, eu não faltei nenhuma aula, meu curso inteiro e eu faltei duas vezes', seis anos, e você faltou duas vezes? (G2A9)

Tipo se eu vou ficar até 4 horas da manhã, eu vou ficar, mas daí eu acordo as sete, tomo mais café e dá certo, eu vou sobreviver, mas parece também que eu preciso fazer isso, porque às vezes eu vejo que tipo assim, meus amigos fazem isso, a classe médica deve fazer isso, porque o professor dá plantão e vai dar aula, então eu acho que eu não vou morrer se eu fizer isso, então eu posso ficar estudando a noite inteira e eu vou conseguir acordar e viver, porque as pessoas à minha volta fazem isso. (G1A3)

Eu acho que não só os professores, mas a sociedade faça isso. Uma vivência que aconteceu comigo. Eu tava numa festa, num domingo, e aí conheci uma pessoa, perguntou que curso eu fazia, eu falei que fazia medicina, por que você não tá em casa estudando. Aí: porque é domingo? Que eu quero aproveitar a festa? (G2A1)

Nessa linha de pensamento, alguns alunos revelaram a vontade de ter uma vida como a da personagem Roberta, no que tange a privação de tudo que fosse possível para se dedicar mais aos estudos e outras atividades relacionadas à universidade.

[Queria] conseguir ter a carga horária que a Roberta tem, conseguir conciliar tudo. (G1A2).

Eu também... porque assim, a gente vê que ela vive as angústias..., mas o nosso objetivo todo é esse, é conseguir só estudar. Tipo assim, não é o objetivo, mas assim, conseguir estudar mais. E tem esse lado que eu falei, que sabe que isso não é certo, mas tem esse desejo de conseguir estudar sem parar, e ser eficiente. (G1A1).

Os dados levantados corroboram com o estudo de Slavin, Schindler e Chibnall (2014), apontando uma elevada pressão social e institucional com idealização do bom aluno de medicina e extrema comparação e competitividade entre colegas – inclusive relativas ao acúmulo de pontos para o processo seletivo da residência médica –, além de extenuante carga horária de estudos e excesso de tarefas, como fatores que constituem um ambiente favorável a desgastes e adoecimentos, considerados preparatórios para a vida profissional futura. De forma geral, quanto aos condicionantes do sofrimento psíquico, nota-se que a cultura e educação médicas marcam significativamente o cotidiano de estresse do curso. A incompreensão do adoecimento por colegas, a distância da família e a insegurança em vivenciar um curso novo também configuram as condições de sofrimento.

Estratégias de enfrentamento

Meios desenvolvidos, individual e coletivamente, pelos alunos para reparar agravos sofridos, evitar o desenvolvimento de danos maiores e gerir conflitos, ou mesmo para aguentar sua rotina e garantir a execução de suas tarefas, ou ainda, para buscar uma melhor qualidade de vida, mesmo em situações padecedoras, são descritos em estudos similares (Cunha et al., 2009; Zonta, Carolina, Robles, & Grosseman, 2006).

Alguns alunos mencionaram atividades pessoais que consideram ser protetoras contra o estresse, tais como prática de esportes e danças, distração com filmes e seriados (Zonta et al., 2006).

Eu descanso assistindo série. (G1A5)

Eu voltei a estudar música, tá sendo valioso pra mim. (G1A2)

Resolvi usar como minha terapia o balé, não falto nunca. (G1A1)

Voltei nos esportes, aí eu tô melhor. (G1A8)

Eu descobri que eu gosto muito de dançar, então toda semana eu tiro tempo, mesmo que sozinha no quarto, ou alguma festa, mas mesmo assim, se for pra deixar de estudar pra dançar e eu relaxar, eu danço e ajuda muito e eu descobri que eu gosto, então, descobrir uma coisa que te faça feliz, e ter um tempo pra ela, assim eu quero ir nessa festa porque eu quero dançar muito, então eu vou, e ajudou muito a relaxar, sabe? E eu sei que é meio boba, perto de ler, conversar, mas ajuda (risos). (G2A1)

A conversa ou expressão de sentimentos ou relato do cotidiano foram estratégias presentes nos relatos dos grupos focais, principalmente por meio da comunicação com familiares e amigos, o apoio dos colegas do curso, bem como terapias psicológicas e psiquiátricas (Zonta et al., 2006).

O que me ajudou mais foi conversar com as pessoas (...) conversar com o pessoal lá de casa, principalmente, porque, o pessoal lá de casa, todos eles fazem o mesmo curso, todos eles passam pelas mesmas experiências, então, conversar, chegar em casa, do PIESC esgotado, você nem sabe porque está esgotado, PIESC é aquele negócio que te drena assim né? Aí você senta, começa a falar sobre o que aconteceu durante o PIESC, aí você, puts, foi isso que me deixou incomodada por isso que eu me cansei tanto, sabe? (G2A9)

Eu ligo pra casa, nossa só de falar com a família já dá uma aliviada boa, vai pra outra realidade. (G1A1)

Melhor coisa é conversar, foi isso que ajudou assim, o que ajuda até hoje mais. (G2A9)

Eu tava muito triste em um momento bem recente aí pra trás, e aí eu escrevi pela primeira vez na vida, (...) na hora deu uma aliviada e foi bom. (G1A1)

Chegou um ponto de cobrança interna, que pra eu não decepcionar eu acabo não estudando, eu chuto o balde, prefiro ficar deitado, fazendo uma coisa totalmente aleatória, lendo [outra coisa] ao invés de estar lendo matéria (...) a ponto de precisar intervenção, tanto psicológica quanto psiquiátrica. (G1A2)

Para driblar os sentimentos conflitantes ou situações geradoras de ansiedade, os grupos focais apontaram o afastamento de atividades do curso aos finais de semana, o uso de estimulantes do sistema nervoso central e a ausência em determinadas aulas.

(Moderadora: como aguentar a rotina?) Resposta: Escolhendo as aulas pra faltar. Ah tem algumas aulas que a gente julga mais inúteis, os piores professores... Mas infelizmente tem uma cota de falta, que eu tô até com medo de ela acabar. [risos] (G1A2)

Relaxante muscular pra dormir, isso aí é direto, e café pra acordar. Ou então um energético pra acordar. (G1A8)

Eu fazia um tratamento pra enxaqueca com antidepressivo em doses bem baixas, só que ele dá muito sono, e nessa semana, minha enxaqueca passou, eu só tomei pra conseguir dormir, e tipo eu sei que é errado, mas eu não ia conseguir dormir se eu não tomasse sabe, então tipo eu deixei de estudar, aí eu falei assim 'tá... eu não vou conseguir dormir agora', aí eu pensei 'ah eu posso tomar um remédio pra conseguir dormir pra eu me livrar nem que por algumas horas disso tudo' (...) (G1A5)

A perda da empatia, da humanização, e da conectividade com os pacientes e com os acontecimentos vividos nos campos de prática, com o propósito de não levar isso para si, isto é, tornar aquilo um problema próprio, demostra a adoção de estratégias de bloqueios pelos alunos, em que os mesmos consideram ser ações conscientes, a fim de driblar esses sentimentos. Alguns relataram ainda que tentaram se distanciar de todos, se distrair, mas que isso não foi um método muito eficaz, mas que, ao contrário, o conversar foi muito útil, seja com os amigos (do curso ou não) ou com a família (Zonta et al., 2006).

Nessa questão do que a gente pode fazer, ou pelo menos o que eu tento fazer pra aliviar esses sentimentos, é... eu acho que, eu tentei várias coisas né? Eu tentei distância, porque teve uma época que eu estava muito distante do mundo e, pra mim não deu certo, que eu só ficava pensando naquilo, me distrair com coisa sozinha, tipo netflix, alguma coisa, também não resolvia. O que me ajudou mais foi conversar com as pessoas. (G2A9)

Que nem o G2A8 falou, as vezes eu também acho que eu to me tornando uma pessoa pior, assim, mais fechado, pra todo mundo, pra família, pros amigos, que me chamam pra fazer alguma coisa, e eu 'ah não... vou estudar... vou fazer isso'. E também nesse caso mesmo, assim legal, é ... as vezes a gente chega lá, ta abrindo um corpo assim e só vê uma pele, um monte de osso de cadáver, a gente não vê uma pessoa mais. (G2A4)

Eu bloqueio tudo! Eu... pego a minha cabeça, limpo, bloqueio tudo! Se eu for mal na prova... foda-se... só que chegou um ponto que eu to perdendo a empatia, porque igual... em medicina legal, é uma coisa que me assusta, porque eu vejo um cadáver ... pra mim aquilo é um cadáver, sabe? Aquilo é um cadáver, chego a revirar ele, vou vendo que que aconteceu, vamos analisar e pronto e acabou (...) e é uma coisa que eu fiquei preocupado, por que eu vi, pessoas da minha turma, que deixaram de participar, da prática justamente porque aquilo (...) incomodava e era uma pessoa (...) e aquilo não me incomoda, e eu vejo que, tinha várias coisas que eu fui criando bloqueios. Por exemplo, eu entrei nesse curso apaixonado por medicina de família, apaixonado com coisas sociais e hoje eu penso muito mais na questão de que Medicina de Família é tão limitada ao SUS (...), eu quero mais, eu quero um consultório. Eu fui perdendo os meus sonhos e muitas empatias no curso , (...), porque eu vou bloqueando tudo sabe? Se isso me incomoda, eu jogo pra lá . Eu não sei até onde eu vou ficar jogando pra lá , porque parece que to jogando pra baixo do tapete (...) (G2A8)

Benevides-Pereira & Gonçalves (2009) enfatizam que o estresse ocupacional crônico – algo vivenciado por estudantes de Medicina – resulta na síndrome de Burnout envolvendo três dimensões: exaustão emocional, desumanização e redução da realização pessoal. Esse processo generalizado de fadiga leva à criação de bloqueios e tentativas de distanciamento, com diminuição de sentimentos em relação aos outros e tratamentos das pessoas com indiferença.

Outra maneira para lidar com essa situação de sofrimento expressa pelos alunos é a tentativa de redimensionar a importância da faculdade, valorizando atividades de lazer e esporte (Fares et al., 2016). Ainda assim, diante de um cenário de competição e de colegas da sala que colocam a faculdade como atividade principal, há questionamentos se esta é uma boa estratégia.

Eu tiro o final de semana pra mim. Não faço absolutamente nada no final de semana. Quer dizer, não absolutamente nada, eu faço outras coisas que não tenham nada a ver com o curso. (G1A6)

Eu venho deixando a faculdade em segundo plano (risos). Eu faço tudo que eu quero fazer, vamos supor, eu participo de todos os esportes que eu gosto, então se eu tenho uma prova no outro dia, eu vou ir no esporte, porque não to nem aí, a faculdade é meu segundo plano. Só que ao mesmo tempo eu me sinto culpada por isso, eu me sinto lá no fundo um pouco de culpa, tipo assim, 'nossa... ta todo mundo colocando a faculdade em primeiro lugar, eu não, to colocando a faculdade em segundo, eu to fazendo o que eu quero... antes', tipo assim, isso é certo? Isso é errado? (...) (G2A3)

Mesmo que a motivação pela graduação de medicina dos alunos paute-se na realização pessoal em cuidar de pessoas e promover saúde, o relato de alguns alunos é de que se transformaram em uma pessoa que não gostam, com baixa realização e com posturas desumanizadoras. Este cenário requer ações de cuidado durante a formação médica com respostas e apoios institucionais nas universidades para enfrentar o sofrimento vivido nas escolas médicas (Figueiredo et al., 2014; Fiorotti et al., 2010; Zonta et al., 2006; Slavin et al., 2014).

E ainda que o problema seja identificado coletivamente e cada vez mais colocado em pauta, a compreensão sobre seu enfrentamento ainda é pessoal, de responsabilização de cada aluno. Ou seja, nota-se que a maior parte das estratégias relatadas são individuais e com pouca ou nenhuma ação na direção de mudar as condições de produção do sofrimento ou mesmo de reivindicar respostas institucionais de apoio.

 

Considerações finais

É importante destacar o risco de comparações de sofrimentos de alunos de cursos ou realidades distintas, de modo a desprezar – ou não reconhecer – a existência destes em suas diferentes formas de manifestação e de produção. Nesse sentido, ressalta-se que este estudo qualitativo tem um local e contexto específicos de produção de dados, com dois grupos focais compostos por alunos voluntários, que estudam em um mesmo curso, e que são colegas de sala ou ligas acadêmicas, times esportivos, projetos de pesquisa e extensão, entre outros ambientes e coletivos comuns. Ou seja, fizeram-se presentes vínculos anteriores à pesquisa e que permanecem após a coleta de dados, possivelmente configurando um padrão de opiniões e argumentos, abrindo espaço para disparidades em relação a outras instituições.

De todo modo, o fenômeno do adoecimento entre estudantes de medicina aponta disparadores, manifestações e formas de enfrentamentos similares entre componentes deste mesmo grupo social – ainda que de diferentes universidades, assinalando que os casos de sofrimento não são isolados. E é a partir dessa direção que esse estudo qualitativo tende a produzir conhecimentos que podem contribuir para a compreensão deste fenômeno e também para a elaboração de ações institucionais de apoio junto aos estudantes, professores, técnicos e familiares.

O maior desafio na compreensão do sofrimento psíquico entre universitários ainda parece ser a naturalização deste por parte da universidade e da cultura médica presente entre os professores, preceptores e os próprios estudantes. O reconhecimento dessa realidade pelos gestores de ensino e pelos docentes implica a universidade numa atenção às relações educativas, expectativas profissionais e demais condições da vida universitária.

O estabelecimento de espaços coletivos abertos para reflexão sobre os projetos pedagógicos dos cursos de medicina com destaque para a inserção precoce nos cenários de práticas, centralidade do ensino no aluno e na produção ativa de conhecimento, bem como a expansão de cursos, a democratização do ensino superior e a maior inserção da população feminina dos cursos de medicina nos últimos anos, reitera a necessidade de cuidarmos da saúde mental diante de muitas mudanças na educação médica.

 

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Endereço para correspondência:
Juliana Gomes Bergo Dâmaso
Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva
Campus Dom Bosco - UFSJ
Praça Dom Helvécio 74. Fábricas
CEP: 36301-160
São João del Rey, MG
E-mail: nesc.ufsj@gmail.com

Recebido: 23/09/2018
1ª Reformulação: 17/06/19
Aceito: 08/07/2019

 

 

Sobre os autores:
Juliana Gomes Bergo Dâmaso é acadêmica do curso de Medicina da Universidade Federal de São João del Rei, campus Dom Bosco. Integrante do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC) e Núcleo de Estudos em Educação, Trabalho e Saúde (NEETS).
E-mail: juliana.112@hotmail.com
Bruna Schipmann Pereira é acadêmica do curso de Medicina da Universidade Federal de São João del Rei, campus Dom Bosco. Integrante do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC) e Núcleo de Estudos em Educação, Trabalho e Saúde (NEETS).
E-mail: brunaschip@gmail.com
Cássia Beatriz Batista é Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del Rei. Integrante do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC) e dos Programas de Pós-Graduação de Educação e de Psicologia da UFSJ.
E-mail: cassiabeatrizb@gmail.com
Ludmila de Souza Conceição é acadêmica do curso de Medicina da Universidade Federal de São João del Rei, campus Dom Bosco. Integrante do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC) e Núcleo de Estudos em Educação, Trabalho e Saúde (NEETS).
E-mail: lud.sc@hotmail.com
Gabriel dos Santos Pereira é acadêmica do curso de Medicina da Universidade Federal de São João del Rei, campus Dom Bosco. Integrante do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC).
E-mail: gsantos.ufsj@gmail.com
Rafael Cevolani Carniele é acadêmica do curso de Medicina da Universidade Federal de São João del Rei, campus Dom Bosco. Integrante do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC) e Núcleo de Estudos em Educação, Trabalho e Saúde (NEETS).
E-mail: rafaelvn.i@hotmail.com

 

 

Anexo A – Caso Roberta

Roberta, 22 anos, estudante de medicina. Nasceu em Ritápolis (MG), onde morava com sua família até passar no ENEM, em 2015, e mudar-se para Marília (PR) quando entrou na faculdade. Passou os primeiros semestres do curso de Medicina estudando os processos patológicos, os tecidos e as células. Guiou-se pelos tratados médicos divididos por sistemas circulatório, respiratório etc. Em dois anos de medicina, foram muitas horas de estudos, de sala de aula e de prática, mas poucas horas de sono e de lazer. Ainda que cansada, Roberta empolgava-se com os estágios e queria colocar em prática tudo aquilo que aprendia. Em 2017, Roberta passou a ser monitora de Anatomia, a participar de um projeto de extensão sobre diabetes e tornou-se membro na Liga de Primeiros Socorros. Tinha uma grande vontade de participar da atlética, mais especificamente dos treinos da bateria, porém achou melhor priorizar os estudos. Afinal, vai ser médica e precisa dedicar-se ao máximo, estudar muito.

Desde que Roberta mudou-se para Marília, sua alimentação e seu sono não são os mesmos, pois, por estar longe de casa e numa rotina de estudos desafiadora, seu cotidiano se alterou. Às vezes, Roberta imagina como será sua vida profissional e se enche de dúvidas sobre que especialidade quer seguir. A cada novo ciclo de estudos, animava-se com uma especialidade: pensava em Clínica, Cirurgia, Ginecologia. Sentia-se confiante com o conteúdo teórico, porém temia não saber aplicar todo aquele raciocínio clínico nas etapas práticas. Até achava interessante, mas a rotina no ambulatório, atrelado a experiências pessoais, a fez desistir, de forma traumática.

Nos dias que antecedem às provas, sente-se extremamente ansiosa, não conseguindo se concentrar e criando cenários tais como: irei mal na prova, não vou entender o que o enunciado está dizendo, não vou conseguir "decorar" todos os valores de referência. Quando não vai bem nas provas, fica bem frustrada, pois tem a sensação de que estudou muito e que tudo isso foi em vão, tanto pelo fato do professor ter cobrado "cantinho de livro", como não ter conseguido ter uma boa noite de sono, após 3 xícaras de café e por ter deitado às duas horas da manhã, para fazer a prova às sete. E os pensamentos só aumentam: será que não estou sabendo estudar? Não estou aprendendo? Será que devo mesmo continuar neste curso? Será que vou conseguir aprender e passar nesta disciplina? Será que vou ser uma boa médica? No feriado prolongado, quando sai com os amigos e tira uma folga dos estudos, fica com o pensamento dividido: será que deveria estar estudando? Provavelmente meu colega deve estar estudando e eu aqui, na farra... e meus amigos devem ter maiores notas que as minhas. Às vezes insone, sempre cansada, Roberta começa a diminuir o interesse. Fica mais quieta, na sua, com seus pensamentos: vou focar no meu estudo, na formação e nada mais. Agora é estudar esta matéria e não vou me envolver com ninguém e dedicar-me agora, depois da faculdade, eu curto a vida.

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