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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.21 no.1 Campinas jan./jun. 2020

http://dx.doi.org/10.26707/1984-7270/2020v21n105 

10.26707/1984-7270/2020v21n105

ARTIGO

 

Desenvolvimento de carreira e projetos profissionais de cotistas de uma universidade federal brasileira

 

Career development and professional projects of quota holders from a Brazilian federal university

 

Desarrollo profesional y proyectos profesionales de titulares de cuotas de una universidad federal brasileña

 

 

Patrícia AlbanaesI; Maiana Farias Oliveira NunesI; Marucia Patta BardagiI; Emily de FariasI

IUniversidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis-SC, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A literatura de carreira junto a universitários cotistas é escassa e carece de maior exploração quanto aos facilitadores e obstáculos no processo formativo desses. Objetivou-se compreender como cotistas de uma universidade federal do sul do Brasil percebem o seu desenvolvimento de carreira no percurso universitário. Realizou-se um estudo de casos múltiplos com 10 discentes de três áreas – humanas, saúde, tecnológica. Os dados passaram por análise de conteúdo. Identificaram-se crenças relativas ao ensino superior como possibilidade de ascensão social, satisfação acadêmica impulsionada pela inserção em atividades extracurriculares, dificuldades de participação nessas últimas e perspectivas de carreira voltadas para a pós-graduação. Discute-se o impacto da elitização da configuração universitária no desenvolvimento de carreira de universitários em situação de maior vulnerabilidade acadêmica e/ou socioeconômica.

Palavras-chave: aspirações profissionais, ensino superior, ação afirmativa, estudantes universitários, orientação vocacional


ABSTRACT

Career literature with quota students is scarce and needs further exploration as to the facilitators and obstacles in their training process. The objective was to understand how quota holders of a federal university in southern Brazil perceive their career development throughout their university course. A multiple case study was conducted with 10 students from three áreas – humanities, health, technological. The data underwent content analysis. It was identified that higher education creates a belief of social ascension, the insertion in extracurricular activities drives that academic satisfaction, and the difficulty of participation on the latter and perspectives on careers at graduate studies. It was also discussed the impact of the elitization in the university configuration on the career development of university students in situations of academic and socioeconomic vulnerability.

Keywords: professional aspirations, higher education, affirmative action, university students, vocational guidance


RESUMEN

La literatura de carrera en relación a estudiantes con el beneficio de cuotas escolres es escasa y requiere una mayor exploración en cuanto a los facilitadores y los obstáculos en su proceso de formación El objetivo de esta investigación fue comprender cómo los estudiantes con cuotas de una universidad federal en el sur de Brasil perciben su desarrollo profesional en el trascurso de la carrera. Se realizó un estudio de casos múltiples con 10 estudiantes de tres áreas: humanos, salud y tecnología. Los datos se sometieron a análisis de contenido. La creencia relacionada con la educación superior se identificó como una posibilidad de avance social, satisfacción académica impulsada por la inserción en actividades extracurriculares, dificultades de participación en estas últimas y perspectivas de carrera dirigidas a estudios de posgrado. Se discute el impacto de la elitización de la configuración universitaria en el desarrollo profesional de los estudiantes universitarios en situaciones de mayor vulnerabilidad académica y/o socioeconómica.

Palabras clave: aspiraciones profesionales, educación superior, acción afirmativa, estudiantes universitarios, orientación vocacional


 

 

O ensino superior contemporâneo, em escala mundial, passa por significativos processos de mudança, dentre os quais se destaca a sua ampliação e democratização de acesso (Heringer, 2018; Mancebo, Vale, & Martins, 2015). Apesar dos passos mais lentos, mesmo em comparação com outros territórios latino-americanos (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], 2015), o aumento no número de matrículas no ensino superior brasileiro tem sido expressivo – de 4.626.740, em 2005, para 8.451.748, em 2018 – mais de 80% em um período de 13 anos (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [INEP], 2019).

Parece razoável afirmar, ainda, que o decrescimento de um modelo de ensino superior elitizado e excludente foi parcialmente viabilizado, ainda que com empecilhos, por meio de dispositivos jurídicos denominados políticas de ações afirmativas. De forma sucinta, essas constituem um conjunto de estratégias de inclusão social e de combate às discriminações estruturais presentes na sociedade, com base em princípios do Estado Social de Direito (Gomes & Silva, 2001).

O processo político que levou à implementação desse dispositivo no ensino superior brasileiro foi permeado por disputas entre diferentes atores envolvidos e por construção de consensos à custa de muita negociação (Heringer & Johnson, 2015). A primeira lei de ações afirmativas em Instituições de Ensino Superior (IES) públicas no país foi aprovada no ano de 2003, mais especificamente no estado do Rio de Janeiro. Tal medida representou um primeiro exemplo para a disseminação de medidas semelhantes em outros estados nos anos subsequentes. Posteriormente, com a aprovação de Lei nº 12.711, em 2012, fez-se obrigatória nas IES federais a destinação de no mínimo 50% das vagas, por curso e por turno, para estudantes egressos de escolas públicas – divididas em subcategorias (negros, indígenas, oriundos de famílias de baixa renda, pessoas com deficiência, entre outros).

De acordo com a consulta realizada por Albanaes (2019) sobre a literatura referente às ações afirmativas no ensino superior federal brasileiro, as pesquisas existentes parecem seguir três linhas principais, a saber: 1) estudos quantitativos comparativos entre cotistas e não cotistas, no âmbito do rendimento acadêmico e da evasão; 2) estudos sobre as representações sociais aliadas à avaliação das ações afirmativas nas IES; e 3) estudos gerais sobre o percurso de universitários cotistas – esses últimos serão sinteticamente descritos a seguir.

Algumas publicações têm demonstrado que uma parcela dos cotistas enfrenta em sua trajetória acadêmica não apenas dificuldades financeiras, mas também pedagógicas, possivelmente devido aos resquícios de uma trajetória escolar precária e à necessidade de dupla jornada trabalho-universidade (Bello, 2013; Passos, 2015; J. C. Santos, 2013). Alguns estudos também apontaram dificuldades nos relacionamentos com os colegas de curso não cotistas e com os professores (Neves, Faro, & Schmitz, 2016; Ribeiro, Peixoto, & Bastos, 2017), acompanhadas em casos mais extremos por segregação/discriminação racial e/ou social (Bello, 2013; Passos, 2015).

A imersão em projetos de pesquisa/estágio/extensão também pode ser um obstáculo no curso acadêmico desses discentes, pois alguns cotistas precisam conciliar estudo e trabalho, e, nesta condição, têm pouca ou nenhuma disponibilidade de tempo para participarem de atividades não-obrigatórias em caráter extraclasse (Passos, 2015). Complementarmente, o perfil exigido em alguns processos seletivos não condiz, muitas vezes, com a formação prévia extracurricular, conhecimento de línguas e informática (Mayorga & Souza, 2012).

A rede de apoio de familiares e amigos/colegas na superação destes percalços é reconhecida como de suma importância nesse processo (Bello, 2013; Mayorga & Souza, 2012; J. C. Santos, 2013). Dessa forma, os cotistas buscam enfrentar com resiliência os referidos desafios cotidianos, vislumbrando melhores condições de vida e de ascensão social por meio da qualificação universitária, gerando expectativas e sonhos compartilhados por seus familiares (Bello, 2013; Neves et al., 2016).

No que concerne ao desenvolvimento de carreira, este pode ser entendido como um processo contínuo e dinâmico de crescimento e aprendizagem, que se estende por todo o ciclo vital, e resulta em uma modificação gradual no repertório de comportamento vocacional dos sujeitos (Super, 1980). Ele é influenciado pela interação dinâmica entre fatores individuais, familiares, socioeconômicos, escolares, além das próprias experiências profissionais e do "comportamento" do mercado de trabalho. Os elementos do desenvolvimento de carreira qualitativamente focalizados neste estudo são: processo de escolha pelo ensino superior e pelo curso/profissão, processo de satisfação e identificação com o curso/profissão, envolvimento em atividades extracurriculares e projetos profissionais.

Quanto ao primeiro elemento, o processo de escolha pelo ensino superior e pelo curso/profissão, pode-se afirmar que tal processo é influenciado simultaneamente por uma gama de fatores pessoais, familiares, escolares, socioeconômicos, políticos, culturais e macroeconômicos – de modo que se trata, sempre, de um campo específico e circunscrito de alternativas possíveis (Dias & Soares, 2012). A literatura científica também destaca que o processo de satisfação e identificação com o curso/profissão, segundo elemento do desenvolvimento de carreira aqui focalizado, é importante preditor das decisões de permanência ou evasão de curso (Astin, 1993). Ademais, a identificação e a satisfação podem ser instigadas pelo envolvimento em atividades extracurriculares na área de formação (Oliveira, Santos, & Dias, 2016; Porto & Gonçalves, 2017), terceiro elemento no qual esta pesquisa se concentra.

Quanto ao quarto e último elemento do desenvolvimento de carreira focalizado neste estudo, os projetos profissionais, pesquisas apontam para o crescente número de formandos e recém-formados que afirmam terem a pós-graduação como primeiro projeto pós-universidade (Melo & Borges, 2007; Silva, 2016; Souza, Prado, Ferreira, & Carvalho, 2014). Isso se deve, em parte, pelo fato de que, cada vez mais, a conquista de um diploma universitário não garante a inserção instantânea em trabalhos nas áreas de formação. Nesse cenário, a condição para a efetivação de um emprego está fortemente associada à exigência por mais qualificação e instrumentalização, ao mesmo tempo em que o mercado de trabalho é caracterizado pela sua exclusão e hipercompetitividade (Magalhães & Bendassolli, 2013).

As poucas pesquisas na área de orientação e desenvolvimento de carreira junto ao referido público seguem tradicionalmente uma natureza quantitativa e comparativa (cotistas versus não cotistas), sugerindo haver algumas diferenças em relação a aspectos interpessoais e acadêmicos (favoráveis aos não cotistas), e institucionais (favoráveis aos cotistas) entre esses grupos (Oliveira, 2015; P. V. Santos, 2013; Sousa, Bardagi, & Nunes, 2013), que carecem de maior apreciação. Desse modo, a realização de um estudo que busque explorar qualitativamente possíveis facilitadores e obstáculos no desenvolvimento de carreira e na construção de projetos profissionais de cotistas configura-se como uma alternativa de potencial contribuição para o avanço das pesquisas, pois permite explorar de modo mais minucioso as possíveis aproximações e/ou singularidades do fenômeno para um público historicamente menos tradicional no ensino superior brasileiro.

Assim, o objetivo geral desta pesquisa foi compreender como estudantes cotistas de uma universidade federal percebem o seu desenvolvimento de carreira no percurso universitário. Além disso, constituíram-se como objetivos específicos deste estudo: a) descrever como discentes cotistas percebem o seu processo de escolha pelo ensino superior e pelo curso de graduação; b) compreender como discentes cotistas percebem o impacto do campo de possibilidades para inserção em atividades extracurriculares no processo de identificação e satisfação com o curso/profissão escolhido; e c) identificar os projetos profissionais de universitários cotistas.

 

Método

Caracterização do estudo

Esta pesquisa utilizou uma abordagem qualitativa predominantemente descritiva e exploratória. No que diz respeito ao delineamento, foi utilizado um estudo de casos múltiplos. Com base em Yin (2015), este refere-se a uma investigação empírica que analisa e descreve um fenômeno contemporâneo em profundidade e em seu contexto de vida real. Além disso, segundo o mesmo autor, o estudo de casos múltiplos permite sondar se diferentes sujeitos/grupos/organizações compartilham similaridades e/ou se refletem particularidades. Buscou-se seguir os itens do instrumento Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ) (Tong, Sainsbury, & Craig, 2007).

Participantes

Fizeram parte desta pesquisa 10 estudantes cotistas de uma universidade pública federal do sul do país, cinco mulheres e cinco homens, com idades entre 18 e 28 anos (M = 22,3 anos; DP = 3,3). Três estudantes eram da área de saúde (E1, E2, E3), quatro estudantes da área tecnológica (E4, E5, E6, E7), e três estudantes da área de humanas (E8, E9, E10). Os discentes estavam entre o terceiro e o sétimo semestre de formação universitária. O curso de graduação de oito estudantes era em período integral e o de dois estudantes em período noturno. Quanto à subcategoria de cotas pelas quais ingressaram na IES em questão, todos os 10 discentes da pesquisa são egressos do ensino médio na rede pública, e oito eram também oriundos de famílias com renda mensal igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita. Já quanto aos aspectos étnico-raciais, nove eram discentes autodeclarados brancos e um discente era autodeclarado negro. A Figura 1 apresenta uma síntese geral de dados sociodemográficos relativos a cada participante.

 

 

Instrumentos

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais com os participantes. O roteiro de entrevista foi elaborado com base nos principais instrumentos psicométricos relativos ao construto das vivências acadêmicas, a saber: o Questionário de Vivências Acadêmicas reduzido (QVA-r) (Granado, Santos, Almeida, Soares, & Guisande, 2005), a Escala de Integração ao Ensino Superior (EIES) (Polydoro, Primi, Serpa, Zaroni, & Pombal, 2001), a Escala de Avaliação da Vida Acadêmica (EAVA) (Vendramini et al., 2004), e a Escala de Ajustamento ao Ensino Superior (EAJES) (Magalhães & Teixeira, 2011). Os elementos atrelados à problemática de carreira identificados nos instrumentos de avaliação reportados anteriormente – e que subsidiaram a construção do roteiro de entrevista – foram os seguintes: significados em torno do processo de escolha pelo ensino superior e pela profissão escolhida, sentimentos em relação ao curso de graduação (identificação, satisfação, integração, pertencimento, etc.), envolvimento em atividades extracurriculares na área de formação, percepção de desenvolvimento de habilidades profissionais, perspectivas e projetos profissionais.

O roteiro incluiu as seguintes perguntas voltadas ao âmbito da carreira: 1) Por quais motivos você decidiu ingressar no ensino superior? 2) O que significa para você a obtenção de um diploma universitário? 3) Como foi o processo de escolha pelo atual curso de graduação? 4) A existência do sistema de cotas influenciou na escolha pelo ensino superior e/ou pelo curso de graduação? Por quê? 5) Como é o seu envolvimento e identificação com o curso de graduação e com a profissão escolhida? 6) Já participou de atividades extracurriculares? Quais? 7) Você acredita que está desenvolvendo os conhecimentos e habilidades necessários para atuar na sua área de formação após a graduação? Como e por quê? 8) Quais são os seus projetos profissionais pós-universidade? 9) Quais razões levaram você a escolher esses projetos? 10) Você identifica oportunidades e obstáculos que possivelmente encontrará após a conclusão do curso? Quais e por quê?

Considerações éticas e Procedimentos de coleta de dados

Esta pesquisa constitui um recorte de dissertação de mestrado, que foi submetido e aprovado por um comitê de ética em pesquisa com seres humanos (CAAE: 83063418.2.0000.0121). Após recebimento de uma lista de endereços de e-mail de 5330 discentes cotistas regularmente matriculados na IES pelo Departamento de Administração Escolar, procedeu-se à realização de sorteio via planilha de Excel para envio de 300 convites voltados à participação nesta pesquisa. Um número de 26 discentes respondeu aos e-mails informando interesse em participar do estudo, contudo, 14 discentes desistiram por motivos diversos e dois fizeram parte do estudo piloto.

O tempo das entrevistas variou de uma hora e cinquenta e dois minutos a três horas e dez minutos (M= 2h32). Elas foram realizadas nas dependências do Serviço de Atenção Psicológica da referida IES. Todas as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra. Após a elaboração das transcrições, optou-se por encaminhá-las a cada estudante, dando a opção de subtração/modificação/acréscimo de conteúdos. Dois entrevistados pediram que fossem efetuados maiores detalhamentos de informações nas transcrições.

Procedimentos de análise de dados

Os dados passaram por uma análise de conteúdo temática de base bardiniana, e seguiram três polos cronológicos: 1) pré-análise, 2) exploração do material, 3) tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Na etapa 1 realizaram-se as leituras flutuantes, já na etapa 2 houve o processo sequencial de a) identificação das subcategorias; e b) identificação das categorias amplas. Após o trabalho de categorização do material, efetuado em conjunto pela pesquisadora responsável e pela voluntária em iniciação científica, recorria-se a uma revisão geral pelo grupo de pesquisa (composto por duas professoras doutoras, quatro mestrandas e duas alunas em iniciação científica). Nessa etapa, apreciavam-se os critérios de exclusão mútua, homogeneidade, pertinência e objetividade dos itens – elementos estes descritos por Bardin (2016) como essenciais para a sistematização de categorias consistentes. Já a terceira etapa da análise de conteúdo foi realizada pela pesquisadora responsável, em parceria com sua orientadora.

 

Resultados

Na Figura 2 estão ilustradas as seis categorias amplas que foram identificadas no que tange ao desenvolvimento de carreira dos discentes participantes da pesquisa.

 

 

Na categoria "Percepção de motivadores e/ou 'pressões' de ordem pessoal, contextual e familiar na escolha pelo ingresso no ensino superior", a possibilidade de conquistar melhores oportunidades para conseguir um retorno financeiro satisfatório e melhoria de condições de vida (individual e familiar) foi a subcategoria mais recorrente, tendo sido apontada por seis discentes – E1, E2, E3, E4, E9 e E10 – tal como ilustrado no excerto a seguir: "Eu vejo meus pais passando muita dificuldade financeira. Todo mês é um perrengue... Eu pensava, 'como eu vou melhorar de vida' e, 'como eu vou poder ajudar'... Ensino superior foi realmente para mudar essa situação da minha família" (E3, mulher, área de saúde).

Outros aspectos percebidos como influenciadores na busca pela formação universitária incluíram: a) "pressão" sociocultural para que os jovens ingressem no ensino superior (E2, E6, E7, E10), atrelado ao discurso de que a conquista do diploma universitário seria a melhor chance de sucesso no mundo do trabalho; b) crença pessoal de que a formação universitária seria a concessora legítima de uma profissão – de um "saber fazer" específico (E2, E6, E7, E10); c) familiaridade e apreço por rotina acadêmica (E3, E7, E10), relacionada à forte identificação com o papel de estudante desde a infância; d) percepção de que a transição do ensino médio para o ensino superior seria algo "natural" (E5, E8), tal como um processo automático e sequencial; e) "pressão" familiar para ingressar no ensino superior (E4, E6), relacionada à expectativa de que os filhos seriam os primeiros membros da família nuclear a conquistarem um diploma universitário; e f) recebimento de auxílios político-sociais governamentais (E9), tais como o Bolsa Família, que contribuíram para que o estudante pudesse voltar-se aos estudos com maior afinco.

Já quanto à escolha pelos cursos de graduação específicos, a Figura 3 apresenta uma síntese dos elementos percebidos como influenciadores nesse processo.

 

 

Como pode-se observar na Figura 3, entre os estudantes da área tecnológica, a influência da percepção de oportunidades no mercado de trabalho e a expectativa de retorno salarial foi mais recorrente (E4, E5, E6, E7). Já entre os estudantes da área de humanas, a influência da identificação com as disciplinas-base do atual curso (E8, E9, E10) e a influência dos professores do ensino fundamental e/ou médio na escolha da área de formação (E8, E9) se destacaram. Entre os estudantes da área de saúde, a escolha como um insight foi mais frequente (E2, E3).

Três dos entrevistados (E1, E7, E8) são os primeiros das suas famílias nucleares a ingressarem no ensino superior. Outros dois (E2, E9) são simultaneamente os primeiros de suas famílias nucleares e não nucleares a chegarem a esse nível de ensino. As verbalizações de três desses estudantes (E2, E8, E9) permitiram a identificação da categoria "Significados relativos a ser o primeiro membro da família a se inserir no ensino superior".A percepção de responsabilidade em servir como exemplo para outros familiares foi a subcategoria mais recorrente entre os referidos universitários, tendo sido apontada tanto por E2, como por E8 e E9. Os discentes acreditam que, possivelmente, as suas escolhas profissionais inspirariam outros membros de suas famílias nucleares a realizarem o mesmo, e isso acarretaria tanto em um sentimento de responsabilidade na busca por ser um exemplo positivo de carreira, como em uma certa "pressão" nesse percurso. Complementarmente, o sentimento de ambiguidade presente na escolha pode ser visto pela indicação de E9, tendo referido que, ao mesmo tempo em que sentia identificação e satisfação com a escolha de carreira realizada, com o afastamento do ambiente familiar estaria impossibilitado de auxiliá-los temporariamente na rotina do trabalho agrícola, e isso seria visto como prejudicial para as condições de sobrevivência da família, a curto e médio prazo.

Já na categoria "Satisfação e identificação atual com o curso/profissão escolhido e com atividades extracurriculares na área de formação",verificou-se aidentificação e satisfação com a escolha profissional, simultaneamente com a não satisfação com alguns ou vários aspectos do curso, sendo essa subcategoria apontada por oito discentes – E1, E2, E3, E4, E5, E7, E8, E9. Nesse sentido, a profissão é entendida pelos referidos estudantes como algo maior que o curso de graduação em si, que muitas vezes é visto de forma negativa quanto a aspectos didático-pedagógicos e de estrutura curricular.

Ainda, oito discentes (E1, E2, E3, E5, E6, E7, E8, E10) já haviam se inserido em atividades não obrigatórias relacionadas aos seus cursos, tais como estágios, projetos de pesquisa, extensão, monitoria, etc. Desses estudantes, seis (E1, E2, E3, E5, E7, E8) apresentaram verbalizações que remetem ao impacto da centralidade da participação nessas atividades no seu desenvolvimento de carreira, especialmente pelo fato dessas atividades permitirem que os estudantes experienciem de modo mais realista a prática profissional na área, como ilustrado no excerto a seguir: "Você conseguir ajudar o paciente, e às vezes dar atenção que o professor não dá, isso já te motiva, sabe... Ou no final o paciente 'obrigada por ter me escutado'... isso é bom, isso vale a pena aturar esse curso chato, porque é o que eu quero, é minha profissão no futuro"(E3, mulher, área de saúde).

Por outro lado, E9, que necessita trabalhar em tempo integral para manter-se no ensino superior, discorreu sobre a percepção de escassez de organização e planejamento de atividades extracurriculares nos finais de semana, para que estudantes-trabalhadores possam participar. O estudante destacou o fato de que essa concentração de horários tem um caráter elitista e que as dificuldades de se inserir nesses espaços o impede de potencializar o seu preparo acadêmico-profissional para a sua futura inserção no mercado de trabalho. De modo semelhante, E7 enfatizou a percepção de que diversos processos seletivos para atividades extracurriculares apresentam pré-requisitos pouco sensíveis às disparidades relativas à trajetória escolar anterior de cotistas e não cotistas. Além disso, segundo o discente, mesmo quando alunos cotistas conseguem passar em algum desses processos seletivos, muitos se deparam com empecilhos, por exemplo, no caso das atividades de intercâmbio, há custos com exames de proficiência, custos com deslocamento para entrevista no consulado, etc. O excerto a seguir reitera essa percepção: "Os melhores vão ganhando as melhores oportunidades, e daí depois lá no mercado de trabalho eu ainda vou ter que competir com eles, sendo que eles já vão ter um currículo muito melhor que o meu. E a minha visão é que a universidade deveria atender mais as pessoas, ela deveria trazer desenvolvimento, puxar os que estão em baixo para cima, e não só melhorar os que já estão em cima" (E7, homem, área tecnológica).

No que tange à categoria de análise "Perspectivas de carreira", oito estudantes (E2, E3, E4, E5, E7, E8, E9, E10) identificaram a alta probabilidade de sequência na área acadêmica (mestrado, doutorado), especialização ou residência profissional. As razões citadas para essas aspirações profissionais incluíram aumentar as chances de se inserir no mercado de trabalho, ter maior preparo, maior retorno e estabilidade financeira e/ou morar no exterior, tal como ilustrado por E2 – mulher, área de saúde – ("Eu acho que é até mais gratificante do ponto de vista profissional, ficar cada vez melhor em algo, e mais seguro também") e por E7 – homem, área tecnológica – ("aí você se torna especialista numa área, e é isso que falta no mercado").

Nas verbalizações de três estudantes das três áreas (E1, E5, E9) observou-se também que seus projetos profissionais estavam relacionados a causas humanitárias. E1 e E5 almejavam desenvolver produtos que pudessem contribuir para a resolução de problemas sociais. Já E9 planejava lecionar voluntariamente para outras pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica: "Ir para lá, para mostrar que é possível, e outras pessoas não sofram o que eu sofri... porque na nossa cidade você vai trabalhar de peão, na roça, como mecânico... porque você não tem perspectiva. Então nesse sentido você acaba dando uma perspectiva para quem não tem" (E9, homem, área de humanas).

Quanto à última categoria de análise "Percepções de oportunidades e obstáculos relacionados à inserção profissional futura na área de formação", a maior parte dos discentes reconheceu que provavelmente se deparará com dificuldades após a conquista do diploma universitário. Nesse sentido, identificou-se nas verbalizações de sete (E2, E3, E6, E7, E8, E9, E10) dos 10 entrevistados percepções dos seguintes possíveis obstáculos relativos à transição para o mercado de trabalho: a) restrição de oportunidades de trabalho ou residência (E2, E3, E6, E7, E10); b) dificuldades financeiras para realizar cursos preparatórios para residência/pós-graduação (E2, E3); c) sair da zona de conforto relativa ao papel de estudante (E9); e d) realizar um trabalho de boa qualidade (E8).

Por outro lado, há nas verbalizações de dois estudantes (E1, E4) percepções de oportunidades para a inserção no mercado de trabalho voltadas ao status positivo da IES na qual estão inseridos e à oferta de vagas constante na área de atuação. Por fim, E5 trouxe à tona uma visão resiliente, onde há a percepção de conversão de dificuldades passadas, enquanto cotista na graduação, como vantagem competitiva no mercado de trabalho: "Então toda aquela dificuldade ali de ser cotista, quando eu me formar, já vai ter tudo se tornado só positivo... Aí essas coisas se tornariam um diferencial comparado a alguém que não passou por coisas 'chatas', ou por coisas mais difíceis". (E5, homem, área tecnológica).

 

Discussão

É possível tecer interessantes reflexões a partir dos resultados analisados, que buscam responder aos objetivos deste artigo. Quanto à análise dos fatores motivadores para inserção no ensino superior, identificou-se uma série de aspectos, entre eles a percepção de apreço pela rotina acadêmica, o que demonstra que, desde muito cedo, alguns discentes já tinham essa identificação com o papel de estudante. Também observou-se a percepção de que esse seria o caminho "natural" após a conclusão do ensino médio, possivelmente em parte como resultado do movimento de significativa expansão e relativa democratização do ensino superior (Heringer, 2018; INEP, 2019; Mancebo et al., 2015; OCDE, 2015), que faz com que cada vez mais os discentes entendam que a formação nesse nível de ensino seja uma alternativa viável na construção de suas carreiras. Acrescenta-se ainda que as próprias superexigências de qualificação, devido ao cenário de extrema competividade (Magalhães & Bendassolli, 2013) podem levar à noção de quase "obrigatoriedade" em conquistar um diploma universitário para conseguir o ingresso e manutenção no mercado de trabalho.

É interessante retomar ainda a percepção de formação universitária como uma possibilidade de melhoria de condições de vida e de ascensão social. De modo similar, nas pesquisas de Bello (2013) e de Neves et al. (2016), as cotas apareceram nas verbalizações dos discentes como uma mola propulsora para novas possibilidades de vida, gerando expectativas e sonhos compartilhados pelos familiares. De fato, dentre os objetivos intrínsecos às políticas de ações afirmativas, está a promoção da igualdade de oportunidades de acesso a espaços fundamentais como a educação e o trabalho (Gomes & Silva, 2001). Contudo, há também de se ter cautela acerca do discurso largamente propagado no contexto societário brasileiro de que melhores condições de vida e ascensão social serão conseguidas, quase que exclusivamente, e de modo "natural" ou "fácil/simples", por meio da qualificação universitária.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019) apontam, por exemplo, que no período de 2014 a 2017, houve crescimento da taxa de desemprego em todos os níveis de instrução no país. Enquanto em 2014 a média anual da taxa de desemprego foi de 6,9%, em 2017 registrou-se média anual de 12,5%. Em 2018 e 2019 as médias anuais de desemprego permaneceram elevadas – 12,3% e 11,9%, respectivamente. Embora esses dados do IBGE apontem que a taxa de desemprego da população com diploma universitário é razoavelmente menor, na prática, esses percentuais representam um cenário excludente e hipercompetitivo, no qual o diploma universitário, por si só, cada vez menos é a garantia de uma vaga no mercado de trabalho.

De igual modo, há de se atentar para os dados do IBGE (2019) que indicam que os jovens configuram-se, como um grupo populacional significativamente vulnerável, na medida em que, nos últimos anos, aqueles com idades entre 16 a 29 anos, têm encontrado maior dificuldade de inserção no contexto de trabalho formal – mesmo aqueles com níveis de escolarização mais elevados. Nesse sentido, em 2019 o governo federal instituiu a medida provisória nº 905, que versa sobre o contrato de trabalho verde e amarelo. O objetivo desta medida seria o de criar mais vagas de emprego para jovens entre 18 a 29 anos que ainda não ingressaram formalmente no mercado de trabalho. Entretanto, na prática, esta medida acabaria por contribuir para a precarização das condições de trabalho, com cortes de direitos trabalhistas e estabelecimento de limites sobre a remuneração máxima, que não poderia ultrapassar 1,5 salários mínimos. Posteriormente, em 2020, foi instituída a Medida Provisória nº 955, que revogou o contrato de trabalho verde e amarelo. Ainda assim, as discussões acerca de possíveis alterações na legislação trabalhista com foco no público jovem permanecem em pauta. Considerando esse contexto, reforça-se o argumento de que a mobilidade social ascendente não será "automaticamente" conquistada a partir da formação universitária, devido a atravessamentos relacionados à discriminação quanto à faixas-etária, à raça e outros elementos, bem como a partir da atual conjuntura de recessão no mercado de trabalho como um todo.

Nesse cenário, os serviços na área de orientação e desenvolvimento de carreira precisam desenvolver práticas que permitam a complementaridade entre abordagens focadas no indivíduo com outras focadas no contexto. Segundo Cardoso, Duarte e Sousa (2016), a complementaridade entre esses dois polos configura-se como possibilidade de rompimento com uma lógica de perpetuação da discriminação e da opressão, e como resposta aos desafios de promoção da justiça social. Esses mesmos autores destacam as práticas subsidiadas no modelo de emprego apoiado. Inclui-se nessa perspectiva o auxílio para a adequação do currículo escolar às exigências de integração profissional, o estabelecimento de contatos e parcerias com os serviços de emprego e associações empresariais, além de sessões de orientação de carreira individuais, apoio-tutoria na transição para o mercado de trabalho, entre outros. A disseminação deste e de outros programas similares pode se constituir como um avanço na abordagem da problemática acerca da transição universidade-trabalho, especialmente para os grupos populacionais em situação de maior vulnerabilidade.

Em outra direção, é interessante reiterar também que nesta pesquisa a identificação com a profissão e a convicção para persistir na mesma, mesmo diante dos obstáculos no curso, parece ser impulsionada pela inserção em atividades extracurriculares relacionadas à área de formação, reforçando o peso que a oferta dessas atividades tem na permanência dos estudantes em seus cursos. O impacto positivo do envolvimento em atividades extraclasse na integração acadêmica, social e no envolvimento e satisfação com a graduação têm sido destaque em pesquisas com universitários de modo geral – cotistas e não cotistas (Oliveira et al., 2016; Porto & Gonçalves, 2017).

Além disso, no caso de estudantes cotistas de baixa renda, a inserção em atividades extracurriculares remuneradas – ex: bolsas de estágio, pesquisa, extensão, monitoria, etc. – configuram-se como importantes estratégias de permanência no ensino superior (J. C. Santos, 2013). Nesse sentido, não se pode deixar de considerar que seria primordial que governo federal, em parceria com as IES federais, planejassem e ampliassem campos de estágio nas diferentes áreas de formação, a fim de oferecer bolsas estágio, extensão e pesquisa com um valor justo aos discentes, contribuindo para a melhoria da qualidade da permanência de cotistas e para o desenvolvimento profissional dos mesmos.

Por outro lado, há pelo menos três obstáculos que dificultam a ampla promoção ou inserção nessas atividades no ensino superior público brasileiro. Em primeiro lugar, alguns estudantes cotistas precisam trabalhar integralmente para conseguirem manter-se na graduação, de modo a não terem disponibilidade para participar de atividades extracurriculares, até porque mesmo as atividades remuneradas (estágios, pesquisas, etc.) que ocorrem no interior da instituição, oferecem – salvo algumas exceções – baixa remuneração, ou apresentam processos seletivos elitizados (nos quais muitos estudantes cotistas têm a sua inserção inviabilizada). Em segundo lugar, os docentes precisam dividir seu tempo entre atividades administrativas, ensino, pesquisa e extensão e, devido à sobrecarga de trabalho desses profissionais, caso ocorra um amplo aumento da disponibilização de atividades extracurriculares, a supervisão na realização dessas atividades ficaria comprometida. Em terceiro lugar, historicamente não há bolsas de estágio/pesquisa/extensão para todos os estudantes interessados, além do que se tem acompanhado os cortes de verbas voltadas para às IES públicas recorrentemente ao longo dos últimos anos.

Percebe-se então uma lógica da inclusão-excludente (Kuenzer, 2007), presente na configuração do ensino superior público brasileiro, na medida em que, embora as ações afirmativas tenham contribuído para que as pessoas historicamente marginalizadas conseguissem finalmente acessar o ensino superior, o não comprometimento do estado e das IES com a qualidade da permanência de seu corpo estudantil pode impedir, inclusive, que os estudantes em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica e/ou acadêmica consigam concluir seu processo formativo universitário com qualidade, comprometendo, em suma, o seu desenvolvimento profissional.

Quanto às perspectivas de carreira dos universitários cotistas desta pesquisa, é importante destacar a análise de que há uma alta probabilidade de sequência na pós-graduação, tanto para aumentar chances de se inserir no mercado de trabalho, como para ter maior retorno e estabilidade financeira, ter maior preparo, e/ou morar no exterior. Outras investigações sobre projetos profissionais de universitários em geral – cotistas e não cotistas –, apontam para o crescente número de pessoas que afirmam terem a pós-graduação enquanto primeiro projeto pós-universidade, tal como identificado por Melo e Borges (2007) e por Souza et al. (2014). Os participantes desses estudos apontaram que a razão por essa decisão de carreira foi o anseio por uma maior qualificação para atuação profissional.

Já os estudantes de pós-graduação que participaram da pesquisa de Silva (2016) afirmaram que, em parte, a decisão pela continuidade nos estudos se deu pela percepção de poucas oportunidades de emprego. Assim, percebe-se a necessidade de promoção de reflexões entre os universitários, sobre a possibilidade do investimento em uma pós-graduação unicamente pelo anseio de buscar maiores chances de inserção no mercado de trabalho e de retorno salarial poder acarretar prejuízos pessoais, institucionais e governamentais (no caso de pós-graduações de caráter público). Caso esses sujeitos não tenham interesse genuíno pelo aperfeiçoamento em uma dada área profissional, pode-se ter como consequência a evasão ou a não atuação na área de formação após a conclusão do referido nível de ensino.

Por fim, é interessante analisar a percepção de um dos estudantes quanto ao fato de ter passado por dificuldades atreladas à sua realidade enquanto cotista, poder reconfigurar-se como vantagem competitiva na transição universidade-trabalho, já que, por ter conseguido superá-las, teria a capacidade de resolver problemas e lidar de forma equilibrada com algumas situações que estudantes não cotistas talvez não tenham vivenciado. Isto é, a partir experiências desafiadoras interpretadas como bem-sucedidas, seriam desencadeadas avaliações positivas que aumentam a crença sobre a capacidade individual de realizar com sucesso tarefas específicas – autoeficácia.

 

Considerações finais

Percebe-se que algumas das problemáticas levantadas pelos discentes cotistas desta pesquisa, por exemplo, a percepção de satisfação com a profissão escolhida relacionada à inserção em atividades extracurriculares na área de formação, e os projetos profissionais vinculados à realização de uma pós-graduação são aspectos comuns em pesquisas com universitários de modo geral – cotistas e não cotistas (Melo & Borges, 2007; Oliveira et al., 2016; Porto & Gonçalves, 2017; Silva, 2016; Souza et al., 2014). Portanto, sugere-se aqui que as vivências acadêmicas de universitários cotistas não são integralmente divergentes das vivências de universitários não cotistas. Ainda assim, não se pode perder de vista a necessidade de as IES atentarem para algumas especificidades vivenciadas pelo público focalizado neste estudo, especialmente as questões citadas que remetem a uma noção de inclusão-excludente, e que podem interferir no bem-estar físico e psicológico percebido, na qualidade das vivências e integração acadêmica e no desenvolvimento de carreira desses estudantes.

Quanto às limitações deste estudo, inicialmente destaca-se que, mesmo que os convites tenham sido enviados após sorteio, a fim de evitar tendenciosidade, os entrevistados podem ser justamente aqueles mais satisfeitos ou mais insatisfeitos com a qualidade do seu processo formativo e do seu desenvolvimento de carreira. Nesta pesquisa também se teve dificuldade em incluir estudantes cotistas trabalhadores, devido à escassez de horários que eles possuem para participar de entrevistas. Ainda, nove estudantes que aceitaram participar do estudo são brancos, e apenas um estudante é negro. Tal caracterização dos participantes inviabilizou um maior detalhamento sobre as particularidades do desenvolvimento de carreira de universitários cotistas negros neste estudo.

Nesse sentido, quanto às sugestões para novas pesquisas, seria importante que os estudos futuros se voltassem ao desenvolvimento de carreira e aos projetos profissionais de cotistas negros, cotistas indígenas, cotistas com deficiência e cotistas trabalhadores. Pesquisas sobre a empregabilidade e a carreira pós-universidade junto a sujeitos que realizaram o processo formativo como cotistas também parecem alternativas interessantes, a fim de identificar obstáculos e facilitadores percebidos por esse público na inserção no mercado de trabalho após a conquista do diploma universitário.

No que diz respeito às implicações práticas, esta pesquisa visou contribuir para a discussão acerca do desenvolvimento de políticas públicas e de serviços universitários que auxiliem na prevenção e/ou minimização de obstáculos quanto à qualidade da trajetória formativa de sujeitos em maior vulnerabilidade acadêmica, e que visem favorecer a integração ao ensino superior e a permanência com qualidade no mesmo.

 

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Endereço para correspondência:
Universidade Federal de Santa Catarina
R. Eng. Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n - Trindade
Florianópolis - SC, 88040-900

Recebido: 21/10/2019
1ª Reformulação: 14/05/2020
Aceito: 04/06/2020

 

 

Sobre as autoras:
Patrícia Albanaes é psicóloga formada pela UFSC. Possui mestrado em psicologia (UFSC) com ênfase em orientação e desenvolvimento de carreira.
E-mail: patricia.albanaes@gmail.com
Maiana Farias Oliveira Nunes é psicóloga formada pela Faculdade Ruy Barbosa. Possui mestrado e doutorado em psicologia (USF) com ênfase em avaliação psicológica. Atualmente é docente vinculada ao departamento de Psicologia da UFSC e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC.
E-mail: maiananunes@mac.com
Marucia Patta Bardagi é psicóloga formada pela UFRGS. Possui mestrado e doutorado em Psicologia (UFRGS) com ênfase em orientação e desenvolvimento de carreira. Atualmente é docente vinculada ao departamento de Psicologia da UFSC e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC.
E-mail: marucia.bardagi@gmail.com
Emily de Farias é psicóloga formada pela UFSC. Atualmente é voluntária em iniciação científica no Laboratório de Orientação e Informação Profissional (LIOP/UFSC).
E-mail: emedefarias@gmail.com

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