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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.21 no.2 Campinas jul./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.26707/1984-7270/2020v21n203 

10.26707/1984-7270/2020v21n203

ARTIGO

 

Perejivânie (Vivência) na prática de Orientação Profissional: contribuições da Psicologia Histórico-Cultural

 

Perezhivanie (experience) on career guidance activities: contributions of the Historical-Cultural Psychology

 

Perejivânie (Vivencia) en la Orientación Profesional: aportes de la Psicología Histórico-Cultural

 

 

Erickaline Bezerra de LimaI; Gabriel de Nascimento e SilvaI; Deyse Cristina Valença GuedesI; Maria da Apresentação BarretoI

IUniversidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

À luz da Psicologia Histórico-Cultural, as atividades de Orientação profissional podem favorecer o conhecimento da realidade social e suas contradições, promovendo uma tomada de consciência para gerir os desafios da escolha num contexto multideterminado pelas relações de classe. Apresentamos o relato de uma experiência em Orientação Profissional realizada com alunas/os de um cursinho pré-universitário, em via de prestar o Exame Nacional do Ensino Médio. A partir do conceito de Vivência (Perejivânie), problematizamos os impactos das experiências para os participantes ao situar as afetações e os sentidos no transcurso das oficinas. Constatamos a necessidade de se desenvolverem ações para esse público, para além da mediação acerca da escolha, ao propiciar discussões sobre dilemas da transição ao Ensino Superior.

Palavras-chave: Orientação Profissional; Perejivânie (Vivência); Psicologia Histórico-Cultural.


ABSTRACT

In light of Cultural-Historical Psychology, career guidance activities can support knowledge of social reality, promoting awareness to manage the challenges of choice in a context determined by class relations. We present the report of an experience in Professional Guidance conducted with students from a preparatory course for higher education, about to take the National High School Exam. Based on the concept of experience (Perezhivanie), we reflect about the impacts of the experiences for the participants by situating the affects and the senses in the course of the workshops. We noted the need to develop actions for this public that, not only provides mediate choices, but afford discussions about the dilemmas of the transition to higher education.

Keywords: Professional Guidance; Perejivânie (experience); Cultural-Historical Psychology.


RESUMEN

A través de la Psicología Histórico-Cultural, las actividades de Orientación Profesional pueden fomentar el conocimiento de la realidad social y sus contradicciones, promoviendo la conciencia para gestionar los desafíos de elección en un contexto determinado por las relaciones de clase. Presentamos el informe de una experiencia en Orientación Profesional realizada con estudiantes de un curso preuniversitario, apunto de tomar el Exame Nacional do Ensino Médio. Basado en el concepto de Vivencia (Perejivânie), problematizamos los impactos de las experiencias para los participantes situando los afectos y sentidos en el curso de el taller. Notamos la necesidad de desarrollar acciones para esta audiencia, más allá de la mediación sobre la elección, al proporcionar debates sobre dilemas de transición a la educación superior.

Palabras clave: Orientación Profesional; Vivencia (Perejivânie); Psicología Histórico-Cultural.


 

 

Introdução

Na organização social contemporânea, o ensino médio escolar comporta a atribuição de direcionar o jovem para a continuação dos estudos ou para o mundo do trabalho. Mas os dados da realidade sinalizam que, para alguns jovens, esse término do ensino médio soa como o fim da trajetória escolar, enquanto que para outros existe a possibilidade de continuidade materializada na preparação para a entrada no ensino superior. Sob a lógica capitalista, a sociedade projeta a falsa ideia de liberdade na realização de tais escolhas, supostamente balizadas nas aptidões e decisões individuais do sujeito, tornando-o o único responsável pelo fracasso ou sucesso de sua trajetória profissional. Cenário este, propício para a manifestação de ansiedades, mediante a iminência de lidar com o fracasso, bem como o medo, a dúvida e a pressão, derivados do processo de escolha enfrentado (Alvim, 2011; Bock, 2001).

Em face dessa realidade, a prática da Orientação Profissional (OP) vem se constituindo, historicamente, como um canal de possibilidades para a atuação do/a psicólogo/a nos contextos educacionais. Sob a ótica da Psicologia Histórico-Cultural, as atividades desenvolvidas podem favorecer discussões sobre o contexto sócio-histórico e suas contradições e, a partir disso, promover uma maior tomada de consciência para gerir os desafios da escolha, pensando quais caminhos são possíveis e desejáveis, considerando, sobretudo, que, na sociedade dividida em classes, a ideia de escolha também precisa ser problematizada.

Neste trabalho, objetivamos apresentar uma experiência prática de Orientação Profissional desenvolvida por graduandos em Psicologia com jovens alunas/os de um cursinho pré-universitário popular, em vias de prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A prática realizada proporcionou o aprendizado de uma intervenção profissional real, pela qual foi possível planejarmos, organizarmos, executarmos e avaliarmos a atividade em formato de oficina. Sem dúvida, a experiência desenvolvida contribuiu com nosso processo formativo, enquanto estagiários de Psicologia no campo educacional.

Pretendemos compartilhar não apenas as atividades introduzidas e adaptadas, mas, principalmente, as problematizações que surgiram no decorrer da prática, incluindo as relações com o aporte teórico adotado. Adiante, iremos perceber como o conceito de Vivência, do russo Perejivânie, inerente à abordagem histórico-cultural, pode ser percebido mediante a prática instaurada. Tal conceito, introduzido pelo psicólogo soviético Lev Vigotski (Vinha & Welcman, 2010), atrela-se à ideia de desenvolvimento humano, que é descrito como um processo que atua “primeiro no social, depois no psicológico, primeiro entre as pessoas como categoria interpsicológica, depois dentro da criança” (Vigotski, 2000, p. 26). Da mesma forma, a ideia de Vivência passa a ser definida como desenvolvimento da consciência do indivíduo sobre e nas relações com seu meio (Blunden, 2016; Toassa, 2011).

Capucci e Silva (2018, p. 354) apontam que no conceito de perejivanie “os papéis são dinâmicos, e a ordem, a hierarquia e as relações entre as funções que determinam mudam de acordo com as posições sociais ocupadas pelos sujeitos nas dinâmicas interpessoais”. Em consonância com essa ideia, podemos entender as escolhas profissionais como um processo multifatorial em que o estudante tomará suas decisões levando em consideração a Vivência. Nesse sentido, dentre os aspectos educacionais, elegemos alguns destaques: as matérias de maior interesse dos alunos no período escolar; uma possível admiração profissional pela prática de um professor; e, os eventos culturais e científicos em determinadas áreas (Marques & Carvalho, 2019). Dentre as questões sociais, destacamos: a garantia de maior empregabilidade; o reconhecimento da profissão; o convívio próximo com certas profissões de parentes, familiares e/ou amigos, entre outras.

Esses e outros aspectos podem sinalizar o campo vivencial, ou o que chamamos comumente de fatos marcantes da realidade de um sujeito que pretende escolher um curso superior ou uma carreira profissional. Caracterizam-se como influências diretas pela intensidade, pelo sentido e pelo afeto envolvidos na relação dinâmica e ativa do sujeito com seu meio, podendo ele reunir tais fatos para gerenciar a realidade – como é o caso de eventuais tomadas de decisão. Então, “é possível interpretar a perejivanie [...] como resultado de um processo – difícil, laborioso, que toma tempo e energia – usualmente entendido como experiência efetiva na consciência” (Capucci & Silva, 2017, p. 411).

Nesse sentido, questionamos: as intervenções em Orientação Profissional podem ter um impacto vivencial na realidade do sujeito? Diante do que foi e ainda será exposto, a resposta é sim. A partir da prática realizada com base na Teoria Histórico-Cultural, que será descrita e problematizada neste escrito, veremos as nuances da relação dos participantes com as dinâmicas propostas e como estas se tornaram, para eles, modos de compreender a escolha ao ir de encontro às Vivências do trajeto de vida, cedendo espaço para o compartilhamento e diálogo entre eles. Mas, sobretudo, a prática, sendo Vivência em si, pode proporcionar o autoconhecimento e o desenvolvimento de estratégias para melhor lidar com os dilemas inerentes a esse processo anterior ao ingresso no Ensino Superior.

Orientação Profissional: perspectivas e contribuições da Teoria Histórico-Cultural

No decorrer da história, a questão da escolha profissional tem sido discutida a partir de concepções distintas, a depender do contexto em que essa discussão se situa e dos referenciais que adota para sustentar as práticas (Bock, 2001). Na atualidade, observa-se, em nossa sociedade, a influência do modelo neoliberal e sua ênfase no individualismo, sedimentando as diversas relações sociais. Nesse contexto, o ato de escolher uma profissão aparece como uma possibilidade para os sujeitos livres, bastando tão somente correr atrás do que se deseja. Tal ideologia defende a ideia de que todos têm as mesmas oportunidades e os eventuais sucessos ou fracassos dizem respeito unicamente aos esforços individuais (Oliveira & Anjos, 2011).

Todavia, nossa inserção em uma sociedade classista, que se sustenta na exploração do homem pelo homem, obriga-nos a questionar até a expressão “escolha profissional”. Esse modelo societal traz consigo a contradição de defender uma ação pautada no esforço pessoal, ao mesmo tempo que cerceia as possibilidades de ascensão de determinadas pessoas, grupos ou classes sociais. Um dado concreto de realidade aponta que, a depender da classe na qual estamos inseridos, as possibilidades ou impossibilidades de escolhas em termos profissionais se apresentam mais fortemente.

É nessa conjuntura histórica que situamos as primeiras práticas da Orientação Profissional, especificamente no período da industrialização europeia e norte-americana, nas primeiras décadas do século XX, momento em que a sociedade era convocada a produzir conhecimentos que alavancassem o desenvolvimento das forças produtivas. Nos primeiros centros de Orientação Profissional, pautados por uma ciência balizada nos moldes positivista e experimentalista, buscava-se desenvolver estudos e técnicas para avaliar e adequar os indivíduos à máquina produtiva.

De acordo com Bock (2001), foi nesse cenário que se começou a sistematizar os marcos teóricos que ainda hoje sustentam algumas práticas em OP. Conforme o autor, as teorias tradicionais remetem a um modelo em que se buscava adequar o perfil psicológico do sujeito – composto por traços de personalidade específicos, aptidões e interesses – a um perfil profissional predeterminado, procurando-se o indivíduo certo para o lugar certo. Essa perspectiva, ainda em vigor nos dias atuais, tem como foco o indivíduo possuidor de uma vocação, seja ela inata ou construída ao longo da vida, que pode ser diagnosticada mediante o uso de técnicas ou instrumentos psicológicos. Nesse sentido, é função da Orientação Profissional fazer com que o sujeito conheça suas características pessoais para, a partir delas, buscar uma profissão que seja condizente com seu perfil. Subjaz a essa teoria uma visão de indivíduo dissociado de sua realidade, uma vez que sua condição de vida é apontada como resultante de suas escolhas.

Diferenciando-se das teorias tradicionais, as abordagens críticas emergiram tendo como premissa a discordância em relação às práticas que isolam o indivíduo de suas relações sociais e naturalizam os fenômenos históricos e as desigualdades sociais. Essas abordagens apontam que a sociedade está dividida em classes com interesses distintos e contraditórios e, sendo assim, os indivíduos, ao estarem inseridos em um tecido social que limita seu poder de ação, têm sua ocupação limitada pela posição na sociedade. Com isso, as práticas passam a ter a finalidade de conscientização para a superação do modelo de produção vigente, que é autoritário, injusto e explorador. A escolha ocorre, então, a partir da reflexão crítica e consciente sobre o trabalho como atividade social determinante das relações sociais (Bock, 2001).

Sobre os dois blocos de teorias apresentadas anteriormente, Bock (2001, pp. 37-38) destaca: “Se na ideologia liberal o indivíduo ‘pode tudo’, em sua crítica ele passa a ‘não poder nada’”. Numa tentativa de superar a dicotomia indivíduo-sociedade, o autor expõe algumas contribuições a partir da Psicologia Histórico-Cultural para pensar o processo de Orientação Profissional. Essa abordagem assinala que é preciso avançar em práticas que compreendam o indivíduo como autor da sua história, da sua individualidade e das suas escolhas (Bock, 2001). Ou seja, o sujeito não é passivo nessa relação, mas sim co-construtor, em que indivíduo e sociedade estão numa mediação constante, construindo e sendo construídos, num movimento dialético. Nesse movimento, que une contradição e complementação, entende-se que o sujeito é capaz de agir sobre as condições sociais, mediante ações individuais e coletivas.

Essa concepção, portanto, considera o indivíduo em relação com a sociedade, de forma dinâmica e dialética, e tem Vigotski (1994) como seu principal representante. O autor usa a expressão personalidade social ao afirmar que as funções psicológicas superiores resultam da internalização do social: o que era intersubjetivo passa a ser intrassubjetivo, sendo esse processo mediado pela linguagem. Defende que a identidade é metamorfose, processual, sendo essa forma de entendimento a base da compreensão sobre a escolha profissional: o indivíduo se desenvolve constantemente, não é e nunca estará acabado na sua forma final.

Concordamos com Oliveira e Anjos (2011) quando afirmam que a experiência da Orientação Profissional é uma relação de educação, ou seja, tem um caráter educativo e promove aprendizagens que resultam em saltos qualitativos no desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Esse processo de desenvolvimento, segundo Vigotski (2012), é entendido não em função de uma idade cronológica, pois o movimento é contínuo e se estende durante toda a vida, mas a partir da inserção e apropriação do meio social. Contudo, é por meio das aprendizagens, sob a mediação de alguém mais experiente ou da cultura, que os processos psicológicos que estão formados ou em fase de maturação são tensionados e podem ir além das capacidades atuais, avançar para o que de início era apenas potencial.

É com essa ideia de movimento que localizamos a prática de OP: um espaço de instrumentalização dos alunos para a compreensão mais ampla de si e da realidade, superando as aparências e naturalizações, levando-os a intervir nas dificuldades que possam lhes apresentar. O processo é um movimento entre o vivido educacional dos jovens e o devir profissional, gerando discussões e construindo planos de ação com base nas condições materiais e concretas da vida. Nessa perspectiva, defendemos o papel do/a psicólogo/a orientador/a profissional como mediador entre os sujeitos envolvidos e os conhecimentos, de modo a favorecer uma tomada de consciência e maior autonomia dos participantes. Essa concepção instrumentalizou teoricamente os estudantes de psicologia para a experiência aqui relatada.

 

Método

Como processo dialético, as práticas de Orientação Profissional, norteadas pela abordagem histórico-cultural, buscam promover um espaço propício de discussão crítica sobre os processos de escolha. Entendemos ser este lócus privilegiado para questionamentos acerca dos atravessamentos e das influências que agem sobre as escolhas pessoais, para que, instigados a desenvolver um pensamento crítico, os/as estudantes possam gerir melhor as questões envoltas no processo da escolha profissional (Bock, 2001). Nesse sentido, a mediação se dá com o auxílio de ferramentas caracterizadas pelas dinâmicas, tarefas, discussões e, principalmente, compartilhamento das experiências vividas tanto fora como dentro da oficina. Para sistematização deste trabalho, nos amparamos também nos registros contidos em diários de campo, que, igualmente, nos permitiram retomar o que fora anotado e nortearam a dinâmica de planejamento ao longo dos encontros.

A proposta por nós desenvolvida se constituiu através de intervenções grupais, sistematizadas em 4 encontros semanais, com duração de aproximadamente 2 horas. Um desses encontros foi dedicado exclusivamente para a Vivência de relaxamento (pré-Exame); e, entre o terceiro e o quarto encontro, houve um intervalo de duas semanas devido ao período de prova, visto que o último encontro só aconteceu após o ENEM.

Com o objetivo de mapear os dados socioeconômicos dos integrantes, suas trajetórias escolares e profissionais, bem como suas motivações e expectativas para participar dos encontros de OP, aplicamos um questionário desenvolvido pelos autores. Como tínhamos a intenção de publicar a experiência, aplicamos um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) logo no primeiro encontro, a fim de cumprir os aspectos éticos, uma vez que o estudo envolveu coleta de dados com seres humanos. Importa mencionar que não houve necessidade de passar pela aprovação do comitê de ética, pois não se constituiu um projeto de pesquisa, embora se tenha coletado dados socioeconômicos dos participantes.

O grupo de participantes foi composto por 12 estudantes advindos de um cursinho preparatório popular, direcionado a pessoas com baixo poder aquisitivo, oferecido em uma instituição pública de ensino superior. Os principais dados se encontram agrupados na Tabela 1.

 

 

Conforme consta na Tabela 1, em relação aos participantes tivemos uma predominância de mulheres (83,4%), entre 18 e 21 anos, solteiras/os (91,7%), residentes na capital (58,3%) e região metropolitana (41,7%). O grupo apresenta majoritariamente renda familiar de até 3 salários mínimos (75%), e todos alegaram morar com a família, sendo que apenas um relatou trabalhar e contribuir com a renda familiar.

De acordo com o histórico escolar, a maior parte dos estudantes é egressa de escolas públicas (50%) ou usufruiu de formação mista (16,7%), tendo cursado integral ou parcialmente nessas instituições. Além disso, cerca de 1/3 dos participantes aponta o envolvimento com cursos técnicos e de graduação.

O detalhamento geral das atividades está descrito na Tabela 2, na qual estão listadas as temáticas trabalhadas em cada encontro, os objetivos e as atividades desenvolvidas.

 

 

Apresentação e discussão da experiência

O início dos exames de admissão ao Ensino Superior no Brasil remete a 1911. Desde então, o vislumbre desse grau de ensino vem direcionando o Ensino Médio brasileiro, principalmente o ensino praticado nas instituições privadas. Existia – e ainda hoje vemos sinais contundentes disso – uma crença de que um ensino médio de sucesso provocaria a aprovação dos alunos nesses exames. Os alunos com os quais trabalhamos também alimentavam essa crença, por serem provenientes de escolas públicas, o tempo todo denunciavam suas fragilidades e poucas condições para concorrer em igualdade às vagas pleiteadas. Nesse sentido, a literatura aponta que, se inseridos no ensino superior, na maioria das vezes, esses mesmos estudantes tendem a conviver com a necessidade de trabalhar, se sustentar e, eventualmente, custear um possível curso universitário, quando este se localiza na iniciativa privada, ou sua permanência em uma universidade pública (Alvin, 2011; Medeiros & Souza, 2017).

Vejamos essa situação de modo mais concreto e atualizado. No Brasil, desde 2009, o Exame Nacional do Ensino Médio se tornou o principal meio de ingresso no Ensino Superior em instituições públicas, a partir da aplicação da nota no Sistema de Seleção Unificada (SISU). Neste sistema, as vagas em universidades do país são disponibilizadas e o aluno seleciona o curso mediante a pontuação alcançada. A escolha do curso termina sendo balizada seguindo critérios da nota de corte, ou seja, o desejo do aluno é determinado pela área ou curso no qual seja possível garantir inserção com base na média obtida nas provas do exame.

Nesse cenário, alguns jovens – tanto os que ingressam em cursos de menor concorrência quanto os que não conseguem ingressar – acabam vivenciando angústias e desmotivações que confluem para os altos índices de evasão nas instituições de ensino superior. Os alunos que participaram desse trabalho conosco, inúmeras vezes esboçaram angústia, medo e descrença nas condições para acessar o ensino superior. Aqueles que nutriam alguma esperança, expressavam as incertezas em relação a necessidade de trabalhar e conciliar as atividades acadêmicas. Estamos, portanto, lidando com um período que provoca desestabilização no desenvolvimento dos jovens. E sem desconsiderar esta realidade, defendemos que as atividades de Orientação Profissional, a partir da abordagem Histórico-Cultural, podem favorecer aprendizagens importantes acerca da realidade vivida, oferecendo conhecimentos que podem contribuir com o enfrentamento e a transformação do que está posto como condição possível (Vigotski, 1999a; 2000).

Em acordo com essa perspectiva, buscamos ferramentas teóricas que pudessem nos ajudar a intervir. Tomamos a categoria de Vivência (do russo, Perejivânie), a qual se centra em elucidar o desenvolvimento da consciência do sujeito em contato com o meio social (Capucci & Silva, 2017; Marques, 2014; Toassa, 2011). Por meio da Vivência, extraímos a noção de sentido e afeto, unidades que, em Vigostki, adquirem demasiada importância por se relacionarem diretamente às funções psicológicas superiores e serem uma espécie de mobilizador interno do indivíduo, isto é, conduzirem à ação. Nessa perspectiva, percebemos o quanto esse construto teórico poderia se fazer presente no processo da intervenção de Orientação Profissional dos jovens, não somente quando já inseridos na proposta de trabalho, mas também em todo o percurso de vida deles, – em suma – antes, durante e após a experiência aqui relatada.

Percebemos que o jovem, no processo de escolha profissional, tem sobre si diversas influências que de alguma forma irão interferir nas suas decisões. A família, as práticas educativas vivenciadas na escola, o mercado de trabalho, ou seja, relações sociais de um modo geral, abarcam o que chamamos de Vivência (perejivânie) (Blunden, 2016). Pois a Vivência constitui-se da relação direta entre o interno (sistemas psicológicos) e o meio externo, indica a dinâmica de “passar por meio da vida, estar em caminho permanente, em busca, sempre morrer e nascer, estar no processo de reformulação de si mesmo, no fluxo da vida. Ao contrário, se não vivenciar – perejit, isso significa não viver” (Jerebtsov, 2014, p. 21). Em relato escrito de um participante, vimos a influência e o reconhecimento da vivência para a escolha:

Atualmente penso mais em Letras e Psicologia, porque são os cursos que mais me identifico. Já me consultei com uma psicóloga e foi uma das melhores experiências que já tive. Quero cursar Psicologia para dar atendimento de qualidade aos mais necessitados. [...] Eu amo ler e amo escrever. Cursar Letras seria muito bom para mim ingressar na área de Literatura Brasileira. Nosso país é muito rico em cultura e o ensino de literatura nas escolas públicas seria bastante positivo (Relato de participante A, 2018).

A Vivência se constituiria dos impactos das experiências na vida de uma pessoa, podendo ser negativas ou positivas no seu percurso, mas que expressariam afetações e sentidos (Vigotski, 2004), sendo que nem toda experiência se constitui como Vivência, somente a intensidade em conjunto com a historicidade do já vivido pode garantir essa definição. Quando o participante relata a escolha da Psicologia pelo fato de ter tido uma experiência com uma psicóloga se concretiza um dos sentidos para sua opção. É certo que esta seria apenas uma face dessa escolha desvelada pelo sujeito.

Além disso, o estudante que vivencia a transição do Ensino Médio para o Ensino Superior abarca em si muitos questionamentos, rupturas, pressões e projetos – fazendo emergir os sentidos que instituem alguns questionamentos: “Ser estudante universitário é...”; “Estar em um curso X é importante para mim porque...”; ou ainda, “Estar em uma universidade pública é...”, dentre outros. São perguntas que povoam o universo do jovem que se encontra nessa fase e demonstra indícios das múltiplas determinações que configuram a Vivência.

As oficinas revelaram, no decorrer dos encontros, que as possibilidades de escolha pelos cursos não eram afirmadas pelos participantes com base em um único sentido, por exemplo: de somente satisfazer os desejos da família e amigos; apenas para ter condições econômicas melhores; ou ainda, porque o curso escolhido tinha relação com as habilidades e experiências que teve no percurso escolar. Alguns desses sentidos não emergiram de maneira isolada e unívoca, mas coexistiam e se relacionavam entre si com maior ou menor intensidade, no discurso de todos os participantes, como constructos da realidade. A seguir no relato escrito de uma das atividades, percebe-se fatores familiares de distintas ordens, dentre as quais o impacto de uma experiência negativa a influenciar na mudança de escolha e, posteriormente, em sua afirmação:

Desde pequena eu tenho um sonho de ser médica, porém, devido algumas circunstâncias, eu desisti. Antes do meu pai falecer, ele queria estudar para ser um advogado, mas mediante circunstâncias que exigiam o esforço dele em outras coisas, acabou que ele não conseguiu e veio sua morte. E foi daí que este sonho nasceu em mim, realizar o sonho dele. E só tem aumentado devido a situações presentes na família. (Relato de participante B, 2018).

Observamos que sobressaiu no decorrer da intervenção não apenas a identificação da existência dessa ou daquela influência, mas o modo como ela se constitui na realidade de cada um/a deles/as a fim de ser perceptível o peso que cada um dos aspectos reconhecidos detém sobre suas ações e escolhas. Entendemos que a realidade age sobre o sujeito, porém não se apresenta como cópia em seu psíquico e, muito menos, não é igual para todos, pois, no processo de internalização, transforma-se mediante questões multidimensionais da vida e retorna a ela demonstrando indícios dessa realidade, que é dialética (Vigotski, 1999a). Nesse sentido, cada encontro foi catalisador para que os participantes pudessem gerenciar esse processo reconhecendo as contradições e complementações que formam a integralidade de suas escolhas - no caso, profissionais.

Adiante, descreveremos a dinâmica de cada encontro, de forma que possamos tornar perceptíveis as vivências proporcionadas pela oficina. Durante o primeiro encontro, tínhamos o objetivo de conhecer os participantes, suas realidades e suas expectativas frente à oficina, bem como apresentar nossa proposta e estabelecer acordos para o bom funcionamento do grupo. Para tanto, na atividade de apresentação, cada um dizia seu nome, os desafios que enfrentaram para estarem ali e as motivações. Em seguida, cada um escrevia no papel a resposta à seguinte indagação norteadora: “Qual é minha escolha? E por quê?”. Um compartilhava com outro o que havia escrito. A opção por essa atividade veio da nossa compreensão de que o conhecimento do sujeito, de sua realidade histórica e social, é elemento fundamental para a constatação de suas necessidades, aspecto indispensável para a escolha (Aguiar, 2006).

Em um breve levantamento dessas respostas acerca das motivações e expectativas das/os participantes, emergiram respostas tais como: dúvidas sobre o curso almejado; o peso da pressão familiar; a necessidade de um maior autoconhecimento; e a busca delas/es por descobrir suas habilidades e aptidões. Somente com esses dados já estabelecemos uma articulação com aspectos discutidos anteriormente, ou seja, a ideologia neoliberal vai nos moldando a um movimento individualista no qual o sucesso ou o fracasso é assumido como decorrência do esforço pessoal. Para isso, os indivíduos empreendem uma luta solitária a fim de mobilizar suas tendências inatas em direção a um caminho exitoso. E, caso não consiga o sucesso desejado, a culpa recai sobre o sujeito. Essa crença foi compartilhada amplamente pelas/os jovens, e além do medo de fracassar, ainda traziam suas condições concretas de vida que apontavam a necessidade de retorno financeiro imediato.

Pudemos ver, ainda, as implicações presentes nas escolhas a partir da tarefa “Árvore genealógica das profissões”, realizada em casa e problematizada no 2º encontro, para a qual foram orientados a incluir as ocupações de parentes ou pessoas próximas em sua vida (Almeida & Pinho, 2008). Havia também, nessa mesma tarefa, questionamentos que auxiliaram os alunos a pesquisar sobre suas opções de curso superior, no que tange às características, à carreira, aos campos de atuação profissional e aos salários.

A escrita de um dos participantes sobre a escolha do curso de nível superior trouxe um movimento interessante. Ao longo do processo ele afirmou: “a escolha do curso foi realizada por nós mesmos”. Nesse “nós” estava incluso o aluno do ensino médio, os outros colegas que participavam do grupo e os alunos da psicologia que mediavam o processo. Tal constatação demarca a Psicologia Histórico-Cultural como abordagem promotora de ruptura com os moldes tradicionais da Psicologia em contexto educacional. Outrora as intervenções partiam de testes vocacionais – algo que boa parte dos participantes esperava que ocorresse. Práticas que deixavam o jovem numa posição de passividade, cujo resultado tinha poder de decisão sobre suas escolhas. Na fala do participante aludido, a compreensão é de que o processo de escolha envolve o sujeito, porém mediada e construída sobre uma realidade que convoca sua Vivência (afetos e sentidos) na própria rede de sua historicidade.

Ainda no 2ª encontro, realizamos a dinâmica “o saber e o processo de escolha”, em que foram colocadas diversas opções de cursos superiores – em escritos contendo descrição do curso e notas de corte – e sorteadas duas opções para cada participante, de modo que poderiam ou não receber o curso de sua preferência. A ideia era justamente que eles ampliassem o olhar para as outras opções de áreas, percebendo o que poderia interessar a eles no curso sorteado e os apontamentos que fariam caso não escolhessem aquele curso como profissão. Após a leitura do material, compartilharam entre si opiniões, na tentativa de desenvolver uma visão crítica, seguindo os seguintes pontos norteadores: eu escolheria esse curso para mim? Sim ou não, e por quê? Eu indicaria ou não esse curso para um amigo? Por quê?

No decurso dessas tarefas, pudemos destacar: o conhecimento ampliado da realidade que compõe a escolha; e o fato de que a troca de opiniões acerca de um curso permitiu que eles pudessem perceber, a partir do olhar do outro, os pontos positivos e negativos de determinadas profissões. Dessa forma, a consciência se torna parte de um processo, um contínuo devir que se opõe a qualquer tentativa de determinismo, sendo do sujeito a consciência que se torna ciente da vida e para a vida. Munido de um conhecimento maior acerca da realidade, o humano potencializa sua capacidade de desenvolver ações para transformá-la (Vigotski, 1999a; Aguiar, 2006).

Especificamente, os cursos escolhidos foram: Biologia, Enfermagem, Geologia, Letras, Medicina, Medicina Veterinária, Música, Nutrição e Psicologia. Nenhuma dessas escolhas foi modificada ao longo dos encontros, algo que poderia ou não acontecer durante o processo, no entanto, isso não se mostrou como objetivo da nossa proposta. Nossa intenção era que as escolhas fossem compreendidas mediante o contexto histórico-cultural que nos encontramos, e sob o qual foram constituídas e acolhidas as Vivências de cada um; que a cada escolha compartilhada pudéssemos problematizar os desafios e as possibilidades concretas para alcançá-la.

O 3ª encontro, como relatado no tópico referente à metodologia, ocorreu na semana anterior ao ENEM. Conforme demandado pelos participantes, promoveu-se um momento de relaxamento, considerando que são comprovados os aumentos dos níveis de estresse e ansiedade nesses períodos de pré-exame (Schönhofen et al., 2020). O encontro foi pensado para promover um momento de Vivência aos sujeitos a fim de que compartilhassem o que estavam sentindo e falassem da autocobrança experimentada frente à prova que permitiria ou não a admissão ao ensino superior.

Para tanto, utilizamos recursos de imagem e som, além de um ambiente de tranquilidade, como forma de propiciar uma entrada na experiência. Inicialmente, cada participante repetiu seu nome e emitiu a verbalização de uma palavra que tivesse conotação positiva para o grupo. As palavras pronunciadas giravam em torno de “amor, amizade, resistência, paciência, calma”, que foram consideradas motivadoras e facilitadoras para aquelas pessoas que estavam prestes a fazer uma prova que tinha lugar de importância nas suas vidas.

Ainda nesse encontro, propusemos que fizessem o desenho de uma mandala, adotada aqui como técnica projetiva. A mandala permite o expressar-se livremente, um movimento de autodescoberta, pois “a arte conduz o meditar sobre o já́ vivido e essa meditação, enquanto ato interior calcado na emoção experienciada/vivenciada, facilita um maior número de relações no conhecimento do mundo, da própria vida” (Barroco, 2007, p. 199). Ao construir o desenho, o indivíduo expressa suas questões internas e, concomitantemente, visualiza e se apropria desses pensamentos, além de dar uma interpretação para essa Vivência. Essa atividade trouxe à tona temas, sentimentos e inquietações presentes, sobretudo com relação às expectativas frente ao Exame. A mandala permitiu o encontro com essas emoções a fim de torná-las conscientes, compartilhadas e melhor compreendidas por cada participante.

E, por fim, a última atividade nesse encontro foi o relaxamento, conforme proposto por Junqueira (2006). A autora afirma que o relaxamento guiado tem como base teórica a visualização terapêutica, que seria um momento em que se fomenta uma imaginação aos participantes, remetendo a sensações, lugares e memórias para que se possa construir um instante singular de relaxamento e bem-estar.

O 4ª e último encontro se deu após as duas semanas de prova do ENEM. Nesse dia, os participantes, por si mesmos, iniciaram um momento de extenso desabafo e descontração. Perguntamos como estavam e decorreram instantes de fala de cada integrante do grupo, de si para o coletivo. Apareceram sensações de nervosismo, ansiedade, desesperança; comentaram sobre as questões da prova, entre outras observações. Todos apresentaram uma percepção negativa acerca do próprio desempenho.

Solicitamos, ainda, que cada participante escrevesse, anonimamente, em um pedaço de papel, sua experiência e seus sentimentos com o contexto presente - pós-prova do ENEM - e o dobrasse. Após essa etapa, distribuímos os papéis aleatoriamente, e orientamos cada um a dar conselhos a esse amigo anônimo do papel: “O que você diria para essa pessoa?”. A partir daí, surgiram as falas que traziam conotação otimista em relação ao futuro, bem como sobressaía um discurso coletivo esperançoso e apoiador entre eles. Com essa atividade, buscamos fazer com que o grupo lidasse e respondesse às questões emocionais altamente impactadas pelo contexto do exame. As falas ficaram concentradas em expressões do tipo: “ou passo, ou perdi tempo de vida”, ou mesmo “se reprovar, meu futuro está comprometido”. Esses termos apareceram nas falas do grupo e nas expressões de alguns que buscaram conversar individualmente.

A descrição da experiência nos sugere destacar que os sentidos e afetos extraídos e mobilizados pela experiência de fazer uma prova considerada decisiva, desvelam os processos de “formação pela personalidade da sua relação com as situações da vida, a existência em geral com base nas formas e valores simbólicos transformados pela atividade interna, emprestados da cultura e devolvidos a ela” (Jerebtsov, 2014, p. 19). Ou seja, a Vivência aqui está mais uma vez diluída no modo como definem seu desempenho e o dos colegas – e, principalmente, à medida que eles diziam palavras de incentivo e conforto uns para os outros, entendiam não somente os próprios sentimentos, mas também os sentimentos coletivos. Tal dado nos permite considerar que uma Vivência não termina em si mesma, mas é válvula propulsora para que outras aconteçam, participando da construção de novos sentidos, ou mesmo os fortalecendo.

Como uma penúltima etapa, solicitamos que falassem estratégias que eles utilizam ou utilizaram para se sentirem bem em situações como essas, pós-prova. As palavras que surgiram foram registradas no quadro da sala. Ao final, havia inúmeras palavras e opções levantadas de lazer, relaxamento e convívio social. Após um pequeno momento, em que refletimos sobre as possibilidades de Vivências ali colocadas, e sobre as experiências que vivemos no dia a dia, direcionamo-nos ao momento final do encontro: a devolutiva.

A devolutiva foi construída, ainda no último encontro, por meio de materiais escritos e da fala, colocando como alvo de reflexão o próprio funcionamento do grupo. Dessa forma, foi solicitado que eles levantassem pontos positivos, negativos e sugestões, organizando o discurso por meio das frases: “Que bom”, “Que pena” e “Que tal”. Todos disseram ter gostado da experiência do grupo, considerando-a positiva tanto para o processo de escolha quanto como um espaço amenizador de nervosismos e ansiedades. De forma geral, a troca de experiências foi percebida também como ponto positivo, bem como as conversas e o apoio recebido que, para eles, igualmente auxiliaram no processo de decisão profissional. O vínculo grupal foi caracterizado como promotor de reflexão e bem-estar no processo de orientação, vínculo que se manteve e se fortaleceu como amizade entre eles.

O relaxamento propiciado no terceiro encontro foi percebido por alguns participantes como meio de aprendizagem para o enfrentamento de momentos de ansiedade e estresse, reforçando a compreensão de que a aprendizagem ocorre na experiência, por meio da Vivência (Perejivânie) (Vinha & Welcman, 2010). Ou seja, esse processo envolve a dialética entre o meio e a influência deste no desenvolvimento da consciência do sujeito, sendo a Vivência o resultado dessa interação (Medeiros & Souza, 2017).

No decorrer dos encontros ainda fomos demandados, por algumas, de uma escuta e orientação individual. As principais questões trazidas pairavam entre o medo e a ansiedade frente às provas, o peso da família nesse processo, o contexto de precarizações e hiperconcorrência no mercado de trabalho e os projetos de vida. Atendemos e acolhemos essa demanda, visto que o momento era de intenso sofrimento e muitas dessas questões singulares não conseguiriam emergir no contexto grupal.

Tomando o papel do/a psicólogo/a como mediador/a desse processo, conforme apontado antes, apostamos que o estar junto diante do sofrimento das/os estudantes é catalisador de desenvolvimento e aprendizagem na medida em que a elaboração desses sentimentos leva à reflexão acerca do seu papel ativo frente às diversas imposições e expectativas sociais (Vigotski, 2012). Constatamos, ainda, com base na prática desenvolvida, que essa proposta não fragiliza o coletivo, mas propicia um enriquecimento dos conteúdos a serem trabalhados no próprio grupo, pois o singular e o social se interpelam, já que o sujeito é indissociável do mundo em que vive, o singular contém nele o social – e vice-versa – sem que se anulem ou se sobreponham (Vigotski, 1999b; Aguiar, 2006).

As dinâmicas e tarefas pensadas para as/os jovens estudantes serviram de mediação para o desenvolvimento pessoal e social de seus interesses, colocando-os em atividade e mobilizando as afetações condizentes ao que era solicitado nelas. Logo, mostrou-se a indissolúvel relação entre atividade e sentido, como reflexo individual do mundo, na condição de aproximar o sujeito da consciência de si mesmo (afetações, objetivos etc.) perante a realidade mediada pela atividade (Vigotski, 1999b; 2004). No caso da Orientação Profissional, as atividades de pesquisa sobre opções de curso, o compartilhamento de experiências e motivações com colegas, o (re)estabelecimento da comunicação com família e amigos sobre como se sente nesse processo pré-universitário, a ação de estudar e como estudar podem ser alguns exemplos de ações conscientes (atividade) direcionadas a.

 

Considerações finais

Amparada pela Psicologia Histórico-Cultural, a atuação desenvolvida objetivou fomentar a reflexão sobre o processo de escolha profissional por meio de atividades, dinâmicas e rodas de conversa, que suscitaram as influências sociais, familiares e pessoais no processo de escolha e no lidar com a iminência de uma prova para a entrada no Ensino Superior. A Orientação Profissional, para além de um diagnóstico da escolha, pauta-se na necessidade de uma reflexão acerca da realidade, buscando romper com a compreensão liberal que permeia a vida dos jovens no momento de pré-exames de entrada no nível superior, com o processo de naturalização da escolha, bem como com a responsabilização do jovem por sua suposta história de sucesso ou de fracasso (Bock, 2001).

Nesse sentido, buscamos propiciar atividades que despertassem maior consciência do indivíduo, de sua historicidade e condições materiais, favorecendo um processo que considerasse as condições concretas e as possibilidades que o coletivo pode construir. Embasamos essa experiência no contexto da Psicologia Escolar, através da conceitualização de Vivência em Vigotski (Vinha & Welcman, 2010), como unidade que contém tanto as características do meio quanto suas reverberações na consciência do indivíduo, partindo da indivisibilidade entre sujeito e o social (Medeiros & Souza, 2017).

Assim, o constructo Perejivânie abarcou todo o contexto de OP, desde as experiências do estudante que se encontra em meio às incertezas do ingresso no ensino superior, adentrando no que eles puderam vivenciar numa proposta de intervenção, como é o caso da aqui detalhada, alcançando, enfim, o pós-prova do ENEM, que nos mostrou indícios do vivido subjetivo e social de cada estudante e das perspectivas futuras. Dessa forma, as escolhas profissionais enquanto processo multideterminado se mostram aos estudantes como algo que se insere e se manifesta na Vivência.

Nos relatos dos participantes acerca do que foi vivido, destacamos a escuta individualizada, algo que nos convoca a pensar sobre a possibilidade de espaços de escutas individuais durante intervenções desse tipo. A procura por tal atendimento se coaduna com uma representação social do trabalho do/a psicólogo/a, focado na intervenção clínica, o que entendemos ser limitante nesse contexto. No entanto, essa procura nos aponta os limites de uma intervenção grupal, onde as angústias e expectativas das/os participantes não encontraram lugar de expressão, sobretudo considerando o período pré-ENEM. Contudo, essa é uma questão que precisa ser cuidadosamente problematizada em novos estudos.

Finalmente, como estagiários dos últimos semestres de um Curso de Psicologia, a experiência nos logrou aprendizagens importantes e constatamos a necessidade de ações semelhantes ocorrerem com maior frequência, posto que permitem experimentar a concretude do compromisso social, bem como articulações profissionais entre teoria e prática. O que foi desenvolvido ainda evocou a emergência de profissionais de psicologia inseridos nos contextos educacionais, sobretudo na esfera pública.

Tal como vivenciado pelos participantes, a Orientação Profissional se revela como uma intervenção para além da mediação do processo de escolha profissional, ao propiciar também, de maneira significativa, a possibilidade de tornar o Ensino Superior um pouco menos distante dos mais pobres e excluídos dos ambientes acadêmicos.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Centro de Ciências Humanas Letras e Artes (CCHLA), 1ª andar, sala 11. Campus Universitário da UFRN, Lagoa Nova , CEP: 59.012-570, Natal /RN – Brasil.

Recebido: 23/09/2019
1ª reformulação: 03/08/2020
Aceito: 31/08/2020

 

 

Sobre os autores:
Erickaline Bezerra de Lima é doutoranda do Programa de pós-graduação em Psicologia (PPGPSI), pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Possui Mestrado em Artes Cênicas (PPGARC), graduação em Psicologia (Bacharelado) e em Teatro (Licenciatura), pela mesma instituição. E-mail: erickalinelima@hotmail.com
Gabriel de Nascimento e Silva é Graduado em Psicologia e Mestrando do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: gablexmarc@yahoo.com.br.
Deyse Cristina Valença Guedes é Graduada em Psicologia e Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: deyseguedesss@gmail.com.
Maria da Apresentação Barreto é Graduada em Psicologia (UFRN), mestrado em Educação e Saúde pela Universidade de Fortaleza; doutorado em Educação pela UFRN e pós-doutorado pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professora do Departamento de Psicologia da UFRN. Experiência na área de Psicologia Escolar e Educacional e desenvolve pesquisas no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Histórico-Cultural. E-mail: apresentacao1@hotmail.com

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