SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.2 número2Incorporação e introjeção em WinnicottDistúrbio psicossomático e amadurecimento índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.2 no.2 São Paulo  2007

 

ARTIGOS

 

A incerta conquista da morada da psique no soma em D. W. Winnicott1

 

The conquest of uncertain address of the psyche in the soma in D. W. Winnicott

 

 

Vera Regina F. de Laurentiis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda aspectos do tema da conquista da morada da psique no soma, ou personalização, em D. W. Winnicott, destacando a precariedade dessa aquisição. Para tanto, definiram-se brevemente os conceitos de soma, psique e mente, esclarecendo-se que o autor deslocou a tradicional questão da oposição entre o corpo e a mente para o problema da integração entre os dois modos de existir do homem, o somático e o psíquico. Observou-se que Winnicott constatou clinicamente, com pacientes em regressão, o fato de que inumeráveis elaborações somáticas primitivas subjazem às conquistas subseqüentes do amadurecimento. Definiu-se o conceito de elaboração imaginativa para esclarecer, primeiro, o modo como o bebê se apropria primitivamente de si mesmo, de suas partes, funções, sensações, sentimentos, constituindo a parceria psique-soma; e segundo, o desdobramento da psique em funções sofisticadas. Enumeram-se exemplos de distorção na aquisição de firmes relações entre soma e psique explicitando-se sucintamente a etiologia do distúrbio psicossomático, relacionada ao fracasso na permanência do status de unidade psicossomática, com raízes em problemas prévios de personalização.

Palavras-chave: Soma, Psique, Elaboração imaginativa, Personalização, Distúrbio psicossomático.


ABSTRACT

The present article approaches the issue of indwelling of the psyche in the soma in D. W. Winnicott, also called personalization, underlining the inherent difficulties of that process. We have defined the concepts of soma, psyche and mind pointing out the fact that the author has substituted the traditional opposition between body and mind for the problem of integration between soma and psyche; and demonstrated that Winnicott's findings – that innumerable primitive elaborations lie beneath the subsequent acquisitions of the maturational process –, originating from his clinic with patients in states of regression. The term imaginative elaboration has been defined to explain the conquest of the status of the psychosomatic unity – and further psychic developments – and the distortions thereof; and the psychosomatic disturbance has been briefly explained as one of the problems related to that acquisition.

Key-words: Soma, Psyche, Imaginative elaboration, Personalization, Psychosomatic disturb.


 

 

Dentre as várias inovações operadas por Winnnicott no campo da Psicanálise, a idéia da conquista da morada no soma talvez seja uma das mais intrigantes. De qualquer modo, o conceito de personalização, que diz respeito a essa conquista, distingue sua obra das outras correntes psicanalíticas que consideram óbvia a localização da psique no corpo.

Embora as palavras utilizadas pelo autor para a descrição do fenômeno no original "in-dwelling" ou "inhabiting" refiram-se à habitação ou morada, o processo da inserção do que quer que seja a outra parte da personalidade no corpo não deve ser pensado em bloco, como se uma entidade pré-formada viesse a habitar outra. O homem winnicottiano é um vir a ser, e a psique não é concebida à priori, a não ser como a necessidade de doar sentido aos aspectos e estados do estar-vivo-físico e aos encontros. Em vista do crescimento dos tecidos e das transformações somáticas próprias do nascer, crescer, viver, envelhecer e morrer a exigência de elaboração psíquica é contínua: as mais variadas integrações, parciais, ou totais, são alcançadas, perdidas, fortalecidas ou enfraquecidas no decorrer da vida, de acordo com a experiência de cada um. O autor convoca a imagem do fantasma, ou zumbi, assinalando a precariedade do sentimento da morada, que pode se afrouxar em estados de cansaço ou de frustração instintiva, por exemplo.

Imagens como essas são ilustrativas – e também a idéia de despersonalização, da psiquiatria, que descreve o estado em que a criança fica flácida, pálida e inacessível ao contato –, pois se situam no extremo oposto de um ideal de uma identidade experiencial da psique e do funcionamento físico que fosse perfeita, ignorando o fato de que um grau opacidade no soma sempre permanece, e escapa a qualquer elaboração.

Assinalarei aqui alguns aspectos da precariedade da conquista de firmes relações entre soma e psique e, portanto, do sentimento de habitar o soma, explicitando brevemente o conceito de distúrbio psicossomático, em Winnicott, como um exemplo de fracasso nesse sentido; e apontando também para o fato de que o tema das integrações entre os diferentes modos do existir humano, o somático e psíquico, não se restringe a só um aspecto da teoria winnicottiana, ou a uma das tarefas do bebê winnicottiano, mas, atravessa toda sua psicanálise que, encarnada, trata da existência psicossomática e não de uma subjetividade pensada à maneira de um aparelho psíquico ou de mecanismos mentais em funcionamento desde o início.

Embora o autor tenha se afastado da oposição cartesiana entre o corpo e a mente, a teorização sobre a morada no soma não decorreu de especulações filosóficas. No novo eixo de pensamento – construído a partir de fatos clínicos, ao longo de anos de prática e pesquisa psicanalíticas–, a nova oposição se dá entre soma e psique e a mente é apenas um ornamento no topo da parceria psique-soma. O soma é definido pelo autor como a anatomia viva inicial, que respira, tem fome, necessidades, fica excitado, tenso, come, digere, é sensível a variações do ambiente, e se expressa; além disso, é pensado como o corpo vivo pessoal, já elaborado e habitado pelo bebê, criança ou adulto. A psique é concebida, primeiro, como o próprio ato de elaborar imaginativamente o corpo vivo, de apropriar-se das partes, sensações, funções e sentimentos, próprios da continuidade do viver sensóreo-motor; segundo, como o resultado organizado dessas elaborações. A mente, quando tudo corre bem, floresce nos limites da parceria psique-soma sendo um recurso a mais do bebê, de seu processo existencial já há muito em andamento. O processo de alojamento, por sua vez, não é pensado como uma diagramação mental, unidimensional, de si, mas sim, como uma organização de um modo de ser psicossomático.

Um exemplo da nova divisão de poderes está na constatação, pelo autor, de que em setting confiável, e em bom andamento da análise, determinados pacientes precisam regredir e retomar estados primitivos de desorganização somática e outros fatos somáticos que não puderam ser elaborados na situação original. Winnicott relatou, por exemplo, o caso de um adulto que ao invés de retrair-se como de costume, em algum momento, após adquirir confiança no setting, enrolou-se involuntariamente sobre o divã e ensaiou alguns gestos espontâneos; ou o de uma mulher que, num ato de entrega ao analista "perdeu a cabeça", ou o usual controle mental sobre as coisas, e após variados comportamentos regredidos pôde pela primeira vez apropriar-se da respiração e do sentimento de estar viva na presença de alguém; ou o de um menino que pôde reexperienciar inúmeras vezes o ato de nascer no corpo a corpo com o analista, ao que se seguiu uma salivação intensa que deu início à integração da boca, levando-o ao contato com o mundo por meio da fome. Winnicott assinalou também que determinados pacientes, incapazes de reagir à perda com sentimentos, como o de pesar, perdiam pedaços de si mesmo, por exemplo, o apetite e junto com ele o próprio sentimento de ter uma boca; ou o fato de que alguns pacientes olhavam o mundo através de seus olhos, como se fossem janelas, ou andavam tropeçando por não sentirem seus pés. Deixarei de enumerar as vinhetas não por serem raras, mas, por não caberem no espaço desse artigo.

Winnicott verificou que infinitas apropriações somáticas primitivas estão na base das conquistas subseqüentes do amadurecimento, por exemplo, das relações duais e triádicas; grande parte dessas elaborações ocorre antes, também, que a palavra intelecto possa ter sentido para o bebê, ou seja, o bebê winnicottiano existe muito antes de pensar.

Assim, segundo o autor, os eventos disruptivos primitivos e as reações a eles acarretam problemas de ordem prioritariamente da integração entre soma e psique – e apenas secundariamente de ordem mental – e enfraquecem, de algum modo, a morada ou o sentimento de se ter o corpo como um lugar da experiência.

Com o termo elaboração imaginativa o autor apoiou-se na idéia geralmente aceita em psicanálise de que "a estrutura total da personalidade é construída sobre o funcionamento do corpo e sobre a fantasia que acompanha o funcionamento do corpo" (Winnicott, 1987b1990, p. 106), com a ressalva de que Winnicott redescreveu o conceito de fantasia deixando de defini-la, como uma "operação mental que se desdobra desde o início em introjeções e projeções" (Loparic, 2000, p. 13). A idéia winnicottiana de fantasia leva em conta a origem, a elaboração da função, e engloba desde a fantasia quase-física, muito próxima ao funcionamento corporal até aquela que acompanha os relacionamentos internos e externos – impulsionados ou não pelo instinto. Nesse sentido, o termo elaboração imaginativa comporta desde as elaborações muito primitivas de ordem comportamental – e não imagética ou representacional – até as mais sofisticadas operações do homem maduro.

Nas etapas iniciais da vida, próximas ao que o autor chama de "despertar" intra-uterino e ao nascimento, a doação de sentido propiciada pela elaboração imaginativa ocorre na forma de uma participação criativa nos acontecimentos somáticos do conjunto mãe-bebê, à maneira de uma dança. Em ambiente uterino propício, o feto esporadicamente faz um gesto 2 com a perna, com o braço, ou a coluna e volta para a quietude. Experimenta o vai e vêm dos ritmos biológicos do corpo dele e da mãe e, na esteira dos impulsos e dos encontros, descobre-se a si mesmo e ao ambiente. As intrusões, em certa medida, como por exemplo, as contrações anteriores ao parto, preparam o feto para um quantum maior de intrusão no nascimento. O ato de nascer não deve ser traumático se não ultrapassar um determinado limiar para o qual o bebê já está preparado; quando tudo corre bem, os ritmos da mãe estão relativamente sincronizados com os do bebê, e o bebê, por meio de uma prontidão psicossomática para nascer, vivencia o ato como se provocado por seu gesto e a primeira inspiração como uma seqüência natural da compressão da passagem. Esses acontecimentos – assim como quaisquer outros eventos primitivos –, quando elaborados imaginativamente, ou seja, quando experienciados com sentido, são organizadores e fortalecem o ego ou esquema corporal incipiente do bebê ou o contrário: já no útero o bebê pode ter notícias da depressão da mãe por meio da rigidez excessiva que interfere na qualidade de sua experiência; ou quando o nascimento demora pode viver a situação como uma espera infinita, já que não se pode comunicar ao bebê que aquela situação terá um fim; descontinuidades ou rupturas como essas, e as reações a elas desorganizam ou mesmo impedem o processo de esquematização e apropriação criativa de aspectos de si mesmo e do ambiente e, para Winnicott, aquilo que não é elaborado criativamente não ganha vida, não existe.

Assim, tão mais próximo o bebê se encontre do início da existência, tanto mais necessita do envolvimento emocional, quanto do envolvimento somático da mãe, ou seja, da capacidade da mãe de proporcionar um ambiente vivo e facilitador de experiências, por meio seja da qualidade dos tecidos de seu corpo propriamente, ou da saúde de seu esquema corporal, que se traduz em modos de segurar, olhar, e de transformar a preocupação materna primária em cuidados corporais efetivos, tridimensionais, com os elementos de tempo e espaço incluídos, levando em conta as necessidades do bebê, ou seja, que cuida não só de um corpo, mas de uma pessoa.

O amor e o desamor, quanto mais nos aproximarmos do início da vida, não são vividos em termos de satisfação e/ou frustração, mas sim em termos de encontros e desencontros entre corpos, que são organizadores ou desorganizadores do vir a ser psicossomático do bebê. É claro que, do ponto de vista do bebê, trata-se de encontrar o objeto subjetivo, que é parte dele e é criado por ele, mas que se apóia concretamente nos tecidos, na presença e no gestual da mãe, que pode ou não facilitar a seu bebê o fortalecimento da morada no soma.

O olhar da mãe, entendido por Winnicott como um espelho vivo, quando afinado com a experiência do bebê, não o fixa numa imagem, mas, ao contrário, ajuda-o a juntar temporariamente os estados mutantes de seu viver corpóreo à sua pessoa, como já intuitivamente cantado por Chico Buarque, em verso que ilumina o fenômeno no contexto de uma relação adulta: "é na soma de seu olhar que vou me conhecer inteiro" 3. As imagens das experiências, devolvidas no rosto que vê, são pontos de apoio para que o bebê continue existindo e criando o mundo com seu olhar.

Na boa sustentação e manejo, ao ser trocado, banhado, cuidado, enfim, o bebê não precisa saber que é um amontoado de membros soltos, com cabeça e tronco separados, nem saber que está sendo protegido de agressões fisiológicas ou salvo de uma queda infinita; e nem mesmo que, se deixado à sua própria sorte experimentaria sua fome como se estivesse sendo devorado por leões; quando bem prevenido de intrusões ou descontinuidades tais como as citadas, pode, por momentos, experimentar os estados de não-integração com tranqüilidade e continuar a fazer gestos espontâneos.

Assim, embora todas as experiências iniciais do bebê ocorram por meio do soma elas nunca são unicamente corpóreas devido ao diferencial da doação de sentido. Por exemplo, o bebê se integra por meio das tensões instintuais, as poderosas ondas de excitação que vêm e vão no seu existir. As experiências excitadas – sejam aquelas relativas às expressões agressivas ou às orgias experimentadas na relação com a mãe, provenientes de qualquer que seja a zona de excitação, pele, boca, trato urinário, ânus – fortalecem os ainda esparsos núcleos de ego, mesmo quando o contorno da pessoa total ainda é frágil.

Quando a mãe, com o seio túrgido, pronta para ser atacada por seu bebê faminto; e o bebê, no ápice da tensão da fome, saliva, faz gestos, pronto para criar o seio, o encontro pode se dar. A repetição da amamentação – desde que o bebê não seja alimentado só para a satisfação do instinto, ou seja, desde que possa alimentar-se também imaginativamente da experiência – permite que as partes e funções somáticas aí envolvidas paulatinamente ganhem presença e coloração das relações com a mãe subjetiva; o sentido vai sendo construído em torno da boca, da experiência de ataque ao seio – em que motilidade e erotismo se fundem –, da ingestão, do percurso do alimento, do interior do corpo e das coisas que estão dentro dele. O tempo da experiência também é elaborado, do crescendo ao clímax e pós- clímax, assim como o período tranqüilo entre as excitações. E em algum momento, a função de excreção também se torna significativa, pois as substâncias expelidas trazem a história de como chegaram lá.

Após um período em que as trocas com a mãe sedimentam predominantemente uma organização somática, de fantasias muito próximas ao soma, e de um esquema corporal com um dentro, um fora e uma membrana limitadora, pavimenta-se o caminho da integração mais completa dos instintos, em termos funcionais e ideativos; e as experiências da alimentação, digestão e excreção resultam em qualidades psíquicas pessoais ou internas.

O bebê, antes impulsionado simplesmente por sua espontaneidade, fome, motilidade e erotismo, em algum momento se dá conta da mãe externa e inteira, passando a se preocupar com os efeitos "em si mesmo e no outro – dos ataques excitados ao corpo da mãe e das idéias que os acompanham. Quando o ambiente é suficientemente bom sobrevive aos ataques, não retalia, e libera a potência agressiva do bebê que, ao invés de se inibir, protegendo a mãe, empenha-se em elaborar os efeitos dos estragos ocasionados. Para o bebê, nesse momento, experimentar os instintos – antes tão externos a ele quanto um trovão – em nome próprio significa responsabilizar-se retroativamente pelas investidas vorazes do passado, pelas atuais e pelas expectativas de ataques no futuro; e remendar os estragos, presenteando a mãe seja com um sorriso, com excrementos ou um gesto qualquer. Pode-se dizer que, a partir daí, o esquema corporal do bebê já comporta os sentidos temporal e espacial e a fantasia de todos os seus relacionamentos, internos e externos; e que as experiências instintuais potencialmente fortalecem a coesão psicossomática e enriquecem o mundo interno pessoal já constituído.

Evidentemente, a cada ponto do amadurecimento podem ocorrer distorções na organização psicossomática. Ao nascer o bebê, que tem uma pré-história, pode ter desenvolvido uma tendência a ir ao encontro da experiência ou de retrair-se. No nascimento traumático o bebê pode organizar um tipo de defesa, de ordem estritamente mental, catalogando as intrusões, afastando-se da desordem psicossomática e exercendo controle sobre ela. Ou mesmo pode desenvolver uma tendência a esperar por intrusões organizando essas expectativas num tipo de paranóia. O holding inseguro pode levar ao desenvolvimento de uma tensão generalizada, o chamado self-holding que mantém o bebê artificialmente coeso a fim de evitar a agonia do despedaçamento. O olhar da mãe, quando reflete apenas a própria depressão, e não os estados do bebê, pode levá-lo a organizar uma forma defensiva de olhar, que estuda e percebe precocemente o outro, escondendo o sentimento desesperador – tão bem retratado pelo artista plástico irlandês Francis Bacon – de não ter um rosto. A mãe que se adianta aos ritmos do bebê rouba seu impulso pessoal e, conseqüentemente, a amamentação pode até descarregar a tensão instintual, mas não é sentida como uma experiência real para o bebê. Quando a sustentação aos estados excitados é frouxa, e o bebê não encontra oposição aos seus gestos, o sentido de realidade também é usurpado da experiência. Modalidades das artes plásticas contemporânea como a body art, em que a experiência artística está na performance de incidir marcas e procedimentos no próprio corpo do artista, denunciam a atualidade do tema da irrealidade do existir.

Esses são apenas alguns exemplos das incontáveis distorções possíveis que podem ocorrer na organização de um si-mesmo psicossomático e, portanto, da precariedade do sentimento de habitar o soma.

A especificidade do distúrbio psicossomático é a de que sua etiologia está relacionada ao momento da apropriação do esquema corporal inteiro, em que o soma é elaborado imaginativamente como um castelo, habitado por um rei, mas que, por isso mesmo, pode ser atacado por inimigos. O bebê, pela primeira vez, se pudesse falar, diria "eu sou", significando que as fronteiras da psique coincidem com as do soma, ou seja, que as experiências sensoriais, motoras e funcionais se ligaram a uma nova condição, a de ser uma pessoa. Winnicott emprestou a canção popular do imaginário inglês – imortalizada por Lewis Caroll em seu Alice no país da maravilhas – para retratar a terrível vulnerabilidade implícita ao ato de apropriação de si mesmo:

 

Humpty Dumpty sat on a wall

Humpty Dumpty had a great fall

All the king's horses

All the king's men

Could not put Humpty together again 4

 

A imagem do menino em forma de ovo sentado sobre o muro com sua frágil casca – ou frágeis membranas do esquema corporal recém-constituído, que podem se quebrar –, ilustra o problema do distúrbio psi-cossomático. Para Winnicott, o verdadeiro distúrbio não é a enfermidade física mente, propriamas a persistência de uma cisão, que tem poderosos determinantes para, defensivamente, manter soma e psique separados. O funcionamento somático patológico tem, para o autor, um valor positivo: protege a parceria psique-soma de uma vida só intelectual ou baseada em façanhas sexuais compulsivas, e indica a esperança do indivíduo de, em algum momento, retomar relações mais saudáveis da psique com o soma aprisionado em sua condição apenas física.

A cisão é deflagrada quando a conquista do eu – momento em que o bebê se dá conta de seus contornos e de seus impulsos – torna-se muito ameaçadora para a pessoa que, já com um histórico de relações soma-psique enfraquecidas, precisa retroceder, mantendo esses dois, ou mesmo múltiplos outros aspectos seus separados, defendendo-se da ameaça de aniquilamento na integração. E como anunciado no verso, nesses casos, mesmo com a assistência de uma equipe de profissionais bem intencionados e bem preparados pode ser muito difícil juntar os pedaços da pessoa, sendo necessária a profunda compreensão dos aspectos envolvidos, aqui tão brevemente ressaltados.

As mídias atuais, que insistem em vender imagens de identidades perfeitas entre soma e psique, apelam possivelmente para o sentimento de precariedade dessas relações, que nos ameaça a todos. Mas, para Winnicott, todo indivíduo tem a capacidade de experimentar momentos de não-integração, de despersonalização ou perda de contato com o real – por meio do contato com a arte, por exemplo –; e a vida seria decididamente pobre e a saúde um sintoma sem a experiência também desses estados.

 

Referências

Carrol, L. (1980). Aventuras de Alice. (Sebastião Uchoa Leite, trad.) São Paulo: Summus.         [ Links ]

Dias, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Lins, M. I. A. & Luz, R. (1998). D. W. Winnicott: experiência clínica e experiência estética. Rio de Janeiro: Revinter.         [ Links ]

Loparic, Z. (1999). É dizível o inconsciente? Natureza humana, 1(2).         [ Links ]

Loparic, Z. (2000). O animal humano. Natureza humana, 2(2).         [ Links ]

Loparic, Z. (2005). Elementos da teoria winnicottiana da sexualidade. Natureza humana, 7(2).         [ Links ]

Luz, R. (2000). O corpo desfeito por Francis Bacon. Natureza humana, 2(2).         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1971). Alimentação do bebê. In D. W. Winnicott  (1971/1964a), A criança e seu mundo. Rio de Janeiro, Zahar. Trabalho original publicado em 1945; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1945c)        [ Links ]

Loparic, Z. (1971). O bebê como pessoa. In D. W. Winnicott (1971/1964a), A criança e seu mundo. Rio de Janeiro, Zahar. (Trabalho original publicado em 1949; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1949c)        [ Links ]

Loparic, Z. (1971). O fim do processo digestivo. In D. W. Winnicott (1971/1964a), A criança e seu mundo. Rio de Janeiro, Zahar. (Trabalho original publicado em 1949; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1949e)        [ Links ]

Loparic, Z. (1975). O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In D. Winnicott (1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1967; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1967c)        [ Links ]

Loparic, Z. (1983). Teoria do relacionamento paterno-infantil. In D. Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1960; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1960c)        [ Links ]

Loparic, Z. (1988). A amamentação como forma de comunicação. In D. Winnicott (1988/1987a),  Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1969b)        [ Links ]

Loparic, Z. (1989). Sum: eu sou. In D. Winnicott (1989/1986b), Tudo começa em casa. São Paulo, Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1984; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1984h)        [ Links ]

Loparic, Z. (1990). O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1987; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1987b)        [ Links ]

Loparic, Z. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1988; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1988)        [ Links ]

Loparic, Z. (1994). As bases para o si-mesmo no corpo. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1971; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1971d)        [ Links ]

Loparic, Z. (1994). A enfermidade psicossomática em seus aspectos positivos e negativos. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1966; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1966d)        [ Links ]

Loparic, Z. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In D. Winnicott (1994/1989a), Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1970; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1970b)        [ Links ]

Loparic, Z. (2000). A agressividade e sua relação com o desenvolvimento emocional. In D.W. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1958b)        [ Links ]

Loparic, Z. (2000). Desenvolvimento emocional primitivo. In D. W. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1945; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1945d)        [ Links ]

Loparic, Z. (2000). Memórias do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade. In D.W. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1958f)        [ Links ]

Loparic, Z. (2000). A mente e sua relação com o psique-soma. In D.W. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1954; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1954a)        [ Links ]

Loparic, Z. (2000). A preocupação materna primária. In D.W. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1958n)        [ Links ]

Loparic, Z. (2000). Retraimento e regressão. In D.W. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1955; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1955e)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspodência
E-mail: veralaurentiis@terra.com.br

 

 

1 Trabalho apresentado em mesa redonda no lV Colóquio Winnicott: O Psíquico, o mental e o simbólico em Winnicott, na PUCSP em maio de 2009.
2 A idéia do gesto espontâneo permeia toda teoria winnicottiana do amadurecimento: é por meio de seus gestos que o bebê cria-se a si mesmo e ao mundo. Desde que não esteja descansando ou dormindo o bebê humano está sempre querendo alcançar algo, sem saber o quê. Mas, para que o gesto se torne significativo é preciso que haja um encontro – com a parede do útero, com o seio ou um pedaço de cobertor –; com algo, ou alguém, que esteja lá para ser criado.
3 "Tanto amar", Chico Buarque de Holanda. A esse respeito, Winnicott assinala que, mesmo em caso de deformidade física, quando a mãe – não muito deprimida ou ansiosa – é capaz de veicular através do olhar e manejo que aceita e ama seu filho tal como ele é, sem restrições, o estabelecimento de boas relações primitivas do bebê com seu corpo é facilitado. O bebê poderá habitar o soma, fazendo uso dele de maneira saudável, sentindo-se "normal", o que, por sua vez, facilitará a aceitação futura do fato de que é portador de algo considerado "anormal" aos olhos dos outros.
4 Tradução: Humpty Dumpty em um muro se sentou/Humpty Dumpty lá de cima despencou/Erguê-lo não podem os cavalos do rei, nem/Mesmo todos os cavaleiros do rei, também. Observe-se que a tradução para o português omite a idéia de que o ovo se quebrou com a queda, implícita à expressão “put together again”, no original. (Carrol, 1980).