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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.3 no.1e2 São Paulo  2008

 

ARTIGOS

 

A função especular da voz materna e suas referências ao psiquismo e à constituição do si mesmo

 

The mirroring function of maternal voice and it’s references to the psyche and the constitution of self

 

 

Alexandre Socha**

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo uma reflexão sobre os efeitos da fala materna, considerada principalmente a partir de sua função especular, no amadurecimento do bebê humano. Partindo do artigo de Winnicott "O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil”, será proposta uma ampliação de suas considerações sobre o rosto materno na direção da voz e da fala materna, tal qual faz Didier Anzieu em sua leitura do mesmo artigo, sugerindo o termo "espelho sonoro”. No diálogo entre os dois autores buscaremos identificar pontos de convergência e divergência.

Palavras-chave: Fala materna, Função especular, Self, Psiquismo, Winnicott.


ABSTRACT

The present article is a reflection on the effects of the mother’s speech, taken primarily by its specular function, during the maturacional development of the human baby. Starting from Winnicott’s article "Mirror-role of Mother and Family in Child Development”, a proposal will be made in order to extend his considerations of mother’s face to also the mother’s speech and voice, as been made by Didier Anzieu in his concept of "voiced mirror”. In the dialogue between these two authors, it will be tried to identify convergences and divergences.

Key words: Mother’s speech, Specular function, Self, Psyche, Winnicott.


 

 

Introdução

A função especular, tema recorrente na literatura psicanalítica, é abordada de maneira distinta por diversos autores. Em cada um deles, o tema se encontra inserido dentro de um corpo teórico específico, no qual está inter-relacionado a outros conceitos, fazendo referências implícitas a uma determinada concepção de homem e de desenvolvimento humano. No presente artigo a função especular será abordada sob a perspectiva winnicottiana, ao mesmo tempo em que estabelecida sua interlocução com outras perspectivas e textos intimamente associados. Através da fala materna e de sua especularidade será feito um pequeno percurso entre três autores que nos auxiliam sua compreensão: Lacan, Winnicott e Anzieu.

No artigo "O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil"(publicado originalmente em 1967), Winnicott inicia sua exposição prestando seu reconhecimento ao artigo de Lacan "O estádio do espelho como formador da função do eu"(publicado originalmente em 1949) citando-o como influência. Neste artigo de Lacan encontra-se a premissa de que a imagem refletida do espelho permitiria à criança reunir experiências de um corpo fragmentado em uma totalidade unificada. Entretanto, se Winnicott compartilha de Lacan a mesma premissa (e esta seria, portanto, sua influência), a compreensão do que será o "espelho"e do que será a "totalidade unificada”, bem como o momento dentro do desenvolvimento infantil em que isso ocorre, é radicalmente distinta entre os dois autores.

Ao articular suas proposições, Lacan tem em mente um espelho concreto, de vidro, produzindo uma imagem que serve à criança de representação visual de si. A virtualidade do espelho permitiria a criança vislumbrar a imagem de unidade de um corpo ainda vivido como despedaçado, não articulado. O reconhecimento de si seria inaugurado, portanto, por uma méconnaissance (desconhecimento ou falso conhecimento), na medida em que parte de uma "miragem"com a qual a criança se identifica e confunde a si mesma. é desta forma que Lacan concebe o efeito alienante intrínseco ao estádio do espelho. Neste contexto, a função especular está a serviço da formação do Eu, a partir do qual a dialética de identificação com o outro pode então se concretizar.

Em seu artigo, Winnicott propõe o reposicionamento da noção de "espelho"não mais como a imagem ótica de um espelho concreto, mas em termos de um rosto humano: o rosto materno. Para o autor não se trata de uma méconnaissance, mas de um reconhecimento autêntico, manifesto pela expressividade do rosto materno e pela adaptação às necessidades do lactente. Desta forma, o reconhecimento de si não partiria de uma virtualidade, mas da concretude da presença somática da mãe. Se no modelo lacaniano a criança reconhece a si própria através da imagem criada por um objeto inanimado, no modelo winnicottiano ela se reconhecerá pela presença viva e pela relação estabelecida com o olhar e rosto materno.

Winnicott também reposiciona a noção de "totalidade unificada”, ou melhor dizendo, do que seria unificado como uma totalidade. Para o autor, a função especular não estaria a serviço do Eu, mas sim à integração do self, da própria unidade de si antecessora às atividades do psiquismo e à organização de uma representação imagética de si. Situando-o em um momento mais primitivo do desenvolvimento humano, o espelho winnicottiano seria assim o precursor do espelho lacaniano. Em outras palavras, aquilo que a criança verá ao se olhar no espelho de vidro é em grande parte influenciado pelo que ela viu anteriormente ao olhar o rosto de sua mãe.

A delimitação de tais reposicionamentos a partir da premissa lacaniana é fundamental para que possamos compreender a dimensão primordial que subjaz à experiência especular na concepção winnicottiana: o cuidado. Mais especificamente, o sentir-se cuidado e reconhecido pela presença e pelo olhar materno. Nas suas palavras, "a tranquilidade de sentir que a imagem materna está ali, que a mãe pode vê-la e se encontra en rapport com ela."(Winnicott, 1971/1967c, p.113). Cuidado aqui não se refere apenas ao manejo das necessidades fisiológicas (alimentação, higiene, fazer dormir, etc.), mas também ao acolhimento do gesto espontâneo do bebê que atravessa este manejo cotidiano. O registro da hospitalidade presente nos cuidados maternos promove a experiência de pertencimento do bebê no ambiente para, em um momento posterior, sentir-se ele também possuidor de um lugar privilegiado na subjetividade de um outro significativo.

No decorrer de sua exposição, Winnicott então descreverá a importância do rosto da mãe no desenvolvimento maturacional da criança. O rosto materno, em sua expressividade afetiva, sustenta o olhar do bebê e o devolve a si mesmo. Sentir-se visto e reconhecido pelo olhar materno é para a criança a aprovação e confirmação da própria existência. Sua função especular é nada mais que o reconhecimento do modo de ser singular do bebê e, portanto, oferta à constituição e integração do self.

 

A fala materna e sua função especular

Já no início do artigo citado, Winnicott diz referir-se apenas aos bebês que tem visão. Suas considerações sobre a especularidade no entanto não se alteram, pois frente à deficiência visual "as crianças cegas necessitam ver-se refletidas por outros sentidos que não o da vista"(1971/1967c, p.112). De fato, se as proposições a respeito do olhar e do rosto materno forem tomadas no sentido ontológico do cuidado, torna-se possível estendermos as considerações sobre a função especular também aos outros modos sensoriais. Não apenas a visão, mas também os outros sentidos presentes na relação mãe-bebê podem adquirir a mesma função. Convém lembrarmos que são fenômenos somáticos, ou seja, experiências corpóreas, que apresentam o ambiente ao bebê. Portanto, na relação entre o recém-nascido e sua mãe-ambiente1, e pela experiência de mutualidade que ocorre entre o corpo desta e o corpo do bebê nos primórdios do desenvolvimento humano, abre-se a possibilidade para muitos "espelhos"da ordem do sensível. Dentre estes, o ambiente sonoro, articulado pela fala materna, se mostra como um fenômeno privilegiado para a reflexão sobre a função especular e o lugar que esta ocupa no desenvolvimento humano.

A fala materna a qual nos referimos é o fenômeno que compreende toda emissão vocal de uma mãe (ou substituta) para seu bebê: suas cantigas de ninar, sua voz propriamente dita e a prosódia peculiar que adquire ao falar com a criança; em suma, a musicalidade da voz materna em amplo sentido. Mesmo admitindo que cada mãe comunica-se sonoramente de maneira singular com seu bebê, é possível também encontrarmos certos elementos e características recorrentes e comuns. Entre eles: estrutura e sintaxe simplificada, expressões curtas, repetições rítmicas, sons desprovidos de significado e curvas melódicas acentuadas. A constância destes elementos nos permite reuni-los, portanto, sob o conceito de "fala materna"ou, como é também frequentemente denominado, "manhês"(motherese). Fenômeno complexo e presente em muitas culturas, a fala materna ultrapassa a situação especular aqui descrita, encontrando ecos em muitas outras, sobretudo amorosas.

O manhês e suas propriedades descritas revelam uma dimensão primordial da relação mãe-bebê. Em primeiro lugar, o conjunto de seus elementos característicos consiste, em ultima instância, em uma aproximação da fala adulta à fala do bebê. Trata-se de um movimento adaptativo, geralmente espontâneo e não deliberado, no qual ocorre uma profunda identificação entre a dupla2. O gesto adaptativo da fala materna permite ao bebê o reconhecimento dos seus próprios gestos sonoros, repleto de sons ainda não articulados e de grande amplitude melódica. A aproximação com a fala infantil permite, a partir do próprio gesto espontâneo do balbuciar, a futura aquisição da linguagem pelo bebê: "no seu balbuciar, o bebê imita o que ele escuta do outro ao mesmo tempo que imita a si próprio."(Anzieu, 1989, p. 190). Embora este assunto ultrapasse a proposta do presente artigo, poderíamos apenas sugerir que seria no brincar destas duas vozes refletidas, da mãe e do bebê, que se encontrariam os fundamentos do desenvolvimento linguístico.

Por outro lado, o manhês também releva outro aspecto fundamental, o da dissociação entre o conteúdo do discurso e o modo como se apresenta. Na fala materna, o sentido se encontra muito mais na melodia e na sonoridade vocal do que nas próprias palavras ditas. Seu sentido, independente do que é dito, nos remete sempre ao plano afetivo. Uma passagem de Winnicott revela com humor esta dissociação entre som e sentido no discurso da fala materna:

Ela pode sentir prazer em dizer: "Dane-se, seu idiotinha"de um jeito agradável, de modo que se sinta melhor, e o bebê, encantado, lhe retribua com um sorriso. Ou, mais sutilmente ainda, que tal: "Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega este menino...”, que verbalmente não é lá muito agradável, embora seja muito doce como canção de ninar. (1987a/2006, p. 85)

Para o bebê a música da voz de sua mãe é puro afeto (tal como para Winnicott era o seu olhar). A melodia de sua voz funda um ambiente sonoro mais ou menos afetivo e receptivo, conforme as possibilidades disponíveis de cada mãe.

São estes dois aspectos do manhês, a afetividade e a adaptação ao bebê, que nos possibilita considerá-lo como um espelho sonoro da criança. A melodia vocal materna envolve o bebê como um manto amoroso, onde o cuidado e o acolhimento do ambiente vão estabelecer uma relação de confiança. Nesta confiabilidade adquirida por um ambiente adequado às suas necessidades, no qual a especularidade materna é elemento imprescindível, o bebê encontrará o terreno necessário para a integração do self e constituição do si mesmo.

 

Fracasso da função especular

Todo este processo ocorre, parafraseando Winnicott, "se tudo correr bem”. Entretanto, a função especular da fala materna nunca está garantida e depende da capacidade da mãe em se identificar e se adaptar ao seu bebê. O fracasso de uma fala que não reflete a criança pode ocorrer de muitas formas. Todas, no entanto, deixam marcas indeléveis no processo maturacional3. Proponho abordar de maneira sintética três modos possíveis: a inexpressividade, a intrusividade e a impessoalidade.

Um dos modos da falha especular ocorrer é através de uma fala que expressa apenas a si mesma, seu próprio humor ou a rigidez das próprias defesas e, portanto, na qual a criança não se reconhece. A voz materna se tornará então um objeto externo impassível de ser criado pelo bebê. A percepção objetiva tomará forçosamente o lugar da apercepção criativa, experiência subjetiva do bebê em relação à sua mãe e ao ambiente. Segundo Winnicott,

Isto acarreta uma ameaça de caos e o bebê organizará a retirada ou não mais olhará, exceto para perceber, como uma defesa... Se o rosto da mãe não reage, então o espelho é algo a ser ‘olhado para’ (looked at), mas não a ser "olhado através de"(looked into) (1971/1967c, p. 113 [nossa tradução]).

Este é o caso de vozes inexpressivas, depressivas ou maníacas, que possuem graves dificuldades em se aproximar da fala infantil e não se permitem serem criadas pela criança. Quando a esperança se encontra drasticamente reduzida, o bebê humano deixa de se deslumbrar com a melodia da voz materna, restando apenas ruídos sonoros. Privada da possibilidade de criar a externalidade, a criança tem a experiência precoce de uma realidade objetiva. O mundo externo não concebido previamente pela criança lhe causa uma profunda sensação de irrealidade, visto que o self verdadeiro não é encontrado em parte alguma.

Outra forma de fracasso especular da fala materna pode ser o seu excesso de intrusão no ambiente e a privação de um silêncio comunicativo. A voz intrusiva seria aquela que, em dissonância ao gesto vocal do bebê, se impõe a ele sem o levar em conta. é quando a cantiga de ninar se presta mais ao entorpecimento e ao suborno do que o ato de tranquilizar o bebê; e quando surge a possibilidade do jogo sonoro, as vozes não se cruzam. Há, portanto, o atrofiamento do gesto espontâneo e criativo, bem como o terreno propício ao surgimento de uma defesa falso self.

Por fim, também a impessoalidade da voz pode provocar o fracasso da função especular. Se nos modos anteriores de fracasso especular a voz materna não expressava que a si própria, neste o bebê não encontra indício algum da subjetividade materna na sua voz. A mãe fala ao bebê sem estar lá: ela fala sobre o bebê e não para o bebê. Esta questão será explorada mais adiante por suas implicações na prática clínica. Sem encontrar um lugar na subjetividade do outro, torna-se árduo empreendimento encontrar um lugar próprio no mundo.

 

O espaço sonoro como espaço psíquico

No capítulo intitulado "O envelope sonoro"de seu livro O Eu-Pele (1989) o psicanalista Didier Anzieu faz considerações que possuem direção semelhante das que foram feitas até agora. Partindo do mesmo texto de Winnicott supracitado, o autor busca evidenciar por meio da análise de um caso clínico a existência de um "espelho sonoro, ou de uma pele auditivo-fônica"(Anzieu, 1989, p.182). Em consonância com o que foi dito anteriormente, este espelho sonoro é para o autor o banho melódico promovido pela fala materna na relação e no jogo sonoro entre a mãe e seu bebê. A disposição deste primeiro espelho sonoro é estruturante ao self e posteriormente ao Eu apenas se a mãe "exprimir ao bebê ao mesmo tempo alguma coisa dela e dele, e alguma coisa que diga respeito às primeiras qualidades psíquicas vividas pelo então nascente self do bebê”. (Anzieu, 1989, p. 197).

No entanto, a função que Anzieu atribui ao espelho sonoro dentro do percurso do desenvolvimento humano se diferencia da que é atribuída por Winnicott. Para Anzieu, a função especular, ou seja, a função deste espelho sonoro é a da "aquisição pelo aparelho psíquico da capacidade de significar, e depois de simbolizar"(1989, p. 182). A fala materna, nomeando e atribuindo sentido ao que é vivido pelo bebê, oferece condições para que a experiência vivida por ele possa adquirir representação psíquica e, portanto, poder ser simbolizada. O reconhecimento daquilo que é vivido pelo bebê como fome, dor ou sono, permite a apreensão desta experiência não mais como algo inominável, adquirindo gradualmente a capacidade de tornar-se para ele uma representação. Assim, seus efeitos incidem muito mais na estruturação do Eu e nas operações psíquicas do que, como visto na perspectiva winnicottiana, na integração do self e no alcance do estágio "eu-sou”. Desta forma, Anzieu faz o caminho inverso a Winnicott e retorna à proposição inicial de Lacan, devolvendo o espelho à égide do psiquismo (e revelando assim sua influência da tradição psicanalítica francesa). Este percurso de leituras e re-leituras, posicionamentos e re-posicionamentos reflete, para mantermos a metáfora do espelho, mais que divergências teóricas: são diferentes facetas do mesmo fenômeno. Em uma, o espelho visto pelo vértice do psiquismo e suas funções essenciais. Em outra, o espelho visto pelo vértice do self, condição existencial do ser humano e, mais ainda, do sentir-se real. Convém enfatizar que tais diferenças não implicam em uma suposta oposição entre self e psiquismo. Longe disso, busca-se apenas identificar os eixos principais nos quais cada autor sustenta sua compreensão da função especular.

 

A função especular na situação clínica

Embora Winnicott e Anzieu enfatizem a importância do analista cumprir o papel de espelho, suas diferentes concepções da função especular implicam em manejos clínicos também distintos. Se, segundo Anzieu, o espelho materno for tomado em sua importância de significar e simbolizar para o bebê algo ainda não representável, a tarefa analítica será a de exercer pelo analisando tais funções psíquicas malogradas4. Diante da impossibilidade do analisando em ter encontrado nos seus estágios constitutivos um espelho materno que refletisse sua própria experiência, torna-se papel do analista transformar o indizível de suas sensações em algo dizível, passível de uma representação psíquica. Segundo as palavras do próprio autor, trata-se de uma "determinação do psicanalista em simbolizar no lugar do paciente cada vez que este tenha o espírito vazio"(Anzieu, 1989, p.187). O passo seguinte seria então explicitar e elaborar junto ao analisando, e pela relação transferencial estabelecida, as falhas primordiais de um espelho que não o refletiu, que não pôde falar sua linguagem.

No entanto, se o espelho materno for tomado não pelas funções psíquicas que promove, mas como fundamento imprescindível para a noção de si mesmo e para relacionamentos referentes a um self verdadeiro, a tarefa analítica não será somente a de interpretar ou simbolizar pelo analisando. O papel do analista, através de seu olhar, de sua fala, enfim, de sua presença corpórea, será também a oferta de um lugar no qual o analisando possa se reconhecer. Este espelho "analítico"não se trata se mimese, nem do analista ao analisando, muito menos o inverso. Trata-se sim de encontrar, pela pessoalidade do analista, o modo também singular de ser do analisando. Sentir-se compreendido e reconhecido em seu modo próprio de ser exige a presença autêntica de um outro e não de um espelho inerte e impessoal.

Freud em suas "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise"(1912) adverte ao jovem psicanalista excluir sua própria individualidade na relação com o paciente. Temia, naturalmente, a inversão dos papéis e o desvio do foco da análise das questões do analisando para as questões não elaboradas do analista: "O médico deve ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o que lhe é mostrado"(1912/2006, p.131). A proposição de Freud, plenamente justificada no contexto em que a questão é formulada, torna-se problemática quando descontextualizada e levada ao seu extremo. A exclusão completa da atitude íntima do analista e a busca de uma suposta neutralidade ou assepsia médica poderiam fazer do espelho analítico um espelho fixo e rígido. Spurling (1991) trás uma bela imagem para ilustrar o espelho materno-analítico na visão winnicottiana:

Para Winnicott, o reflexo dado pela face da mãe é mais bem compreendido, eu penso, como o encontro da água, não de um espelho. é uma face com vida (animada), em constante mudança, com expressões através dela. Quanto mais fixidez ou rigidez, mais parece com um espelho de vidro. (1991, p.4)

O espelho d’água, diferente do espelho de vidro, comporta naturalmente variações na imagem refletida que impedem seu aprisionamento em uma estabilidade imutável. Sendo espelho vivo, carrega o próprio movimento das águas no reflexo de quem nele se observa. Como dito anteriormente a propósito do espelho sonoro materno, trás sempre algo de si e algo do outro. Da mesma maneira, é a expressividade da voz e do corpo do analista que, acompanhando os movimentos do analisando, serve a este de espelho. Um espelho sem expressividade torna-se um objeto inanimado, um espelho morto.

A ênfase na pessoalidade do analista poderia ser aqui equivalente ao reposicionamento feito por Winnicott do espelho como imagem ótica factual para o espelho como rosto humano. é a pessoalidade e a alteridade do analista como "outro significativo"que oferece ao analisando o sentir-se reconhecido e o reconhecimento de si decorrente. Como afirma Winnicott em uma de suas célebres sentenças, "psicoterapia não é fazer interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz. é um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto."(1971/1967c, p. 117)

Portanto, se para Anzieu a função especular é, simbolizando no lugar do analisando, transformar o indizível em dizível (reformulação da clássica premissa freudiana de tornar consciente o inconsciente), para Winnicott ela será oferta de um lugar a ser habitado; um espelho que, ao contemplar a singularidade do outro, permite-lhe ser si mesmo. é a própria tarefa analítica que desloca seu centro da dimensão do conhecimento para a da experiência. Ponto crucial que encontra "reflexos"em toda teoria e clínica winnicottiana.

 

Referências

Anzieu, D. (1989). O Eu-Pele. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Freud, S. (2006). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. 12). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1912)        [ Links ]

Lacan, J. (1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In J. Lacan, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1949)        [ Links ]

Newman, A. (2003). As idéias de D. W. Winnicott: um guia. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Spurling, L. (1991). Winnicott e a face da mãe. In: Winnicott Studies. The Journal of the Squiggle Foundation n. 6. London: Karnac Books. (Tradução disponível em http://www.joseouteiral.com.br/artigos.html)        [ Links ]

Winnicott, D.W. (1971). Mirror-role of Mother and Family in Child Development. In D. Winnicott (1971/1971a), Playing and Reality. London: Tavistock. (Trabalho original publicado em 1967; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1967c)         [ Links ]

Winnicott, D.W. (2006). Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1987; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1987a)         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: alexandre.socha@gmail.com

 

 

*Trabalho derivado de dissertação de mestrado pela PUC-SP, bolsa concedida pela FAPESP
**Psicólogo e Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Membro Filiado ao Instituto de Psicanálise da SBPSP.
1 A mãe tal como é vivida pelo bebê, antes deste alcançar o estágio de "eu-sou"e, por conseguinte, a concepção de um objeto não-eu.
2 Fenômeno que nos remete às idéias de Winnicott sobre a Preocupação Materna Primária.
3 Newman, no verbete intitulado "O pior”, afirma que "não ser visto ou ouvido é o pior que pode acontecer"(2003, p. 333).
4 Tarefa não idêntica, mas que nos remete à função alfa do analista proposta por Bion, autor também citado por Anzieu no início do mesmo texto.