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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.3 no.1e2 São Paulo  2008

 

ARTIGOS

 

Um caso clínico: sobre as repercussões derivadas da atitude de cuidado no início da apresentação de sintomas anti-sociais.

 

A clinical case: on the implications derived from the attitude of care in the early presentation of antisocial symptoms.

 

 

Alice McCaffrey Busnardo*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende realizar uma apresentação detalhada e concreta de um caso clínico pela autora conduzido. A principal intenção é a de apresentar, através de uma narrativa minuciosa, a descrição de um atendimento clínico que pareceu ser capaz de sustentar a relevância das idéias desenvolvidas por Donald Winnicott especialmente no que se refere ao que ele denominou tendência anti-social e também à sua insistência na participação dos pais para o restabelecimento do percurso de amadurecimento da criança. Não se trata de estabelecer considerações acerca da teoria, mas sim de expor um exemplar, que se mostrou proveitoso no que se refere à eficácia prática das propostas winnicottianas.

Palavras-chave: Winnicott, Tendência anti-social, Agressividade, Amadurecimento, Tratamento psicanalítico.


ABSTRACT

This article presents a thorough and concrete description of a clinical case conducted by the author. We used a very detailed narrative to describe a clinical case which gives full support to the ideas of Donald Winnicott, with special emphasis given to antisocial tendencies and also his insistence in parent’s participation for the reestablishment of the child growing up path. The purpose is not to establish theoretical considerations, but only to fully display an example which was very productive in reference to the practical efficacy of Winnicott’s proposals.

Key-words: Winnicott, antisocial tendency, aggressiveness, maturation, psychoanalytical treatment.


 

 

O que pretendo apresentar aqui é a descrição, simples e concreta, de um atendimento clínico por mim realizado; um atendimento que me pareceu sustentar a relevância das idéias desenvolvidas por Donald Winnicott no que se refere ao que ele denominou tendência anti-social. A intenção não é exatamente a de estabelecer considerações acerca da teoria, mas sim a de expor um exemplar, que se impôs para mim como emblemático, além de muito proveitoso no que se refere a eficácia prática das propostas winnicottianas.

Para Winnicott, a construção da teoria e do conceito que envolve o que ele acabou por definir como quadros de tendência anti-social, procurou responder às exigências que algumas crianças apresentavam, crianças que tinham como característica predominante a atitude de perturbar o ambiente — concretizada em comportamentos como o roubo e a mentira — e que, no mais das vezes, pareciam ter como intenção proporcionar incômodo àqueles com os quais encontravam-se em alguma medida envolvidos.

é esse incômodo que faz os pais procurarem auxílio. Embora o quadro possa assumir situação complexa e de difícil dissolução (especialmente quando se instauram os chamados ganhos secundários), Winnicott afirma que a compreensão por trás da patologia não é complicada. O fato é que, se o que está em jogo é um quadro de tendência anti-social, e se estamos levando em conta o que Winnicott propõe, deve-se considerar que a criança em questão teve, no início de sua vida, um cuidado e um acompanhamento satisfatórios, mas que em algum momento isso se perdeu. Os sintomas expressos pela criança nesta situação retratam fundamentalmente uma reclamação relativamente a essa perda, que é para a criança em alguma medida consciente (pois o dano é reconhecido por ela como advindo do exterior), e o que ela procura é então remediar tal estado de coisas e reencontrar uma situação de cuidados suficientemente bons.

Se, neste momento, a criança encontra pais e mães capazes de ouvi-la e fazerem a consideração de que um tipo de cuidado específico precisa passar a acontecer, é natural que a recuperação do desenvolvimento, interrompido por esse hiato ocasionado pela alteração dos cuidados outrora satisfatórios, aconteça de maneira espontânea. O gesto que promove incômodo busca ressarcimento daquilo que lhe foi roubado e que é sabido lhe ser de direito. E, se há resposta à legítima exigência, a criança depreende-se da atitude perturbadora, que naturalmente perde o sentido ao ver restabelecidas as condições para o seu desenvolvimento e a continuidade de sua vida. Nas palavras de Winnicott:

Onde a tendência anti-social, em forma de roubo ou de uma perturbação, é a característica conflitante pela qual a criança é trazida à consulta, regularmente se encontra no caso um período anterior em que o ambiente capacita a criança a ter um bom começo no desenvolvimento pessoal. [...] Nesses casos, pode-se então encontrar um lapso ambiental de alguma espécie, tendo como consequência um bloqueio no processo maturacional. [...] A criança que rouba está (nos estágios iniciais) procurando a lacuna, esperançosa, ou não inteiramente desesperançada, de descobrir o objeto perdido ou a provisão maternal perdida, ou então a estrutura familiar perdida. (Winnicott, 1971ve/1984, pp. 229-230)

A narrativa do caso em questão ocorreu em paralelo ao próprio atendimento e, portanto, minha compreensão foi-se formando gradualmente e foi assim que julguei ser melhor apresentá-lo, para guardar-lhe o frescor e a abertura daquilo que aos poucos foi se delineando. Há, portanto, apresentação de hipóteses, reconsiderações e finalmente uma análise final, mesmo que breve, sobre todo o processo. O caso é contado em detalhes, em primeiro lugar porque entendo que assim o leitor possa ter maior clareza dos passos envolvidos, mas também porque, por razões intrínsecas, tratou-se de um atendimento breve, que permitiu uma descrição nesses moldes.

 

O caso clínico de Pedro

O caso me foi encaminhado por uma colega que logo me alertou para o fato de que os pais estavam bastante preocupados com a criança e ansiosos pela obtenção de algum tipo de ajuda que pudesse agir rapidamente sobre o problema, especialmente porque existia a possibilidade da família realizar em breve uma mudança de país. Pouco tempo depois dessa conversa, a mãe de Pedro entrou em contato comigo pelo telefone.

à primeira entrevista, tanto o pai quanto a mãe compareceram. Relataram que Pedro, então com sete anos, fora uma criança que jamais despertara nenhum tipo de preocupação excessiva. Ao contrário disso, sempre fora bastante saudável, não apresentando qualquer tipo de dificuldade de relacionamento e sendo até mesmo celebrado como um menino afável, comunicativo e capaz de exercer uma espécie de liderança sobre outras crianças. Entretanto, cerca de um ano antes da entrevista, Pedro começou a apresentar algumas alterações em seu comportamento que se intensificaram no início de 2008, gerando em seus pais intensa preocupação. A situação foi descrita pelos pais durante a primeira entrevista, que passo a relatar agora com mais detalhes.

 

Primeira entrevista com os pais (segunda-feira, 12/05/08 — uma semana após primeiro contato por telefone com a mãe.)

Quando chegaram para a primeira conversa, os pais de Pedro estavam aflitos, sem mesmo conseguir decidir como comunicar o que vinham enfrentando com o filho. O problema central foi descrito como sendo o de uma mudança radical na maneira de ser da criança: até os seis anos, Pedro havia sido um menino tranquilo e muito afável, mas depois desta data teria passado a apresentar comportamentos agressivos, desagradáveis e irritantes (às vezes descritos como "disparatados”). Até esse momento (os seis anos de idade), Pedro havia sido uma criança de muitas amizades e sem qualquer tipo de dificuldade na escola. A mudança de atitude foi primeiramente detectada em função de reclamações que começaram a surgir por parte da escola, com relação a ele e a um grupo de amigos a quem Pedro era bastante ligado. Em casa ele passou a ficar mais briguento com os irmãos e mais agitado, perdendo a tranquilidade que lhe era característica.

A partir do início de 2008 (contando Pedro já sete anos de idade), a situação tornou-se cada vez mais delicada. Pedro andava irritado e provocativo, perdendo a capacidade de brincar com os irmãos e com outras crianças e muitas vezes apresentando atitudes que despertavam estranhamento e indisposição em quem estava perto dele (segundo os pais, ele teria tido uma significativa transformação e em alguns momentos poderia ser descrito como uma "uma criança louca”). Tudo isso pareceu ter sido agravado (como os próprios pais reconhecem) pelo fato de que Pedro havia mudado de escola, saindo de onde estudara durante toda a vida para ir para uma escola maior junto com os irmãos (em nenhum momento ele desejou esta mudança). Pedro não se adaptou à nova escola, onde passou a enfrentar muitas dificuldades para estabelecer vínculos, tornando-se uma criança isolada e dispensada pelos colegas.

Esta foi a queixa apresentada pelos pais. Passei então a realizar algumas perguntas na tentativa de conhecer a história pregressa da criança. Pedro é o irmão que ocupa a posição do meio entre três. Sua diferença de idade com relação à irmã mais velha é de um ano e dois meses e com relação ao irmão mais novo a distância é de quatro anos. Os pais estão casados há quinze anos e as três crianças foram desejadas e planejadas. Pedro nasceu de parto normal e, segundo sua mãe, tanto a gestação como o parto foram experiências muito gratificantes.

O momento da amamentação, por sua vez, trouxe impasse e angústia: sua mãe teria se esforçado novamente para amamentar, pois já na primeira filha o processo havia sido difícil e penoso; tentou durante aproximadamente dois meses, mas não possuía muito leite e isso a deixava ainda mais angustiada. Nesta época, Pedro chorava muito e estava magro; aflitos, os pais decidiram introduzir complemento alimentar, o que provocou imediato aumento de peso e o desaparecimento das crises intensas de choro. Concluíram que o bebê estava com fome e a partir de então abandonaram a tentativa de amamentação ao peito.

Os pais relataram que tanto a mamadeira como a chupeta foram retiradas de seu cotidiano sem grandes esforços, entre dois e três anos de idade. No entanto, com relação à retirada das fraldas, contaram que foi algo difícil e que Pedro apresenta enurese desde então (quando contava três anos), algo que se intensificou a partir do início de 2008.

Pedro parece sempre ter tido boa relação com os irmãos, especialmente com sua irmã mais velha, com quem efetuou forte parceria e por quem possui muita admiração. Os dois sempre brincaram muito juntos e possuíam um cotidiano unido, realizando muitas atividades em comum. Este "andar em bloco"(segundo expressão da mãe), uma união talvez excessiva, foi uma das razões para que os pais decidissem que Laura, a irmã mais velha, seria transferida sozinha para outra escola, enquanto Pedro permaneceria um ano ainda na escola antiga. Com isso pretendiam realizar alguma separação entre os dois, de modo a deixá-los mais independentes entre si (especialmente Pedro, uma vez que Laura já vinha esboçando algum afastamento, preterindo o irmão em favor de suas amigas). Posteriormente, em conversa pelo telefone, a mãe mostrou arrependimento com relação a esta decisão.

Os pais descreveram Pedro como uma criança extremamente sensível, muito preocupada com todos a quem é ligado, especialmente os membros da família, ocupando-se sempre em realizar programas em que estivessem todos presentes e unidos. Teria também uma espécie de "existencialismo metafísico"(como afirmou o pai), apresentando em conversas questões referentes à passagem do tempo e à morte e mostrando também uma atitude bastante contemplativa.

Quis investigar como Pedro havia enfrentado o nascimento de seu irmão mais novo (considerando também que o início da enurese parecia coincidir com a gestação do filho menor), ao que a mãe reagiu prontamente afirmando ter percebido muita dificuldade por parte dele. Entretanto, o pai, nesta hora já muito ansioso, fez uma interrupção, pois queria que eu logo dissesse como pretendia trabalhar com Pedro, uma vez que eles não teriam muito tempo. O fato é que a viagem que já fora mencionada no momento da indicação realmente iria acontecer em Janeiro de 2009, quando toda a família se mudaria para uma cidade no exterior, na intenção de lá viver durante pelo menos três anos. Tratava-se de uma decisão agora definitiva e sobre o que as crianças já estavam há algum tempo cientes.

Afirmei que a expectativa da viagem certamente estaria também contribuindo para toda a situação que Pedro vinha apresentando, especialmente porque, a meu ver, ele me parecia uma criança muito preocupada com perdas, perdas que já haviam acontecido e sobre as quais ele estava cada vez mais reclamando, mas também perdas que lhe rondavam ainda como uma ameaça. A mudança de escola, neste contexto, havia sido bastante prejudicial, já que ele estava agora consciente de que em pouco tempo deixaria de possuir tudo que lhe é familiar. Percebi que não seria possível nenhuma conversa mais extensa, pois os pais estavam extremamente ansiosos, desejando que algo fosse feito imediatamente para que pudessem realizar todo esse processo de mudança com um pouco mais de tranquilidade e sem o peso excessivo de estarem contribuindo ainda mais para o adoecimento do filho. Sugeri então que eu me encontrasse com Pedro o quanto antes e que depois combinássemos um contrato de frequência; ambos concordaram prontamente e marcamos a primeira entrevista para a manhã do dia seguinte.

Após a entrevista notei que eu mesma me encontrava bastante aflita, tomada pela urgência transmitida pelos pais e preocupada com o que poderia ser de fato realizado em tão pouco tempo. Durante a conversa pude perceber o quanto a idéia da mudança estava ocupando a família, que se via às voltas com inúmeros problemas de ordem prática e também emocional e de certa forma sem muita calma ou disponibilidade para enfrentar o que o filho apresentava neste momento.

Havia consideração, por parte dos pais, do quanto uma mudança de tal porte abalaria a vida das crianças, mas ao mesmo tempo era visível que se tratava de algo de grande importância, algo de que não seria possível abrir mão. Como manifestação latente parecia haver o seguinte pedido: "Faça algo rapidamente pelo meu filho, algo que faça com ele volte a ser o que era, algo que não nos deixe tão preocupados com o que poderá acontecer quando não estivermos mais aqui no Brasil e que nos mostre que esta viagem não representa um grande dano para ele e seus irmãos”.

Indaguei-me sobre a possibilidade desta criança estabelecer comigo um vínculo consistente e a respectiva repercussão que isso poderia causar, levando-se em conta o fato de que parecia já haver um sofrimento ligado à perda de ligação com pessoas e ambientes familiares. Como primeira impressão, a partir do que fora narrado pelos pais, mas ainda sem qualquer contato direto com a criança, chamou-me a atenção o quadro de enurese antigo e constante somado ao abalo com o nascimento do irmão mais novo e à intensa ligação com a irmã (como uma espécie de mãe substituta). Aliado a isso, a mudança radical de comportamento, que passara de afável e comunicativo para agressivo e provocador, fez-me apontar, como hipótese ainda bem incipiente, para algo que poderia aproximar-se de um quadro de tendência anti-social.

Por outro lado, esta mesma radical alteração, que carregava como elemento principal o desaparecimento da criança bem comportada e o surgimento de uma outra cheia de necessidades e exigente de atenção, levou-me a pensar numa possível flexibilização de um falso self, até então bem organizado para responder corretamente às expectativas dos pais. Tratavam-se evidentemente de meras suposições iniciais que levantei para começar a me orientar sobre o caso.

 

Primeira sessão com Pedro (terça-feira, 13/05/08)

Pedro veio trazido pela mãe e ao me ver escondeu-se em meios às suas pernas. Não queria subir as escadas que levavam ao consultório. Depois de me apresentar e convidá-lo para subir (ao que ele recusou), eu lhe disse que sua mãe poderia vir também. Ele então concordou e entramos juntos na sala de atendimento. Tentei alguma comunicação, mas Pedro recusava-se a falar ou olhar para mim. Propus um jogo, ele não respondeu. Mais uma vez convidei a mãe a participar e ele então concordou. [O jogo em questão é aquele denominado por Winnicott como Jogo do Rabisco.]

Logo no início, percebi que Pedro estava preocupado com o tempo, perguntando para a mãe até quando ficaria ali e olhando todo o tempo para o relógio dela. Mostrei que eu também tinha um relógio e sugeri que ele ficasse usando-o durante a sessão. Pedro aceitou. Essa parece ter sido nossa primeira comunicação. Ao longo do Jogo do Rabisco a três (era preciso que sua mãe participasse), tentei fazer algum contato através de perguntas e breves observações. Pedro não respondia e comunicava-se somente com sua mãe.

Quando já nos aproximávamos do final da sessão, Pedro respondeu brevemente a algo que eu disse. Em um dos últimos desenhos, ele fez algo que lembrava a janela de uma casa; fiz um comentário: "Parece que você fez a janela de uma casa”. Espontaneamente ele passou a desenhar sua casa. Conforme eu fazia algumas perguntas, ele seguia adiante nos mínimos detalhes da descrição de sua casa. Ao final eu lhe disse: "Você tem uma casa muito legal, Pedro. E eu estou vendo que você gosta muita dela e conhece todos os cantinhos, sem esquecer de nada."

Apesar do notável, e talvez esperado receio para um contato inicial, com o apoio da mãe (a quem convidei para participar da sessão após perceber que isso seria necessário), Pedro apresentou já neste primeiro momento uma questão que parecia lhe afligir: desenhou sua casa, de modo desenfreado, quase sem conseguir parar, desejando ilustrar os mínimos detalhes e demonstrando certa avidez, como quem desejasse reter algo que pudesse lhe escapar.

 

Primeira conversa com a mãe pelo telefone (quarta-feira, 14/05/08)

Já na primeira conversa com os pais eu havia mencionado o fato de que de certa forma realizaríamos um trabalho em conjunto no que se referia aos cuidados com Pedro e que, portanto, eu estaria disponível para quando desejassem conversar comigo por qualquer motivo ou preocupação. Apoiando-se provavelmente nisso (o que julguei muito satisfatório), a mãe de Pedro telefonou-me no dia seguinte à primeira entrevista. Contou-me que Pedro havia voltado tranquilo da sessão e que passara a tarde bem mais calmo, comparativamente ao que vinha acontecendo; não havia entrado em brigas com os irmãos e tinha conseguido dedicar-se ao dever de casa, algo com o que andava tendo dificuldades.

Apesar disso, ela estava bastante aflita porque na segunda-feira, quando o pai havia saído com o filho para anunciar que ele iniciaria psicoterapia (algo que foi muito bem recebido por ele), Pedro lhe contara que as crianças da escola estavam fazendo fila para lhe bater, todas em conjunto. Muito preocupados, os pais entraram logo em contato com a escola, que confirmou a versão de Pedro (coincidentemente uma das professoras havia presenciado a cena naquele dia). Imediatamente a professora da turma teve a iniciativa de conversar com todas as crianças sobre o que estava acontecendo e parece ter havido repercussão.

Essa conversa com a mãe não foi muito extensa, mas sugeri a ela que a alteração recente no comportamento de Pedro deveria estar ligada ao fato de que ele percebera o quanto estava acontecendo um movimento significativo de atenção em sua direção, algo que envolvia especialmente os pais, mas também a escola. Os pais estavam procurando entender o que estava lhe acontecendo, levaram-no até uma pessoa que poderia ajudá-lo e na escola também estavam atentos e prontos para defendê-lo. Afirmei que havia achado importante a rapidez com que agiram para protegê-lo e que deveríamos nos manter exatamente assim, atentos e interferindo quando Pedro mostrasse ser necessário. Ao final desta conversa, sugeri que ela viesse ao consultório para que pudéssemos conversar com mais calma sobre suas impressões e sobre a história de Pedro. Ela concordou prontamente.

 

Segunda sessão com Pedro (sexta-feira, 16/05/08)

Novamente Pedro teve dificuldade em separar-se da mãe na sala de espera. Disse-lhe que sua mãe permaneceria todo o tempo ali e que ele poderia vir ao encontro dela caso sentisse vontade. Sugeri que percorrêssemos os outros ambientes da casa para que ele pudesse conhecer melhor onde estava e ele concordou em vir comigo e deixar a mãe (ao sair da sala de espera disse para a mãe: "Não saia daí!”).

Quando chegamos à sala de atendimento ele estava bem tímido e desconfortável. Perguntei-lhe se sabia por que estava ali e ele acenou negativamente com a cabeça. Afirmei que seus pais haviam me procurado porque estavam preocupados com ele, achando que ele não andava bem, que estava chateado e muito bravo com algumas coisas; havia mudado da escola que tanto gostava e nesta nova ainda não tinha encontrado ninguém legal. E, além disso, para piorar tudo, eles ainda teriam essa viagem e iriam para um outro lugar, morar num outro país, longe de todos. Pedro então disse: "Meu pai primeiro disse que ia ser um mês. E depois três meses... Não, anos."Falei: "é Pedro, acho que realmente este tempo está ficando comprido demais para você."

Disse-lhe que ele poderia fazer o que quisesse ali, que poderíamos conversar, mas também brincar, desenhar ou jogar alguma coisa. Apontei onde estavam os brinquedos e Pedro timidamente passou a investigá-los. Mexeu em alguns bonecos enquanto eu passei a montar um castelo com blocos. A brincadeira, no entanto, parecia excessivamente forçada. Perguntei se ele não gostaria de fazer outra coisa. Ele disse que não sabia montar as coisas muito bem e que preferia desenhar. Mais uma vez aproximou-se do material gráfico com pouco entusiasmo e muito inibido. Foi quando decidi propor uma brincadeira, um jogo de desenhar com o polegar, onde usamos um carimbo como base para fazer os desenhos. Passamos o restante da sessão fazendo esses desenhos alternadamente, eu uma vez e ele outra. Pedro pareceu relaxar e a ansiedade diminuiu. Ao final, pediu para levar o papel para casa e ao chegar à sala de espera mostrou para sua mãe, animado, o que havíamos feito.

 

Terceira sessão com Pedro (terça-feira, 20/05/08)

Dessa vez Pedro veio trazido pelo pai, pois sua mãe estava viajando. Foi comigo para a sala de atendimento muito mais facilmente que das outras vezes. Havia trazido seu caderno de desenhos e um estojo. Perguntei se ele gostaria de me mostrar e ele disse que sim, mostrando-me um a um os desenhos. Os últimos três desenhos traziam a figura repetida de uma espécie de forca, onde havia uma pessoa pendurada, uma outra caindo e uma terceira no chão. O desenho era carregado de vermelho, laranja e amarelo. Perguntei o que era e ele me disse que era fogo, "tudo estava pegando fogo”. Nestes últimos desenhos ele parecia um pouco ansioso e logo fechou o caderno, indo em direção à caixa de brinquedos. Descobriu um jogo onde havia uma forca e perguntei se ele gostaria de brincar com aquilo. Passamos o restante da sessão nesta brincadeira, de forma bem silenciosa.

Evidentemente ele havia trazido algo muito íntimo. Foi capaz de mostrar o que pretendia, mas para mim estava claro que qualquer intervenção mais assertiva representaria intrusão e violência. Do meu ponto de vista, ele trouxe algo que gostaria que eu visse e tomasse conhecimento, mas era preciso que eu percebesse que, naquele momento, nenhum uso poderia ser feito relativo ao material e que portanto, o silêncio, sem a perda da companhia, era o que se mostrava necessário.

 

Primeira conversa somente com a mãe (segunda-feira, 26/05/08)

Esta conversa serviu para que eu pudesse ter um contato com a mãe de Pedro menos apressado pela ansiedade, para que ela me contasse como era a relação com seu filho e talvez para encontrar comigo algumas orientações para ajudá-lo. O fato de eu já estar atendendo Pedro pareceu ter tranquilizado os pais, que concordaram com a frequência de duas vezes semanais e pareciam bem dispostos a contribuir.

Maria (mãe de Pedro) contou com um pouco mais de detalhes como havia sido o início da vida do filho. Enfatizou novamente o quanto havia insistido na amamentação, mas não obtivera sucesso, permanecendo na memória uma experiência marcada pela frustração. Perguntei-lhe sobre o desejo de ter tão rapidamente um segundo filho depois do primeiro, o que ela justificou como tendo sido fruto do grande entusiasmo e da alegria que sentiram com a chegada da primeira menina. Afirmei que embora o casal tivesse feito esse planejamento, provavelmente ela teria ficado sobrecarregada, tendo que dedicar-se a duas crianças tão pequenas (uma delas um bebê recém-nascido). Ela concordou enfaticamente e lembrou-se de ter ficado muito preocupada por não conseguir corresponder a ambos como gostaria.

Sempre houve, por parte da mãe de Pedro, muito interesse pelo seu trabalho. Um dos impasses vividos pelo casal refere-se exatamente ao fato de que seu marido esperava que ela pudesse dedicar-se mais à família, desligando-se de suas necessidades pessoais. Maria não tem receio em afirmar que não se sente realizada somente com a vida familiar, e guarda sempre espaço significativo para suas atividades profissionais e outras ligações que são para ela muito importantes. O que pude perceber é que apesar de possuir grande afeto pelos filhos e preocupar-se com o desenvolvimento e o cotidiano das crianças, Maria é uma pessoa aflita, pouco relaxada, que sente muita necessidade de estar constantemente em atividade. Contou-me, por exemplo, que quando Pedro tinha ainda seis meses de idade (com a filha mais velha contando um pouco mais de um ano e meio), decidiu abandonar o emprego para abrir sua própria empresa. Evidentemente isso lhe exigiu muito e não era incomum que passasse noites acordada, trabalhando madrugada adentro. Pareceu-me bem visível o quanto, apesar de ocupada com os filhos e fisicamente presente, Maria muitas vezes não encontrava condições para dedicar-se de maneira mais livre e relaxada aos cuidados das crianças.

Nesta mesma sessão, a mãe de Pedro lembrou-se de como ele teve dificuldades em lidar com o nascimento do irmão, mostrando-se bastante enciumado e ligando-se ainda mais à sua irmã mais velha. Enquanto conversávamos sobre a relação de Pedro com os irmãos, Maria se deu conta de que os sintomas apresentados pelo filho tiveram início na mesma época em que o irmão mais novo passou a ocupar uma posição forte na família e nos ambientes que frequentavam, mostrando-se uma criança extremamente graciosa e sobre quem todos costumavam tecer elogios. Segundo ela, Pedro encontrava-se "espremido pelos dois irmãos”: Laura era também uma menina expansiva, com porte físico bem maior que o dele e grande desenvoltura nos esportes; Heitor, o irmão mais novo, vinha se destacando cada vez mais como uma criança extremamente comunicativa e encantadora. Maria deu a entender que seria como se Pedro estivesse sem um lugar propriamente seu, a partir do qual pudesse ser reconhecido.

Ao final da entrevista, eu lhe disse que me parecia que Pedro estava apresentando aos pais uma série de exigências e que este comportamento guardava indícios de saúde e confiança, pois ele esperava que através de suas reclamações pudesse ainda ser ouvido e atendido. Disse-lhe ainda que era importante que eles respondessem ao que o filho apresentasse como sendo uma necessidade e que neste sentido não deveriam temer atitudes que lhes parecessem infantilizadas ou regredidas, que poderiam causar-lhes grande estranhamento, mas que deveriam, ainda assim, serem recebidas e aceitas. Maria então me interrompeu e contou que recentemente Pedro vinha aproximando-se dela com "um jeito de bebê"e que, quando isso acontecia, ela dizia a ele que "não gostava desse Pedro bebezinho, mas daquele que já é um menino crescido”. Maria então me disse: "Acho que não estou fazendo bem, não é? é melhor que eu aceite esse jeito dele se aproximar, não?"Respondi afirmativamente e procurei tranquilizá-la, enfatizando que se ele encontrasse resposta ao que mostrava, retomaria o desenvolvimento espontaneamente. (Maria contou-me ainda que Pedro, por duas vezes, disse que gostaria de tomar suco numa mamadeira, algo que deixou de fazer quando tinha dois anos de idade.)

Sugeri que ela buscasse estar o mais próxima possível do filho e que proporcionasse a ele situações de encontro com pessoas familiares e de quem ele gostasse. Quando fiz essa sugestão, Maria contou-me que o comportamento agressivo não vinha se apresentado com os amigos mais antigos, que frequentaram com ele a escola anterior. Propus que ela procurasse proporcionar um maior convívio com estas pessoas, com quem Pedro naquele momento não possuía tanto contato, mas a quem era muito ligado.

 

Quarta sessão com Pedro (terça-feira, 27/05/08)

A mãe o trouxe e mais uma vez houve algum impasse até que ele decidisse subir comigo. Parecia um pouco contrariado. Estabeleceu-se o seguinte diálogo:

A: Você parece chateado. [Silêncio.] Acho que você não queria se separar de sua mãe. Acho que você anda com muita saudade de sua mãe, Pedro. [Ele acenou afirmativamente com a cabeça.] Você já disse isso a ela?

P: Não.

A: Eu acho que você poderia dizer. Talvez ela não saiba bem disso. Você quer que eu diga isso a ela na próxima vez que nós conversarmos?

P: Eu quero.

A: Você poderia combinar de fazer alguma coisa só com ela mais tarde.

P: Ela tem trabalho.

A: Entendi. Mas talvez ela consiga um tempinho para vocês ficarem juntos.

Ofereci os brinquedos e Pedro escolheu o Jogo de Varetas. Jogamos durante toda a sessão e ele pareceu bem mais relaxado e comunicativo. [Mais tarde, ao telefone, Maria me contou que neste mesmo dia, Pedro lhe disse que estava com saudades e que depois disso, ela fez um programa com ele.]

Aqui, mais uma vez, não insisti em conversa ou interpretação a partir do momento em que ele acenou que não possuía mais condições para isso. Pedro foi capaz de dizer explicitamente o que lhe afligia, nós conversamos sobre isso e eu mostrei compreensão. Isso lhe bastou, como mostra o fato de que posteriormente ele encorajou-se para fazer a solicitação à mãe.

 

Quinta sessão com Pedro (quinta-feira, 29/05/08)

Pedro chegou mais cedo e bateu em minha porta quando eu ainda atendia outra paciente (havia sido trazido pela babá). Pedi que ele esperasse um pouco e quando entramos para o atendimento parecia muito animado. Quis que jogássemos juntos e passamos a sessão fazendo isso, percorrendo três diferentes jogos. Em certo momento ele mesmo sugeriu que fizéssemos mais uma vez o Jogo do Rabisco. Enquanto desenhávamos comentou que seu avô iria almoçar com ele naquele dia e que por isso estava preocupado com o tempo. Pediu para levar para casa os desenhos para colocar na pasta que ele e sua mãe estavam montando com "as coisas da Alice”.

 

Segunda conversa com a mãe pelo telefone (segunda-feira, 02/06/08)

Maria telefonou-me mais uma vez. Estava menos aflita, mas disse que gostaria de me contar algumas coisas e conversar sobre como vinha agindo com o filho. Estava preocupada porque a situação na nova escola continuava difícil; não havia ocorrido mais nenhum episódio de retaliação coletiva por parte das crianças, mas mesmo assim ela percebia que Pedro ainda não tinha estabelecido qualquer ligação mais importante com os novos amigos e andava dizendo que ninguém viria à sua festa de aniversário, pois não gostavam dele. Perguntei-lhe se ela achava muito complicado fazer com que Pedro retornasse à antiga escola; ela respondeu dizendo que ela e o marido haviam pensado nisso. Combinamos de avaliar a situação até o início das férias (em Julho) e então tomar uma decisão.

Maria relatou-me ainda que Pedro andava apresentando muita necessidade de estar em seu colo e que em certo momento, quando ela lhe propôs comprar um brinquedo novo, Pedro havia se detido na seção de brinquedos para bebês (ela não rechaçou a escolha, mas propôs um brinquedo mais adequado à sua idade, que foi aceito por ele). Nesta conversa, Maria parecia querer me mostrar o quanto vinha tentando responder receptivamente às necessidades regredidas do filho (não insistia que ele fosse brincar com outras crianças quando ele preferia passar a maior parte do tempo em seu colo). Procurava também proporcionar encontros com seus amigos antigos e com familiares, nos quais Pedro não apresentava em nenhum momento aquele comportamento agressivo.

Ao mesmo tempo, pareceu-me cansada, afirmando o quanto estava difícil conciliar todos os compromissos envolvidos na mudança, as duas outras crianças e o filho carente. Contou-me que seu marido iria passar muito tempo viajando e que deveria deixar o país já em Outubro, ficando ela sozinha com as crianças até o momento da viagem final. Sugeri que ela procurasse algum tipo de suporte, se não numa psicoterapia, em familiares e amigos (em função do curto tempo até a viagem), pois a situação era de fato de muita sobrecarga. Entretanto, apesar de toda a dificuldade, afirmei que esses cuidados com Pedro eram absolutamente imprescindíveis.

 

Sexta sessão com Pedro (quinta-feira, 05/06/08)

A babá o trouxe mais uma vez. Pedro parecia ainda mais animado que da última vez. Tentei conversar um pouco no início. Perguntei sobre a escola, mas ele não quis contar nada. Mencionou os irmãos, disse que batiam nele, mesmo o pequeno. Eu falei: "E você, bate de volta?"Ele disse: "Não."Eu afirmei: "Você é bonzinho."E ele respondeu: "Mais ou menos."Eu disse que achava que ele estava mesmo precisando ficar muito perto de sua mãe, que a casa bonita que ele havia me mostrado logo quando nos conhecemos poderia pegar fogo e que seus irmãos poderiam morrer, alguma coisa muito grave e perigosa poderia estar prestes a acontecer e por isso ele precisava ficar ainda mais com sua mãe. Ele respondeu: "Meu pai também vai viajar."Eu disse: "E aí tudo pode ficar ainda mais perigoso, não Pedro?"

Decidiu que estava na hora de brincarmos. Quis jogar as varetas. Estava bem à vontade durante o jogo. Quis burlar uma regra do jogo, eu disse que não havia problema, mas que ele se tornaria café-com-leite (Pedro era absolutamente ciente das regras e me orientava a cumpri-las, sem, no entanto, ser rígido). Perguntou-me o que aquilo significava. Eu disse: "Café-com-leite é quando tem alguém participando do jogo, mas que é ainda bem pequeno e por isso não consegue fazer o que os outros fazem. Seu irmão Heitor, ele não consegue jogar como você, mas ele pode participar da brincadeira; então vocês deixam que ele participe do jeito dele, fazendo as coisas como ele consegue. A gente pode brincar assim também. Você quer ser menorzinho? Quer ser café-com-leite?"Ele respondeu: "Quero. [titubeou] Não... não quero."Ele estava contente durante o jogo, começando a brincar comigo.

* * *

Desde esta última descrição de minhas sessões com Pedro (que transcorreram nos meses de Maio e Junho), foram realizadas mais 16 sessões com ele, uma conversa somente com a mãe (em 20 de Junho) e nova conversa com os pais (no mês de Agosto). Nesta última conversa, os pais relataram como vinha sendo o cotidiano do menino, as alterações percebidas desde o início do atendimento e o que, naquele momento, apresentava-se para eles como o maior foco de preocupação. Contaram-me que a atitude de Pedro havia se alterado significativamente no que se referia aos familiares e às pessoas mais próximas, com quem voltara a agir de maneira afável e tranquila, mostrando-se "o menino doce que sempre foi”.

No entanto, a situação na escola continuava bastante difícil, talvez até agravada. Pedro parecia não ter se vinculado a qualquer uma das crianças, permanecendo isolado e hostilizado por todo o grupo (Pedro havia relatado ao pai que as crianças de sua classe tinham novamente feito a brincadeira que chamavam de "caça ao Pedro”, quando todos se juntavam em uma espécie de perseguição, agarrando-o e estirando-o no chão). Embora o que o filho enfrentasse na escola estivesse trazendo grande preocupação, ambos os pais não deixaram de ressaltar que a atitude das outras crianças parecia estar diretamente ligada ao modo como Pedro, desde o início, havia interagido com elas, ou seja, através de provocações e comportamentos agressivos.

Retomei uma sugestão que já havia feito à mãe na última conversa que tivemos em Junho, a de que eles levassem em consideração a possibilidade de trazer Pedro de volta para sua escola anterior, aquela que ele havia frequentado desde bem pequeno e que parecia ter sido uma rica experiência para ele. Eles responderam dizendo que muitas vezes tinham um impulso nesta direção (especialmente quando Pedro reclamava e contava sobre o que estava vivendo), mas que ficavam inseguros, pois não sabiam se ele de fato iria encontrar na escola antiga o que esperava, uma vez que o grupo já estava diferente e especialmente levando-se em conta que restavam apenas três meses para a mudança de país. Questionei se já haviam perguntado ao próprio Pedro o que ele pensava a esse respeito e o pai me disse que ele havia dito que gostaria de voltar para antiga escola sem que nem houvesse sido oferecida essa oportunidade.

Nesta conversa, o pai de Pedro solicitou que eu apresentasse um diagnóstico para seu filho e para a situação que vinham enfrentando. Disse-lhe que o tempo de trabalho era ainda pequeno para qualquer afirmação definitiva e que mesmo com mais tempo uma definição diagnóstica estanque e estereotipada não seria proveitosa. De qualquer maneira, afirmei não reconhecer em Pedro uma perturbação excessivamente grave na estruturação da personalidade, mas que isso não significava que ele não merecesse cuidadosa atenção. Afirmei que Pedro se mostrava uma criança com capacidade de brincar criativamente e que isso, do meu ponto de vista, configurava o maior indício de uma saúde básica. Pedro era um menino que interagia, concentrava-se na brincadeira sem rigidez, mostrava-se curioso e interessado e costumava sempre apresentar idéias pessoais em meio ao jogo.

Entretanto, o quadro já antigo de enurese, a atitude por vezes agressiva e fundamentalmente incômoda para as pessoas à sua volta, sugeria que ele vinha reclamando e exigindo cuidados específicos que provavelmente diziam respeito a uma experiência de perda de algo fundamental para ele. Retomamos juntos a história pregressa da criança e procurei enfatizar alguns episódios que poderiam apontar para eles, indícios para uma compreensão do que vinha acontecendo com o filho (por exemplo: o nascimento de Pedro tendo a irmã mais velha ainda muito pouca idade, o que provavelmente teria deixado a mãe dividida; o fato da mãe ter mencionado que quando ele contava seis meses de idade, ela voltara a trabalhar intensamente; a ligação extremamente forte com a irmã, que parecia ter funcionado em alguma medida como um substituto materno; o nascimento do irmão mais novo; a separação da irmã, quando ela foi transferida de escola, exatamente no mesmo momento em que o irmão mais novo passou a apresentar-se como uma criança extremamente extrovertida, desviando a atenção de todos e ocupando bastante espaço).

Conforme fui fazendo essa descrição, o pai de Pedro retomou muitas lembranças e reconheceu bastante sentido nas considerações que estavam sendo feitas. Ao final da conversa, afirmou perceber, de modo muito explícito, o quanto Pedro vinha se beneficiando e expressando satisfação com relação aos cuidados dedicados a ele, que dependeram de um reconhecimento por parte deles (dos pais) do que vinha acontecendo e de uma respectiva mudança na qualidade da atenção e das atitudes que desempenhavam com o menino.

Combinamos nova conversa para dali a duas semanas, depois do aniversário de Pedro, onde ele voltaria a encontrar seus antigos amigos, e também depois de uma conversa que o pai já agendara com a coordenadora da escola atual na intenção de tentar alterar em alguma coisa a situação na escola. (Pedro faz aniversário dia 30 de agosto e sempre havia feito festas para comemorar a data. Neste ano, os pais contaram que ele não queria sequer tocar no assunto, inicialmente dizendo que ninguém viria para a festa e depois simplesmente mostrando-se desanimado. O pai teve então a idéia de oferecer uma festa somente com os amigos antigos, sem convidar ninguém da nova escola e ele concordou imediatamente.)

No subsequente encontro que fiz somente com a mãe (em Setembro, quando o pai não pôde comparecer), procurei afirmar de maneira incisiva o quanto a mudança de país me parecia danosa para Pedro, especialmente observando-se as reclamações que ele vinha apresentando. Indaguei-a sobre a possibilidade de adiamento, enfatizando o quanto o filho parecia ressentir-se relativamente às perdas que mostrava ter sofrido e o quanto uma mudança de país representaria novamente grande perda. Ela pareceu ouvir-me e reconhecer a gravidade do que estava em jogo, mas afirmou que qualquer mudança nos planos estava fora de cogitação. Insisti ainda que se esta era então a decisão final, eles deveriam estar bastante cientes do que estavam proporcionando aos filhos e do drama envolvido nisso, para que pudessem ficar suficientemente atentos e encontrar meios de responder às futuras exigentes necessidades.

 

Fragmentos do atendimento com Pedro

Instauradas uma comunicação e uma confiança iniciais, Pedro elegeu como brincadeira principal em nossas sessões, o Jogo de Varetas1, optando por ele na maior parte das vezes. Em alguns outros momentos fizemos uma brincadeira com blocos de montar e com alguns personagens representados por bonecos de pessoas ou bichos, além do Jogo do Rabisco, que ele mesmo solicitou em alguns de nossos encontros.

Existiam alguns temas que surgiam nas brincadeiras com alguma frequência: viagens, estradas, carros e aviões em alta velocidade e cidades. No entanto, o que Pedro no início apresentava, na maior parte do tempo em que estava comigo, era uma situação de conflito: personagens como policiais e bandidos estavam sempre presentes e a narração de uma guerra era enredo cotidiano nas sessões.

 

O jogo de varetas

Depois de Pedro solicitar pela segunda vez consecutiva que brincássemos com o Jogo de Varetas, sugeri que cada um de nós escolhesse um mascote, um bicho que nos representasse na brincadeira.2 Pedro logo escolheu o Leão; eu optei pelo Tucano. Quis escolher um animal que pudesse ser comido por aquele que ele havia escolhido, mas que ao mesmo tempo tivesse algo com o que se defender e atacar (pensei que a imagem do grande bico do tucano poderia servir a esse propósito).

O Jogo de Varetas era palco para um conflito, uma situação de briga. Logo percebi que Pedro não se ressentia quando perdia e que o intercâmbio entre por vezes ganhar, matar e engolir3 o outro, e noutras perder e ser visto como mais frágil, parecia ser algo importante para ele. Com o passar do tempo ele foi ficando cada vez mais livre e mostrava grande empolgação com aquela batalha. Quando era minha vez de mexer as varetas, ele costumava falar coisas em tom de voz baixo e muito rápido, bem perto de mim, como se fossem ameaças. Parecia não se cansar desta brincadeira. Não era raro eu participar do jogo sob a pele do Tucano e ele como Leão; a brincadeira transformava-se quase numa atuação teatral. Quando ele vencia, costumava desenhar inúmeras coisas que funcionavam como prêmio. Quando perdia, projetava para o Tucano um destino cruel e fazia ameaças sobre o futuro (em outros momentos, era mais piedoso). Não parecia haver evitação do conflito, mas pelo contrário, necessidade de vivê-lo, de maneira intensa e objetivamente competitiva. O combinado já estava feito: a luta entre o Leão e o Tucano deveria persistir até o momento de sua partida (quando ele mudaria para outro país) e só então conheceríamos o verdadeiro vencedor.

Do meu ponto de vista, o que se revelava nessa brincadeira era a necessidade de interagir com alguém que estivesse vivo para brincar com ele, alguém que sobrevivesse aos seus ataques, mas que também lhe apresentasse limites que expressavam cuidados e solidez. Era necessária a presença de alguém que pudesse morrer durante o jogo, mas que estivesse vivo na despedida. Ele não poderia ser massacrado, mas também não poderia encontrar a agonia da ausência, um parceiro que não se apresentasse como algo firme, como algo que não lhe fosse páreo.

 

Trechos de sessões

Apresento aqui algumas sessões em que Pedro optou por realizar alguma outra atividade que não o tradicional Jogo de Varetas.

 

Sessão de 12/08 (terça-feira)

Foi a primeira vez que Pedro mostrou interesse espontâneo por brincar com outras coisas. Passou a mexer em todos os materiais que eu tinha na sala, espalhando blocos, peças de montar e bonecos. Sugeriu: "Vamos fazer uma cidade?!"Passamos então a montar uma cidade. Pedro ia gradualmente tendo idéias e também me sugerindo possibilidades. Em determinado momento começou a montar um carro, que foi crescendo e transformou-se em um carro-avião, para finalmente chegar à sua forma final: um avião-casa-carro. Nele havia quartos e cozinha e moravam o pai, a mãe e os irmãos. Passou então a sobrevoar a cidade pousando em diferentes lugares. Eu disse: "Você fez uma coisa muito legal, é uma casa que pode morar em vários lugares! Você pode estar aqui perto da praça, ou perto da escola ou até mesmo ir para uma outra cidade ou país. E mesmo assim sua casa vai junto com você.”

A sessão passou rapidamente. Pedro parecia satisfeito e ao final quis mostrar tudo o que havíamos construído para sua mãe e seu irmão que o aguardavam na sala de espera. No momento de ir embora ficou sem saber o que fazer, parecia não querer desmontar o que havia sido construído. Propus que guardássemos a cidade, que poderíamos montar uma outra vez, mas afirmei que seu avião-casa-carro não precisava ser desmontado, ele ficaria guardado comigo para quando ele quisesse recuperá-lo. Ele ficou muito satisfeito com esta solução.

 

Sessão de 21/08 (quinta-feira)

Pedro propôs que novamente montássemos uma cidade. Animou-se ao encontrar seu avião-casa-carro e colocou-o ao seu lado. Passou a montar uma grande torre enquanto eu construía um hospital, um lugar para onde ele pudesse ir quando estivesse doente ou não estivesse se sentindo bem. Perguntei o que poderíamos fazer com um pote vazio. Imediatamente ele disse que poderia ser uma cadeia e durante alguns minutos brincou de prender alguns bonecos nela. Dessa vez construímos rapidamente alguns cantos da cidade e Pedro passou a brincar, narrando o que estava acontecendo, enquanto eu assistia e participava de sua brincadeira.

Primeiramente ele aumentou o tamanho do avião-casa-carro, que ficou bem mais poderoso. O avião passou a voar em alta velocidade por toda sala e ele então comentou: "O filho resolveu dirigir, mesmo sem que seu pai tivesse deixado porque ele era muito pequeno. Bateu na torre!"O filho desmontou toda a torre que havia feito e atingiu também vários outros pontos da cidade. A cidade, por revide, passou a bombardear o avião. Ele disse: "Você foi muito atrevido, filho! Olha só o que você fez!"O avião tentava escapar das bombas lançadas pela polícia da cidade. Pedro relatava: "Mas o filho é esperto e consegue desviar das bombas. Começa então a atirar contra a polícia e em toda a cidade."Eu disse: "Ah, então o filho é atrevido ao mesmo tempo em que é esperto!"Pedro argumentou: "Não! Eram dois filhos."A guerra continuou e em meio a tudo isso o pai começou a brigar com o filho por seu atrevimento. O filho resolveu então se jogar do avião, caiu no chão e morreu. O pai disse que o filho merecia ter morrido, pois havia sido muito atrevido. Pedro continuava fazendo o avião sobrevoar, mas perecia um pouco desorientado sobre o futuro da história.

O seguinte diálogo entre nós se desenvolveu:

A: O filho não ficou bravo com o pai? Afinal de contas, o pai o matou.

P: Não, não foi o pai. Foi o filho quem se matou.

A: E ele não está triste?

P: Não, ele tinha sido atrevido.

A: Só o filho esperto sobrevive, não é Pedro?

P: é. Mas o pai pegou o avião e subiu até as nuvens, onde o filho morto estava. E então eles se encontraram de novo. Acabou.

Evidentemente as interpretações para tal material poderiam desdobrar-se em muitas direções. Mas em função do acompanhamento que eu vinha fazendo de Pedro, o que reconheci foram algumas linhas gerais. A construção de cidades e casas era algo que desde o início havia surgido, apresentando o que para ele se mostrava urgente: a ameaça de perda de um ambiente familiar. O avião-casa-carro foi trazido como resposta criativa, uma vez que carregava consigo a chance de manter com ele o que lhe era essencial, independentemente da mudança de espaço. Havia a situação de conflito, outras vezes já demonstrada, que evidenciava o drama interno. E neste contexto surgiu também o filho displicente, causador de incômodos e destruição — o filho que Pedro vinha sendo.

É interessante observar que Pedro recusou a idéia da existência de um filho atrevido e outro esperto (que poderia lembrar a posição de Pedro relativamente ao irmão). O que ele afirmou foi que se tratava de uma só pessoa: alguém que podia às vezes causar destruição, mas que também encontrava condições de remediar a situação através de sua esperteza. Nisto parecia haver a expressão de uma dissociação que ele mesmo procurava integrar em sua personalidade.

Por fim, de modo explícito, tem-se a manifestação do sentimento de culpa e de responsabilidade: a punição ocorreu porque era merecida, foi o próprio filho quem se suicidou, enquanto o pai foi poupado. Pedro mostrava o quanto era capaz de reconhecer os danos que estava causando e ao mesmo tempo em que os atribuía a uma situação exterior (a guerra que na brincadeira se instaurou por revide) guardava para si a responsabilidade fundamental. Era evidente o drama derivado de tal dilema. Mas ao final, Pedro apontou para a existência do pai (com quem ele podia contar) que subia às nuvens e promovia o reencontro. Neste momento, a angústia se aplacou e a sessão foi encerrada.

 

Um importante Jogo do Rabisco (Sessão de 28/08)

Pedro chegou e sugeriu que fizéssemos o Jogo do Rabisco. Ele quis começar fazendo o traço. Passo a descrever os desenhos e o que pude anotar de comentários.

Desenho 1: ele fez um traço e eu desenhei um barco.

Desenho 2: fiz o traço e, a partir dele, Pedro fez um óculos.

Desenho 3: Pedro fez um traço minúsculo na ponta da folha que utilizei para fazer o cabelo de um menino. Pediu para fazer o chão e então disse que estava terminado. Sugeri que ele desse um nome ao desenho e Pedro o chamou de "O menino machucado”. Começou então a desenhar e narrar uma história enquanto desenhava (como é costume seu fazer). Disse: "O menino é machucado porque não amarra os sapatos, saía muito sangue da boca dele, como quando entra uma espada na barriga, e muito sangue dos olhos também. Ele estava muito machucado e tinha muito sangue."Neste momento eu disse: "Então ele é culpado por seus machucados, pois foi ele quem deixou seu cadarço desamarrado."Ele respondeu: "Sim."E então eu disse: "Será que ele se sente como você na escola, quando seus amigos te perseguem?"Pedro não falou nada e imediatamente começou a desenhar curativos pelo corpo do menino.

Eu decidi fazer pouquíssimas interrupções e ele seguiu com a história: "Ele tinha muitos curativos, na perna, no coração. Doeu muito quando ele se machucou no coração, sua mãe chorou muito. Ele só tinha um sapato. Um sapato muito velho que estava todo estragado o sapato, mas ele achava lindo. Quando tiver uma guerra, ele já vai estar morto, porque ele já está quase morto. Sabe por quê? Quem não morre na sociedade em que ele vive, quer dizer, quem não fica muito machucado, como esse menino, é enforcado! Enforcaram uma pessoa e tinha muito, muito sangue! Uma poça de sangue! Então a polícia chegou para prender os dois que estavam enforcando, tinha polícia para todos os lados. Chegou uma polícia-médico e começou a lavar o menino. Lavou todo o menino e ele ficou assim.”

Desenho 4: Eu fiz o traço e Pedro exclamou: "Tive uma idéia!"Disse que era um labirinto. Colocou uma pessoa numa ponta e outras duas na extremidade oposta (eram os guardas). Então começou a narrar e desenhar ao mesmo tempo: "Fecharam as portas e chegaram as cobras, e ele tinha pavor de cobras. Se conseguisse sair dali não sairia do labirinto, porque ele estava cheio de guardas."Perguntei: "Para que tantos guardas, Pedro?"Ele respondeu: "Para eles não fugirem da prisão. Conseguiram sair e vieram as tropas do bem e do mal. Falaram: a gente tem que entrar!”

Uma grande guerra entre o bem e o mal se iniciou e durou algum tempo, até que ele pareceu cansar-se daquilo, como se tivesse se exercitado. Perguntei: "Como acabou?"Ele respondeu: "Ah... O bem ganhou.”

Desenho 5: Pedro fez o traço e eu desenhei algo que descrevi como sendo um guarda-sol na praia. Ele pediu que eu desenhasse um homem, um homem todo de vermelho, todo pintado de vermelho, porque ele estava queimando. Então desenhou três pequenos guarda-sóis sobre a cabeça do homem. Sugeri que ele propusesse um nome para o desenho e imediatamente ele disse: "O homem pelando."Ao final desse desenho ele me perguntou quanto tempo faltava. Restavam apenas dez minutos e ele pareceu ficar um pouco aflito. Disse baixinho: "Não era para ter que ir embora hoje...”

Desenho 6: Fiz o traço e rapidamente ele começou a desenhar. Disse que era uma fazenda, onde havia uma casa grande, um parquinho com escorregador e balanço, flores e verduras. Entre as flores desenhou uma bem pequena, disse que aquela estava nascendo e estava sendo regada por alguém (grifo meu). Por fim, desenhou algumas cabanas atrás da casa, numa delas havia um quarto onde estava "o filho mal-humorado”. Na porta do quarto havia um aviso: "Não entre”.

Pedro começou a imprimir um outro ritmo aos desenhos, não se detendo mais nos conflitos de modo compulsivo como era seu costume. Eu disse a ele que não precisava ter pressa, que nós poderíamos ficar um pouco mais de tempo. Ele falou novamente que queria ficar mais, queria fazer muitos desenhos, não queria ter que ir para casa hoje.

Desenho 7: Ele fez o traço. Pensei em fazer seios. Antes que eu começasse a desenhar ele disse: "Podia ser uma bunda ou um peito."Eu falei: "Você sabe que eu estava pensando exatamente nisso!"Comecei a desenhar uma mulher com peitos e enquanto eu ainda não havia acabado, ele perguntou aflito se poderia ir ao banheiro fazer xixi. Quando voltou, eu havia terminado, mas ele não quis se deter, fez somente os cabelos da mulher e já pegou uma outra folha em branco. Pedi um título e ele respondeu: "Peituda."A figura pareceu ter despertado alguma ansiedade.

Desenho 8: Eu fiz o traço e ele rapidamente reconheceu a possibilidade de um caracol.

Desenho 9: Ao completar seu risco eu não sabia exatamente o que havia feito. Ele decidiu que era uma cobra e fez uma pequena língua. Concordei.

Desenho 10: Fiz o traço e logo ele teve a idéia do que chamou de "Sapato-circo”. Não havia mais tempo. Mas ele pediu que ainda fizéssemos mais dois. Consenti.

Desenho 11: Ele fez o traço e eu fiz um gato meio engraçado. Quando percebeu o que era, gostou. Creio que gostou da experiência de ver surgir, de repente, uma forma definida que não podia supor, já que era eu quem estava desenhando. Ele parecia aproveitar muito esse jogo, a troca envolvida no fato de ter que criar e ao mesmo tempo ir descobrindo o que eu poderia inventar (diferentemente do que ele poderia ter imaginado).

Desenho 12: Fiz o traço e ele começou a desenhar um carro. Disse que era o carro mais veloz do mundo. Em seguida se corrigiu afirmando ser, na verdade, o carro mais engraçado do mundo, era o "carro-risada”. Enquanto desenhava, chamava-o todo o tempo de carro-risada. Quando perguntei qual era o nome do desenho, ele disse: "Carro-maluco”.

Eu disse que precisávamos ir. Ele perguntou por que precisava ir embora. Eu disse que era porque infelizmente nosso tempo havia se esgotado e eu precisava receber outra pessoa. Ele falou: "O tempo não importa... Mas na próxima vez podemos continuar, não?”

 

Desdobramentos

No decorrer das sessões que transcorreram (em Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro), novos movimentos apresentaram-se. O Jogo de Varetas continuou presente, mas algumas qualidades gradualmente se alteraram. A intenção principal de estabelecer, na brincadeira, uma situação de conflito em que ele manifestava explicitamente sua agressividade, ao mesmo tempo em que era capaz de tolerar os gestos também agressivos, manteve-se. Mas Pedro mostrava-se menos aflito e ansioso e aos poucos passou a utilizar este jogo (que carregava as marcas dos primórdios de nossa comunicação) para demarcar e prever quanto tempo ainda teríamos juntos, referindo-se ao momento que cada vez mais se aproximava: o de sua despedida e portanto, de nossa separação.

O Jogo do Rabisco foi sua escolha em alguns outros momentos e seus desenhos passaram a apresentar a configuração de uma história com começo, meio e fim, um enredo através do qual ele mostrava o que estava vivendo ao invés do que inicialmente acontecia, quando os desenhos pareciam expressar situações de muito conflito e funcionar, no decorrer da sessão, como descarga de tensão e agressividade.

A brincadeira de construir cidades foi algo que se tornou cada vez mais frequente entre seus interesses. Mas, novamente, neste caso, houve também algumas alterações. A cidade, antes palco de muitas guerras e destruição, onde ele se apresentava como responsável por inúmeros estragos, passou a ser o lugar de detalhadas construções, onde habitavam pessoas e onde os desastres (agora causados por sujeitos indeterminados, como uma tempestade ou um furacão) podiam ser calmamente remediados. Evidentemente, não houve o desaparecimento completo de angústia ou conflito (fato que poderia causar suspeita e apontar para uma defesa maníaca ou qualquer outra falsa solução), mas o ponto é que ele parecia ter encontrado meios de supor que o que estava em jogo não era mais um desastre absoluto e sem conserto, mas algo sobre o que ele poderia agir (construir, destruir e depois reparar).

Como já descrito anteriormente, através do contato com os pais pude saber que Pedro apresentava significativas alterações com relação àqueles comportamentos que vinham sendo fonte de preocupação. Voltara a ser afável, sua relação com a família mantinha, de maneira geral, uma característica harmônica e ele parecia estar até mesmo estabelecendo alguns vínculos em sua nova escola. Foi quando, ao final de Outubro, recebi uma ligação de sua mãe, que muito angustiada, solicitava uma conversa com urgência.

Marcamos imediatamente um encontro. Na sessão que fizemos, em que ambos os pais estavam presentes, foi-me narrado um episódio ocorrido na escola, no qual Pedro não se comportara bem e por isso teria recebido "suspensão”. Entretanto, os pais de Pedro não se mostravam desagradados com o filho, mas sim com o procedimento da escola, que de modo leviano não teria levado em conta o histórico da criança, impondo-lhe uma punição arbitrária e antagônica a tudo aquilo que eles vinham construindo com o filho.

Contaram-me então a conversa que tiveram com Pedro. Disseram, que diferentemente do que lhes é comum, conversaram antes entre eles para que se orientassem com maior tranquilidade e coerência diante do filho. Ao ser chamado para a conversa, Pedro questionou: "Vocês vão me dar castigo?"A resposta foi negativa. Perguntou ainda: "Vocês vão me dar bronca?"Eles então disseram: "Não filho, não vamos dar bronca, só queremos tentar entender o que aconteceu com você na escola."Neste momento, Pedro perguntou se poderia desenhar enquanto conversavam e os pais consentiram. Ele virou-se de costas e com uma mesinha em sua frente, passou a desenhar enquanto conversava com liberdade com os pais, a quem respondeu sem receios a todas às perguntas, mostrando compreensão do que eles diziam. Ao final, o desenho que havia feito, era o da casa em que iriam morar no novo país.

Ao me contarem este episódio, os pais estavam satisfeitos e até mesmo impressionados (e comovidos) com a repercussão da atitude que eles mesmos tiveram: algo simples, mas que no fundo expressava o desejo genuíno de compreender o que o filho havia vivido. Amparado exatamente nisso, Pedro foi capaz de estabelecer comunicação franca e fluída, pois não se sentiu acusado ou ameaçado por seus pais.

Ainda neste encontro, os pais de Pedro teceram considerações sobre o quanto o entendimento que passaram a ter sobre o que o filho vivia, havia auxiliado não só no modo de agir com ele, mas também no reconhecimento de alguns de seus próprios impasses. Conversamos bastante, e em determinado momento eu lhes disse que parecia que o que tinham vindo buscar nesta conversa comigo era fundamentalmente um asseguramento sobre o que estavam fazendo.

 

Considerações finais

Winnicott afirma que "a primeira coisa é estabelecer a possibilidade de entendimento e lidar com a tendência anti-social quando esta aparece nas crianças que vivem em ambiente relativamente bom [...]."(Winnicott, 1971ve/1984, p. 229) Foi esse o caso de Pedro. Através das conversas iniciais com os pais, pude perceber que apesar de seus impasses, eles haviam lutado para proporcionar uma situação favorável para o desenvolvimento dos filhos. A mãe de Pedro, talvez excessivamente ameaçada por uma suposta perda de sua vida pessoal (a ela tão cara) e ainda insegura com relação a sua capacidade para maternagem (depositando na amamentação ao seio o signo da boa mãe e sentindo-se na mesma medida falha pela incapacidade de fazê-lo); esta mãe, para além do que tais fatores podem implicar, era uma mãe genuinamente preocupada com o que acontecia com os filhos e disponível a socorrer-lhes, independentemente de suas limitações.

Foi com o apoio destes pais que um trabalho satisfatório teve a chance de estabelecer seu curso. O que desenvolvi com a criança em nossos encontros foi sem dúvida relevante, mas arriscaria dizer que talvez não se transformasse em algo significativo sem o trabalho consistente realizado pelos pais. Evidentemente nada se encerra aí, mas pela atenção e disposição dos pais, que se preocuparam com seu filho, talvez possa ter se iniciado a retomada de algo que foi para a criança perdido, quando por alguma razão os cuidados lhe faltaram.

Apesar de tímido e receoso no início, Pedro mostrou-se logo inclinado ao trabalho comigo4. Arriscaria dizer que sua hesitação (aquela que reúne e expressa desejo e medo) não durou mais do que cinco encontros, e em cada um deles ele ousava arriscar um pouco mais. Procurei manter-me fundamentalmente atenta, acompanhando-o sem ansiedade e buscando pequenas brechas de contato. Pedro concedeu-me a chance da ligação — porque certamente esta condição estava de algum modo disponível para ele — e eu pude aproveitar. Nosso vínculo se constituiu e tornou-se real. Nossa próxima tarefa, para além daquelas que ele mesmo continuará tendo de enfrentar, é a despedida. Uma despedida que estamos cuidando para que não se transforme em perda ou desaparecimento.

Recentemente, Pedro me disse: "Nós vamos voltar a nos ver?"Eu respondi: "Certamente."Ele retrucou: "Vai passar muito tempo. Meu pai me disse que vão ser três anos. Quantos anos você vai ter?"Respondi: "Trinta e cinco. Mas certamente nos encontraremos quando você vier passar férias por aqui."Ele falou: "Eu vou ter... Onze anos. Você não irá lembrar de mim."Eu, mais uma vez: "Pode ter certeza que vou, mesmo porque nossas cartas vão deixar a gente mais perto do que você imagina."Mas ele ainda não pode apoiar-se em certezas alheias e então encerrou a conversa: "é, vamos ver.”

Winnicott, quando fala do atendimento de crianças, fala sempre em comunicação com crianças. Minha primeira comunicação com Pedro aconteceu no dia em que o conheci e vendo que ele estava preocupado com o tempo, ofereci a ele meu relógio, e com isso, o controle do tempo que ele passaria ali. Pedro precisa saber que o tempo de sua vida lhe pertence e precisa reconhecer que existe alguém capaz de perceber seu ritmo e de compartilhar com ele o momento preciso onde suas coisas acontecem. Não à toa, minhas sessões com essa criança eram marcadas pela sensação de que uma brecha no tempo e no espaço tomava lugar e que enquanto estávamos ali, não havia qualquer demarcação do gênero, somente a experiência que fazíamos.

Para Pedro, o tempo da sessão era sempre insuficiente. Certo dia, depois de eu já ter estendido a sessão alguns minutos e reafirmado que era hora de irmos, ele me disse: "O tempo não importa, Alice."A mim restou a ingrata, mas importante tarefa de dizer-lhe: "Acho que você tem razão. Mas precisamos terminar mesmo assim, porque agora tem outra pessoa com quem preciso me encontrar."Ele aceitou e não se mostrou excessivamente desapontado, apenas um pouco chateado, como quem precisa enfrentar esses limites da vida. Recentemente, também ao final de uma sessão, logo depois de dizer que não gostaria de ir, afirmou: "Eu entendo, nós precisamos ir. Até quinta-feira, Alice.”

 

Referências

Winnicott, D. W. (1984). Introdução (à Parte 3). In D. Winnicott (1984/1971b), Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971; respeitando a classificação de Huljmand, temos: 1971ve)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1987). Piggle: o relato do tratamento psicanalítico de uma menina. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1977; respeitando a classificação de Huljmand, temos 1977)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: alibusnardo@gmail.com

 

 

*Psicóloga, doutoranda no Programa de Psicologia Clínica da PUC-SP
1 O Jogo de Varetas é composto pos finas varetas de madeira ou de plástico que medem cerca de 20 cm de comprimento cada uma. Elas são divididas por cores (preto, vermelho, amarelo, azul e verde) e cada cor possui um valor diferente. O jogo consiste em esparramar as varetas sobre um plano horizontal, a partir do que cada jogador tentará ganhar uma a uma sem que as outras que não são objeto da tentativa se movam. Vence não só quem consegue o maior número de varetas, mas aquele que obteve aquelas que possuem maior valor.
2 O Jogo de Varetas é uma competição. Neste momento, quando reconheci a preferência de Pedro por essa brincadeira, sugeri que ele escolhesse um personagem, que o representaria na luta, e eu faria a mesma coisa. Antes de iniciarmos o jogo, desenhávamos em uma folha de papel o personagem que nos representava. Era na folha que também passávamos a anotar a pontuação de cada uma das partidas. Ao final, computávamos os pontos do dia e localizávamos o vencedor. O registro no papel servia para guardar o que havia acontecido, mas também para que ele criasse histórias a partir do jogo que ocorrera sobre o que acontecia com o vencedor e o perdedor e sobre o que estava sentindo o Leão (ele) e o Tucano (eu). Era o momento em que trabalhávamos de modo bem explícito o que havia se desenrolado entre nós durante a sessão.
3 Matar, destruir, "comer você”, "engolir você"eram termos por ele utilizados enquanto jogávamos. Eram coisas ditas com muita liberdade e com reconhecimento evidente de tudo se desenrolava no espaço da brincadeira. Isto me concedeu a chance de proporcionar o que ele necessitava neste jogo: manipular sem muito receio seus impulsos destrutivos, usando-me para o que precisava (como alguém que poderia ser ferido por ele, mas que ao mesmo tempo era capaz de impor-se, sem brutalidade e com firmeza porque reconhecia que nele havia potência — ele não era "café-com-leite”). Estávamos brincando, mas não estávamos para brincadeira. O que se desenvolvia era sério e significativo.
4 Na descrição de caso presente no livro Piggle: o relato do tratamento psicanalítico de uma menina (1977/1987), Winnicott menciona algumas vezes, quando descreve suas sessões com a menina, que Piggle vinha ao seu encontro com uma determinada tarefa que precisava encontrar campo e companhia para sua realização. Isso me lembra o modo como Pedro parecia preparar-se para alguns de nossos encontros.