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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.4 no.1e2 São Paulo  2009

 

ARTIGOS

O caso B: a mãe perfeita e a constituição do si-mesmo

 

Case B: the perfect mother and the constitution of the self

 

 

Gabriela Galván

Universidade de São Paulo
Centro Winnicott de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O ser humano, na perspectiva da psicanálise winnicottiana, se constitui como tal na relação com o ambiente. É a partir da relação mãe-bebê que Winnicott compreende a constituição do ser humano como um percurso que, na saúde, permite ao indivíduo alcançar uma identidade, um si mesmo integrado. Ao longo do desenvolvimento temos um caminho que vai da dependência absoluta, período no qual o papel do ambiente é extremamente importante, à independência relativa. As falhas de maternagem, quando ocorrem em um momento precoce do amadurecimento, prejudicam o indivíduo justamente em seu sentimento de ser, na constituição de um si mesmo que se reconheça como tal. Neste trabalho pretende-se abordar um tipo específico de falha materna, a necessidade de perfeição da mãe, e refletir acerca da relação mãe-bebê nessas condições e de seus desdobramentos ao longo do amadurecimento. Para isso tomar-se-á o caso B, cuja análise foi relatada por Winnicott, especificamente no que se refere às questões relativas à constituição de um si mesmo integrado

Palavras-chave: amadurecimento, falha ambiental, si mesmo, falso si mesmo, estudo de caso.


ABSTRACT

From the perspective of Winnicottian psychoanalysis, human beings are constituted as such in their relations with the environment. It is from the mother-baby relation that Winnicott understands the constitution of a human being as a trajectory that, when healthy, allows an individual to attain an identity, an integrated self. Throughout our development, we tread a path that goes from absolute dependency – a period in which the role of the environment is extremely important – to relative independence. The failures in maternity, when occurring at an early stage of maturing, impair an individual precisely in his or her feeling of being, in the constitution of a self that recognizes itself as such. In this paper, a specific kind of maternal failure is approached: the need for the mother's perfection. We then reflect about the mother-baby relation in those conditions and how it unfolds throughout the maturing process. To this end, we discuss case B – whose analysis was reported by Winnicott – specifically in regards to matters concerning the constitution of an integrated self.

Keywords: maturing, environmental failure, self, false self, case study.


 

 

Há muitos e fundamentais conceitos envolvidos na formulação winnicottiana que postula que o indivíduo se constitui a partir de uma tendência ao amadurecimento e à integração em uma unidade, mediante um ambiente facilitador. Talvez um dos aspectos mais significativos seja o âmbito relacional da existência humana, na medida em que a dependência absoluta do bebê ao nascer implica que a sua continuidade de ser só pode ser preservada se encontrar no ambiente as condições necessárias para que isso ocorra. Nesse momento, é a mãe (ou quem quer que esteja nessa posição) quem pode, por meio de sua identificação com o bebê, traduzir e complementar as necessidades deste, fornecendo-lhe as condições para que uma existência se inicie tendo como base e origem o impulso pessoal do próprio bebê.

Há muitos e fundamentais conceitos envolvidos na formulação winnicottiana que postula que o indivíduo se constitui a partir de uma tendência ao amadurecimento e à integração em uma unidade, mediante um ambiente facilitador. Talvez um dos aspectos mais significativos seja o âmbito relacional da existência humana, na medida em que a dependência absoluta do bebê ao nascer implica que a sua continuidade de ser só pode ser preservada se encontrar no ambiente as condições necessárias para que isso ocorra. Nesse momento, é a mãe (ou quem quer que esteja nessa posição) quem pode, por meio de sua identificação com o bebê, traduzir e complementar as necessidades deste, fornecendo-lhe as condições para que uma existência se inicie tendo como base e origem o impulso pessoal do próprio bebê.

Então, em um primeiro momento e do ponto de vista do bebê, não há sinal de externalidade, de não-eu, e isso somente é possível porque a mãe se adapta totalmente ao bebê. A capacidade para se relacionar com objetos advêm dessa vivência inicial de dois-em-um e da posterior separação gradual da mãe, de tal modo que as necessidades do bebê passam a ser atendidas como resposta aos sinais dados por ele. Se a mãe corresponde e se adapta, o bebê passa a ser capaz, gradativamente, de conquistar uma realidade pessoal e de se relacionar com o mundo criativamente. Isso significa que o ser humano não é concebido como um ser em busca de satisfação/prazer, às voltas com os conflitos internos decorrentes de sua instintualidade, mas como um ser relacional, em busca da continuidade da existência e de se sentir real. E é justamente o cuidado materno, se suficientemente bom, que garante que essa continuidade de ser não seja perturbada.?

Nessa perspectiva, há um sentido temporal do amadurecimento pessoal: a existência se desdobra no tempo. A integração em uma unidade não é um fato consumado ao nascer, nem sequer algo que aconteça subitamente em um determinado momento. O sentido de si mesmo vai adquirindo consistência à medida que, amparado na constância e confiabilidade da presença materna, o bebê pode elaborar imaginativamente as vivências e abarcá-las como experiências pessoais; o que implica conquistas que, por sua vez, possibilitam outras experiências e vão conduzindo à integração da personalidade e à diminuição gradativa da dependência com relação ao ambiente.

Dessa forma, ao olharmos o amadurecimento como um percurso que vai da dependência absoluta à independência relativa, é necessário perceber que a relação do indivíduo com o ambiente, ou as suas necessidades com relação e este, são mutáveis. Há transformações e elas se dão em uma dinâmica constante, na qual, se há saúde, nem indivíduo nem ambiente permanecem iguais em sua inter-relação. Isso também significa que não há regras ou técnicas que garantam ao ambiente a qualidade de "facilitador". O que há são as necessidades do bebê, em geral sutis e sempre em transformação, que devem ser atendidas para que o amadurecimento ocorra. Por sua vez, as falhas ambientais e suas consequências são tão variáveis quanto as possibilidades que elas ocorram e os momentos em que podem se dar. O que podemos afirmar é que as falhas de maternagem, ao ocorrerem em um momento precoce do amadurecimento, quando a dependência ainda é absoluta, prejudicam o indivíduo justamente em seu sentimento de ser e na conquista de um sentido pessoal da existência a partir da criatividade originária.

Neste trabalho, pretende-se abordar um tipo específico de falha materna, a necessidade de perfeição da mãe, e refletir acerca da relação mãe-bebê nessas condições e em seus desdobramentos ao longo do amadurecimento. Para isso, tomar-se-á um caso detalhadamente relatado por Winnicott − o caso B −, fazendo um recorte especificamente no que se refere às questões relativas à constituição de um si-mesmo integrado.

B começou seu tratamento aos 19 anos. Sua mãe procurou Winnicott e solicitou-lhe que atendesse o filho, que queria fazer análise. Winnicott propôs que B fosse vê-lo no dia seguinte e, imediatamente, iniciou-se um primeiro período de análise que durou aproximadamente dois anos, com algumas interrupções. No início, seu estado era de "confusão e irrealidade". Dessa fase Winnicott destaca como aspecto marcante a facilidade com que B entrava em contato e falava acerca de seu mundo pessoal − desde que sentisse seu analista como parte desse mundo. Por outro lado, e não é de se surpreender, aparecia uma dissociação na personalidade de B de forma que pouca relação parecia existir entre o paciente na análise e no mundo externo.

Ao final desse período inicial de dois anos, Winnicott considera que B alcançou o que ele denominou de uma "melhora clínica", que lhe permitiu retornar ao trabalho em uma empresa de engenharia. Ao que parece, B utilizou-se, para alcançar dita melhora, não somente da própria análise, mas também de sua especial capacidade intelectual, destacada por Winnicott.

Passados oito anos dessa primeira fase de tratamento, Winnicott escreveu à mãe de B pedindo notícias do paciente. Ela respondeu prontamente e contou-lhe de sua própria análise, na qual percebera que tivera, na infância de B, a necessidade de ser perfeita enquanto mãe, o que se dava em decorrência de grande ansiedade e não permitia nenhuma flexibilidade. Quanto a B, decidira tornar-se médico, uma vez que sempre soubera que não se interessava pela engenharia. Casara-se e, naquele momento, estava prestes a ter um filho. Não se sabe ao certo se Winnicott continuou mantendo contato esporádico com a mãe de B. O fato é que, cerca de quatro anos depois das últimas notícias e, portanto, doze anos após o final da primeira análise, B teve um colapso e foi internado. O psiquiatra responsável por ele entrou em contato com Winnicott, que voltou a atendê-lo.

No início da segunda análise, B tinha aproximadamente 30 anos. Queixava-se de uma sensação de impessoalidade. E também de que não conseguia manter conversas informais, falar livremente, que não tinha imaginação e que não conseguia ter um gesto espontâneo ou ficar excitado. Queria ser capaz de chorar. Ele entrou em colapso quando se formou médico e se encontrou em uma posição de responsabilidade, tendo que tomar decisões próprias. Foi internado em função de sentimentos de irrealidade e de uma incapacidade de lidar com o trabalho e com a vida. Assim Winnicott descreve B no início da segunda análise:

Pode-se dizer que a princípio ele vinha para a análise e conversava. Seu discurso era estudado e retórico. (...) Pode-se dizer que depois de algum tempo ele trouxe a si mesmo para a análise e que passou a falar de si como um pai ou uma mãe que houvesse trazido o filho até mim. Nessas fases iniciais (que duraram seis meses), eu não tive chance de ter uma conversa direta com a criança (ele mesmo). A evolução desse estágio da análise é descrita em outro trabalho. Através de um caminho muito especial, a análise mudou em qualidade, de forma que eu me tornei capaz de entrar em contato direto com a criança, que era o paciente. (Winnicott, 1986a/2001, p. 28)

O autor se refere aqui à característica da relação terapêutica naquele momento e ao trabalho inicial da análise. Assim, o que se destaca é que B se relacionava por meio de um falso si-mesmo cuidador, sendo que pôde – via regressão à dependência durante o tratamento – entregar o cuidado ao analista e passar a buscar a existência a partir de uma posição pessoal, ainda a ser conquistada. Esse período foi relatado por Winnicott em seu artigo "Retraimento e regressão" (Winnicott, 1955e/2001). Dessa forma, a integração da instintualidade tornou-se a questão principal da segunda análise, que durou dois anos e cujos últimos seis meses foram detalhadamente descritos no livro Holding e interpretação. Masud Khan escreve uma introdução para esse livro, na qual faz um apanhado geral das questões que perpassam a análise de B. Com relação ao momento imediatamente posterior ao colapso, de particular interesse nesse artigo, aponta Khan:

Em relação ao mundo "externo", ele era meramente reativo. Em relação ao seu si-mesmo verdadeiro, se é que se pode usar esse termo, ele tinha apenas uma postura protetora. Ele nunca conseguia alcançá-lo nem viver a partir dele. Isso explica as suas queixas de falta de espontaneidade e de iniciativa. Winnicott atribui essa inalterável dissociação à experiência de alimentação "ideal" na infância, que roubou do paciente toda iniciativa de desejo e necessidade. As necessidades instintivas da fome e do desejo sexual impelem a pessoa em direção ao objeto, um risco que ele não podia correr. (2001, p. 18)

A mencionada experiência de alimentação ideal na infância do paciente diz respeito à maneira como sua mãe estabelecia o contato durante as mamadas. Ao se preocupar em alimentar o bebê de forma "perfeita" e sendo "inflexível", é muito provável que ela o amamentasse baseada em intervalos fixos, em um tempo "correto", estabelecido por ela e não de acordo com o ritmo e a necessidade de B. Além disso, uma vez saciada a fome do bebê, a mãe – por considerar sua tarefa cumprida – desaparecia como ambiente que dá sustentação ao bebê e também que se mantém disponível para atendê-lo quando uma nova onda instintual surgisse. Dessa maneira, a satisfação passou a ser um perigo para B, pois, ao alcançá-la, perdia o objeto – que não havia criado, nem poderia vir a criar, uma vez que sua mãe não lhe permitia viver a ilusão de onipotência.

Winnicott aponta que uma questão importante em B era que este se sentia aniquilado ao final de cada mamada e, no início da análise, havia o medo do paciente de terminar o tratamento relacionado ao medo do desaparecimento do objeto como decorrência de uma experiência de satisfação. Já estava aí presente a questão da relação com o objeto e a possibilidade ou não do encontro se dar a partir de um impulso pessoal. É possível notar aqui que a questão da perfeição da mãe e a postura reativa de B diante da vida e das relações aparecem como aspectos intrinsecamente relacionados, como veremos a seguir.

A mãe de B, ao se referir à sua perfeição enquanto mãe, não lhe atribui um valor positivo, mas sim uma "qualidade sintomática" (Khan, 2001, p. 13), no sentido de ser originada de sua ansiedade com relação à própria maternidade, provavelmente, e às suas dificuldades diante da vida de maneira geral. Um aspecto a considerar é que a perfeição − tomada como adjetivo que qualifica o "desempenho" da mãe – tem como base um padrão de maternagem, supostamente correto ou tido como adequado e que, independentemente de qual seja, é pautado em pressupostos teóricos e técnicos que não incluem a relação particular e pessoal de uma determinada mãe com o seu bebê. O que ocorre é que um bebê no estado de dependência absoluta da mãe não necessita de cuidados corretos e muito menos perfeitos – a perfeição é atributo das máquinas, diz Winnicott – e sim de cuidados pessoais. Isso só é possível se a mãe se identifica com o filho e, por isso, pode saber o que ele necessita e como atendê-lo, no momento certo – o que Winnicott denomina adaptação ativa. Assim, porque o objeto vai ao encontro do bebê na mesma hora em que surge a necessidade, o bebê pode ter a ilusão de tê-lo criado. É a ilusão de onipotência que permite ao indivíduo alcançar e manter a espontaneidade no relacionamento com os objetos, preservando o sentido de realidade do si-mesmo. Mais importante que a satisfação instintual é que esta se dá a partir do gesto do bebê, que é correspondido por alguém vivo, totalmente envolvido e identificado com ele. Dessa forma, o bebê encontra o ambiente sem ser invadido por ele. Isso não é possível se há uma dificuldade da mãe em se identificar com o bebê.

É com relação a essa dificuldade que a perfeição da mãe de B é sintomática: sintoma da impossibilidade de se identificar com o filho. O "cuidado perfeito" – quando utilizado pela mãe como guia em sua relação com o bebê − substitui a identificação que não pôde ocorrer. E, por ser baseado em uma concepção predeterminada e, portanto, externa ao encontro mãe-bebê, traz como resultado uma invasão pelo ambiente, da qual só resta, ao bebê, se defender. O que chamamos de defesa, aqui, é a submissão de B à mãe. Nesse sentido, a afirmação que B teve uma "alimentação ideal" na infância remete para uma mamada "técnica", que saciava a sua fome, porém, sem poder contar com a presença efetiva da mãe e à custa de um prejuízo no contato com o mundo a partir de seu gesto espontâneo – "o si-mesmo verdadeiro em ação" (Winnicott, 1965m[1960]/1983, p. 135). O problema que se coloca é que B teve que se adaptar à mãe.

Em uma das sessões, diz B: "Lembro agora que você dizia que minha mãe sentia uma ansiedade constante quando eu era pequeno, de forma que ela tinha necessidade de ser perfeita. É semelhante à ansiedade que vivo aqui". Ao que o analista responde: "Você só pode encontrar o cuidado perfeito de sua mãe através da ansiedade de perfeição. Por trás disso, o que existe é a falta de esperança de amar e ser amado" (Winnicott, 1986a/2001, p. 61). Ou seja, B passou a precisar, também ele, ser perfeito para o outro, por conceber que só assim poderia ser amado. Na análise percebeu que, para ele, a alternativa à submissão era o abandono. Diz B: "Encarei o problema durante um bom tempo e me vi diante da perspectiva sem esperança de ser amado ou desejado pelo que sou e não pelo que faço ou realizo. (...) Aparentemente pode-se concluir (eu já havia reconhecido o fato há muito tempo) que eu estive obcecado por uma necessidade de agradar todo mundo, sendo que tudo isso faz parte da perfeição e do impulso para conseguir amor e respeito" ( Winnicott, 1986a/2001, pp. 196-197). Assim, alcançar qualquer coisa por meio da perfeição significava reconhecer a necessidade de se adaptar ao objeto para existir.

Porém, existir pela via da submissão impede o indivíduo de ser espontâneo e torna o viver meramente reativo. B tinha dificuldades quando se via na situação de criar algo a partir de uma iniciativa ou um movimento próprio, que não fosse resposta à expectativa do outro. Winnicott chama a atenção para o fato de B se sentir incapaz de iniciar ou manter um diálogo; ele não conseguia conversar a menos que houvesse duas pessoas que tomassem para si a responsabilidade sobre a conversa (Winnicott, 1986a/2001, p. 258). Na análise, durante uma determinada fase, B sentia que devia produzir algo interessante e falar coisas importantes, ao mesmo tempo em que sabia que, se o analista considerasse uma bobagem algo dito, ele ficaria arrasado. Por outro lado, havia ainda o receio de que o analista tratasse como relevante qualquer coisa que ele dissesse – o que seria artificial e falso. Portanto, não era por acaso que falar, ou se colocar em uma determinada situação, era uma tarefa difícil e arriscada. Lembremos, também, que B teve um colapso ao assumir uma posição de responsabilidade, na qual tinha que se relacionar a partir de suas próprias condições e não somente responder às demandas externas.

Outro aspecto importante a ser considerado, relativo à mãe perfeita, é o sentido mesmo de perfeição como ausência de falhas. Aqui é importante apontar que, em se tratando da teoria do amadurecimento, falhar não é sinônimo de errar. Uma mãe não suficientemente boa não é assim descrita porque errou nos cuidados com seu bebê e sim porque falhou em um sentido mais amplo do termo, que pode ser assim definido: falhar é não fornecer as condições necessárias de sustentação e facilitação para que o amadurecimento ocorra, sendo que o significado específico do termo "facilitar" não é único, nem permanente − assim como não o são as necessidades do bebê, que estão em constante mutação. Particularmente quando nos referimos ao início do amadurecimento, falhar diz respeito à impossibilidade da mãe de se identificar e estabelecer uma comunicação efetiva com o bebê.

O bebê não ouve ou registra a comunicação, mas apenas os efeitos da confiabilidade; é algo que se registra no decorrer do desenvolvimento. O bebê não tem conhecimento da comunicação, a não ser a partir dos efeitos da falta de confiabilidade. É aqui que se dá a diferença entre perfeição mecânica e amor humano. Os seres humanos cometem muitos erros, e durante o tempo em que a mãe cuida normalmente do seu bebê ela está continuamente corrigindo as suas falhas. (...) Assim, a adaptação bem sucedida dá uma sensação de segurança e um sentimento de ter sido amado. (Winnicott, 1968d/1994, p. 87)

O que está em jogo, no início, é que o gesto do bebê se origina de um estado de quietude ou, melhor dizendo, de não integração, que pôde ser preservado. E mais, que o gesto, quando surge, encontra uma resposta apoiada em um objeto a ser encontrado. É nesses termos que podemos falar de uma experiência sem perda da sensação de ser e enriquecedora do si-mesmo pessoal.

O caso de B é o negativo disso. Como vimos, o ambiente foi invasivo, acarretando dificuldades no contato com o mundo compartilhado. Ao mesmo tempo, e com relação às dificuldades na integração de sua instintualidade, é preciso destacar que, em B, a excitação e o objeto da satisfação permaneciam como elementos não relacionados, de forma que a satisfação aniquilava o objeto sob o qual não tinha controle algum e não sabia, portanto, se voltaria, já que não havia sido criado por ele, nem encontrado como resposta ao seu gesto. Então, ao ocorrer a excitação e não encontrar um ambiente que a acolhesse, não era possível integrá-la: B ficava à mercê dos instintos, tendo a inibição como única saída possível.

Dessa maneira, a espontaneidade tornou-se um risco que B não podia correr. Diz B: "As pessoas só apreciam a sua companhia quando você não fica preocupado se vai ou não encontrá-las. (...) Conversar com as pessoas não é uma tarefa fácil; requer esforço, e o tempo todo eu tenho a sensação de que devo estar entediando todos" (Winnicott, 1986a/2001, p. 157). E na sessão seguinte: "Conversar livremente significa correr um risco. Tudo fica fora de controle" (Winnicott, 1986a/2001, p. 164). O risco a se correr é o de não ser aceito e, assim, ficar exposto à vergonha e ao vazio. Diante da necessidade de se adaptar para não ficar à mercê dos instintos, tornou-se difícil para B integrar as experiências e se constituir como si mesmo. B não conseguia ficar excitado e ser espontâneo, já que capacidade para viver os estados excitados tem a ver com a presença de alguém que os aceite e os sustente. Em uma sessão, diz B: "Duas coisas me vêm à cabeça. A primeira tem relação com aquilo que você disse sobre a supressão do meu si-mesmo verdadeiro por causa da censura que eu me imponho antes de falar. Isso torna tudo muito impessoal, e não existe nenhuma raiva, excitação ou felicidade, e eu não quero me levantar e bater em você. É só o que nós falamos; eu não sinto nem demonstro nada. Há outros que se ofendem, ficam com raiva e evitam ser influenciados"(Winnicott, 1986a/2001, p. 167).

A inibição instintual e o contato precário com o mundo externo estavam presentes na primeira análise de B, sendo que, na relação com o analista algo pôde ser experimentado, o que redundou em sua "melhora clínica". Diz Winnicott:

Na análise ele se tornou capaz de me relacionar a fenômenos externos e de eliminar a grave dissociação, passando então a trazer assuntos externos para as associações. Em casa, ele começou uma nova relação com a mãe, baseada na observação do si-mesmo real dela. O paciente autossatisfeito, autocentrado, preguiçoso, barbudo, que usava vestimentas estranhas, transformou-se num homem que queria trabalhar e que por fim conseguiu e manteve um trabalho de responsabilidade numa fábrica durante a guerra. (Winnicott, 1986a/2001, p. 12)

É provável que Winnicott tenha garantido, nessa relação inicial, a presença constante, previsível e, portanto, confiável, que possibilitou a B o início do contato com mundo objetivamente percebido. Porém, esse contato era apoiado em um falso si-mesmo, uma vez que B não havia tido, ainda, a oportunidade de reformular as experiências mais precoces por meio da regressão à dependência. Imediatamente após o colapso – diga-se, o colapso da organização defensiva –, o trabalho da análise foi o de transformar o retraimento autoprotetor do paciente em dependência. B pôde delegar o cuidado ao analista, que lhe ofereceu o holding necessário para que ele passasse a existir a partir de seu si-mesmo verdadeiro e a problemática da integração da instintualidade ganhou sentido real, na medida em que se tornou uma tarefa possível, a ser realizada.

 

Referências

Khan, M. (2001). Introdução. In D. Winnicott, Holding e interpretação (pp. 1-25). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1983). Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro "self". In D. Winnicott (1983/1965b), O ambiente e os processos de maturação. Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (pp. 128-139). Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1965[1960]; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1965m[1960])        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1994). A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê: convergências e divergências. In D. Winnicott (1994/1987a), Os bebês e suas mães (pp. 79-92). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1968; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1968d)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (2001). Holding e interpretação. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1986; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1986a)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (2001). Retraimento e regressão. In D. Winnicott (2001/1986a), Holding e interpretação (pp. 253-261). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1955; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1955e)        [ Links ]

 

 

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