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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.4 no.1e2 São Paulo  2009

 

ARTIGOS

 

O problema do sentido na psicanálise de Freud

 

The problem of meaning in Freud's psychoanalysis

 

 

João Paulo Barretta

Universidade Paulista
Centro Winnicott de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Uma interpretação corrente entre especialistas em psicanálise afirma que há ambiguidade na teoria freudiana, pois ela ao mesmo tempo explica e interpreta alguns eventos (as formações do inconsciente). Este artigo pretende contribuir para explicitar a referida ambiguidade e mostrar como ela é possível. Isso é feito por meio de uma exposição da concepção de sentido na obra de Freud.

Palavras-chave: sentido, interpretação, representação-meta.


ABSTRACT

A current interpretation among experts in psychoanalysis says there is a methodological ambiguity in Freud's theory, since it simultaneously explains and interprets some events (the formations of the unconscious). This paper aims to clarify such ambiguity and show how it is possible. This will be done through the exposition of the notion of meaning in Freud's work.

Keywords: meaning, interpretation, final-representation.


 

 

1. Introdução

O tema "psicanálise e hermenêutica" é um capítulo de uma polêmica que ficou conhecida como a "disputa de métodos" (methodenstreit) nas ciências humanas. Como se sabe, essa disputa teve início, por um lado, com o surgimento da Escola Histórica, na Alemanha, que elevou a história ao status de ciência e, por outro, do positivismo, que pretendia, em linhas gerais, defender um monismo metodológico, a tese de que todos os objetos de investigação científica podem e devem ser explicados por meio de leis gerais obtidas indutivamente a partir de observações empíricas, tal como seria corrente no domínio das ciências naturais1. A essa posição epistemológica o historiador alemão Droysen (1858) foi o primeiro a se contrapor e a introduzir os conceitos antitéticos de explicação (erklären) e compreensão (verstehen). Ele foi seguido por Dilthey (1883), que desenvolveu de maneira mais sistemática a clássica distinção entre os métodos explicativo, das ciências naturais, e o método compreensivo, das ciências humanas.

Dilthey tomou a hermenêutica (a teoria da interpretação/compreensão) como o método adequado às ciências humanas e, nesse sentido, apoiou-se nos desenvolvimentos da hermenêutica levados a cabo por Schleiermacher, que havia formulado uma teoria geral da interpretação com base nas antigas disciplinas independentes de exegese de textos bíblicos (Antigo e Novo Testamento) e filologia de textos clássicos (gregos e romanos), e a vinculou ao problema epistemológico das ciências humanas, transformando o problema da interpretação de textos em interpretação de qualquer realidade histórico-social (espírito objetivado). Contudo, a compreensão continuava sendo vista ,como um modo de conhecimento entre outros. Será Heidegger quem tomará a compreensão/interpretação e, portanto, a hermenêutica como o elemento central da experiência humana, na medida em que o Dasein é ele mesmo uma situação hermenêutica. Isso implica, como veremos brevemente ao final desse trabalho, que Heidegger estende o tradicional círculo hermenêutico (segundo o qual não se pode entender as partes de um texto sem entender o todo e vice-versa) para a experiência humana mais originária. A hermenêutica não é mais, desde então, apenas um ramo "menor" da filosofia, mas a filosofia é ela mesma hermenêutica. Nisto consiste a chamada "virada hermenêutica" de Heidegger, que será posteriormente levada adiante por Gadamer e outros filósofos do século XX.

A transposição dessa problemática iniciada alhures para a psicanálise é, por um lado, natural, uma vez que ela é uma ciência (aplicada) de fenômenos humanos, por outro lado, tal transposição esbarra em uma peculiaridade da teoria psicanalítica de Freud, sua ambiguidade metodológica, já apontada por inúmeros comentadores e especialistas em psicanálise2, o fato de que a teoria de Freud ao mesmo tempo explica certos fenômenos psicológicos e os interpreta. Ou, dito de outra forma, a psicanálise freudiana parte da concepção de que os fenômenos psicológicos por ela investigados (e tratados) devem ser explicados, como os demais fatos naturais, e devem ser interpretados, como os fenômenos dotados de sentido. Para entender como isso é possível veremos, em linhas gerais, como Freud explica os fenômenos por ele investigados, como ele concebe o sentido desses mesmos fenômenos e como ambos os métodos, ou ambas as concepções a respeito dos fenômenos psicológicos estudados, podem estar vinculados. Mais especificamente, procurarei explicitar como a noção de sentido do sintoma pode se "encaixar" com a metapsicologia freudiana. Um segundo ponto que gostaria apenas de indicar diz respeito ao fato de que esta ambiguidade se deve à tentativa freudiana de conceber a evidência clínica do "sentido oculto" à luz de uma teoria empirista e naturalista do psiquismo, ou melhor, de vinculá-la a uma concepção empirista e naturalista de experiência (vivência). Para tornar este ponto mais claro apresentarei brevemente uma alternativa à luz das considerações de Heidegger nos anos 1920 a respeito quer da noção de experiência, quer da noção de sentido. Por fim, indicarei que uma modificação dessa concepção de sentido e de experiência implica igualmente na necessidade de uma revisão da concepção (naturalista) de corpo.

 

2. A metapsicologia freudiana como uma teoria explicativa de certos fenômenos clínicos e psicológicos

A teoria psicanalítica freudiana surgiu baseada na investigação e tratamento de certas patologias mentais, as chamadas neuroses. Tratava-se inicialmente de uma teoria a respeito da origem e da causa dessa patologia. Com o tempo, contudo, foi possível expandir essa teoria de modo que também fosse empregada na explicação de outros fenômenos psíquicos, chamados por Freud de formações do inconsciente – sonhos, atos falhos, chistes, lapsos de linguagem etc. Com essa expansão pôde-se passar de uma teoria dos processos psíquicos patológicos para uma dos processos psíquicos em geral, na medida em que esses últimos fenômenos são comuns a todas as pessoas, neuróticas ou não.

A teoria psicanalítica freudiana deve ser entendida, portanto, como uma teoria genética, explicativa, de certos processos psíquicos (as formações do inconsciente), ou seja, ela pretende encontrar a razão de ser desses mesmos processos3. O ideal das ciências em geral, e da psicanálise em particular, seria explicar fenômenos observáveis por meio de outros fenômenos do mesmo tipo, contudo, tal tentativa esbarra nas lacunas da consciência e tornariam a psicologia uma ciência impossível4. Desse modo, Freud se vê obrigado a se valer, em suas explicações, de conceitos que não são propriamente "dados psicológicos", que são metapsicológicos, no sentido de que estão além de qualquer psicologia. A psicanálise infere para além dos dados da consciência outros fatos, inconscientes5, de modo que se trata de uma maneira de fazer ciência semelhante às ciências naturais que inferem além dos fatos observados, outros fatos não observados que explicariam os primeiros.

Dentre as diferentes explicações possíveis dos fatos observáveis, Freud dá preferência às explicações dinâmicas, isto é, àquelas que se referem a um conflito de forças6, conflito esse que pressupõe uma equivalência das forças em ação, bem como um critério econômico (o fator quantitativo) como decisivo. Além desses dois pontos de vista, Freud entendia ser útil ainda o emprego de metáforas espacializantes do psiquismo, ao se referir às instâncias psíquicas em termos de lugares, o chamado "ponto de vista tópico". Essas explicações freudianas estão reunidas e sistematizadas em diferentes modelos (heurístico) do aparelho psíquico7, dos quais o mais completo é aquele elaborado em 1900, em seu texto A interpretação dos sonhos.

Os processos psíquicos que Freud tem em vista explicar, as formações do inconsciente, podem ser objeto de algum tipo de experiência, que aparecem, por exemplo, na clínica, e ele os explica metapsicologicamente fazendo referência aos pontos de vista tópico, dinâmico e econômico. A ocorrência, por exemplo, de um esquecimento de nome próprio e a recordação substituta de outro, como no caso Signorelli, é explicada pela interferência de cadeias representacionais inconscientes (tópico) a partir de um conflito (dinâmico) de (quantidades de) forças entre o desejo e a censura que tem como resultado uma solução de compromisso que é precisamente o fato observado inicialmente. Ao mesmo tempo, Freud reconhece que os processos psíquicos secundários possuem um sentido e podem ser compreendidos e interpretados. Pode-se mesmo dizer que a grande descoberta de Freud foi o "sentido" (inconsciente) dos sintomas, sonhos, enfim, das formações do inconsciente. Vejamos esse ponto.

 

3. A vertente hermenêutica da psicanálise freudiana e a sua concepção de sentido

Desde as primeiras experiências clínicas de Freud e Breuer com pacientes histéricos sob o método catártico, eles se deram conta de que os sintomas neuróticos têm um sentido que se relaciona com as experiências do paciente (cf. Freud, 1916/1999, p. 264). Posteriormente, Freud foi levado a concluir que também as outras formações do inconsciente, fenômenos em geral aparentemente sem sentido, poderiam ser vistos do mesmo modo. Sobre esse ponto pode-se ler em Freud:

Os sintomas neuróticos têm, portanto, um sentido, como as parapraxias [Fehleistungen] e os sonhos, e, como estes, têm uma conexão [Zusammenhang] com a vida da pessoa que os produz. (Freud, 1916/1999, p. 265)

Note-se que o sentido desses fenômenos psicológicos a que se refere Freud não é conhecido, na maioria das vezes, pelos pacientes, ainda que possa ser descoberto por meio da análise.Mas o que significa sentido aqui? Como Freud concebe o sentido quando fala do sentido dos sonhos, atos falhos, sintomas e demais formações do inconsciente?

Em primeiro lugar, Freud observou que o sentido se vincula às experiências anteriores dos pacientes (as vivências)8, de modo que a interpretação deve ser histórica, levando em consideração a biografia particular do indivíduo em questão. Mas os sintomas possuem, ao mesmo tempo, um propósito (Absicht), uma intenção. Fundamentalmente, esse propósito pode ser resumido em três possibilidades: ou eles realizam disfarçada e substitutivamente um desejo inconsciente, desejo esse ligado à vida sexual do paciente9, ou realizam o rechaço e defesa de um desejo, ou ainda, mais comumente, realizam de diferentes modos um compromisso entre as duas tendências10.

Dito de outro modo, os sintomas neuróticos e as demais formações do inconsciente (que são, em geral, fatos observáveis externamente, a não ser nos casos de "ideias obsessivas") possuem um sentido psicológico, isto é, estão ligados quer a recordações, quer a intenções, mas, nos dois casos, a fenômenos psíquicos (desconhecidos do próprio paciente), sendo que ambos constituem o "sentido de um sintoma". Sobre este ponto pode-se ler em Freud:

Temos incluído duas coisas como "sentido" de um sintoma: o seu "de onde" (Woher) e seu "para quê" ou sua finalidade (Wohin oder Wozu) – ou seja, as impressões e experiências das quais surgiu e as intenções a que serve. Assim, o "de onde" de um sintoma se reduz a impressões que vieram do exterior, que uma vez foram necessariamente conscientes e podem, a partir daí, ter-se tornado inconscientes através do esquecimento. O "para quê" de um sintoma, sua tendência (Tendenz), no entanto, é invariavelmente um processo endopsíquico, que possivelmente teria sido consciente, no início, mas pode igualmente não ter sido jamais consciente e ter permanecido no inconsciente desde o início. Por isso, não é de grande importância se a amnésia influenciou também o "de onde" – as experiências em que o sintoma se baseia – como acontece na histeria; é no "para quê", no propósito (Tendenz) do sintoma que pode ter sido inconsciente desde o início, que se baseia sua dependência do inconsciente – e não menos firmemente na neurose obsessiva do que na histeria. (Freud, 1916/1999, p. 294)

Agora, pode-se perguntar pela relação entre esses dois sentidos de um sintoma. Para responder a esta pergunta, deve-se partir das primeiras descobertas de Breuer e Freud com relação à etiologia dos sintomas neuróticos. De acordo com eles, até meados dos anos 1890, um sintoma neurótico seria causado pelo esquecimento (repressão) de uma representação mental de uma cena traumática. Esse esquecimento teria como consequência o deslocamento do afeto vinculado a essa representação para outra representação ou para uma parte do corpo (pelaconversão histérica), o que daria origem ao sintoma neurótico. Posteriormente, Freud descobre que tais cenas traumáticas só são propriamente traumáticas na medida em que estão vinculadas a um desejo inconsciente, isto é, na medida em que são realizações (parciais, substitutas) de uma fantasia de desejo inconsciente. Ou seja, é o "para quê", a intenção, que é o propriamente inconsciente e que determina o "de onde", de modo que o sentido último de uma formação do inconsciente é o seu propósito (de realização disfarçada, substituta do desejo erótico infantil, sua defesa ou um compromisso entre ambas).

Pode-se perguntar então como essa maneira de ver os sintomas neuróticos, como dotados intrinsecamente de um sentido, de um "propósito", se "encaixa" nas explicações metapsicológicas acima apresentadas.

 

4. O ponto de contato entre as vertentes hermenêutica e metapsicológica da teoria freudiana

Para entender como ambas as vertentes da teoria freudiana se vinculam deve-se notar primeiramente que tanto o "de onde" quanto o "para quê" são concebidos no quadro da noção moderna de subjetividade, como fenômenos subjetivos, imanentes ao psiquismo.

De acordo com a teoria freudiana do psiquismo, de caráter empirista e naturalista, no psiquismo há fundamentalmente duas coisas: representações mentais (intuitivas e verbais), que estão ligadas (ou isoladas) associativamente, e quantidades de afeto (Erregungssumme)11 que podem ser descarregadas ou deslocadas ao longo das cadeias associativas. Desse modo, esses fenômenos psíquicos que constituem o sentido do sintoma (e das formações do inconsciente em geral) são concebidos em termos de representações mentais, quer das vivências passadas (registradas na memória), quer do propósito em vista12.

Agora, como vimos, as vivências passadas (o "de onde"), ou melhor, as representações mentais das vivências passadas, estão subordinadas ao "para quê", à meta. Essa meta, ou propósito, também é entendida no sentido psicológico como uma representação mental, mas ela seria uma representação mental última de uma cadeia associativa, a chamada representação-meta (Zielvorstellung). Esse conceito é introduzido em seu texto de 1900, quando descreve o funcionamento do sistema mnemônico, no qual existiriam cadeias de pensamentos dotadas de sentido. O que confere sentido a essas cadeias é que elas obedecem, em última instância, a determinada finalidade, a representação-meta, que organiza e seleciona as vias associativas pelas quais a excitação vinculada às representações passará. Sobre esse ponto Freud diz:

Cremos que, partindo de uma representação-meta, uma determinada quantidade de excitação, que denominamos "energia catexial" (Besetzungsenergie), desloca-se pelas vias associativas selecionadas por aquela representação-meta. (Freud, 1900/1999, p. 599)

Para Freud não existiria qualquer associação entre representações sem sentido (puramente "mecânica"), uma vez que não existiria nenhuma associação entre representações sem uma representação-meta13. Ocorre que nem todos os pensamentos estão subordinados a uma representação-meta consciente. No inconsciente essa representação-meta só pode ser determinada pela tendência última do aparelho psíquico, a satisfação, de tal modo que o sentido dos pensamentos inconscientes é a satisfação de um desejo, representado pela representação-meta intuitiva do objeto de satisfação desse desejo. É a partir dessa representação-meta inconsciente, desse "para quê" último, que as outras representações mentais registradas na memória, oriundas de vivências passadas, se tornam propriamente traumáticas. Portanto, "traumáticas" são aquelas lembranças (representações mentais arquivadas no sistema mnemônico) que se vinculam associativamente com a representação-meta inconsciente de tal modo que a "energia catexial" se desloca por elas.

Em suma, aquilo que permite que Freud vincule a sua descoberta do sentido das formações do inconsciente com sua metapsicologia é, em primeiro lugar, a concepção de sentido como um fenômeno psicológico, em segundo lugar, a concepção de sentido como sendo, em última instância, a meta ou propósito e, em terceiro lugar, a concepção dessa meta ou propósito em termos de representações mentais com o conceito de representação-meta. É esse último conceito que possibilita a Freud "juntar" a noção de sentido das formações do inconsciente dentro de um quadro teórico caracterizado por uma teoria empirista e naturalista do psiquismo. Ou ainda, é esse conceito que permite a Freud explicar metapsicologicamente e interpretar o sentido das formações do inconsciente porque, por meio dele, o sentido do sintoma (dado pela representação-meta inconsciente à qual ele está associado) é também a sua causa metapsicológica. Isto é possível porque o sentido é um ente natural, uma entidade metapsicológica.

Note-se, por fim, que esse quadro teórico geral está vinculado fundamentalmente a uma concepção de experiência concebida em termos empiristas e naturalistas e que tem como resultado a formação, dentro do psiquismo de um indivíduo de representações e quantidades de excitação/estímulo. Se isso está correto, então a revisão da concepção freudiana de sentido pressupõe uma revisão da concepção freudiana de experiência.

Ambas as coisas podem ser encontradas nos teóricos da tradição fenomenológico-hermenêutica, de Husserl a Heidegger e Merleau-Ponty, entre tantos outros. Heidegger é particularmente útil nessa tarefa, uma vez que ele levou a filosofia, num desenvolvimento interno a uma tradição que se iniciou no final do século XIX, a ultrapassar os limites da filosofia moderna, abandonando a problemática tradicional dessa filosofia (o problema do conhecimento) e a estratégia básica de se resolvê-lo (uma análise da consciência) em uma virada que ao mesmo tempo pretende descrever a experiência humana tal como é dada no seu cotidiano imediato (lugar onde a vida concreta das pessoas, em sua realidade própria, se desenrola) e a estrutura fundamental desse "local", intrinsecamente dotado de sentido. Ademais, Heidegger veio acidentalmente a refletir sobre os textos freudianos nos chamados Seminários de Zollikon, seminários dados ao longo de uma década a um público de psiquiatras e psicanalistas suíços, organizado e editado posteriormente por Medard Boss (1987), que tinham o intuito explícito de introduzir elementos da filosofia heideggeriana a um público de cientistas orientados para os problemas da psicopatologia. As teorias de Heidegger acabaram, por meio desses encontros, abrindo uma nova perspectiva de pesquisa e de teorização no campo psiquiátrico e psicanalítico, dando origem, como se sabe, à psiquiatria daseinsanalítica (de Binswanger) e à daseinsanálise (de Boss).

 

5. Sentido e experiência nos textos heideggerianos dos anos 1920

Em seus seminários e escritos dos anos 1920, Heidegger busca realizar uma revisão do problema fundamental da filosofia, concebida em linhas gerais, desde Descartes até Husserl, como o da fundamentação do conhecimento universal e necessário, pelo problema do (sentido do) ser. Para abordar esse problema, Heidegger, nesse período em questão, se deterá em uma análise categorial do ente que possui a experiência do sentido do ser, o Dasein.

O ponto de partida de Heidegger é a identificação do modo fundamental de estar junto dos entes (Sei bei Seiendem), como a experiência prática do "trato ocupado" (besorgende Umgang) com o mundo (e não da relação teórica). Essa experiência primária é, para ele, sempre interpretativa, isto é, caracterizada pela apreensão (Vernehmen) de algo como algo14. Isso significa que a experiência não é originariamente a percepção de uma coisa sensível, e ainda menos a recepção de estímulos externos, mas antes a "apreensão (...) de certa maneira já está interpretada (interpretierte)." (Heidegger, 1925/1994, p. 75). A mera percepção sensível não seria, portanto, mais originária do que a experiência interpretativa, antes deriva dela como uma privação (Cf. Heidegger, 1927/1949, p. 149). Essa experiência é a experiência de algo como algo no sentido hermenêutico, que "dá" um ente dotado de sentido, não uma pura "substância" ou conjunto de sensações (Cf. Heidegger, 1927/1949, p. 196) a serem transformados em representações mentais associadas subjetivamente.

Essa experiência fundamental do como hermenêutico é caracterizada por ser dotada de sentido. Ou melhor, nessa experiência, o ente encontrado tem um sentido, de tal modo que eu o compreendo, na medida em que o sentido (Sinn), para Heidegger, é "aquilo no que a compreensibilidade de algo se sustenta" (Heidegger, 1927/1949, p. 151). A tese de Heidegger é que essa apreensão de algo com sentido é, na verdade, uma interpretação (Auslegung) de uma compreensão prévia. Na interpretação o sentido de algo me é dado, mas essa interpretação não deve ser entendida no sentido de que haveria algo primariamente dado, um puro ente subsistente que seria posteriormente interpretado (Cf. Heidegger, 1927/1949, p. 150), antes, o que torna possível a experiência de um ente como algo é, segundo Heidegger, que esse algo já foi compreendido, em outras palavras, é a estrutura prévia do compreender, que é constituída: pela posição prévia (Vorhabe), pela visão-prévia (Vorsicht) e pela concepção-prévia (Vorgriff)15. O primeiro abriria uma totalidade, anterior à interpretação, no interior da qual algo pode ser destacado e interpretado. Esse destacar recorta (anschneidet) a totalidade previamente dada de acordo com um ponto de vista diretor, a visão-prévia. A partir da totalidade e do ponto de vista de recorte concebe-se sempre já de uma maneira, a partir das coisas mesmas ou não, o ente assim destacado, o conceber-prévio.

A totalidade aberta não é nem um conjunto de representações mentais subjetivamente vinculadas, nem o resultado de uma somatória de entes subsistentes, é o pano de fundo sobre o qual os entes individuais são dados de maneira significativa (como isto ou aquilo). Ela deve ser entendida como um contexto (Zusammenhang). Desse modo, todo e qualquer ente individual sobre o qual falamos, ao qual nos dirigimos, deve estar previamente integrado (ergänzt) em uma totalidade16. Mesmo se não prestamos atenção diretamente a um ente, mesmo se ele já "está lá", "deixado por si", ainda assim está já em uma totalidade prévia17.

Nos termos de Heidegger, essa posição-prévia é um ter-já-um-mundo (Cf. Heidegger, 1924/2002, p. 274), uma totalidade, um contexto de tal modo que um ente se refere (verweisen) ao outro, sendo que esta ligação não é nem objetiva, nem subjetiva, mas anterior à distinção sujeito-objeto. Trata-se, ademais, de uma prioridade da referência (Verweisung) sobre a coisa (que se refere a outra coisa). Ou seja, o que é primeiramente dado não é uma coisa em seu "ser corporalmente dado" (Leibhaftigkeit) e a seguir vinculado a outra coisa, mas uma coisa só é dada na medida em que se refere a outra. Como cada ente encontrado se refere a outro, há uma totalidade de referência (Verweisungsganzheit), que é determinada/recortada pelo que se tem em vista, na visão-prévia18. Essas várias referências que constituem o mundo devem ser concebidas como um significar (be-deuten). A totalidade dessas relações de significação é a significatividade (Bedeutsamkeit), que é o que constitui a mundanidade do mundo (Heidegger, 1927/1949, p. 87), e ela sempre tem em vista um "em-vista-do-que" último, que diz respeito ao próprio Dasein.

Essa significatividade, com a qual o Dasein está sempre familiarizado é a condição de possibilidade de que haja sentidos/significados, isto é, de que algo possa ser compreendido, de que possa ser dada a experiência de algo como algo, e que existam palavras e linguagem. O Dasein é, assim, em sua familiaridade com a significatividade, a condição ôntica de possibilidade da descoberta de algo como algo, isto é, de entes tal como são dados originariamente na experiência cotidiana. Compreender algo significa, portanto, projetar esse algo no mundo19, e algo só pode ser compreendido se possuir sentido, que é sobre o que o ente é projetado no compreender, "sobre-o-quê" estruturado em uma posição prévia, visão-prévia e concepção-prévia (Cf. Heidegger, 1927/1949, p. 151).

A descrição da experiência cotidiana, intrinsecamente dotada de sentido, deve levar em conta ainda o fato de que a significatividade do mundo não é constituída por um eu isolado, mas por algo que podemos chamar de uma "comunidade" que permite o meu encontro com outros entes existentes como professores, alunos, a caminho do trabalho, nesta ou naquela ocupação ou não ocupação, dos demais entes intramundanos e de si-mesmo (também como professor, aluno etc.) no modo da queda (Verfallen). Essa comunidade não é ninguém em particular, é um impessoal (das Man), uma maneira de compreender e interpretar que limita as possibilidades de interpretação.

Ademais o Dasein não apenas é um ser-no-mundo-com-outros, como também é uma acontecência (Geschichtlichkeit), na medida em que é histórico num sentido específico, não como algo que possui um passado (e um futuro), como "coisas" não presentes no instante atual. Nesse sentido, uma montanha também tem um passado e um futuro. Também não no sentido de que o Dasein tem expectativas de coisas que ainda não aconteceram, mas que vão acontecer, ou se lembra de coisas que já aconteceram e não estão mais presentes, o passado concebido de maneira imprópria, como realidades não presentes. Eventos que são recordados (ou esquecidos) ou que são esperados, não constituem a historicidade própria do Dasein, a pressupõem. Essa historicidade se refere ao fato de que o Dasein é, a cada instante de sua vida, seu passado. Como poder-ser fáctico, as possibilidades de ser que o define são herdadas. E, como o Dasein é um ser-com outros (existentes),esse passado não se refere apenas ao seu passado individual, mas ao da sua comunidade, à tradição à qual o Dasein pertence. O Dasein é histórico porque, como poder-ser, ou ele está perdido no mundo do "impessoal" e nesse caso "faz o que todos fazem", "se diverte como todos se divertem" etc., ou está em diálogo com a tradição à qual pertence, tradição que não é uma realidade passada, mas fonte dos valores e do sentido no qual o Dasein existe hoje.

Isso basta para algumas diferenciações fundamentais no que diz respeito ao sentido e à experiência humana em Freud e Heidegger.

 

6. Diferenças fundamentais com relação à experiência e ao sentido em Freud e Heidegger

Esquematicamente, pode-se dizer que para Heidegger:

1) o sentido não é um fenômeno intrassubjetivo, imanente, como o é para Freud, ao contrário, ele é transcendente, na medida em que é a estrutura formal-existencial da abertura fundamental que pertence ao compreender (Heidegger, 1927/1949, p. 151). Uma das consequências disso é que compreender um gesto ou uma frase não é descobrir a qual representação mental ele está ligado, mas qual o contexto que o torna compreensível.

2) o sentido não é um "elemento adicional" à experiência humana, ou seja, não se pode conceber essa experiência em termos de uma percepção sensível que seria posteriormente associada e ganharia sentido, mas é condição dela.

3) o sentido não é individual, no sentido de ser dado pelo "sujeito isolado", como o é para Freud, mas é sempre já comunitário.

4) O sentido também não é um elemento discreto, nem mesmo uma somatória de tais elementos, ou o último elemento de uma cadeia de elementos discretos, mas uma totalidade prévia, ou melhor, uma coisa só têm sentido na medida em que ela está integrada em tal totalidade originária.

5) o sentido não é um fato psicológico presente, guardado na memória, ele é histórico, e não apenas no sentido da história individual, mas no da tradição à qual essa história pessoal pertence.

Essa breve apresentação de algumas das grandes diferenças no que diz respeito à concepção de experiência e sentido em Heidegger e Freud visa apenas mostrar que é possível vincular a concepção de sentido a outra concepção de experiência não empirista e naturalista. Isto basta para algumas considerações finais.

 

7. Considerações finais

A tentativa de se fazer uma revisão hermenêutica da teoria psicanalítica se depara com dois problemas: uma revisão da concepção psicológica e naturalista de sentido, em Freud, e uma revisão da concepção de experiência subjacente. Nesses dois pontos a fenomenologia heideggeriana poderia ser útil. Por outro lado, deve-se notar que: a vantagem de vincular a noção de sentido à metapsicologia (naturalista) é que isto possibilita vincular o sentido (das formações do inconsciente) ao corpo, concebido de maneira naturalista.

Esse ponto foi defendido por um comentador de Freud, Mackay (1989), que procura mostrar que aqueles que defendem a incongruência entre a interpretação do sentido e a metapsicologia não concebem corretamente a maneira como Freud construiu sua teoria porque não se deram conta do fato de que "Freud está, de fato, preocupado com o sentido, mas, eu sustento, o que não é percebido pela literatura anti-metapsicológica é que Freud está preocupado em como sentidos se relacionam com a natureza biológica do homem" (Mackay, 1989, p. 2).

Mackay tem razão quanto ao fato de que Freud parte de uma concepção biológica do homem, ainda que não a explicite, e que isso é determinante para a maneira como ele concebe o sentido de um processo psíquico qualquer. Mas isso não significa que não se deve então desnaturalizar a concepção de sentido em Freud porque, se isso fosse feito, ela não mais se encaixaria em uma concepção da natureza biológica do homem. Bastaria que fosse possível conceber o corpo de outra forma. Em suma, a revisão da concepção de sentido na obra de Freud e na psicanálise como um todo traz como consequência imediata a necessidade de uma revisão da concepção de experiência e, em última instância, a uma revisão da concepção de corpo. Desse modo, uma tentativa de realizar apenas a primeira terá como consequência um enfraquecimento do poder explicativo da teoria psicanalítica e se deparará com questões do tipo: como é possível apreender o sentido ou como um sentido pode provocar uma doença psicossomática, como uma gastrite ou, mais simples ainda, alguém ruborizado ao ouvir uma piada20. Esses são temas para trabalhos futuros, em especial a concepção de corpo em Freud e na fenomenologia, bem como a relação dessas concepções com a noção de sentido.

 

Referências

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1O positivismo pode ser compreendido como uma filosofia da ciência, isto é, uma reflexão sobre a ciência, concebida como conhecimento já estabelecido e garantido, e não sobre suas condições de possibilidade. Nesse sentido o positivismo não é mais uma teoria do conhecimento. Entre suas características distintivas estão: o monismo metodológico, concepção segundo a qual as ciências naturais, em particular a física matemática, estabelecem o ideal metodológico ou o padrão em relação ao qual o grau de desenvolvimento e perfeição de todas as outras ciências, incluindo as ciências humanas, devem ser medidos; uma certa concepção de explicação científica, que em seu sentido geral pode ser compreendida como uma explicação causal, mas que consiste mais especificamente na subsunção de casos individuais em leis naturais gerais hipoteticamente assumidas. Deste modo, explicações finalísticas (via intenções, propósitos etc.) são rejeitadas como não científicas e assume-se que podem ser substituídas, com proveito, por explicações causais. Quanto a esses pontos veja-se, por exemplo, Wright 1971, p. 4.
2 Esse ponto já foi destacado por inúmeros comentadores da psicanálise. Dentre esses podemos citar: Ricoeur (1970 e 1981), MacIntyre (1958); Gill (1976), Holt (1976), George Klein (1976), Schafer (1976) e Grünbraum (1984), entre outros.

3 Por "razão de ser" Freud compreende duas coisas: a causa (chamada, no Projeto para uma psicologia científica, de explicação mecânica) e a função (chamada, nesse mesmo texto, de explicação biológica) de um determinado processo psíquico. Freud, influenciado pelos autores fisicalistas da segunda metade do século XIX que haviam empregado com proveito para as suas próprias teses a teoria de Darwin sobre a origem das espécies, emprega, tanto em diferentes momentos históricos de sua obra como em diferentes níveis de sua teorização, uma maneira de teorizar que remete certos fenômenos psíquicos às suas funções. Mas deve-se ter em vista que não se trata de nenhuma forma de vitalismo, antes, as funções de que ele fala devem, em última análise, ser entendidas de maneira naturalista, ou seja, devem poder ser explicadas causalmente e são o resultado do processo de seleção natural (Darwin) que exclui qualquer forma de "finalidade" na natureza orgânica. Essa maneira de explicar os fenômenos indicando a sua função é chamada por Freud, em seu texto não publicado de 1895, de explicação "biológica" e é explicitamente defendida por ele, ao lado de explicações estritamente mecânicas. Veja-se quanto a isso Freud, b/1999, p. 415.
4 Cf. Freud, 1938/1999, p. 80.
5 Cf. Freud, 1938/1999, p. 80-1.
6 Cf. Freud, 1916/1999, p. 62.
7 Em meu trabalho de doutorado (Barretta, 2007) tive oportunidade de analisar o modelo freudiano do aparelho psíquico, identificar seu pressuposto ontológico (psiquismo como substância irritável) e realizar a crítica desse pressuposto à luz da analítica da existência de Heidegger. O resultado fundamental foi a necessidade de se substituir a concepção biológica e fisiológica de psiquismo por uma concepção hermenêutica, isto é, que conceba o homem à luz do fenômeno ontológico da abertura fundamental (Erschlossenheit). Uma das consequências desse novo ponto de partida é a revisão da concepção psicanalítica (freudiana) de sentido.
8Cf. Freud: "Desse modo eu mostrei através de dois exemplos escolhidos que os sintomas neuróticos possuem um sentido, como os atos falhos e os sonhos, e que eles têm uma íntima relação com as vivências (Erleben) dos pacientes" (Freud, 1916/1999, p. 277).
9Cf. Freud, 1916/1999, p. 309.
10Cf. Freud, 1916/1999, p. 311
11 Cf. Freud, /1999, p. 74.
12 Em todo caso, note-se que, para Freud, o sentido das formações do inconsciente é algo subjetivo, no sentido de ser imanente ao psiquismo.
13 Cf. Freud, 1900/1999, pp. 533-534.
14 Cf. Heidegger: "Vê-se sempre algo como algo. Naturalmente pode-se com isso ver algo como algo desconhecido, estranho, não familiar, e assim por diante, ainda, contudo, nesses casos, como algo." (Boss, 1987, p. 220-1).
15As traduções dos termos heideggerianos são de minha responsabilidade
16Cf. Heidegger, 1929-30/2001, p. 505.
17Cf. Heidegger, 1928-29/2001, p. 77
18Cf. Heidegger: "Isso, a-partir-do-que (woraufhin) é visado o que é está posto na posição-prévia, a-partir-do-que isso é visado (woraufhin es angesehen wird), com relação ao que isso vem à vista (mit Bezug auf was es in die Sicht kommt), caracterizamos como a visão-prévia." (Heidegger, 1925/1994, p. 414).
19Cf. Heidegger: "O ente intramundano em geral é projetado sobre o mundo (auf Welt hin entworfen), i.e., sobre um todo de significatividade (Bedeutsamkeit)" (Heidegger, 1927/1949a, p. 151).
20Sobre o tema do corpo é comum ouvir-se que Heidegger tem pouco a dizer. Contudo, ainda que seus comentários sobre esse tema sejam escassos em Ser e tempo (1927), há importantes indicações sobre ele em outros seminários dos anos 1920, em particular aquele sobre a filosofia de Aristóteles (1924) e o de 1929-30, em que aborda a concepção de corpo dos vitalistas e fisicalistas e darwinistas, à luz da discussão do conceito de irritabilidade e da relação do organismo vivo com o mundo. Outra possibilidade ainda seria a de examinar outros autores da fenomenologia que se dedicaram a esse tema, em particular Merleau-Ponty.

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