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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.4 no.1e2 São Paulo  2009

 

ARTIGOS

O manejo de Winnicott no caso Philip

 

The handling of the case Philip Winnicott

 

 

Maria de Fátima Dias

Centro Winnicott de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Uma das novidades da clínica winnicottiana está na introdução de procedimentos clínicos até então não utilizados pela psicanálise tradicional. Essas propostas têm origem no uso de uma teoria que fundamenta uma nova classificação diagnóstica. Neste texto, discute-se o manejo realizado por Winnicott com o paciente Philip. Por meio de três entrevistas com o paciente, em que fez uso do jogo do rabisco e, posteriormente, com a orientação de como o garoto deveria ser cuidado pelos pais, Winnicott mostra como um tratamento pode ser realizado a partir de um novo referencial teórico e clínico.

Palavras-chaves: diagnóstico, ambiente, tendência antissocial, jogo do rabisco, manejo.


Abstract

One of the novelties of the Winnicottian clinic is the introduction of clinical procedures not used so far by traditional psychoanalysis. These proposals have their origin in the use of a theory which establishes a new diagnostic classification. In this text the handling used by Winnicott with the patient Philip is discussed. By means of three interviews with the patient, during which he used the scrawling game and, later, with the orientation of how the boy should be cared for by the parents, Winnicott shows how a treatment can be effected based on a new theoretical and clinical referral.

Key-words: diagnosis, environment, antisocial tendency, squiggle game, management.


 

 

1. Introdução

No livro Da pediatria à psicanálise, no capítulo "Tolerância ao sintoma em pediatria: relatório de um caso", encontramos um exemplo do manejo realizado por Winnicott com seu paciente, Philip, que, na época do atendimento, estava com 9 anos de idade. O diagnóstico realizado por Winnicott constatou que Philip apresentava manifestações de tendência antissocial, cuja origem tinha de ser buscada numa fase anterior de sua vida, quando se separou de sua mãe, na ocasião em que ela foi para a maternidade. Winnicott relata que o tratamento para esse paciente consistiu numa reorganização do ambiente familiar do garoto, o que lhe permitiu restabelecer a saúde.

 

2. Diagnóstico

Para compreender o diagnóstico, precisamos recorrer ao modo como Winnicott conceitua os aspectos presentes na conquista da saúde e da autonomia. Essas ideias se sustentam no processo de desenvolvimento pessoal do indivíduo, que se inicia numa condição de total dependência que o bebê tem do ambiente no início de sua vida. Nesse momento, esse ambiente constitui a totalidade dos cuidados maternos e isso é a base para o desenvolvimento pessoal. Gradativamente, na medida em que o bebê vive as experiências de seu crescimento, a dependência do ambiente se torna relativa e uma crescente maturidade possibilita-lhe a chegada à realidade compartilhada. Até que essa conquista seja possível, o bebê necessita de cuidados que lhe assegurem um ambiente que atenda a suas necessidades de continuidade de ser (Winnicott, 1960c/1990, p. 51).

Essas são as condições que asseguram a construção do ego do bebê. O papel da mãe-ambiente será o de assegurar que o bebê possa dar prosseguimento em seu processo maturacional, de modo a não precisar reagir defensivamente às interferências ambientais, o que configuraria a instauração de uma condição psicopatológica. Cabe à mãe cuidar para que o ambiente acompanhe a maturidade do bebê em cada etapa de seu desenvolvimento (Winnicott, 1958n[1956]/2000, pp. 401-405). Portanto, na área da psicopatologia, as ideias de Winnicott, no que se refere à possibilidade de instauração da saúde, se fundamentam num critério maturacional e não sintomatológico (Winnicott, 1989d[1965]/1994, p. 115). Para Winnicott, saúde é sinônimo de maturidade.

Assim, no tratamento a ser oferecido, precisamos identificar três grupos de pacientes. No primeiro grupo, encontramos os pacientes que atingiram a unidade da personalidade, e suas dificuldades são da ordem dos relacionamentos interpessoais. O segundo grupo compreende pacientes cuja personalidade ainda está se integrando, vivendo o reconhecimento da dependência materna e a ambivalência do amor e ódio. Nos dois primeiros grupos, a técnica do psicanalista será a utilizada pela psicanálise tradicional. O terceiro grupo compreende os pacientes que ainda não atingiram a personalidade unitária, e a análise deve ser focada nos estágio iniciais do processo maturacional. O tratamento para os pacientes desse terceiro grupo deve ser o manejo (Winnicott, 1955d[1954]/2000, p. 375).

Isso nos permite compreender por que, para Winnicott, a atuação do psicanalista guarda uma similaridade dos cuidados maternos para com o bebê no trabalho que o analista oferece ao seu paciente. Segundo Winnicott,

O analista deve dispor de toda a paciência, tolerância e confiabilidade da mãe devotada ao bebê. Deve reconhecer que os desejos do paciente são necessidades. Deve deixar de lado quaisquer outros interesses a fim de estar disponível e ser pontual e objetivo. E deve parecer querer dar o que na verdade precisa ser dado apenas em razão das necessidades do paciente. (Winnicott, 1949f[1947]/2000, p. 287)

Desse modo, o trabalho do analista consiste em fornecer ao paciente um ambiente cujas características de confiabilidade possam proporcionar a retomada de seu processo de crescimento pessoal. O psicanalista deve oferecer os cuidados que faltaram no transcorrer de seu processo de desenvolvimento. Ele deve propiciar um ambiente confiável. O que Winnicott concebe como ambiente consiste numa totalidade de cuidados que são definidos em função do processo maturacional do paciente, ou seja, são pautados nas necessidades próprias de cada etapa. São esses aspectos que definirão o modo como o analista cuidará de seu paciente, o manejo a ser utilizado. A base e a totalidade do tratamento consistem nesse manejo, ou seja, nos cuidados que serão proporcionados ao paciente.

Para Winnicott, o manejo pode ser compreendido em termos de uma qualidade de atitudes presentes no modo como o psicanalista trata seu paciente e que se expressa no contexto total do atendimento. Isso significa que o comportamento do analista é mais importante para o paciente do que as interpretações. O que é oferecido garante um ambiente que atenda às necessidades do paciente, isto é, um ambiente em que as intrusões são mantidas à distância. O manejo pode compreender a manutenção de um silêncio, a não imposição de posturas específicas, isto é, a possibilidade de o paciente simplesmente estar ali.

Também faz parte desse manejo o acompanhamento do ambiente social e familiar do paciente, com orientações precisas de ações, tais como internação hospitalar, contato com escolas e outros profissionais da área da saúde, quando isso se fizer necessário. O manejo consiste na adaptação do psicanalista às necessidades do paciente, no oferecimento de cuidados que faltaram ao paciente em fases anteriores e que provocaram a interrupção de seu processo de crescimento pessoal. O manejo permite uma recriação do ambiente de modo a torná-lo confiável novamente. Em suma, por meio do manejo, o analista promove uma intervenção no setting analítico, considerando as necessidades do paciente, mas essa intervenção tem o caráter da atenção, do cuidado e da espera.

O analista permanece atento ao paciente, esperando o gesto dele, em contato, sustentando a situação. É isso que faz Winnicott afirmar que, "no trabalho que estou descrevendo, o contexto torna-se mais importante que a interpretação. A ênfase é transferida de um aspecto para o outro" (Winnicott, 1956a[1955]/2000, p. 395). Assim, na análise, com o manejo oferecido, o paciente poderá, finalmente, receber os cuidados que lhe faltaram nos momentos em que as bases de sua personalidade começavam a se erigir. Como o ambiente se tornou confiável, o paciente poderá regredir.

O conceito de regressão à dependência em Winnicott é totalmente diferenciado do conceito de regressão da libido às etapas pregressas do desenvolvimento libidinal. Sobre essa distinção, em 1959, ele afirmou:

[...] o conceito de regressão mudou seu sentido na metapsicologia psicanalítica. Por anos o termo teve a implicação de um retorno a fases mais precoces da vida instintiva, e regressão seria a um ponto de fixação. Isso pertence à visão de elementos instintivos primitivos no indivíduo, não tendo sido levado em consideração o cuidado da criança. Com o estudo da criança em vivo não é mais possível evitar consideração do meio. De modo que, ao falar de uma criança concretamente, deve-se mencionar dependência e natureza do ambiente. O termo regressão, portanto, fica como uma aplicação clínica em termos de regressão à dependência. Há uma tendência ao restabelecimento da dependência e por isso o comportamento do meio se torna algo que não pode ser ignorado se a palavra for usada. (1965h[1959]/1990, p. 117)

A regressão à dependência significa uma nova chance de reconstrução da personalidade. Nesse contexto, regressão à dependência tem o sentido de um processo de cura, de restabelecimento de saúde.

É no interior dessas ideias que podemos entender o tratamento que Winnicott prescreveu para Philip. Para apresentar esse manejo utilizado por Winnicott, temos que considerar que ele tem como ponto de partida a ideia de que há no ser humano a possibilidade natural de buscar a saúde, desde que o ambiente forneça as condições para a concretização dessa situação. Nas situações em que o desenvolvimento saudável foi impossibilitado, é necessária uma rearticulação das condições ambientais do paciente, de modo que elas se tornem novamente confiáveis para que o restabelecimento do processo de desenvolvimento possa ocorrer. O ambiente, ao se adaptar às necessidades do paciente, ao oferecer os cuidados de que o paciente necessita, possibilitará a emergência da saúde. Vejamos o que houve com Philip.

 

3. A história de Philip

Em 1947, o diretor da escola onde Philip estudava escreveu uma carta aos pais do estudante, pedindo que eles o retirassem da escola em função de ele estar desencadeando uma série de furtos. O pedido de que ele fosse afastado da escola se pautava no reconhecimento de que Philip estava doente e precisava de cuidados específicos. Os pais se deram conta de que o menino não estava bem, assustaram-se com a situação e procuraram ajuda médica. Por recomendação de um psiquiatra, a mãe de Philip chegou até Winnicott. Este a recebeu e fez uma extensa entrevista.

Ela conta-lhe que Philip tinha mais dois irmãos, um menino e uma menina. A família sempre foi bem estruturada, mas se desarticulou quando seu marido foi convocado para a guerra, ficando afastado do lar por um longo período. Após o término da guerra, ele retornou para casa e passou a exercer a atividade de fazendeiro. A mãe de Philip relatou que o nascimento dele foi difícil. A bolsa se rompeu dez dias antes do parto, que foi interrompido duas vezes antes de Philip nascer. Ele foi amamentado ao seio por seis semanas e a passagem para a mamadeira não apresentou grandes problemas. Foi um bebê alegre e brincalhão, mas o período da guerra prejudicou seu desenvolvimento. Entre os dois e os quatro anos de idade, juntamente com sua mãe e o irmão, ele esteve longe de casa. Seus objetos pessoais estavam espalhados, correndo o risco de perder-se em função de um mundo totalmente desorganizado. O garoto que até então era alegre, tornou-se quieto e com postura excessivamente dócil. Em função da guerra, teve que compartilhar sua vida com crianças estranhas e violentas. Nessa época, apresentou uma série de sintomas, tais como grande produção de catarro, inabilidade para assoar o nariz, além de dificuldades de coordenação motora. A obstrução nasal interferia no sono do garoto, que acordava pedindo ajuda da mãe. Igualmente necessitava da mãe ao acordar com pesadelos. A mãe o considerava um garoto estranho, pouco afeito à manifestação de sentimentos, embora fosse afetuoso para com os familiares.

Os primeiros indícios de que ele estava apresentando problemas tiveram início aos seis anos, momento em que nasceu sua irmã. Mostrou-se perturbado e ciumento. Winnicott aponta que o nascimento da irmã foi um evento muito perturbador para Philip. Nessa mesma época, ele sofreu uma cirurgia de amigdalectomia, ou seja, o nascimento da irmã coincidiu com a cirurgia. Ao voltar para casa após a cirurgia, Philip levou consigo o relógio da enfermeira. Entre os seis e os oito anos, ele cometeu uma série de furtos de objetos, dinheiro e documentos. Os pais notaram que ele estava diferente, desleixado, além de obcecado por livros. Também passou a presentear a irmã de modo exagerado, numa forma de compensar a raiva que sentia dela. Aos oito anos, passou a desenvolver atitudes defensivas de modo a evitar que as pessoas zombassem dele. Na escola, Philip não apresentava problemas de ordem cognitiva. Era inteligente e tinha um bom desempenho escolar, embora fosse um pouco preguiçoso. A mãe também relatou que ele gostava de morar no campo e que tinha um cão do qual gostava muito.

A partir desses dados levantados na entrevista com a mãe, Winnicott realiza um diagnóstico e propõe um modo de tratamento específico, resgatando os "bons cuidados domésticos", ou seja, oferecendo a Philip o tratamento de que ele necessitava, e que foi realizado pelos pais do paciente através das orientações do psicanalista inglês.

 

4. O manejo

Vejamos como foi o manejo do caso. Para ficar mais claro, vou enumerar as ações que caracterizaram o manejo de Winnicott e comentá-las:

1) Constatação de que um processo psicanalítico não seria possível: Philip morava no campo, longe de Londres, e uma viagem diária ou semanal a essa cidade para a realização do processo psicanalítico seria inviável e impediria que ele usufruísse do lar recém-reconstruído. Winnicott constata que a maior necessidade do garoto seria exatamente estar com a família que se reconstruíra com o retorno do pai de Philip a casa após a guerra.

2) Avaliação da confiabilidade do meio ambiente em geral: Winnicott faz um diagnóstico do ambiente, o que significa que ele avalia as possibilidades de cooperação dos pais de Philip, em especial de sua mãe, com a consequente solicitação dessa colaboração. Winnicott entende que as atitudes de furto do garoto indicavam a esperança de poder se reorganizar pessoalmente, uma vez que a família estava reunida novamente. Durante a entrevista com a mãe de Philip, Winnicott avalia as condições dela, de modo a definir a maneira pela qual ela poderia colaborar com o tratamento do filho. Descobre que ela apresentava dificuldades em lidar com crianças doentes. Diante dessa circunstância, descreve as necessidades de Philip para se tornar uma criança saudável e reitera que ele necessitava voltar a ser um bebê na relação com ela. Poderia também desfrutar da relação com o casal parental. Winnicott é direto: diz que Philip precisava da ajuda dela, pois ele perdera situações importantes que precisaria ter vivido anteriormente e necessitaria voltar lá para recuperar o que perdeu. Ela não se intimidou, pediu orientações de como deveria tratar o filho e seguiu todas as orientações de Winnicott.

3) Realização das entrevistas com Philip: a realização da entrevista com o garoto foi fundamental para definir o manejo que lhe seria oferecido nos próximos meses. Nessas entrevistas, Winnicott avalia a integração do ego do paciente e cria em ambiente de confiança entre ambos.

3.1) Uso de Jogo do Rabisco: Winnicott optou pelo uso do jogo do rabisco porque esse recurso possibilita um "intercâmbio muito mais livre" entre o paciente e o psicanalista (Winnicott, 1971b/1984, Introdução, p. 9). É uma possibilidade de entrar em contato com a criança e facilitar uma comunicação em um nível profundo. Sustenta-se na teoria do desenvolvimento emocional da criança e do relacionamento dela com o ambiente. É esperado que o paciente tenha figuras paternas sensíveis o suficiente para ajudar no processo que se transcorrerá. A utilização dessa técnica é muito eficaz quando o processo psicanalítico não é viável por diferentes circunstâncias.

3.2) Primeira entrevista: através da sequência de desenhos, Philip foi comunicando, inicialmente, que estava num estado intensamente imaginativo, mais voltado para aspectos de seu mundo subjetivo. Comunicou uma forte identificação com a mãe por meio do desenho de uma mãe leão-marinho com o filhote. Os pesadelos e as mágicas boas ocorridas em situações críticas revelavam suas dificuldades em lidar com a realidade. Relata também que a separação da mãe, quando ela foi para a maternidade ter o bebê, provocou nele sentimentos terríveis, uma depressão, e a toda essa situação ele denominou de "tempos sem graça". Ele e o irmão foram levados para a casa dos tios, que cuidaram de ambos do modo mais adequado possível. O tio percebeu que Philip precisava de um cuidado mais intenso e lhe ofereceu uma moldura mais protetora. Philip comunicou que o irmão também exerceu um papel importante ao afirmar constantemente: "isso vai acabar, vai acabar".

Ao fazer o desenho de um homem num barco e ao afirmar "e este aqui é o papai, que não está ligando para nada", Winnicott pode lhe comunicar que entendia a falta que o pai fez quando foi para a guerra, sem poder ser amigo, forte e responsável para com o filho. À imagem da águia com o filhote de coelho, desenhadas acima do barco, Winnicott pode comunicar-lhe de sua vontade de roubar o bebê da mãe, quando do nascimento de sua irmã. Outra comunicação muito importante foi feita por meio do desenho de um bruxo que lhe dizia para roubar, tanto o dinheiro quanto o veneno do armário da inspetora, episódio que culminou com a intervenção do diretor da escola. Com esse desenho, Philip faz a comunicação que permitiu que Winnicott compreendesse sua compulsão a roubar.

Finalmente Philip estava podendo falar das dificuldades que viveu na época do nascimento da irmã e da perda do lar.

3.3) Segunda entrevista: por meio da segunda entrevista, que aconteceu uma semana depois, Philip contou que o bruxo e sua voz desapareceram após o primeiro encontro. Por meio do desenho em que Philip colocou Winnicott no interior da casa do bruxo, munido de um fuzil, enquanto o bruxo se afastava, o garoto comunica que Winnicott era apenas uma pessoa com quem ele podia falar e contar suas fantasias.

Embora Philip tenha feito desenhos com conteúdo referente ao inconsciente reprimido, Winnicott não interpretou esse material pelo fato de o garoto não estar em processo de análise.

O último desenho apresentado por Winnicott mostra um bruxo que é alvo de zombaria, mas o objeto de zombaria estava fora de casa, ou seja, fora dele mesmo e Winnicott foi colocado no lugar do bruxo. Dessa forma, Philip comunica que Winnicott era a pessoa que compreendia sua situação.

3.4) Terceira entrevista: foi dedicada a jogos e brincadeiras, em que Winnicott se dedicou a observar as atitudes de Philip.

3.5) Em todas as sessões posteriores, Philip limitou-se à brincadeira com trens, uma vez que Winnicott sabia que o garoto não estava em condições de ser analisado nos moldes de um processo mais prolongado.

De posse de todos esses dados, Winnicott orienta os pais sobre o modo como Philip deveria ser tratado em casa.

4) Orientação para o manejo a ser realizado pelos pais de Philip: Winnicott esclarece para os pais de Philip que ele precisaria ter a permissão para ficar doente, mas num contexto em que os cuidados viriam de um ambiente totalmente adaptado às necessidades dele. Ou seja, haveria um controle-cuidado sobre essa doença.

Assim, Philip foi para casa e, ao longo de três meses, foi se tornando cada vez mais retraído e dependente. Pouco saía da cama, dormia muito e necessitava de ajuda para se vestir. Passou a ter atitudes mais primitivas no trato com a comida, atitudes mais próprias de uma criança muito pequena. Regrediu de tal maneira que parecia não estar alojado em seu próprio corpo, mas manteve um contato com o prazer corporal na medida em que permanecia horas incontáveis observando seu cão. O corpo estava todo alterado, seu andar e movimentos se mostravam estranhos. Philip também emitia ruídos estranhos com a boca, aos quais o irmão chamava de "barulhos de elefante". Em situações sociais, tais como bailes, teve atitudes consideradas estranhas. Também ficou obcecado por uma novela no rádio. Sua vida se limitava a ouvir a novela e observar o cachorro. Teve inúmeras outras manifestações excêntricas, mas em nenhum momento foi questionado ou confrontado com elas. Todas essas alterações e excentricidades foram plenamente aceitas pela família, que lhe proporcionou a melhor acolhida possível.

Com o passar do tempo, Philip entrou num processo mais regressivo ainda. Passava mais tempo ainda na cama e vivia extremamente cansado. Tal como um bebê, num quadro de enurese, passou a molhar a cama. A mãe o chamava toda madrugada para ir ao banheiro, mas ele já estava molhado. Dizia que tudo isso era divertido. A manifestação do sintoma da enurese, para Winnicott, significa que "a criança precisa do sintoma devido a algum empecilho ocorrido em seu desenvolvimento emocional" (Winnicott, 1953b/2000, p. 169). O sentido do sintoma é compreendido no interior de um quadro maior, que foi a necessidade de regredir a uma fase anterior de sua vida.

Toda a família se dedicou a cuidar de Philip, oferecendo-lhe tudo o que um lar saudável pode proporcionar. Para ilustrar a dedicação e cuidados oferecidos, Winnicott usa a expressão inglesa "ele ganhava a nata da única vaca" (1953b/2000, p. 185). A família permitiu que ele se tornasse novamente um bebê, com todas as manifestações próprias de um bebê. E, tal como um bebê, ele foi cuidado.

Depois de três meses, Philip levantou-se da cama e mostrou-se recuperado. Após um ano do início de sua doença, ele pode retornar à escola. Sua volta foi tranquila, com boa acolhida tanto do diretor quanto dos colegas. O processo de crescimento continuou posteriormente de forma saudável, com bom desempenho na escola e nos esportes. Tudo isso só foi possível em função do manejo realizado por sua família, com orientação de Winnicott, na fase aguda de sua doença. O tratamento realizado em casa "[...] funcionou como o hospital psiquiátrico de que o menino precisava, um asilo no pleno sentido da palavra" (Winnicott, 1953b/2000, p. 176). A recuperação se deu porque, finalmente, Philip pôde receber o que toda criança tem direito no início, ou seja, um período em que é natural que o ambiente se adapte ativamente às suas necessidades.

 

5. Conclusão

O manejo realizado por Winnicott e os cuidados familiares proporcionados a Philip constituíram as condições para que o paciente pudesse realizar uma regressão à dependência. O paciente recebeu a sustentação ambiental que possibilitou retomar os cuidados que não foram oferecidos em seu início de vida. Com este novo suprimento, Philip conquistou a possibilidade da retomada da continuidade de ser, uma vez que as suas necessidades foram adequadamente atendidas. Philip pôde, finalmente, retomar a esperança de contar novamente com um ambiente confiável, um ambiente capaz de promover seu crescimento rumo à independência, resgatando a possibilidade de viver plenamente.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mfatimadias@uol.com.br

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