SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.4 número1E2O manejo de Winnicott no caso PhilipOs casos clínicos como exemplares do paradigma winnicottiano índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.4 no.1e2 São Paulo  2009

 

ARTIGOS

 

O tratamento de crianças afastadas do convívio familiar

 

Treatment of children away from home

 

 

Roseana Moraes Garcia

Pontifícia Universidade Católica.
Centro Winnicott de Campinas.
Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana.

Endereço de correspondência

 

 


Resumo

Este artigo tem por objetivo expor as várias alternativas possíveis, segundo Winnicott, para o tratamento de crianças que perderam, momentânea ou definitivamente, a vida em família. Para que isso possa ser feito da melhor forma possível mostra-se a importância do diagnóstico da criança, da seleção de pessoal para trabalhar com ela e algumas outras características que são essenciais a esse tipo de trabalho.

Palavras-chave: Winnicott, deprivação, diagnóstico, tratamento.


Abstract

This article aims to presenting the various possible alternatives, according to Winnicott for treatment of children who have lost, momentarily or definitively, family life. For this is shown the importance of the child's diagnosis, selection of staff to work with them and some other features that are essential to this type of work.

Key-word: Winnicott, deprivation, diagnosis, treatment.


 

 

1. Introdução

Winnicott teve uma vasta experiência com crianças que perderam, momentânea ou definitivamente, a vida em família, no seu trabalho como psiquiatra consultor na Segunda Guerra Mundial. A experiência que lhe foi proporcionada por esse trabalho ajudou-o a sedimentar, na sua teoria, a importância do ambiente na constituição da personalidade e da identidade individual. Ajudou-o também a construir uma técnica de tratamento dessas crianças difíceis, a qual ainda não foi devidamente estudada e aplicada aos problemas da delinquência.

Em sua obra, ele afirmou várias vezes que, sempre que possível, deve-se tentar criar condições para que crianças com problemas sejam auxiliadas em seus próprios lares, se estes existirem e puderem encarregar-se de um aspecto da terapêutica. Essa recomendação é feita não apenas por ser economicamente mais viável, mas porque, se o lar da criança for razoavelmente bom, ele deve ser considerado o lugar mais adequado para o seu crescimento e desenvolvimento.

Em geral, os pais são capazes de criar condições terapêuticas para seus filhos que adoeceram emocionalmente, desde que sejam adequadamente orientados e se lhes ofereça suporte para tal tarefa. Contudo, se por um motivo ou por outro, a criança foi afastada do convívio familiar, seja por abandono ou por morte dos pais, seja por uma decisão judicial, ou mesmo por uma necessidade momentânea, ela precisará de cuidados, e muito.

A grande preocupação de Winnicott era tentar oferecer a esse tipo de criança a assistência mais adequada, para que os cuidados fossem realmente efetivos e ela pudesse aproveitá-los. Para isso, ele estabeleceu como necessários: a) um bom diagnóstico da deprivação1 sofrida pela criança; b) o tipo certo de provisão ambiental para cada diagnóstico; e c) a seleção de pessoas realmente adequadas para esse trabalho.

 

2. Diagnóstico para fins de tratamento institucional

Para que o diagnóstico de uma criança deprivada seja útil e norteie o profissional a escolher o ambiente mais adequado para ela, é necessário que seja feito não com base nos sintomas da criança, ou no quanto ela incomoda, ou nos sentimentos despertados por ela no profissional. O fundamental no diagnóstico de uma criança deprivada é tentar conhecer o quanto lhe foi propiciado, inicialmente, por um ambiente suficientemente bom "nas relações mãe-bebê e nas relações triangulares pai-mãe-criança [antes da deprivação]; depois, à luz disso, teremos que tentar avaliar o dano causado pela deprivação, quando começou e como persistiu subsequentemente" (Winnicott, 1965k/1987, p. 180). Como fazer isso? A história da vida pregressa da criança torna-se de vital importância para um diagnóstico como este, e o profissional encarregado dessa tarefa deverá fazer o possível para reunir o maior número de informações.

Além de a história de vida da criança ser importante para fins de diagnóstico, é igualmente fundamental para ela saber que alguém conhece toda a sua história. Aliás, esta é uma das formas de auxiliar a criança na direção da integração. Num texto de 1945, Winnicott diz que "ser conhecido significa sentir-se integrado ao menos na pessoa do analista [...] o bebê que não teve uma única pessoa que lhe juntasse os pedaços começa com desvantagem a sua tarefa de auto-integrar-se" (1945d/2000, p. 224). Mesmo que a criança, no momento, não queira ser informada sobre a sua história, provavelmente mais adiante será necessário que ela a conheça em detalhes, principalmente no caso de famílias desfeitas e de filhos ilegítimos. Essas crianças precisam conhecer os fatos para conseguirem ser saudáveis psiquicamente. Muitas vezes, no entanto, é impossível obter a história ou ela é muito falha, de modo que a única maneira de avaliar se havia ou não, de fato, um ambiente suficientemente bom no início da vida da criança é fornecer a ela um bom ambiente e observar o uso que ela fará dele. Mesmo assim, haverá a ressalva de que o uso que uma criança deprivada pode fazer de um bom ambiente, quando estiver menos doente e mais esperançosa, é tornar-se "cada vez mais capaz de enfurecer-se com deprivações passadas" (1965k/1987, p. 181), por meio de amostras, mesmo que ínfimas, de deprivações atuais2 .

Geralmente, um diagnóstico satisfatório só pode ser feito depois de um período de observação da criança, num grupo. A observação cuidadosa de alguns comportamentos pode ajudar nesse diagnóstico, como a capacidade para brincar, a habilidade com jogos, a capacidade para fazer amigos e para manter um esforço construtivo. Todos esses, se positivos, são sinais de saúde da criança e é possível usar os aspectos saudáveis da criança para ajudá-la em suas dificuldades.

Winnicott definiu seis categorias de deprivação familiar que a criança pode ter vivido, são elas:

a) Bom lar comum, desfeito por um acidente com um ou ambos os genitores.

b) Lar desfeito pela separação dos pais, que são bons pais.

c) Lar desfeito pela separação dos pais, que não são bons pais.

d) Lar incompleto, porque não existe pai (filho ilegítimo). A mãe é boa; os avós podem assumir um papel parental ou ajudar, em alguma medida.

e) Lar incompleto, porque não existe pai (filho ilegítimo). A mãe não é boa.

f) Nunca houve um lar.

Além disso, deve ser feita uma classificação cruzada:

a) de acordo com a idade da criança, e a idade em que cessou o ambiente suficientemente bom.

b) de acordo com a natureza e a inteligência da criança;

c) de acordo com o diagnóstico psiquiátrico da criança (1965k/1987, p. 181).

Essa classificação do ambiente familiar para fins de diagnóstico é importante, pois definirá, conjuntamente com os outros critérios vistos até aqui, o tipo adequado de assistência institucional e de terapêutica a ser adotada. Ou seja, se a criança teve uma boa relação inicial com a família, essa relação poderá ser recuperada caso lhe seja dada a oportunidade de estabelecer uma relação pessoal com alguém suficientemente bom que cuide dela e esteja disponível para uma comunicação pessoal profunda. Nos casos em que não houve um bom início (isto é, se ela sofreu privação), a criança precisa ter, pela primeira vez, as experiências de um lar primário que seja totalmente adaptado às suas necessidades especiais. Sem essa adaptação, ela não conseguirá estabelecer as bases para sua saúde psíquica. Para os casos extremos de deprivação – lamentavelmente inúmeros – em que o prognóstico não é bom, existe o risco de loucura, devido ao fracasso do ambiente em lidar com as manifestações iniciais da tendência antissocial. Nestes casos, chega a ser necessário o fornecimento de uma estrutura rígida e estável – porém, justa e confiável – de controle externo, de modo a conter a confusão que é permanentemente sentida como ameaça.

 

3. Alternativas de tratamento

As alternativas que descrevo a seguir foram apresentadas por Winnicott, a partir de suas ideias, naturalmente, mas também a partir do que havia disponível em sua época e contexto social. É importante acompanhar o que ele assinala como essencial em cada uma das alternativas para poder adaptá-las ao nosso contexto. O objetivo que guia o tratamento de crianças que foram deprivadas de vida familiar é o fornecimento de uma alternativa para a família que se perdeu. O importante é reconstruir um ambiente de segurança e compreensão. Dependendo do diagnóstico da criança, essa alternativa pode ser, num extremo, a adoção ou, no outro extremo, a internação em uma grande instituição. A variação das alternativas depende, naturalmente, do que é possível encontrar, mas deve estar sempre norteada pelo diagnóstico.

A primeira alternativa é a adoção3 que pode, em princípio, ser pensada como a situação ideal para a criança, pois, também em princípio, os pais adotivos estarão dispostos a lhe dar uma vida familiar satisfatória, situação que não pôde ser fornecida pelos pais biológicos. Contudo, para que um processo de adoção tenha sucesso, algumas recomendações se fazem necessárias. Em primeiro lugar, os pais adotivos precisam estar preparados e dispostos a criar uma criança que já tem certo grau de dificuldade. E, em segundo lugar, os pais devem saber que o pré-requisito para que a criança possa aproveitar o que lhe será oferecido, é ter tido, no início da vida, uma experiência familiar suficientemente boa, pois só assim ela poderá resgatar aquilo que teve e perdeu. Caso contrário, eles deverão estar preparados para enfrentar períodos de franca atividade antissocial, com roubos, mentiras e destrutividade, pois se o ambiente oferecido por eles tornar-se confiável para a criança, a esperança retorna e, com ela, os atos antissociais.

Se, por algum motivo, a adoção não é possível, a alternativa é abrigar essa criança em uma instituição. Essas instituições podem variar desde as bem pequenas, com poucas crianças, nas quais a relação entre elas e seus cuidadores pode ser pessoal e, portanto, efetivamente terapêutica, até as bem grandes, nas quais as relações com as crianças são impessoais e norteadas essencialmente por regras disciplinares.

As pequenas instituições, que comportam em média de seis a dez crianças de diferentes idades e sexos, podem ser administradas, de preferência, por um casal e reproduzir, o mais fielmente possível, um ambiente familiar. Para que o trabalho seja desenvolvido de maneira satisfatória, a escolha dessas crianças terá que ser feita com o mesmo critério que é usado para adoção: elas devem ter tido um começo suficientemente bom, que forneça a matriz para o aproveitamento da nova oportunidade. Segundo Winnicott, uma criança que não seja adequada para esse tipo de tratamento pode prejudicar todo um bom trabalho que esteja sendo feito pelos supervisores com as outras crianças. Esse trabalho é emocionalmente exigente, pois é pessoal e envolve afetividade. Se uma criança mais perturbada põe o trabalho a perder, os supervisores podem desanimar e desistir de dar o melhor de si, partindo para um manejo menos pessoal e menos afetivo, o que seria um transtorno para as outras crianças. Esse tipo de situação nos mostra a importância do diagnóstico.

Se o número de crianças abrigadas numa instituição cresce, o manejo delas vai perdendo em qualidade, pois será menos pessoal e, portanto menos terapêutico. Tendo em vista que os abrigos com um número pequeno de crianças são poucos e os cuidadores insuficientes, as crianças mais doentes, isto é, aquelas que tiveram poucas experiências iniciais satisfatórias, poderão ser alocadas em abrigos maiores. Winnicott diz que não é bom "fingir" que as crianças alojadas nessas grandes instituições estão sendo tratadas, pois, de fato, elas

não estão sendo cuidadas com a finalidade de cura das suas doenças. Os objetivos são, em primeiro lugar, prover teto, comida e roupa a crianças que foram negligenciadas; em segundo lugar, criar um tipo de vida em que as crianças tenham ordem em vez de caos; e, em terceiro lugar, impedir, para o maior número possível de crianças, a ocorrência de um choque com a sociedade (1965k/1987, p. 189).

Em vez de estarem sendo tratadas – o que não seria possível – elas estão sendo contidas em muitos níveis e não estão abandonadas. Neste caso, a disciplina é essencial na medida em que proporciona estabilidade para elas. Além disso, porque é um alívio para algumas crianças saber que não terão que usar o autocontrole todo o tempo. Contudo, se o ambiente tem que ser rigoroso e severo para ter valor positivo para as crianças, é necessário que seja coerente, confiável e justo na mesma medida. Se não for assim, elas se sentirão desorientadas e confusas.

 

4. Recursos humanos

Certamente o requisito mais difícil de ser preenchido quando se trata de trabalho com crianças, principalmente com crianças antissociais é encontrar pessoal adequado. Em termos de serviço público, isso é muito difícil. A maneira como esses funcionários são selecionados e avaliados, no setor público, não condiz com as necessidades reais desse trabalho. Portanto, se o objetivo é fazer algo efetivo e de qualidade com essas crianças será necessário rever os critérios de seleção de pessoal.

Winnicott descreveu o que considerava ser importante na personalidade das pessoas selecionadas para o trabalho junto a crianças antissociais nos alojamentos e abrigos e recomendava, primeiramente, que os supervisores dos assim chamados "lares" fossem casais (se possível), de maneira que ambos os cônjuges participassem na supervisão. Essa situação às vezes pode complicar-se, principalmente se os supervisores tiverem seus próprios filhos, mas o que Winnicott constatou na prática cotidiana era que esse fato – a existência real de uma família – enriquecia a vida do alojamento.

No que se refere às características desejáveis dos supervisores, eles deveriam ser pessoas com capacidade para assimilar experiências e para lidar de modo autêntico e espontâneo com os acontecimentos e as relações, pois só assim, sendo eles mesmos, teriam condição de agir natural e coerentemente todos os dias. Essa mesma característica é assinalada pelo autor com relação aos pais suficientemente bons. Num texto escrito em 1969, ele afirma que "se formos nós mesmos, os nossos filhos podem passar a conhecer-nos. Se estivermos representando um papel, seremos certamente descobertos quando nos surpreenderem sem as nossas máscaras" (1993b/1993, p. 141). Contudo, a melhor seleção é feita pelas crianças, pois esses supervisores só aguentarão a tensão diária se forem capazes de serem, sempre, eles mesmos. É desejável também que eles possam estar atentos às necessidades das crianças no sentido de poderem "atuar naturalmente".

Winnicott nos fornece um exemplo: se uma criança corta o dedo e precisa do supervisor naquele momento e ele está envolvido com alguma outra tarefa pessoal, ele deverá largar o que estiver fazendo e atender a criança imediatamente, sendo capaz de priorizar as necessidades das crianças e a seriedade desses apelos, "pois essas crianças estão, com frequência, doentes demais ou angustiadas demais para serem capazes de admitir tanto as dificuldades pessoais do supervisor quanto as suas próprias" (1947e/1987, p. 73). Seria igualmente desejável que essas pessoas tivessem alguma habilidade especial, como música, teatro, pintura, cerâmica etc., mas o essencial é que gostem sinceramente de crianças. Como podemos ver, não é fácil encontrar pessoas com esse perfil.

O supervisor com esse perfil não deve precisar seguir prescrições ou planejamentos pré-estabelecidos porque o importante é que, de posse de uma compreensão unitária dos principais problemas a enfrentar, ele tenha liberdade e capacidade de resolver as questões que vão surgindo no dia a dia de uma maneira pessoal e verdadeira. Somente nessas bases ele construirá uma relação real com as crianças e, por isso, tornar-se-á importante para elas.

De qualquer modo, é fundamental que o número de crianças que um supervisor tenha sob seus cuidados não ultrapasse o que ele pode suportar emocionalmente,

pois se um número excessivo de crianças for confiado a um supervisor, ele se verá obrigado a proteger-se expulsando alguém que não esteja preparado para isso. Um ser humano só consegue se preocupar seriamente com um determinado número de pessoas, num mesmo momento. Se isso for ignorado, o supervisor será obrigado a realizar um trabalho superficial e inútil, e a substituir por uma gestão ditatorial a combinação saudável de amor e energia que preferiria manifestar. Caso contrário, e isso é muito comum, ele sucumbe, e todo o trabalho que realizou se anula. Pois qualquer mudança de supervisor produz vítimas entre as crianças e interrompe a terapia natural do trabalho no alojamento. (1947e/1987, p. 80)

Outro aspecto essencial é que os supervisores possam contar, eles mesmos, com supervisão, que pode ser feita por meio do debate com a equipe técnica responsável4 . A natureza desse trabalho é tão difícil que os supervisores têm necessidade absoluta de apoio e compreensão.

A escolha do resto do pessoal que trabalhará no alojamento também é bastante importante, pois a criança necessita que todas as pessoas que cuidam dela tenham noção da importância do seu papel. Assim, a cozinheira, o jardineiro, a faxineira, o vigia, podem ser ou uma grande ajuda ou, ao contrário, um grande estorvo.

 

5. Características essenciais ao trabalho residencial

A assistência residencial para crianças tem como objetivo fornecer certas condições ambientais que permitam a elas retomar seu processo de amadurecimento pessoal. Isso é fundamental no caso de crianças com tendência antissocial, pois a psicanálise enquanto tratamento individual não é efetiva na maioria desses casos.

Quais são essas condições ambientais? A primeira delas é a confiabilidade. Geralmente, crianças que necessitam de uma assistência institucional viveram em ambientes nos quais, por alguma razão, deixaram de confiar. Aqui confiança tem o sentido de previsibilidade. Assim, os "lares" e alojamentos têm que ser, acima de tudo, ambientes confiáveis e previsíveis. Num atendimento de 24 horas como é o atendimento residencial, as crianças passam a viver a vida privada dos profissionais que cuidam delas e, como esses profissionais são seres humanos, eles são falíveis. Todavia, trata-se de um trabalho profissional e terapêutico, o qual deve atender às necessidades das crianças. Assim, é preciso que a condição de trabalho do pessoal envolvido com assistência institucional seja a melhor possível. Nessa área, diz Winnicott,

não cabem meias soluções. É uma questão de cuidar bem de poucas crianças e ceder as outras a uma grande instituição com métodos ditatoriais, até que a sociedade possa conseguir algo melhor. O bom trabalho deve ser pessoal, para que não seja cruel e torturante para a criança e para o profissional. O trabalho só vale a pena ser feito se for pessoal e se aqueles que o estão realizando não estiverem sobrecarregados. (1965k/1987, p. 191)

Como se vê, Winnicott não é dado a idealizações nem cria metas falsas. Essas são as condições nas quais a confiabilidade poderá existir, ajudando a criança a desfazer seu sentimento de imprevisibilidade. A terapia por assistência institucional está consideravelmente calcada nessa questão.

A segunda condição é o fornecimento de holding. A criança em assistência institucional precisa reencontrar o holding que foi perdido ou interrompido – holding que começa com estar sendo seguro nos braços da mãe, que deveria, em condições normais, ter-se ampliado com a mãe segurando situações tensas ou difíceis, ou, como diz Winnicott, "segurando a situação no tempo" – e que, agora, precisa ser fornecido pelos profissionais que cuidam dela.

A terceira condição é que o trabalho residencial não pode ter uma atitude moralista; pelo contrário, ele precisa dar condições para que a moralidade inata da criança aflore. O comportamento das crianças antissociais não pode ser atribuído ao pecado ou coisa que o valha. Para ser realmente terapêutico, o tratamento institucional deve estar baseado firmemente na pessoa e no caráter de cada criança.

A quarta condição a ser atendida pelo ambiente cuidador é que, às vezes, uma das crianças começa a incomodar mais do que as outras, e os profissionais ficam tentados a transformá-la em "bode expiatório". Em geral, isso acontece porque essa criança está sendo a porta-voz do grupo, que pode permanecer tranquilo enquanto ela está fazendo os ataques, por procuração. As pessoas que cuidam das crianças não devem, nesse momento, ter atitudes moralistas, nem de retaliação, também não devem tentar curar os sintomas ou oferecer suborno. Segundo Winnicott, elas têm unicamente que sobreviver:

Nesse contexto, a palavra sobreviver significa não só que vocês continuarão vivendo e que conseguirão passar por isso ilesos, mas também que não serão provocados à retaliação. Se vocês sobreviverem, então, e só então poderão sentir-se usados de um modo perfeitamente natural pela criança que está se tornando uma pessoa e adquiriu recentemente a capacidade para fazer um gesto de natureza amorosa um tanto simplificado. (1984g/1987, p. 232)

A quinta e última condição é que o sentimentalismo deve ser banido de qualquer tratamento terapêutico com as crianças em atendimento institucional. À medida que ela encontrar pessoas confiáveis e resgatar a confiança e a crença nessas pessoas e em si mesma terá condições de ser levada gradualmente a se responsabilizar pelas consequências dos seus atos destrutivos. Para isso, ela não precisa de indulgências, mas de justiça e confiabilidade.

Como se pode ver, as indicações e recomendações dadas por Winnicott sobre como tratar crianças que perderam seus lares continuam bastante atuais e podem, adaptadas à nossa realidade, ser aproveitadas para a construção de políticas públicas de prevenção e tratamento da delinqüência no nosso país.

 

Referências

Dias, E. O. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Loparic, Z. (2001). Esboço do paradigma winnicottiano. Cadernos de História e Filosofia das Ciências, 11(2), 7-58.         [ Links ]

Garcia, R. M. (2004). A tendência antissocial em D. W. Winnicott. Dissertação de Mestrado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1987). Assistência residencial como terapia. In D. Winnicott (1987/1984a), Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1970; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1984g)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1987). A criança desapossada e como ela pode ser compensada pela falta da vida familiar. In D. Winnicott (1987/1984a), Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1950; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1965k)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1987). Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1984; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1984a)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1987). A tendência antissocial. In D. Winnicott (1987/1984a), Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1956; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1958c)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1987). Tratamento em regime residencial para crianças difíceis. In D. Winnicott (1984/1984a), Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1947; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1947e)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1988; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1988)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1993). A construção da confiança. In D. Winnicott (1993/1993a), Conversando com os pais. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1993b)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (1993). Conversando com os pais. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1993; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1993a)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (2000). Desenvolvimento emocional primitivo. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1945; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1945d)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (2000). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (Davy Bogomoletz, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1958a)        [ Links ]

 

 

Endereço de correspondência
E–mail: roseanagarcia@uol.com.br

 

 

1O termo deprivation, usado por Winnicott, não tem equivalente em português, assim usarei como tradução o neologismo "deprivação" como já foi usado por Loparic (2001, p. 7-58) e por Dias (2003) e nas traduções de Winnicott feitas por Bogomoletz (Winnicott, 1958a/2000, 1988/1990). Para Winnicott, na raiz da tendência antissocial há sempre uma deprivação que é a perda abrupta dos cuidados suficientemente bons que a criança recebia do ambiente , perda essa que não foi corrigida a tempo de a esperança ser mantida. Além disso, para que o diagnóstico seja de tendência antissocial e não de psicose, deve-se atentar para o critério de que a criança já estava madura o suficiente para saber que a falha foi ambiental.
2 Esse movimento é o mesmo segundo o qual o paciente psicótico faz uso das falhas do analista para atualizar o trauma. O analista winnicottiano, nessas ocasiões, é orientado a fazer uso terapêutico dessas falhas e da reação do paciente.
3 A adoção temporária, prática que vem sendo utilizada quando a família biológica tem uma certa estrutura mas está momentaneamente impossibilitada, por alguma razão, de cuidar da criança, também pode ser incluída aqui.
4 Na experiência de Winnicott, essa equipe era formada por ele e uma assistente social.

Creative Commons License