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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.5 no.1 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

A defesa do falso si-mesmo e os estados depressivos

 

The false-self defense and the depressive state

 

 

Ariadne Alvarenga Rezende Engelberg de Moraes

Centro Winnicott de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Considerando o tema da defesa organizada do falso si-mesmo como uma contribuição teórica de Winnicott à psicanálise, busco destacar a relação entre essa defesa e os estados depressivos. Para tanto, mostro que Winnicott apoiou-se na teoria do amadurecimento pessoal para ampliar a compreensão dos mecanismos de defesa assim que constatou que as defesas relativas à fase da unidade mãe-bebê não poderiam ser tradicionalmente consideradas como defesas do ego. Nesse caminho, analiso também aspectos envolvidos com a conquista e a manutenção da integração, e a relação desses pontos com o estabelecimento de um falso si-mesmo, sinalizando que ao longo desse desenvolvimento, Winnicott precisou rever conceitos e acrescentar novos termos à teoria psicanalítica.

Palavras-chave: psicanálise, Winnicott, defesas, falso si-mesmo, depressão.


ABSTRACT

Taking into account the theme of the organized defense of the false self as Winnicott's theoretical contribution to psychoanalysis, I try to highlight the connection between this defense and the depressive states. Having this purpose in mind, I show that Winnicott relies on the personal maturation to have a wider comprehension of the defense mechanisms when he realized that the defenses related to the stage of the mother-baby unity couldn't be traditionally considered as ego defenses. Aspects concerning the accomplishment and the preservation of the integration are also analyzed as well as the connection of these points with the establishment of a false self, suggesting that throughout this development, Winnicott had to review concepts and add new terms to the psychoanalytical theory.

Keywords: psychoanalysis, Winnicott, defenses, false self, depression.


 

 

Ao longo de sua obra, Winnicott assume que as contribuições teóricas por ele realizadas representam um importante aporte à psicanálise. Em cada tema desenvolvido, faz questão de evidenciar seu ponto de vista e destacar o diferencial teórico introduzido na área, marcando sua posição como pensador psicanalítico. Com certa regularidade, adota a estratégia de fazer, em palestras ou textos, uma rápida apresentação do tema de interesse, destacando os desenvolvimentos teóricos de Freud e Klein, para só então apresentar suas ideias, cujo foco é realçar a condição de dependência do recém-nascido de uma ambiência favorável para que a emergência de uma pessoa seja possível 1 . Em geral, introduz esse momento com variadas frases, do tipo "a estes desenvolvimentos acrescentou-se a possibilidade de se avançar para épocas anteriores e mais primitivas do desenvolvimento humano".

A despeito das diversas interpretações encontradas para esse estilo de teorizar e das dificuldades decorrentes, é possível dizer que a intenção de Winnicott, ao agir desse modo, sempre foi cuidar da unidade teórica da ciência psicanalítica. Sendo assim, obviamente observamos esse mesmo movimento quando ele desenvolve o tema das defesas organizadas.

Tomando o artigo "Teoria do relacionamento paterno-infantil"2 (Winnicott, 1960c/1990f, p. 38) como exemplo, vemos que Winnicott esquematiza a teoria dos mecanismos de defesa do ego vigente na psicanálise, cita Freud e Klein e expõe sua intenção e seu campo de teorização em uma nota. Diz nessa nota que, apesar de observar reavaliações sobre o tema dos mecanismos de defesa em Anna Freud e Willi Hoffer, em razão de estudos sobre a maternidade e o papel da mãe, seu objetivo, no referido artigo, é realçar a importância do papel do ambiente inicial para o desenvolvimento de uma criança e destacar como o conhecimento dessa nova realidade é fundamental para o manejo clínico de "certos tipos de caso com distúrbios afetivos ou de caráter" (Winnicott, 1960c/1990f, p. 42), área da psicopatologia que, de acordo com ele, ainda era de difícil acesso para a teoria e técnica psicanalíticas tradicionais.

Assim, ainda no mesmo artigo, mostra que a teoria dos mecanismos de defesa foi construída por Freud a partir da suposição de que eles "eram organizados em conexão com a ansiedade que se derivava da tensão instintiva ou da perda do objeto" (Winnicott, 1960c/1990f, p. 42). Destaca que a compreensão desse enunciado pressupõe a noção de uma pessoa independente, com um eu constituído, existindo com um esquema corporal, portanto uma pessoa com condição de estabelecer "uma organização defensiva pessoal verdadeira" (Winnicott, 1960c/1990f, p. 42) e capaz de se relacionar com mais de uma pessoa. Define a repressão3 como o exemplo principal de defesa para pessoas que alcançaram o estágio de amadurecimento característico da fase dos relacionamentos triangulares.

Na sequência, manifesta que o trabalho de Melanie Klein, de modo particular a teoria da posição depressiva, acrescenta elementos de compreensão ao tema, tais como a noção dos mecanismos de defesa primitivos relacionados a ansiedades primitivas, ou seja, ansiedades relacionadas aos primeiros momentos da organização e estruturação da personalidade, época em que defesas como splitting, projeção e introjeção são adotadas. Tem claro que esta parte do trabalho de Klein está associada ao período da dependência relativa, época caracterizada pelo relacionamento dual.

Embora endosse as posições acima, considerando-as como fato para fases mais tardias do amadurecimento pessoal, em sua visão os mecanismos de defesa propostos por Freud e Klein não abrangiam todas as possibilidades de defesas. Em sua percepção, havia ainda a necessidade de compreensão das defesas relativas aos momentos iniciais do estar-aí do bebê, sempre visto como dependente. De forma educada, afirma que Klein e colaboradores "deixaram em aberto para consideração posterior o desenvolvimento do tema da dependência completa" e, apesar de saber que nada há no trabalho da psicanalista contra a dependência absoluta, reconhece não haver em Klein, "nenhuma referência específica ao estágio em que o lactente existe tão-somente por causa do cuidado materno, junto com o qual ele forma uma unidade" (Winnicott, 1960c/1990f, p. 42).

Definindo o tempo da dependência absoluta como aquele em que o lactente precisa da "empatia materna" mais do que "da compreensão do que é ou poderia ser verbalmente expresso" (Winnicott, 1960c/1990f, p. 41), ou seja, "a fase anterior à apresentação das palavras e uso das palavras como símbolos" (Winnicott, 1960c/1990f, p. 41), Winnicott afirma que o período da unidade mãe-bebê "é essencialmente um período de desenvolvimento do ego" (Winnicott, 1960c/1990f, p. 41). Certo disso, considera "incorreto pôr a gratificação instintiva (alimentação, etc.) ou as relações objetais (relacionamento com o seio)", como propuseram Freud e Klein, "antes do tema da organização do ego" (Winnicott, 1960c/1990f, p. 49).

Foi guiado por questões dessa ordem, apontadas nesse artigo e em vários outros, que Winnicott incluiu o tema mecanismos de defesa no já em andamento processo de revisão teórico-clínico da psicanálise. O ponto de partida para compreensão das defesas relativas à fase da unidade mãe-bebê foi a constatação de que defesas organizadas tão precocemente não poderiam ser chamadas de "defesas do ego", já que na realidade se referiam à defesa do ser, do continuar a ser, do poder ser, do existir e do sentir-se real. Portanto, um aspecto distintivo da teoria winnicottiana sobre os mecanismos de defesa é que as defesas organizadas em razão de problemas relativos à continuidade de ser visam proteger o si-mesmo verdadeiro. Entretanto, como para Winnicott a continuidade de ser é a base da força do ego, outro ponto distintivo dessa teoria encontra-se na ideia de que interrupções na continuidade de ser adicionam dificuldades para a própria organização do ego.

Tendo a teoria do amadurecimento pessoal como fundamento, Winnicott ampliou a compreensão dos mecanismos de defesa considerando três pontos: 1) o entendimento de que a primeira ansiedade experienciada pelo bebê está associada aos processos emergentes de integração e à manutenção da integração quando já conquistada; 2) a percepção de que problemas relativos à realização da tarefa de integração, ocasionados por falha ambiental, afetam o desenvolvimento emocional, a estruturação da personalidade e a própria integração do si-mesmo (eu), podendo levar à organização precoce de uma defesa - do falso si-mesmo4 ; 3) o reconhecimento de que a existência de uma organização defensiva do tipo falso si-mesmo modifica a tarefa clínica, pois a identificação dessa defesa, durante a análise, faz surgir para o analista a lembrança de que "somente o self verdadeiro pode ser analisado" (Winnicott, 1965h/1990a, p. 122).

Pode-se dizer que a determinante e nova questão envolvida no conceito de falso si-mesmo à qual Winnicott se dedicou está relacionada à ideia de que o conceito de falso si-mesmo "traz consigo a idéia de um self verdadeiro" (Winnicott, 1965h/1990a, p. 128), que se tornará oculto, submisso e protegido sempre que for de algum modo perturbado em sua continuidade. Vale lembrar que, na percepção de Winnicott, o si-mesmo verdadeiro deve ser entendido como "o potencial herdado que está experimentando a continuidade da existência, e adquirindo à sua maneira e em seu passo uma realidade psíquica pessoal [mediante integração] e o esquema corporal pessoal" (Winnicott, 1960c/1990f, p. 46) (mediante a personalização), desde que possa contar com o favorecimento ambiental para tais desenvolvimentos. O verdadeiro si-mesmo deve, a partir dessa compreensão, ser visto como "a posição teórica de onde vem o gesto espontâneo" (Winnicott, 1965m/1990b, p. 135), aquele que reúne "os pormenores da experiência do viver" (Winnicott, 1965m/1990b, p. 136) e o que dá corpo ao potencial de saúde inato, corroborando o amadurecimento pessoal na direção da conciliação, única possibilidade madura do viver social. Uma pessoa que conquiste tal senso de ser si mesmo existirá a partir de uma concepção pessoal e revelará de um modo "espontâneo e absoluto, impulsos de autêntica afeição" (Winnicott, 1949n/1982, p. 120), embora mantendo sempre intocável o coração de sua personalidade.

Para explicar a importância dos processos de integração, o lugar do falso si-mesmo como defesa e a necessidade de alteração na técnica, Winnicott precisou rever conceitos estabelecidos e acrescentar novos termos à teoria psicanalítica. Um dos termos em questão foi o ego. Na psicanálise winnicottiana o ego deixou de ser considerado uma instância psíquica e passou a ser compreendido como uma tendência, a parte da personalidade que amadurece, ou precisamente a parte da personalidade que tende, sob condições favoráveis, a se integrar em uma unidade (cf. Winnicott, 1965n/1990d, p. 55).

A partir desse novo enfoque, Winnicott estabeleceu que, no início, o conceito de ego é inseparável da ideia de "existência da criança como pessoa" (Winnicott, 1965n/1990d, p. 55), o que faz que, de alguma forma, possa ser analisado em paralelo com a noção de continuidade de ser. Isto é, bebês que não precisam viver "na base da continuidade de reações a irritações" mantém a continuidade de ser, que é a "base da força do ego" (cf. 1965n/1990d, p. 51). Dessa forma, considerando-se as experiências mãe-bebê ao longo do estágio da dependência absoluta - no sentido de favorecer ou não a continuidade de ser -, sabe-se que, ao mesmo tempo, está em andamento um processo mais global de integração que é afetado por interrupções na continuidade de ser. Sabe-se também que ao final desse estágio um certo estado de integração é conquistado pelo bebê. Por isso se pode dizer que, no momento em que a integração surge como algo mais organizado, o bebê recém-integrado conquistou um senso de ser e existir pessoal mais ou menos solidificado, um si-mesmo pessoal verdadeiro (eu) mais ou menos defendido. E é esse estado de integração conquistado, decorrente de uma continuidade de ser possibilitada pelo atendimento ambiental, que poderá ser expresso, a partir de agora, em termos de linguagem do ego e, por conseguinte, ser analisado a partir de então em termos de força de ego, ou seja, como um ego forte ou fraco. Ou também, como às vezes Winnicott diz, estudado como a psicologia do ego.

Em seus artigos, quando fala em "psicologia do ego", Winnicott deixa implícito que se refere tanto à particular experiência de constituição do eu (do si mesmo) pelo bebê como à ideia de um ego que se estrutura e organiza a partir das mesmas experiências iniciais. Vemos isso em passagens como: "a avaliação da saúde em termos das posições do id fica insatisfatória pela ausência da psicologia do ego. Um exame do ego nos leva direto aos estágios pré-genitais e pré-verbais do desenvolvimento individual, e à provisão ambiental" (Winnicott, 1971f/1999b, p. 10). Fazendo a leitura dessa afirmação usando uma linguagem mais winnicottiana, teríamos: "a avaliação da saúde em termos das posições do id fica insatisfatória pela ausência" do conhecimento das experiências iniciais mãe-bebê, facilitadoras da continuidade de ser e da organização do ego. Um exame do ego (ou dessas experiências iniciais) nos levaria "direto aos estágios pré-genitais e pré-verbais do desenvolvimento individual, e à provisão ambiental".

Fazendo esse exercício mais uma vez com a seguinte frase: "o estudo das defesas do ego leva o investigador de volta às manifestações pré-genitais do id, enquanto o estudo da psicologia do ego leva-o de volta à dependência, à unidade lactente-cuidado materno" (Winnicott, 1960c/1990f, p. 43), a frase ficaria: "o estudo das defesas do ego leva o investigador de volta às manifestações pré-genitais do id", enquanto o estudo dos processos de integração e constituição do si mesmo "leva-o de volta à dependência, à unidade lactente-cuidado materno".

Para Winnicott, o conhecimento do desenrolar das experiências iniciais e consequentes defesas organizadas é a chave tanto para o entendimento de como ocorreu a estruturação e organização da personalidade como para saber do estado e legitimidade da integração do eu conquistados. Por isso ele diz que só a partir do conhecimento de como aconteceu o desenvolvimento e conquista da unidade (integração), ou da "psicologia do ego" se pode avaliar a estrutura e força do ego, como também sua rigidez, flexibilidade e dependência (cf. Winnicott 1965ve /1990c, p. 210).

Portanto, é a psicologia do ego - entendida como o exame do processo de integração da personalidade em uma unidade e expressa em linguagem do ego como um ego forte ou fraco - que deve ser considerada para o diagnóstico e análise dos estados depressivos. Winnicott explicita que a "visão da depressão está intimamente ligada ao nosso conceito de força de ego, de estabelecimento do self e de descoberta de uma identidade pessoal (Winnicott, 1957d/1999a, p. 62), que "a depressão sempre implica força de ego" (Winnicott, 1957d/1999a, p. 68), e por isso no estudo da depressão o que deve "ser enfatizado é a força do ego e a maturidade pessoal que se manifesta na 'pureza' do humor depressivo" (Winnicott, 1957d/1999a, p. 67).

Na perspectiva winnicottiana os estados depressivos expressam saúde em potencial. Esses estados manifestam a existência de um si-mesmo verdadeiro, mesmo que rudimentar, à procura de uma maneira de ser, existir e relacionar-se sem grande comprometimento da espontaneidade.

Pensando em termos de amadurecimento pessoal, pode-se dizer que, havendo sintonia materna, as experiências de integração constitutivas do si mesmo pessoal e organizadoras da personalidade não serão identificadas como algo fora da experiência do estar vivo, e assim um senso de ser e existir pessoal será conquistado. Nesse caso, dizer que há um ego forte se torna sinônimo de dizer que uma integração bem estabelecida foi conquistada. Se, na fase da dependência relativa, a sintonia dos cuidados permanecer como uma realidade, a conquista do concernimento se estabelece, a integração dos instintos e da agressividade acontece, contribuindo para o fortalecimento dessa mesma integração. Juntamente com todo esse desenvolvimento a capacidade para deprimir-se, a capacidade de ambivalência e a condição de tolerar toda gama de sentimentos que circulam entre o amor e o ódio na relação com outras pessoas, as quais serão sempre afetadas pela destrutividade, se torna uma possibilidade real5 . Para essa pessoa, a estruturação da personalidade seguirá a linha do amadurecimento saudável, situação em que uma diversidade de defesas pode ser usada sem particular rigidez, e as experiências com o outro enriquecerão tanto a pessoa como o mundo externo.

Outra situação se configura quando as experiências de integração ocorrem de maneira intermitente em razão de interrupções na continuidade de ser decorrente de reações a falhas ambientais. Isso pode ocasionar danos à constituição do ser e ao existir pessoal. Nesse caso, temos duas possibilidades: 1) a situação de falhas é tão grave que impede a integração em um eu unitário, caso em que entramos no campo das psicoses graves, sendo a esquizofrenia seu exemplar; 2) um falso si-mesmo "dotado da função de estabelecer e manter contato com o ambiente, e ao mesmo tempo proteger e esconder o si mesmo verdadeiro" (Winnicott, 1965s/2001, p. 223) se apresenta.

Nos casos em que o falso si-mesmo se organiza como defesa, o si-mesmo verdadeiro permanece existindo, numa graduação que vai de um simples estar protegido até a inacessibilidade. Quando o si-mesmo verdadeiro tende para a inacessibilidade, e o falso si-mesmo assume o comando do existir, estamos em face da situação em que ocorre uma "integração ilusória que se desfaz assim que é aceita como real e chamada a contribuir" (Winnicott, 1965s/2001, p. 223), mas que pode, em alguns casos, garantir à pessoa, às vezes por muito tempo ou até a vida toda, "uma saúde aparente" (Winnicott, 1955d/2000, p. 385), embora sem valor para o seu amadurecimento no sentido de continuidade de ser, existir e sentir-se real. Dizendo isto em termos de integração e em linguagem do ego, vemos que essa saúde aparente é sem valor para a manutenção da integração e o fortalecimento do ego, predominando em termos de personalidade um estado de distorção do ego em termos de falso e verdadeiro si-mesmo. Pode-se dizer que a pessoa vive escorada em uma falsa personalidade.

A defesa do falso si-mesmo, qualificada por Winnicott como uma das mais bem-sucedidas, pode ser organizada em qualquer fase do estágio inicial: na vida intrauterina, no nascimento6 , nos estágios primitivos e nos momentos iniciais do estágio da dependência relativa ou estágio do Humpty-Dumpty. Humpty-Dumpty é um personagem de contos de fada infantil que está sempre caindo, e Winnicott compara o bebê recém-integrado a esse personagem para exemplificar a fragilidade da integração e a vulnerabilidade a uma desintegração no início do estágio da dependência relativa, na época em que há uma sobreposição de acontecimentos e tarefas ligadas à conquista do concernimento.

Quando o falso si-mesmo é organizado no estágio "Humpty Dumpty", isso ocorre em razão de dificuldades ligadas às conquistas do estágio do concernimento e em relação à integração dos instintos e da agressividade pelo bebê em decorrência de falhas maternas na realização das tarefas do referido estágio. Nessa última circunstância, não seria adequado dizer que o falso si-mesmo protege o verdadeiro si-mesmo do risco de aniquilação, pois, quando o lactente alcança esse estágio, já está de certo modo "livre das malhas do cuidado materno" (Winnicott, 1965m/1990b, p. 136).

Esse ponto merece destaque. Para Winnicott, o si-mesmo verdadeiro "aparece logo que há qualquer organização mental que seja do indivíduo" (Winnicott, 1965m/1990b, p. 136), isto é, qualquer organização mental derivada do amadurecimento pessoal e não de um desenvolvimento precoce da mente (caso especial do falso si-mesmo) como supridora das falhas ambientais. Por isso, ele entende que a organização de um falso si-mesmo nessa fase (Humpty Dumpty) não tem mais a função de ocultar o verdadeiro si-mesmo, mas sim de esconder "a realidade interna do lactente" (Winnicott, 1965m/1990b, p. 136), conceito que só adquire sentido para o bebê que alcançou a unidade psicossomática. é aqui que a defesa do falso si-mesmo se justapõe de diferentes maneiras aos estados depressivos, mas agora como uma defesa para garantir a manuntenção da integração conquistada: em vez do isolamento, a submissão.

Desse modo, o dado importante a destacar em relação à defesa do falso si-mesmo - independentemente do momento em que essa defesa se organizou - relaciona-se à força de ego. O estado de integração e senso de continuidade conquistados pela pessoa que oculta o si-mesmo ou sua realidade interna é sempre vulnerável e/ou falso. Portanto, nesse sentido o ego é fraco. Sendo o ego fraco, as experiências instintivas e agressivas - que precisam ser integradas no estágio da depedência relativa - podem não ser experienciadas como uma contribuição para o sentimento de sentir-se real, sendo, ao contrário, muitas vezes avaliadas como um fator de ameaça para a integração.

Por essa razão, em se tratando dos estados depressivos, o fator mais importante para o tratamento não é a análise da ansiedade nem do conteúdo da ansiedade, mas a avaliação da estrutura do ego, ou seja, a percepção do estado de integração conquistado pela pessoa, ou ainda o grau de distorção do ego em termos de verdadeiro e falso si-mesmo presente na personalidade da pessoa deprimida. é a integração ou força do ego conquistada que dará ou não condição para a pessoa deprimir-se e/ou suportar as ansiedades e dúvidas características dos estados depressivos.

Os estados depressivos que contêm impurezas podem ser avaliados como aqueles em que o ego é fraco, e por isso a depressão não se manifesta como humor deprimido (característica da depressão experienciada por pessoas com ego forte), mas se manifesta por meio de variadas defesas antidepressivas, pelo mau humor ou pelo humor antissocial, muitas vezes associados à defesa organizada do falso si-mesmo. O ponto comum a esses estados é o uso de defesas para manter a integração.

De maneira direta Winnicott associa o falso si-mesmo constituído no início do estágio da dependência relativa ao conceito de defesa maníaca (hipomania), estado em que se verifica que a negação da depressão por processos inconscientes impõe uma interrupção no amadurecimento, na medida em que a pessoa não pode usar os benefícios do estado de humor deprimido (não há pureza no humor) para entrar em contato com sua realidade interna e, assim, poder assumir a responsabilidade por isso. Nesse caso, a negação e a repressão são defesas que apontam problemas com a integração e organização do ego. Também em decorrência de problemas com a integração e organização do ego, a defesa do falso si-mesmo encontra-se sobreposta em graus variados, nas depressões esquizóides, em casos em que se verificam fracassos na organização do ego, nos casos em que a depressão se manifesta em termos hipocondríacos ou como delírios persecutórios, nos casos em que há exageros nas fronteiras do ego, na oscilação maníaco-depressiva e também na melancolia.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: ariadne.moraes@uol.com.br

 

 

1 Nunca é demais pontuar que para Winnicott, quando um bebê nasce, há a sobreposição de dois processos que precisam ser compreendidos distintamente. De um lado, a condição de identificação da mãe com o seu bebê e de outro, a total condição de dependência do bebê de sua mãe. Enquanto a possibilidade de a mãe se identificar com o bebê é fundamental para que ela reconheça as necessidade de dependência do bebê, o contrário não é verdadeiro. O bebê não precisa identificar-se com a mãe para que a dependência aconteça. O estado de dependência é inerente à sua estrutura humana. Inclusive, destaca Winnicott, a identificação é um fenômeno deveras complexo para ser localizado nos estágios iniciais.
2 Winnicott trata do tema da defesa do falso si mesmo em outros artigos, muitos dos quais anteriores a este. Uso este apenas para exemplificar um modo de organização teórica do autor.
3 Embora Winnicott considere a repressão como um mecanismo de defesa do indivíduo em relação a fantasias, conflitos, desejos e sentimentos que o indivíduo não pode admitir ou tolerar, diferentemente de Freud, ele não pensa a intensidade desses "elementos" psíquicos em função de uma suposta energia (a libido), considerada como um análogo psíquico das energias na natureza física (cf. Fulgencio, 2002, 2006).
4Apesar de reconhecer o conceito de falso si mesmo como usual na psiquiatria e na psicanálise Winnicott considera o desenvolvimento do tema como uma de suas contribuições e o inclui entre o que costuma chamar de "os desenvolvimentos psicanalíticos recentes" (Winnicott, 1990/1965h p.114). Um exemplo disso pode ser apreciado na afirmação: "os desenvolvimentos recentes a que me refiro são os conceitos de self, a ligação de psicopatia à privação, e a compreensão de que a psicose se origina num estágio em que o ser humano imaturo é inteiramente dependente do que o meio lhe propicia" (Winnicott, 1965h/1990a, p. 114).
5 Como afirma Winnicott, "com exceção do amor sensual, nenhuma manifestação de amor é sentida como valiosa se não implicar agressão reconhecida e controlada" (Winnicott, 1957d/1999a, p. 102).
6 Sempre relembrando, todas as experiências relacionadas à vida intra-uterina, ao nascimento e ao estágio inicial têm relevância e mereceram destaque, porque estão intimamente relacionadas com a conquista primordial do amadurecimento, que é a integração em um eu unitário. Com sabemos diversas circunstâncias ambientais contribuem (ou dificultam) para que a composição desse eu (do si-mesmo pessoal) se configure de modo mais ou menos estabelecido e o ego (no sentido de tendência a integração) seja mais ou menos forte.

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