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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.5 no.1 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

Ser si-mesmo: abordagem fenomenológica da autenticidade e da inautenticidade

 

Being oneself: a phenomenological approach to authenticity and inauthenticity

 

 

Philippe Cabestan1; Margarita Maria Garcia Lamelo (trad)

Doutor em Filosofia (1997) e habilitado para dirigir pesquisas (2010)
Professor em classes preparatórias nas grandes Escolas (Paris)

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Partiremos da célebre distinção de Winnicott entre um verdadeiro si-mesmo (true self) e um falso si-mesmo (false self) ou, em outros termos, emprestados da fenomenologia, entre um si-mesmo autêntico (eigentlich) e um si-mesmo inautêntico (uneingentlich). Todavia, o si-mesmo é uma noção que levanta muitas dificuldades, também para os especialistas da obra de Winnicott, mesmo que seja somente em sua relação com eu [moi]. Parece-nos possível, entretanto, elucidar algumas dentre essas noções por meio da elaboração da fenomenologia heideggeriana e, em seguida, por meio da sartriana, dos conceitos de si-mesmo, de autenticidade e de inautenticidade. Com efeito, para Heidegger, o Dasein não seria um ser, um eu (moi), no sentido de um ego substancial, mas o Dasein é um si-mesmo (Selbst), um ser cujo modo de ser é irredutível àquele de um objeto subsistente (vorhanden) e que pode "escolher" a si mesmo, se ganhar (sich gewinnen) ou mesmo se perder (sich verlieren). Desse ponto de vista, a autenticidade é, primeiramente, uma maneira possível de existir, e se o Dasein pode ser si mesmo no modo da autenticidade, ele o pode ser igualmente no modo privativo da fuga e da inautenticidade. Retomando o conceito heideggeriano de autenticidade, Sartre o enriquece, parece-nos, insistindo sobre a impossibilidade para o existente de ser isto que ele é. Assim, contrariamente ao si-mesmo inautêntico que não cessa de fugir para isto que poder-se-ia chamar de falso si-mesmo, o si-mesmo autêntico ou verdadeiro si-mesmo assume sua existência e, por consequência, tanto a contingência de seu ser como sua liberdade. Desse modo, nós tentaremos mostrar que é possível retomar e aprofundar fenomenologicamente a concepção winnicottiana de verdadeiro e falso si-mesmo.

Palavras-chaves: si-mesmo, fenomenologia existencial, Heidegger, Winnicott, Sartre.


Abstract

We begin with Winnicott's well-known distinction between a true and a false self, or, in terms borrowed from phenomenology, between an authentic (eigentlich) and an unauthentic (uneigentlich) self. Self, however, is a notion that raises many difficulties also for Winnicott scholars, even if only in its relation with the I [me]. Yet it seems possible to elucidate some of those notions by way of a Heideggerian phenomenology followed by a Sartrean phenomenology of the concepts of self, authenticity and unauthenticity. In fact, for Heidegger the Dasein is not a being, an I (me), in the sense of a substantial ego, but rather a self (Selbst), a being whose mode of being is irreducible to that of a subsisting object (vorhanden) and that can "choose" itself, gain itself (sich gewinnen), and even loose itself (sich verlieren). From this point of view, authenticity is above all a possible mode of existing, and if the Dasein can be itself in the authentic way, it can likewise be in the deprived mode of fleeing and of unauthenticity. Returning to the Heideggerian concept of authenticity, Sartre enriches - it seem to us - by underlining the impossibility for the existent of being what it is. Thus, unlike the unauthentic self that cannot but flee towards that which we might call a false self, the authentic or true self takes on its existence, and therefore also takes on both the contingency of its being and its freedom. Hence, we will try to show that it is possible phenomenologically to resume and go deeper into the Winnicottian conception of the true and false self.

Keywords: self, existential phenomenology, Heidegger, Winnicott, Sartre.


 

 

1. Introdução

Há algum tempo, a psiquiatria ainda utilizava sem dificuldade o termo alienação para designar "os distúrbios graves e prolongados da atividade física" (Postel, 1993, p. 23). Sabemos que o célebre médico francês, Philippe Pinel (1745-1826), preferia falar de alienação mental em vez de loucura2. Não se trata, todavia, de uma inovação e, como aponta Pinel em seu artigo da Encyclopédie méthodique, a expressão alienatio mentis ou alienação do espírito encontra-se no discurso médico da Renascença e na obra de Ambroise Paré no fim do século XVI. Entretanto - quiçá em razão de certa desconfiança da psiquiatria contemporânea em relação ao vocabulário propriamente filosófico -, o termo alienação está atualmente em desuso e somente os psiquiatras e os psicólogos veem seus pacientes como alienados. Parece, entretanto, que o conceito de alienação - sem falar da necessidade de colaboração do filósofo e do psiquiatra - merece ser reabilitado.

Conhecemos a sua importância nas filosofias de Hegel, Feuerbach, Marx, Lukacs. Mas também é possível dar ao conceito de alienação um significado fenomenológico na medida em que ele permite enfatizar uma possibilidade fundamental da existência, isto é, a possibilidade desta última de tornar-se estrangeira a ela mesma ao ponto de perder a liberdade que a distingue dos outros seres. Mas, não é precisamente essa possibilidade que certos fenômenos ditos psicopatológicos realizam? A psicose não é, antes de tudo, um tornar-se estranho a si mesmo, eine Entfremdung como dizem os alemães, de tal sorte que o doente não é mais ele mesmo? Desse ponto de vista, tudo se passa como se um falso eu, uma falsa ipseidade ou falso self - preferimos não traduzir esse último termo para conservar a proximidade linguística entre o inglês e o alemão, do self e do Selbst - tivesse se imposto e dominasse o doente.

Essa expressão de falso self refere-se naturalmente à distinção - ao mesmo tempo enigmática e fecunda - feita por Winnicott entre um verdadeiro self (true self) e um falso self (false self). Na verdade, é preciso reconhecer que essa distinção, mesmo estando, como todos sabem, no cerne do pensamento de Winnicott, suscita interrogações e que Winnicott, ao contrário de todo espírito de sistema, não procura muito elucidar essa equivocidade. Todavia, parece-nos possível esclarecer essa noção, não graças a uma nova explicação do corpus winnicottiano, do qual não somos especialistas, mas a examinar sob uma perspectiva fenomenológica a partir das noções de Heidegger e Sartre de autenticidade.

 

2. Self, integração, personalização e realização

Podemos tomar como ponto de partida o que o próprio Winnicott declara, em uma carta bem conhecida, escrita cinco dias antes de sua morte à sua tradutora, Jeannine Kalmanovitch, no dia 19 de janeiro de 1977.

Quanto a esse artigo, a coisa principal se refere à palavra self. Eu me perguntei se seria capaz de escrever qualquer coisa sobre essa palavra, mas assim que comecei a fazê-lo, constatei que havia muita incerteza em meu próprio espírito em relação a minha própria acepção do termo. Constatei que escrevi o que segue: para mim, o self que não é o ego é a pessoa que sou eu, que é somente eu (the self, which is not the ego, is the person who is me, who is only me). (Carta citada por Lehmann, 2009, p. 98)

Essa precisão nos parece preciosa em muitos níveis. Mesmo se não nos cabe distribuir elogios e críticas, ela mostra acima de tudo a probidade intelectual de seu autor que não hesita em reconhecer sua própria incerteza. Ademais, ela implica admitir, além das tentativas de um pensamento que busca a si mesmo, o caráter profundamente enigmático de seu objeto, no sentido de que a questão de nossa identidade e aquilo que a constitui permanecem eminentemente problemáticos. Nesse sentido, talvez fosse imprudente criticar em Winnicott a incerteza de sua concepção do self, que advém talvez de sua preocupação de não impor uma clareza ilusória em uma área em que devemos aceitar uma certa obscuridade.

Enfim e principalmente, ao afirmar que o self não é o eu (is not the ego), mesmo o self não sendo qualquer outro senão eu (is anybody else but me), Winnicott alinha-se, à sua maneira, com uma tese fundamental da fenomenologia existencial que, ao reconhecer a "minhidade" do Dasein, seu "ser-a-cada-momento-meu (Jemeinigkeit)", rompe com a concepção dita cartesiana do ego cogito, isto é, com a ideia de um ser que possui, como escreve Heidegger, "a mesmidade e a permanência de um sendo subsistente (die Selbigkeit und Beständigkeit eines immer schon Vorhandenen)". Portanto, Heidegger opõe à permanência do ego subsistente, a constância (Selbst-ständigkeit) do Dasein que encontra seu fundamento na estrutura temporal da preocupação e a resolução (Heidegger, 1993, p. 267, §64). é verdade, no entanto, que a perspectiva de Winnicott é sensivelmente diferente na medida em que ele se esforça para voltar ao início do self que, segundo ele, "é uma soma de inícios" (Winnicott, 1965n[192]/1970, p. 10, note 1). Desse modo, enquanto Heidegger em Sein und Zeit ou Sartre em L'être et le néant descrevem um existente em plena maturidade, Winnicott adota um ponto de vista ontogênico afim de apreender o processo de "maturação" ao termo do qual emerge um ser que é ao mesmo tempo integrado e personalizado. Voltando antes mesmo do nascimento do bebê, Winnicott escreve, "podemos com certeza dizer sobre a psique (distinta do soma) que há um caminho particular (going along), uma continuidade da experiência vivida (continuity of experiencing), anterior à distinção do eu e não-eu (me e not-me). Como se sabe, é nessa continuidade de ser (continuity of being), que Winnicott situa "os inícios do self" designando então, antes mesmo de sua integração, os processos que garantem o crescimento vital do feto 3.

Desse modo, longe de ser originalmente um ego substancial - vale notar que o termo latino ego sob a pluma de Winnicott designa simplesmente, pelo que parece, o campo problemático do verdadeiro e do falso self, do eu (me) e do não-eu (not-me) - cuja unidade e identidade seriam estabelecidas desde o nascimento, o bebê para Winnicott é um ser cuja integração está em curso4. Winnicott destaca, a respeito desse tema, em um artigo de 1945, intitulado "O desenvolvimento afetivo primário", que não existe "necessariamente integração entre uma criança adormecida e uma criança acordada", e acrescenta que "cada vez que podemos sonhar e lembrar-nos do sonho é precioso, pois isso representa uma ruptura da dissociação". 5Trata-se, portanto, a partir do ambiente e de um potencial inato que revela "o self central ou autêntico", de compreender como o bebê adquire uma realidade psíquica pessoal, um esquema corporal pessoal e se torna capaz de se situar no espaço e no tempo6. Trata-se, em outras palavras, de compreender como o bebê se torna um existente (Dasein). Embora Winnicott permaneça relativamente elíptico sobre a maneira como ocorre a integração e, mais amplamente, a maturação do bebê, sabemos que o processo está estreitamente ligado ao colo (holding) e aos cuidados (handling) oferecidos pela mãe assim como ao seu olhar como espelho (Winnicott, 1967c/1976, p. 162). Desse ponto de vista, a integração advém fundamentalmente da imaginação, e o self é chamado, por conseguinte, de "imaginário"7.

Essa é, poderíamos dizer, a interpretação de Winnicott sobre a famosa frase de Freud "wo es war, soll ich werden". Mas, o ich ou o eu em questão designa mais exatamente um self (ou selbst), ou seja, o resultado de um processo cuja realização jamais é garantida. Para nos convencermos disso, basta considerar os efeitos da falta de sono em uma pessoa saudável, ou, então, as diferentes formas de dissociação psicótica. A integração (isto é, a unificação), a personalização, (isto é, a instalação da psique no corpo), e a relação de objeto são, portanto, os resultados de processos complexos que - como o acesso à heterossexualidade genital para Freud - podem sempre ser colocados em questão, em outras palavras, podem permanecer inacabados ou parciais.

 

3. Intrusões, verdadeiro e falso self

A continuidade de ser que caracteriza o self pode, de maneira geral, ser colocada em perigo pelo que Winnicott chama de intrusão ou invasão (impingements). Esses fenômenos suscitam reações mais ou menos violentas que são, ao mesmo tempo, soluções de continuidade na vida da criança8. O que está em questão aqui, para Winnicott, não é nem a simples ansiedade nem a angústia neurótica (anxiety), mas, essa angústia primitiva ou primitive agony que encontramos nos pacientes psicóticos e cujas diversas formas Winnicott classifica em função da quantidade de integração poupada pelo desastre9. Surge, então, a possibilidade de uma "distorção do ego" sob a forma do desenvolvimento de um falso self. De fato, ou os processos do self podem permanecer ativos, sem interrupção, seguindo o vetor do crescimento vital, pois se beneficiam de um ambiente bom o suficiente, ou o ambiente não é suficientemente bom. Nesse último caso, o falso self aparece como uma organização de defesa - que não deve ser confundida com os mecanismos de defesa do eu que Freud descreve e que se referem às pulsões do inconsciente - destinada a proteger o núcleo do verdadeiro self 10.

No artigo de 1960, intitulado: "Distorsion du moi en fonction du vrai et du faux self (Ego distortion in terms of true and false self)", Winnicott descreve o verdadeiro self com a ajuda de conceitos de espontaneidade e identidade pessoal: "ele é a posição teórica de onde provêm o gesto espontâneo e a ideia pessoal"; ele é a fonte de pulsões pessoais às quais está ligado um sentimento de realidade. No entanto, Winnicott nos diz que, "existe um grande número de indivíduos que são clinicamente sãos e cuja existência, entretanto, é vivida sob o signo da insignificância e do vazio". O falso self vem, portanto, acompanhado de um sentimento de irrealidade ou de um sentimento de inanidade11, como se a existência fosse uma comédia da qual ele faria o papel dos atores. Esse é o caso do pequeno Iiro, criança finlandesa, que tinha nove anos e nove meses quando Winnicott o encontrou, e que havia nascido, para grande desespero de sua mãe, com suas mãos e pés palmados (sindactilia congênita). Essa criança espantava o cirurgião que o operava e que o "achava muito cooperativo". Quando Winnicott lhe perguntou se ele nunca ficara bravo por ter sido operado, a criança respondeu: "Nunca fico bravo", e acrescentou: "Fui eu que pedi que continuassem a me operar, é muito melhor para trabalhar, ter dois dedos ao invés de quatro juntos, como antes". Ora, o recurso da cirurgia ortopédica era, sobretudo, uma obsessão materna, embora a própria criança manifestasse a necessidade de ser amada tal como havia vindo ao mundo, antes das intervenções cirúrgicas. A conduta do pequeno Iiro advém também dessa submissão (compliance) típica desse mecanismo de "self defense" (L. Dethville) que constitui o falso self12.

No entanto, essa submissão é mais ou menos acentuada, e Winnicott classifica as organizações do falso self segundo seu grau de distanciamento da saúde. Nos casos mais graves, como de esquizofrenia latente, o falso self é estabelecido como real a tal ponto que os outros o tomam pela pessoal real, mesmo que falte ao falso self "algo essencial". O doente, por exemplo, é incapaz de se comunicar de maneira viva e pessoal, e sua fala é irresistivelmente monótona. Na outra extremidade, no estado de saúde, o falso self é representado por uma atitude social polida, de boas maneiras e certa reserva13. O falso self é, portanto, um compromisso com as exigências da vida em sociedade sem que a pessoa seja escravo disso. Winnicott nos propõe a seguinte comparação: existe entre os atores "aqueles que podem ser si mesmos e que também podem interpretar um papel, enquanto que existem outros que podem interpretar somente um papel e que ficam completamente perdidos quando não estão desempenhando um papel, quando não os apreciamos ou não os aplaudimos". Da mesma maneira, alguns doentes não têm a possibilidade de ser eles mesmos14. Deve-se, então, distinguir os casos patológicos em que o falso self domina a existência individual e os casos não patológicos em que o falso self é um papel que assumimos e que deixamos conforme as circunstâncias. Dependendo do caso, o self fica, portanto, ou menos gravemente dividido entre um falso self e um verdadeiro self (Winnicott, 1989a/2000, p. 321). No caso de uma divisão extrema, o verdadeiro self fica totalmente distanciado da realidade exterior.

 

4. Falso self e inautenticidade

Gostaríamos, neste momento, de introduzir os conceitos fenomenológicos de autenticidade (Eigentlichkeit) e de inautenticidade (Uneigentlichkeit)15. Primeiramente, tentaremos contextualizar a ideia de falso self na problemática heideggeriana da decadência e da ditadura do on. Em um segundo momento, iremos nos situar sob o ponto de vista da concepção sartriana da inautenticidade como desejo de ser. Em être et temps, Heidegger afirma que o Dasein, em razão de sua constituição, "primeiramente e na maior parte das vezes não é si mesmo (Daß das Dasein zunächst und zumeist nicht es selbst ist)" (Heidegger, 1986, §25, p. 157). A autenticidade, o ser-si-mesmo autêntico (das eigentliche Selbstsein) é, portanto, "uma maneira de existir (eine Weise zu existieren)" (Heidegger, 1986, p. 323). Melhor ainda: a autenticidade é a possibilidade para o Dasein de ser o que ele é, ou seja, um ser-no-mundo que, enquanto clarão ou clareira do ser (Lichtung), é o lugar do ser (Dasein). Mas se o Dasein pode existir na forma da autenticidade, ele também pode existir na forma privativa da fuga e da inautenticidade. Neste último caso, o Dasein foge de si-mesmo enquanto ser-aí, enquanto abertura ao ser. A inautenticidade, na verdade, está intimamente ligada para Heidegger à decadência (Verfallenheitk) do Dasein, em outras palavras, à sua imersão no mundo da preocupação e à sua queda sob a dominação dos outros (in der Botmäßigkeit der Anderen), em outras palavras, sob a dominação anônima do "on".16 Portanto, o Dasein se fecha no falatório (Gerede) e no que Merleau-Ponty chama por sua vez de "palavra falada" (Merleau-Ponty, 1985, p. 229). O Dasein se alegra e se diverte como as pessoas se divertem e se alegram, acha revoltante o que as pessoas acham revoltante etc. (Heidegger, 1986, p. 170).

Porém, devemos ressaltar que essa existência inautêntica sob a dominação do "on", longe de ser desconfortável, oferece ao Dasein uma relativa segurança e paz de espírito. Se, de certa forma, os outros lhe confiscaram seu ser, assim como suas próprias possibilidades, pode-se dizer também que ficou desencarregado de seu ser (Seinsentlastung). Heidegger escreve sobre o Dasein descaído: "A pretensão que o 'on' tem de alimentar e levar uma 'vida' plena e autêntica oferece ao Dasein uma tranquilização (Beruhigung) para a qual tudo vai 'muito bem' e para quem todas as portas se abrem". Desse ponto de vista, a decadência aparece ao mesmo tempo como uma alienação (Entfremdung) e uma tentação (Versuchung). Pois, existir como o "on" existe permite ao Dasein escapar da angústia (Angst), e lhe permite crer que tem uma existência plena e autêntica (Heidegger, 1986, pp. 170 e 225). Ao contrário, a autenticidade é para o Dasein a possibilidade de assumir seu ser ao invés de fugir dele e, em particular, de assumir seu ser em sua possibilidade mais própria que não é outra para Heidegger senão a morte. A morte é sem dúvida uma possibilidade constitutiva do Dasein, "a da impossibilidade da existência em geral" que revela ao Dasein seu ser mais próprio (Heidegger, 1986, pp. 317-318). Escapando, desse modo, à dominação do "on", o Dasein está ao mesmo tempo diante da totalidade de seu próprio ser singular e diante da possibilidade de ser si-mesmo (Dastur, 2003, pp. 11-30).

Dessa forma, podemos ver delinear-se um parentesco incontestável entre Winnicott e Heidegger. 1) Ambos reconhecem a possibilidade de existir na forma inautêntica em função de um falso self que não é outro para Heidegger senão o poder anônimo do "on": o Dasein se submete, portanto, docilmente às exigências da sociedade à qual pertence. 2) Tanto para Winnicott quanto para Heidegger, esse modo de existência é o resultado de uma fuga, de uma organização de defesa, que tem a sua origem na angústia cujo paradigma é fornecido pela angústia suscitada pela morte. 3) Além disso, se a angústia sentida pelo Dasein não é evidentemente um acidente mas uma disposição afetiva constitutiva do Dasein, nada impede de pensar que tal disposição possa ser despertada no bebê por falhas do ambiente. 4) Por fim, a existência autêntica supõe que o Dasein assume sua mortalidade na angústia, tese encontrada por Winnicott à sua maneira quando conjectura, a partir de um ponto de vista terapêutico, a necessidade de uma regressão que permita ao paciente recomeçar e desenvolver seu verdadeiro self.

Se refletirmos agora sobre a concepção sartriana da inautenticidade, parece que um parentesco também pode ser estabelecido entre esta concepção e o pensamento de Winnicott. Certamente, como no pensamento de Heidegger, a ontofenomenologia sartriana vê o existente como um ser que não para de fugir de si, ou seja, de fugir do modo de ser que é o seu. Pois, confrontado à contingência e à vacuidade ontológica de seu ser, o existente é perseguido pelo sentimento de ser supérfluo e inconsistente. Portanto, o existente encontra-se diante de um desejo de ser rigorosamente contraditório na medida em que, enquanto para-si ou consciência de si, ele persegue o sonho irrealizável de uma existência que seria ao mesmo tempo justificada e que teria a consistência, a densidade ontológica do ser em si. Para explicitar essa tese, podemos nos apoiar na descrição - célebre não sem razão - do garçom de café no L'être et le néant. Sartre escreve:

Consideremos esse garçom de café. Ele tem o gesto vivo e insistente, um pouco preciso demais, um pouco rápido demais, ele se dirige aos consumidores com um passo um pouco vivo demais, ele se inclina com um pouco de zelo demais, sua voz, seus olhos, exprimem um interesse um pouco cordial demais em relação ao pedido do cliente (...). Toda a sua conduta nos parece uma brincadeira (...).

Sartre pergunta então: "Mas do que ele está brincando". E responde: "Não é necessário observar por muito tempo para dar-se conta: ele está brincando de ser garçom de café" (Sartre, 1976, p. 95).

Se prestarmos atenção, a conduta do garçom de café está longe de ser excepcional, muito pelo contrário. Pois ela ilustra a tentação permanente para o amante de brincar de ser amante, para o atormentado de brincar de ser atormentado, para o soldado de brincar de ser soldado etc., sem falar da mulher que brinca com a feminidade ou o homem com a virilidade e inversamente. Assim, o garçom de café encarna o desejo propriamente ontológico, que assombra o existente, de retirar a inconsistência e a contingência do seu ser. Brincando de ser garçom de café, o garçom de café aspira, por um lado, ser o que ele é. Ele procura dar-se o ser completo da coisa que é o que ela é, sem essa distância de si que é constitutiva da existência e que impede todo existente de coincidir consigo mesmo. Por outro lado, cumprindo a função que é a sua, e respondendo com cordialidade aos chamados dos consumidores, ele pode ter - mesmo brevemente - a ilusão de uma existência justificada, e, agindo dessa forma, suspender a sua contingência assim como seu nada de ser. Dessa maneira, exatamente como o magistrado que se exprime, se veste e age como um magistrado, o garçom do café se confere uma identidade que podemos chamar de factícia na medida em que, embora esteja de fato empregado como garçom de café, ele "exagera" e caricatura o papel - somos tentados a acrescentar: preestabelecido socialmente pelo "on" - que é o seu.

Essa conduta do garçom de café não é a simples manifestação de seu conformismo; mas, mais profundamente, ela responde ao desejo de escapar da angústia existencial que o habita. Ao contrário do ator que interpreta um papel tendo plena consciência que se trata somente de um papel e que o abandonará assim que a cortina se fechar, o garçom de café quer ser garçom de café. Ele pretende, portanto, ignorar o modo de ser que é o seu e que lhe impede de ser garçom de café da mesma forma que essa xícara é xícara. Seu projeto advém da má-fé, que nesse caso é uma mentira contada para si do existente em relação ao seu modo de ser. Assim, podemos encontrar em Sartre a concepção winnicottiana do falso self nessa fuga ontológica do existente que seu desejo de ser aliena e condena a uma existência inautêntica.

 

5. Conclusão

Por razões, no fundo, fáceis de compreender, os adolescentes se comportam em geral de maneira relativamente artificial. Nessa idade de transição, entre a infância e a maturidade, eles têm necessidade de seguir modelos (mimésis): caminham, vestem-se, divertem-se como os outros caminham, vestem-se ou divertem-se, e sua falta de naturalidade incomoda facilmente os adultos que não sabem mais como falar com eles. Evidentemente, essa maneira de ser não se limita aos adolescentes. Encontramos mutatis mutandis uma inautenticidade comparável em certas condutas patológicas. Assim, Karl Jaspers sublinha o caráter "falso, teatral, forçado" (Jaspers, 2000, p. 424) da conduta histérica e, alguns anos mais tarde, o psiquiatra suíço L. Binswanger (1881-1966), quando reflete sobre o maneirismo da esquizofrenia, recorre aos conceitos de autenticidade e inautenticidade17. Ele define, portanto, o maneirismo como um "não-poder-ser si-mesmo (Nicht-Selbstseinkönnen)", ligado à busca de um suporte, de um ponto de apoio em um modelo de comportamento ditado pelo "on". Sem dúvida, os três casos evocados - do adolescente, do histérico e do esquizofrênico - são bem diferentes uns dos outros. Certamente não têm a mesma gravidade e somente no último caso podemos falar de clivagem (Spaltung) psicótica. Mas sempre a inautenticidade da conduta implica a ideia de que um falso self substituiu o verdadeiro self e que o existente não é ele mesmo.

Como tentamos mostrar, a fenomenologia da existência nos oferece certos esclarecimentos, em particular, relacionando a inautenticidade a uma fuga ontológica do existente em relação a seu próprio ser. Na verdade, não é o sentimento agudo de sua inconsistência assim como de sua contingência que está na origem do maneirismo adolescente? No entanto, no caso da psicose, uma abordagem desse tipo parece insuficiente: os problemas que afetam o existente são muito mais graves e colocam em questão até sua identidade. Parece-nos que é aqui que a intuição winnicottiana se mostra preciosa: dando as costas para a egologia tradicional, Winnicott questiona a maneira como acontece a integração do bebê que se depara, desde a vida intrauterina, com angústias extremas às quais ele reage desenvolvendo um falso self. Portanto, a autenticidade é uma maneira de existir para Winnicott que supõe que o existente consiga, em último caso com a ajuda de um terapeuta, superar a angústia da própria existência. é por essa razão que o bebê precisa não somente de um seio que lhe dê leite, mas também e, sobretudo, de uma mãe protetora, ou seja, de uma good enougth mother.

Através dessa primeira reflexão, parece que se esboça uma articulação possível da fenomenologia da existência e da psicanálise winnicottiana: enquanto que as perspectivas de Heidegger e de Sartre advêm da ontofenomenologia e descrevem as determinações ontológicas de um ser em plena maturidade, mas cujo ser não se encontra menos em questão em seu ser, a de Winnicott é ontogênica ou ontogenética, no sentido em que se esforça para apreender a ontogênese de um ser imaturo que poderíamos considerar, em linguagem heideggeriana, como um Vor-Dasein, um pré-existente.

 

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Winnicott, D. W. (1979). La consultation thérapeutique de l'enfant. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1971; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1971b)         [ Links ]

Winnicott, D. W. (2000). La crainte de l'effondrement et autres situations cliniques. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1989; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1989a)         [ Links ]

 

 

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1 Tradutor de Husserl e de Medard Boss, publicou, em 2004, na Ousia, o libro L'Etre et la conscience, dedicado à psicologia e à ontofenomenologia sartriana, bem como, em 2009, um Dictionnaire Sartre nas Edições Ellipses. Sua próxima obra, a ser publicada em 2011, tem por título: L'Existant. Réflexions pour une anthropologie existentiell.
2Sabemos que, segundo M. Foucault, Ph. Pinel não libertou os loucos de suas correntes, muito pelo contrário. O médico participaria desse novo encarceramento da loucura nos manicômios e dessa objetivação da liberdade dos loucos que víamos outrora como estranhos ao Ser, e que vemos doravante como "estranho em relação a si, alienado". Longe de ser desprezível, essa última perspectiva talvez mereça ser reexaminada (Foucault, 1972, p. 535).
3Winnicott, 1958f/1969, p. 132. Winnicott também escreve: "o verdadeiro self provém da vida dos tecidos corporais e do jogo livre das funções do corpo, inclusive o do coração e da respiração", (Winnicott, 1965b/1970, p. 126).
4Para G. Guillerault, a noção de self constitui o lugar de um encontro possível com as posições de F. Dolto "que tampouco deixou de perseguir a autenticidade. Indo, nessa via, a ponto de recorrer à distinção (lacaniana) do sujeito e do eu (chegando a fundá-la conceitualmente à sua maneira), opondo dessa forma a autenticidade que seria a do sujeito, à vaidade dissimulada e mentirosa do Eu" (Guillerault, 2007, p. 186)
5"O desenvolvimento afetivo primário", Winnicott, 1958a/1969, pp. 62-64.
6"A teoria da relação pai-bebê", Winnicott, 1958a/1969, p. 368. Notemos que esse interesse pela vida do bebê produz um eco do lado dos fenomenólogos como testemunham os cursos que Merleau-Ponty consagra entre 1949 e 1952 à psicologia da criança. Nessa ocasião, o autor da Phénoménologie de la perception se indaga sobre o nascimento como início de uma consciência e sobre a constituição do esquema corporal a partir de um corpo bucal e de um corpo respiratório. Evidentemente, Merleau-Ponty não cita nominalmente Winnicott, mas se refere aos trabalhos de Anna Freud e de Mélanie Klein (Merleau-Ponty, 2001, pp. 101, 313 e 355).
7"Sem dúvida, podemos descrever em outros termos essa parte obscura do processo de maturação. Contudo, se quisermos expressar o fato de que um novo ser humano começou a existir e a acumular experiências que podemos qualificar como pessoais, devemos postular os rudimentos de uma elaboração imaginativa de um funcionamento puramente corporal" (Winnicott, 1965n[1962]/1970, pp. 14-15). "L'esprit et ses rapports avec le psyché-soma", Winnicott, 1958a/1969, p. 137.
8"Le traumatisme de la naissance et de l'angoisse", Winnicott, 1958f/1969, p. 132.
9"La préoccupation maternelle primaire", Winnicott, 1958a/1969, p. 289. Winnicott, 1989a/2000, p. 325.
10"De la régression au sein de la situation analytique", Winnicott, 1958a/1969, p. 265. "Distorsion du moi en fonction du vrai et du faux 'self'", Winnicott, 1965b/1970, p. 121. "L'esprit et ses rapports avec le psyché-soma", Winnicott, 1958a/1969, p. 137.
11"Distorsion du moi en fonction du vrai et du faux 'self'", Winnicott, 1965b/1970, p. 126.
12Winnicott, 1971b/1979, p. 24; Winnicott volta, em 1970, a falar sobre esse caso em seu texto "Sur le corps et le self ", Winnicott, 1989a/2000, pp. 266 e 277. Dethiville, 2008, p. 132.
13"Distorsion du moi en fonction du vrai et du faux 'self'", Winnicott, 1965b/1970, p. 119.
14"Distorsion du moi en fonction du vrai et du faux 'self'", Winnicott, 1965b/1970, p. 128.
15Devemos reconhecer que o termo autenticidade traduz de maneira discutível o substantivo alemão "Eigentlichkeit ".
16Heidegger, 1986, p. 223. Seria necessário distinguir a decadência no cotidiano e a queda na inautenticidade, pois, a existência cotidiana não implica necessariamente que o Dasein se perde no "on". (Heidegger, 1993, §38).
17Binswanger, 2002. Binswanger também descreve o delírio de um esquizofrênico como uma forma de decadência (Verfallenheit), na qual o doente está subjugado a personagens ou poderes estranhos, e sublinha a especificidade desse modo de existência inautêntico. Binswanger, 1993, pp. 21-22.

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