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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.5 no.2 São Paulo  2010

 

Artigos

 

O pai e a integração da instintualidade

 

The father and the integration of instinctuality

 

 

Claudia Dias Rosa

Psicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC–SP, Doutoranda por essa mesma Universidade, Professora da Escola Winnicottiana de Psicanálise, Coordenadora do SAP (Serviço de Atendimento em Psicanálise) do CWSP e do CWCamp.
e–mail: claudia@centrowinnicott.com.br

 

 


Resumo

Este estudo pretende discutir, à luz da teoria de Winnicott, aspectos da contribuição do pai para a importante tarefa da integração da instintualidade, especificamente da destrutividade inerente ao impulso amoroso primitivo, bem como examinar os prejuízos advindos de suas falhas no desempenho de desse papel. Essa integração, no início da vida humana, ocorre fundamentalmente no interior da relação mãe–bebê e, no decorrer do processo de amadurecimento, passa a incluir e a necessitar também da participação paterna. Ilustrando o tema, utilizarei algumas passagens do caso B. descritas por Winnicott em seu livro "Holding e Interpretação", tanto as que exemplificam as dificuldades encontradas pelo paciente para alcançar o estágio do complexo de Édipo, tendo em vista as falhas na integração de sua impulsividade, quanto aquelas que apresentam aspectos do tratamento. oferecido por Winnicott para a retomada do curso do amadurecimento desse paciente.

Palavras–chave: Winnicott, pai, integração da instintualidade, complexo de Édipo.


Abstract

This study purports to discuss – in the light of Winnicott's theory – some features of the contribution of the father for the important task of instinctuality integration, especially the integration of the destructiveness inherent to the primitive love impulse, as well as to examine the adverse effects brought about by the father's failure to play out that role. That integration, at the early stages of life, happens fundamentally within the mother–baby relation, and during the maturing process comes to include and require also the father's participation. So as to illustrate the topic I will use some passages of case B. described in Winnicott's Holding and Interpretation that exemplify the difficulties found by the patient to reach the Oedipus complex stage, given the failures in the integration of his impulsiveness, and passages that present features of the treatment offered by Winnicott to get the patient back on the maturing track.

Keywords: Winnicott, father, instinctuality integration, Oedipus complex.


 

 

O relato feito por Winnicott, dos últimos seis meses da análise de B. mostra como o analista lidou com esse paciente, desde a sua perspectiva teórica, tendo em vista que este não havia realizado de maneira satisfatória, e em tempo próprio, as conquistas relativas ao estágio do concernimento, ao que tudo indica devido a falhas primitivas na integração da instintualidade. Durante o tratamento, B. foi vagarosamente se apropriando de sua instintualidade, chegando a fazer experiências pessoais, excitadas, mais espontâneas e com afeto envolvido, tendo podido inclusive ingressar na problemática edípica. Ao iniciar o relato do caso,1 Winnicott afirma que "as anotações referem–se ao trabalho feito entre o período em que a excitação se instalou na transferência, mas não foi sentida, e a vivência da excitação" (1986a[1972/55]/2001, p. 29).

Embora presentes desde o começo da vida, as tensões instintuais, assim como diversos outros aspectos do viver, são inicialmente externas à pessoa do bebê e precisam ser vividas como experiências pessoais, ganhar realidade, para assim serem integradas à personalidade. No início da vida, as experiências que possibilitam essa integração ocorrem fundamentalmente no âmbito da relação de dependência mãe–bebê, naturalmente ancorada pelo pai ou algum substituto. Mas haverá um momento, no decorrer do amadurecimento, em que essa integração também necessitará e dependerá, em grande parte, da participação paterna, sobretudo em fases mais amadurecidas, como nos estágios do concernimento e no edípico, quando a identidade unitária2 torna–se uma conquista mais consistente, e o pai, como terceira pessoa, passa a fazer sentido na vida da criança.

Focalizarei neste artigo, a partir do caso B., aspectos que me parecem relevantes para a compreensão da contribuição do papel paterno, bem como de suas falhas, na importante tarefa da integração da vida instintual na personalidade, especificamente do aspecto destrutivo da instintualidade, que é inerente ao impulso amoroso primitivo.

Em B. as dificuldades no processo de integração dos impulsos amorosos e destrutivos advieram de falhas de ambos os pais: as mais primitivas deveram–se à mãe e eram relativas à amamentação e ao conjunto dos cuidados básicos necessários no início da vida, que levavam B. não a uma experiência de integração, mas a um sentimento de aniquilação. Tudo leva a crer que a mãe de B. roubou–lhe o impulso. Não foi a mãe que se adaptou a B., mas sim B. que precisou adaptar–se à necessidade de perfeição da mãe. Para esta, não eram os impulsos originados das necessidades do bebê que valiam, mas sim aquilo que ela queria suprir para sentir–se perfeita.3 Inflexível, a mãe não funcionou como objeto subjetivo. Não houve comunicação efetiva, o gesto caia no vazio. Uma decorrência direta desse fato é que o impulso pessoal, fonte da futura capacidade para a sexualidade e para a agressividade, ficou inibido e não pôde ser integrado na personalidade.

Com isso, B. perdeu contato com sua impulsividade pessoal e qualquer gesto ou situação que apontasse uma espontaneidade passou a significar perigo, uma vez que a tensão instintual, ficando externa à pessoa do bebê, era sentida como uma invasão e/ou exposição. Por meio da cisão, ele protegeu algo do si–mesmo verdadeiro, fonte da espontaneidade, contra as exigências que advinham da mãe perfeita. A excitação passou a se dar por via externa e não a partir do impulso pessoal, de modo que B. tornou–se assim uma pessoa reativa. Khan analisa essa questão:

Em relação ao mundo externo, ele era meramente reativo. Em relação ao seu self verdadeiro, se é que se pode usar esse termo, ele tinha apenas uma postura protetora. Ele nunca conseguia alcançá–lo nem viver a partir dele. Isso explica as suas queixas de falta de espontaneidade e de iniciativa. Winnicott atribuiu essa inalterável dissociação à experiência de amamentação "ideal" na infância, que roubou do paciente toda a iniciativa de desejo e necessidade (2001, p. 18)

Um pouco mais tarde, B. deparou–se com um pai que igualmente não lhe forneceu as condições necessárias para a apropriação da impulsividade. Basicamente: não deu segurança ao filho, não estabeleceu com ele uma relação íntima, não se colocou como um obstáculo na relação do menino com a mãe, era sarcástico e debochava de B., não o empossou no lugar de rival, nulificou seu lugar de potência etc.

Vejamos de que maneira essas dificuldades se manifestaram na vida do paciente: B. era um homem de 30 anos, médico, casado, pai de dois filhos, cuja esposa não aceitava sua necessidade de dependência.4 Ela tinha um amante, fato que ele conhecia, e ele mesmo, durante a época do tratamento, iniciou uma relação extraconjugal. O curioso é que, apesar de toda essa configuração de suposta triangulação, B. não rivalizava, não sentia ciúmes, era incapaz de ter ódio ou amor verdadeiro, não sabia se ocupava o lugar de homem ou de mulher em sua família, não possuía desejos, sua potência sexual – apesar de intacta – era desprovida de afeto, não conseguia fazer amizade com homens, não podia aguentar perdas, não conseguia competir. Ou seja, nada do que implicasse aquisições mais amadurecidas, de quem é capaz de fazer a experiência da situação edipiana, dizia–lhe respeito; ele não padecia desse tipo de questão, pois nada disso era sentido como pessoal e tampouco podia ser objeto de experiência.

Diante de qualquer tipo de enfrentamento que por acaso surgisse, o que realmente o preocupava era, por exemplo, o medo de ser abandonado, e não a possibilidade de lutar, competir, odiar, arriscar–se, ocupar um lugar qualquer. Suas ansiedades, nesse sentido, eram de uma ordem muito primitiva: sentia–se irreal, queixava–se de falta de iniciativa, de objetivos, de espontaneidade, de esperança, de originalidade. Qualquer interpretação, particularmente no período inicial da análise, que enfocasse questões edipianas, nas quais, entre outras coisas, a instintualidade integrada é um pré–requisito, seria no mínimo falsa e levaria B. a falsas soluções.

É importante destacar que o conflito edípico diz respeito à administração da vida instintual nas relações interpessoais. Para viver esse tipo de conflito, o indivíduo tem que ter alcançado uma integração pessoal e instintual que o faz existir e sentir–se existindo como uma pessoa inteira. Se, como no caso de B., o indivíduo chegou à idade adulta sem ter integrado a destrutividade, que pertence à natureza humana e faz parte do impulso amoroso primitivo; se, até então, ele não integrou a agressividade pelo exercício incompadecido em que ocorre a fusão do impulso instintual com a motilidade, nem pôde destruir o objeto para criar a externalidade e tornar–se capaz de fazer uso dele, então a capacidade de odiar e/ou rivalizar não pode se estabelecer. Se assim for, não há como ele, de um momento para o outro, por exemplo, experienciar ódio contra o pai ou querer tomar o lugar dele, que são características básicas das vivências edípicas.

O fato é que, antes de poder lidar com um terceiro, B. precisava primeiramente retornar ao colo,5 recuperar seu impulso pessoal para, depois, integrar a instintualidade e conseguir amadurecer na direção das relações interpessoais. Winnicott percebe isso e conduz toda a primeira fase do tratamento no sentido de ser como uma mãe, dando holding a B. e possibilitando regressões. O que ele fez, durante essa longa fase inicial, foi esperar e esperar até que algo partisse realmente de B. – um impulso, uma excitação, um afeto, um gesto –, para, a partir daí, comunicar–se com isso: essa era a forma pela qual o paciente começaria a existir a partir de si mesmo.

É nesse sentido que Khan comenta, no prefácio ao livro "Holding e Interpretação", que o paciente, durante grande parte do tratamento com Winnicott, raramente fez mais do que existir, e que esse estado foi integralmente aceito por Winnicott como condição necessária para que B. pudesse vir a existir na vida. B. recusava todo tipo de relação interpessoal com Winnicott bem como era incapaz de fazer qualquer movimento que fosse espontâneo, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, aceitava de maneira total a situação e o espaço analítico. Foi este paradoxo, aceito e mantido durante "treze anos"6 pelo analista que, segundo o comentador, desafiou Winnicott nesse caso. A compreensão de que o paciente, antes de poder se relacionar com um outro diferente dele, precisava do outro como objeto subjetivo para conseguir existir, também permitiu a Winnicott nunca interpretar o retraimento – expresso na intensa atividade mental do paciente, na negação do contato ou no sono que sempre lhe vinha quando o processo de tratamento se aproximava de qualquer tipo de troca – como uma intenção hostil de B. em relação ao analista. Fosse esse o caso, estaríamos em condições de dizer que B. estava maduro o suficiente para se relacionar com Winnicott como uma terceira pessoa, para aceitar o fato de uma agressividade pessoal, para odiar o analista, para entrar no jogo das relações interpessoais. Mas não era esse o caso. Desde essa mesma perspectiva, Khan reitera a impropriedade de se pensar as questões desse paciente, nesse momento do tratamento, no âmbito das relações edipianas; diz ele que considerar essa "situação em termos conflitantes de ambivalência seria uma simplificação excessiva e falsa" (Khan, 2001, p. 19).

Foi somente após esse período de colo, na última fase da análise, aproximadamente nos seus dois últimos, que B. começou a manifestar uma excitação integrada, a ter vivências em que psique e soma estavam relacionados, e a sentir–se mais concernido. Winnicott assinala que


o primeiro sinal desse novo desenvolvimento foi relatado por um sentimento inteiramente novo, um sentimento de amor pela filha... Ele teve tal sentimento quando voltava para casa, vindo do cinema onde tinha chorado. Nesta semana ele havia chorado duas vezes, e isso lhe parecia um bom sinal, já que ele era incapaz tanto de chorar quanto de rir; da mesma forma como era incapaz de amar. (1986a[1972/55]/2001, p. 29)

Esse e outros episódios do mesmo tipo dão então início a uma nova etapa do tratamento na qual Winnicott passa a ocupar também o lugar de pai e a aproximar–se das questões relativas às relações mais tipicamente edípicas. Devo assinalar que todo o tratamento foi marcado por regressões esporádicas, e o analista, mesmo durante essa nova fase, precisava ser ora a mãe que dava holding, ora o pai que, ao desempenhar seu papel de forma satisfatória, ajudava a tornar real, para B., o contexto de sua vida e das relações interpessoais relativas a ela.

No início da vida, quando tudo que é relativo à constituição do bebê ocorre no interior da relação com a mãe, um dos importantes papéis que cabe ao pai desempenhar é ser como uma mãe substituta para o bebê.7 No que diz respeito à relação inicial de B. com seu pai, fica claro que, já nesse papel, o pai de B. foi inconsistente. Apesar de esse não ter sido um aspecto muito desenvolvido no tratamento, o analista reconhece que, embora o pai possa ter sido materno em certos momentos, ele "só conseguia aceitar o encargo até certo ponto, mas depois, como sempre, passava–o para a mãe. A mãe não lhe servia de nada, pois já havia fracassado" (1986a[1972/55]/2001, p. 33). Sua lembrança era a de "viver agarrado às saias de minha mãe" (1986a[1972/55]/2001, p. 65), pois no caso de distanciar–se sabia que poderia não haver ninguém à sua espera, se precisasse retornar.8 O resultado é que B. não podia contar com a mãe, nem com o pai fazendo as vezes de mãe. Se o pai tivesse assumido algo relativo a esses cuidados maternos iniciais, talvez a possibilidade do retorno ao colo não tivesse ficado tão prejudicada.

Um problema sobressalente em B. é que não havia a presença consistente de um pai à sua frente: ele não tinha para onde retornar e tampouco para onde ir. O pai que faz a sua parte aponta um novo caminho, apresenta um contexto diferente dos braços da mãe, amplia os horizontes infantis. Há que se considerar que quando a criança está apta a distanciar–se da mãe, é importante que haja a presença confiável do pai que a chama para junto de si. Isso talvez explique, do ponto de vista das falhas paternas, a falta de objetivos de B. e também a sua impossibilidade de arriscar–se. Sobre esse ponto, Winnicott fala a B. que é como se "você estivesse andando pela primeira vez e não tivesse o pai presente para ajudá–lo ao aventurar–se a deixar sua mãe. Deixá–la significaria simplesmente afastar–se dela sem ter nenhum lugar para onde ir" (1986a[1972/55]/2001, p. 65). A insegurança ambiental já vivida no começo da vida foi, nesse sentido, reforçada pela omissão da figura paterna.

A criança saudável arrisca–se a deixar o colo da mãe aventurando–se na direção do pai. Há muita ousadia contida nesse movimento cujo sentido é o de lançar–se ao mundo pela primeira vez, ultrapassando os contornos do colo materno em direção a um espaço, físico e emocional, ainda pouco conhecido. A criança nada sabe a respeito do que vai experimentar ao ausentar–se do colo que lhe é familiar, e a coragem desse ato é garantida por pelo menos dois aspectos: o primeiro, como já foi dito, é que para realizá–lo ela precisa ter certa dose de segurança pessoal incorporada, que – no sentido específico aqui focalizado – significa ter adquirido a confiança de que poderá retornar à mãe quando precisar e que reencontrará em seu colo a familiaridade já experimentada. A segunda garantia é dada pela presença do pai à sua frente, que puxa a criança para perto dele. Novo e desafiador, o pai que teve uma presença assídua e efetiva no lar é também confiável, e é ele quem se apresenta como a ponte segura para o mundo fora de casa. Na prática, diz o autor, "a criança precisa sair do colo da mãe, mas não daí para o espaço sideral; esse afastamento deve dar–se em direção a uma área maior, mas ainda sujeita a controle: algo que simbolize o colo que a criança abandonou" (1965p[1960]/2001, p. 133).

Além de ser omisso, o pai não conseguia se aproximar de B., sair de seu próprio modo de ser e de pensar, e entrar em contato com o universo do filho: sempre foi externo ao mundo de B. A falta de comunicação entre os dois era patente, e Winnicott sustenta isso como fato real para o paciente: "A dificuldade é que você não consegue pensar no seu pai entrando no seu mundo ou mesmo respaldando esse mundo". B. responde: "A minha crítica ao meu pai é válida. Ele nunca conseguiu entrar no mundo de quem quer que fosse. As pessoas simplesmente tinham que entrar no mundo dele" (1986a[1972/55]/2001, p. 165).

Uma das consequências da falta de comunicação, de intimidade e do não posicionamento de seu pai é que este não se tornou confiável como terceira pessoa. Portanto, nesse momento da análise, ocupar o lugar da terceira pessoa, estar presente e vivo, significava ser confiável e se apresentar como uma alternativa à presença inconsistente do pai, e essa era uma premissa de Winnicott para ajudar seu paciente a começar a enfrentar os conflitos interpessoais.

É devido à confiança que a criança tem na relação com o pai que a triangulação edípica pode ser experienciada, pois, sem uma base de segurança, ela tem poucas condições de fazer uma experiência genuína de rivalidade. É pelo fato de o pai ser presente e confiável que o menino pode, por exemplo, experimentar odiá–lo e desejar destituí–lo, e é igualmente por causa dessa mesma confiança que o pai pode fazer valer sua autoridade, elevar a voz, impedir, cercear, discordar e brigar com a criança. Se não há o pré–requisito da confiança, todas essas importantes e necessárias intervenções paternas facilmente se tornam vivências esvaziadas ou, por outro lado, aterrorizantes, e deixam a criança sem alternativa, danificando uma experiência de confronto que, a princípio, seria boa e resultaria em amadurecimento pessoal.

O pai de B. era sarcástico e irônico, e era por essa via que seu antagonismo se manifestava: não havia transparência nem intimidade e tampouco lugar para o confronto direto. Ele evitava o papel de pai forte e B. nunca teve com quem rivalizar. Winnicott diz:

Você nunca viu seu pai como um homem a ser odiado, um rival, alguém que você temesse. Quer isso tenha ocorrido por sua causa, por causa dele ou de ambos, o fato é que você não teve essa experiência e, portanto, nunca se sentiu maduro". (1986a[1972/55]/2001, p. 105)

A imaturidade de B., à qual o analista se refere nesse momento, diz respeito a B. não ter tido a oportunidade de conquistar o sentimento de potência pelo fato de não ter sido colocado pelo pai como seu rival frente à luta pelo amor da mãe. B. diz: "Meu problema é como encontrar uma luta que nunca houve" (1986a[1972/55]/2001, p. 224). Ao empossar o filho no lugar de rival, um pai confere potência ao menino. Winnicott diz a B.:

seu pai nunca lhe deu a honra de reconhecer sua maturidade proibindo as relações sexuais com sua mãe, mas ele também o privou da alegria e do prazer da rivalidade, assim como da amizade que surge da rivalidade entre homens. Então, você teve que desenvolver uma inibição geral. (1986a[1972/55]/2001, p. 106)

B. percebe isso e as implicações da ausência paterna em sua vida: "Se nunca experimentei a proibição de meu pai, tive que encontrá–la em mim" (1986a[1972/55]/2001, p. 105). Disso resulta, em grande parte dos casos – e B. é um exemplo típico –, uma forte inibição do impulso, um autocontrole excessivo e a perda da espontaneidade e da intimidade com a experiência agressiva. "Um pai forte capacita a criança a correr o risco, ao se pôr no caminho ou achar–se lá para corrigir as coisas ou preveni–las através de sua fúria" (1989vt[1968]/1994, p. 184).

Ao não temer conversar com B. sobre os aspectos destrutivos inerentes às relações humanas – apontando a natural destrutividade presente no próprio B., embora encoberta – e também possibilitar, na relação entre eles, experiências de confronto, Winnicott ia colocando um sentido de força, segurança e proteção no ambiente, permitindo, assim, que o impulso destrutivo, e as ideias que o acompanham, pudessem aparecer e ser vividos. Garantir a indestrutibilidade do ambiente é justamente um aspecto importante da presença e ação paternas no estágio do concernimento, quando a criança descobre–se destrutiva e precisa contar com a força do ambiente para poder continuar a sê–lo. E este é, inclusive, um pré–requisito para o ingresso nas vivências edípicas.

A força do pai funciona aqui também como proteção para a criança diante de uma nova fase da instintualidade relacionada à descoberta da sexualidade com suas fantasias decorrentes, fantasias estas que a criança ainda não tem condições de controlar sozinha. Se, por estar desprotegida, a criança temer demasiadamente sua excitação instintual, ela não conhecerá a força e a real qualidade dos seus impulsos, e constantemente se defenderá de sua agressividade por não se sentir segura e livre para viver as diversas experiências de sua vida instintiva.

Outro aspecto relativo a esse ponto é que o pai, homem real, ao mesmo tempo em que dá potência ao filho ao aceitar rivalizar com ele, não desautorizando nem desmerecendo suas fantasias, também realiza o ato objetivo de intervir na consecução dos desejos que a criança nutre em relação à mãe. Nesse sentido, o pai vai ajudando o filho na importante tarefa da discriminação entre fato e fantasia. A questão envolvida aqui é que as fantasias da criança nesse momento são muito maiores do que sua real potência sexual. O pai interventor traz, sim, ansiedade de castração, produzindo medo e ódio. Mas, por outro lado, traz também alívio, pois, se ele não estivesse lá para intervir, a criança estaria exposta à sua real impotência. Há aqui um novo sentido, que vale a pena ressaltar, advindo da teoria winnicottiana para a angústia de castração: "O medo à castração pelo genitor rival torna–se uma alternativa bem–vinda para a angústia da impotência" (1988/1990, p. 62). Desse modo, a angústia de castração é, em Winnicott, também uma defesa contra a exposição, para a própria criança, de sua real imaturidade. B. não teve nenhuma dessas experiências: lutar com o pai na fantasia, que ele na verdade pouco ousava ter, significava, na realidade de sua imaturidade, realmente matar o pai ou ser ele mesmo morto. Não haveria sobreviventes.

Além de já ter uma deficiente capacidade para a excitação devido às falhas maternas iniciais, B. ficou impedido de uma importante chance de recuperá–la e vivenciá–la devido às falhas paternas. Ao não intervir, não se colocando como um obstáculo entre B. e a mãe, o pai impossibilitou que o filho experimentasse o conflito edípico com todas as consequências que essa experiência traz para o amadurecimento: a possibilidade, talvez pela primeira vez, de sentir ódio por uma pessoa, de sentir–se excluído, de encontrar uma forte via de identificação com o pai, de ter limites, de ultrapassar obstáculos, de ganhar potência pela experiência da rivalidade vivida etc.

B. não pôde contar com a intervenção paterna, e Winnicott aponta uma das consequências que a falta de um pai que desempenhasse o papel de interditor causou em sua vida: "seu pai não cumpriu seu papel, e você, portanto, não tem ódio nem medo do homem e está de volta à antiga posição: ser frustrado pela mulher ou desenvolver uma inibição interna" (1986a[1972/55]/2001, p. 113). Esse ponto torna a aparecer quando Winnicott fala para B. que, se o pai tivesse se interposto entre ele e a mãe, "ele (o pai) seria uma pessoa frustrante; você teria aprendido a lidar com ele, e ele o teria libertado para todas as outras mulheres" (1986a[1972/55]/2001, p. 111).

O fato de o pai de B. ter falecido quando ele era ainda adolescente prejudicou ainda mais seu sentimento de ter um pai vivo que pudesse fazer a sua parte nos cuidados com o filho e que sobrevivesse aos seus possíveis ataques. B. sentia uma profunda desesperança quanto à possibilidade de relacionar–se com uma figura de autoridade que, ao ser forte, dá proteção e põe limites, e que, ao se interpor, capacita a criança a aceitar o desafio da rivalidade, da perda e do triunfo decorrentes.

A doença do pai e, por causa disso, a necessidade de ser cuidado, incrementou a impossibilidade da experimentação da rivalidade e do sentimento de raiva por ele. B. não sentiu dor quando o pai morreu. Winnicott diz: "Você não poderia sentir dor por um pai que nunca matou" (1986a[1972/55]/2001, p. 106). Em outro momento, retoma a questão:

É impossível aceitar a morte de seu pai, a menos que você seja capaz de incluir a sua raiva por ele e a morte dele no sonho que você o mata. Ele, estando doente, tinha de ser protegido, e sua proteção o manteve vivo todo esse tempo. (1986a[1972/55]/2001, p. 188)

A morte do pai será aceita por B. no decorrer da análise, na medida em que sua destrutividade está mais integrada e que Winnicott assume o lugar do pai vivo que não precisa ser cuidado, mas, ao contrário, tem suficiente força para aguentar viver com ele uma relação efetiva na qual as ambiguidades estão presentes, podem aparecer e não o destroem – nem destroem B.

B. relaciona sua incapacidade de brincar livremente, de rir e de ser espontâneo com a impossibilidade que seu pai sempre teve de entrar em seu mundo imaginativo. Ele conta ao analista sobre o enorme esforço que fazia para abandonar o que era simplesmente uma discussão intelectual sobre a brincadeira e de como se sentia entediante "porque falo ao invés de brincar" (1986a[1972/55]/2001, p. 166) e complementa essa ideia afirmando que: "estou tentando me livrar da abordagem intelectual de meu pai. O ideal seria poder brincar. Isso ainda é irrealizável para mim... Não sou capaz de efetivar o uso de substitutos do real" (1986a[1972/55]/2001, p. 166). Ocorre a ele, nesse instante, a ideia marota de bater em Winnicott, e ele relata que isso seria como bater realmente em Winnicott, embora não soubesse exatamente a razão desse ato. B. lembra nesse momento que se acertasse um golpe em seu pai, este certamente se fecharia. Nas palavras de B.: "Ele simplesmente não estaria presente. É diferente de brincar, onde a agressão pode entrar" (1986a[1972/55]/2001, p. 167). Winnicott faz valer a pequena brincadeira "rebelde" esboçada por B.: "Na brincadeira comigo, que você descreve, nós estávamos nos batendo sem nenhum objetivo" (1986a[1972/55]/2001, p. 167).

Chegando a esse ponto da análise, talvez seja esclarecedor retomar as idéias examinadas até aqui e afirmar que, da perspectiva winnicottiana, um aspecto central da questão edípica repousa num tema maturacional,9 quer seja o da discriminação entre fato e fantasia, o qual depende, como muitos outros, da forma como o ambiente trata e responde às questões que surgem na vida infantil.

Quando a criança cresce e amadurece o suficiente, a ponto de poder ser assolada por fantasias, desejos e relações edipianas, a discriminação entre fato e fantasia (já necessária em épocas precedentes, por exemplo, no estágio do uso do objeto) assume um valor preponderante e específico. Aqui novamente o ambiente tem seu papel, não mais no sentido das fases anteriores da vida – quando a dependência é absoluta, e o ambiente favorece e sustenta a constituição do eu integrado –, mas numa etapa posterior do amadurecimento, quando, uma vez integrado, o indivíduo precisa do ambiente para aprender a administrar suas relações com outras pessoas inteiras e significativas para ele, incluindo aí todo o mundo imaginativo que perpassa esses relacionamentos.

O que pretendo afirmar é que, entre outros aspectos, a situação edípica amadurece, a ponto de ser ultrapassada, se a criança puder encontrar, na experiência das relações efetivas, a sustentação e, ao mesmo tempo, o contraponto de suas fantasias.10 A forma como os pais – notadamente o pai, nesse momento, dado ser ele o protagonista da mudança das relações duais para as triangulares – lidam com essa situação é o que permitirá à criança fazer a separação entre o que são seus desejos e o que é a realidade das relações familiares. O que complica a situação edípica e leva ao enrijecimento das defesas, ou seja, à neurose, é o fato de haver a ameaça de a fantasia tornar–se realidade. Na perspectiva de Winnicott, o problema edipiano não repousa, precipuamente, no sonho e no desejo de matar o pai ou, no caso feminino, de amar o pai e querer afastar a mãe (dito em largos traços),11 mas justamente no de não poder sonhar, porque o sonho pode vir a tornar–se real. A maturidade da criança nessa época só permite, no exemplo do menino, que o sonho de matar o pai possa ser sonhado se, primeiro, o pai não se esquivar de ocupar o lugar de oponente na luta, dando ao filho a oportunidade da rivalidade e, segundo, se o pai tiver condições e maturidade suficientes para não tornar ele mesmo real a fantasia da morte de um deles. Em certo momento Winnicott diz a B.: "anteriormente havia apenas a idéia de morte e, portanto, não valia a pena aceitar a situação de rivalidade" (1986a[1972/55]/2001, p. 136).

O menino que leva a sério a morte do pai no confronto fantasiado não pode mais sonhar, e tampouco pode brigar ou amar – já que a disputa leva à morte –, e não pode, além disso, ocupar um lugar próprio relativo a essa nova etapa, que, nos bons casos, levaria adiante o processo de amadurecimento pessoal. Em última instância, a criança impedida da fantasia não pode chegar à descoberta fundamental, no terreno que abarca a variada gama das relações interpessoais, de que fantasia é fantasia, e realidade é realidade. Na situação destes que ficam impedidos de sonhar, o sentimento de impotência toma conta do indivíduo. De modo contrário, o menino que pode sonhar matar o pai se vê, em certo momento, nessa posição, ou seja, se encontra tão forte e capaz que até poderia fazer isso: o sonho e a criatividade aí envolvidos elaboram e fornecem a potência para a experiência de rivalidade, esta última tendo ainda que ser relativizada na realidade objetiva. Em suma, somente aqueles que puderam matar o pai na fantasia chegam à descoberta de que, após a luta, ambos permanecem vivos na realidade: muitos dos necessários acordos internos relativos à ambivalência dos sentimentos advêm dessas primeiras experiências de confronto com o pai.

Talvez um aspecto central da falha do pai de B. tenha sido justamente o de evitar, das mais diversas maneiras, os confrontos próprios da relação pai–filho, impedindo assim que B. vivenciasse os variados aspectos contidos na experiência de rivalidade. Sua imaturidade para ser pai mostra–se também no fato de ele mesmo alimentar a ideia da morte real frente a um combate, de tal forma que ele só entrava em uma disputa se soubesse que seria o vencedor – o que anulava ainda mais a possibilidade de luta do filho com o pai, além de eliminar todas as outras possíveis decorrências de uma batalha: sair mutilado, ser derrotado etc. No decorrer da análise, B. vai se dando conta dessa situação e descreve a desesperança que ficou registrada nele com respeito às disputas:

ele (o pai) só permitia o confronto se soubesse que iria vencer. Nesse contexto de luta, parece absurdo lutar se sabemos que vamos perder. Não consigo compreender como alguém podia satisfazer a honra morrendo em duelo. Parece tão sem sentido. (1986a[1972/55]/2001, p. 134)

Ao que Winnicott responde:

Do seu ponto de vista, esse tema só pode ser discutido em termos de lutas reais. Você não é capaz, no presente, de empregar a fantasia, o jogo, ou o valor de distensão que o touché do duelista representa para a situação. No caso de luta entre você e seu pai, você só consegue pensar na morte real de um de vocês. Portanto, antes de lutar, você tem que ter certeza que o prêmio vale a pena. (1986a[1972/55]/2001, p. 135)


Dessa maneira o analista contextualiza a imaturidade de B., naquele momento, para essas questões e coloca a situação numa perspectiva de tempo futuro.

Aos poucos, e como resultado do tratamento, B. começa a conseguir ficar bravo na análise, e esse sentimento se manifesta em duas direções: usando Winnicott no lugar de mãe, ele se aproxima do sentimento de raiva relativo ao fracasso original materno – que naquela época, de imaturidade e dependência plena, não pôde ser sentido (cf. 1986a[1972/55]/2001, pp. 222–229). Ao colocar Winnicott no lugar de pai, B. passa a competir com ele, a desafiá–lo e, por vezes, a desqualificá–lo como analista. Winnicott diz:

o tempo todo você está procurando pelo homem que dirá "não" no momento certo; alguém que você poderia odiar ou desobedecer e com quem você poderia chegar a se entender. Pouco a pouco, ao zangar–se comigo, você está permitindo que eu ocupe essa posição. (1986a[1972/55]/2001, p. 113)

Em certo momento, B. pergunta a Winnicott sobre a natureza do medo que o assolava constantemente. Winnicott responde que o medo de B. era o de permitir vir ele mesmo para a análise, estabelecer uma relação direta com Winnicott e, assim, correr o risco de entrar em contato com outro homem e ser mutilado, não morto (cf. 1986a[1972/55]/2001, p. 142). Um pouco mais adiante, nessa mesma sessão, B. diz a Winnicott:

Tudo isto parece fútil porque meu pai está morto. Eu nunca me deparei com isso antes. Se é um caso de rivalidade, então o problema é acadêmico, já que meu pai está morto. Sinto que sua morte afeta as coisas de duas maneiras: primeiro, eu reconheço que ele está morto; segundo, o assunto já foi discutido. (1986a[1972/55]/2001, p. 143)

Winnicott nesse momento assume o lugar que lhe cabe: "Parece engraçado, mas neste momento eu acho que você está esquecendo que eu estou vivo. Está na hora" (1986a[1972/55]/2001, p. 143). E, assim, finaliza a hora de atendimento mandando B. embora. Ao realizar esse corte, colocando–se como o pai vivo que se interpõe entre B. e a continuidade da sessão, Winnicott traz para a realidade da relação deles pequenas doses da presença paterna que B. nunca pôde experimentar com o pai real.

Ao se colocar como pai, o analista não estava preocupado somente com a possibilidade da construção da triangulação, a partir da qual B. poderia rivalizar, mas também com a construção do si–mesmo e do sentido do real, que neste caso estavam sendo constituídos também por essa via. Ou seja, importantes aspectos da constituição do si–mesmo estavam ocorrendo no âmbito da relação com o pai, já que, no caso específico, B. recuperava a capacidade de ser si–mesmo mediante as vivências de rivalidade nas quais ele podia experimentar sentir–se real e ser real em sua vida.

É importante sublinhar que a autoridade paterna que aparece nesse período do tratamento, expressa no corte realizado, não é experimentada por B. como uma submissão, mas como abertura para uma relação viva com uma figura masculina. O limite dado pelo analista só pôde ser vivido nesse sentido de abertura porque teve como base e fundamento uma relação de confiabilidade que o precedeu e o autorizou. A lei paterna certamente traz consigo um traço de exterioridade, carrega um conjunto de regras sociais e certa dose de arbitrariedade, mas só é efetiva e contribui para o amadurecimento se esses atributos, apesar da alteridade que os caracteriza, advierem e mantiverem a relação de intimidade do pai com o filho.

Grande parte da depressão que B. sentiu no passado esteve relacionada à desesperança no encontro com esse tipo de comunicação e ao isolamento defensivo que resultou dela como forma de mantê–lo protegido de novas decepções com relação à ausência de uma comunicação profunda. B. isolava qualquer vivência que pudesse partir de seu si–mesmo verdadeiro para não mais expor–se à experiência de invasão gerada pelo gesto que cria a expectativa do encontro com algo e nada encontra. O pai de B. deu continuidade à falha materna estabelecendo também com o filho uma relação de não contato em nível profundo: a falha original foi incrementada na relação com o pai, e B. perdeu a oportunidade de uma correção da experiência inicial que levou à interrupção de seu amadurecimento.

B. manteve assim escondido seu si–mesmo verdadeiro, e todas as vivências que conseguia ter partiam de um eu que era falso, pois artificialmente integrado, e que, nessa condição, conseguia apenas fazer uma apreensão intelectual (mental) dessas vivências. Com isso, ele mesmo não esteve mais presente nas experiências, e essa ausência de si–mesmo fez que aquilo que vem do viver e enriquece a personalidade, fazendo a vida valer a pena, não mais o alcançasse, levando–o, assim, ao profundo sentimento de futilidade que envolvia sua vida. Ele não mais podia ser aniquilado, e tampouco podia viver.

Muitos temas foram tratados no decorrer das sessões, mas fica claro que o mais básico, e que perpassou toda a análise, dando inclusive condições ao tratamento dos demais, relacionava–se à possibilidade de restabelecer a confiança numa relação de troca na qual ele mesmo pudesse estar presente e sentir–se real.

Foi a partir do estabelecimento de uma comunicação efetiva entre analista e paciente que B. pôde passar a existir e a amadurecer – e isso se deu das mais diversas maneiras ao longo da análise. Nos momentos de retraimento de B., na sonolência que o distanciava e na sua necessidade recorrente de representar um papel como forma de esconder–se do contato verdadeiro, Winnicott permanecia presente, sem, no entanto, impor sua presença nem empurrá–lo para fora do retraimento numa suposta tentativa de fazê–lo crescer. B. muitas vezes ficava incomodado com a paradoxal intimidade que essas situações deixavam entrever e, nesses momentos, reclamava mais ação por parte do analista. Winnicott lhe diz: "Você parece não se dar conta de que, ao estar aqui e não ter nenhum contato comigo, você está vivenciando algo". Ou seja, ele sustentava o paciente mesmo quando este, ainda que fisicamente presente, mantinha–se isolado (1986a[1972/55]/2001, p. 219).

Numa dessas ocasiões, Winnicott afirma: "uma mãe pode ser capaz de manter o contato mesmo quando você se distancia" (1986a[1972/55]/2001c, p. 220). A isto B. responde: "se é assim, a dificuldade é considerável. Não existe ninguém lá fora que saiba do que eu necessito. Aqui dentro, quando dou a entender que quero que você diga alguma coisa, você nunca a diz. Parece que você faz questão de não fazê–lo. É desesperador saber que você decidiu não fazer aquilo que é necessário" (1986a[1972/55]/2001, p. 220). Mais do que se queixar do analista, B. estava reapresentando a não comunicação com a mãe, o sentimento de não ter sido atendido, de não ter havido ninguém para fazer contato: B. re–clama a presença da mãe, que não esteve presente no passado. Winnicott coloca o ponto essencial da questão: "Você está buscando a experiência de não ser encontrado por não haver ninguém para entrar em contato com você" (1986a[1972/55]/2001, p. 220). Ao se encontrar numa relação de contato, B. se deparava também com o não contato vivido anteriormente. E era justamente por estar existindo contato que renascia no paciente a esperança de que sua necessidade seria atendida e, portanto, comunicá–la voltou a fazer sentido.

Ao sustentar a situação de isolamento, de falta de contato, o analista também conferia realidade a um acontecimento passado que, tendo sido vivido, não havia, entretanto, ainda sido experimentado.12 Não raras vezes, o estado de "estar isolado", desde o começo da vida, torna–se a experiência mais real que o paciente carrega consigo. Winnicott constata junto ao paciente: "estar distante é real, mas leva ao isolamento" (1986a[1972/55]/2001, p. 219). Reconhecer esse estado e também aquilo que o gerou – ou seja, o fato de que não havia ninguém para fazer contato com ele – e dar sustentação a toda essa situação, sem esperar nada a mais do paciente, dado que o que adviria daí seria falso, é, em muitos desses casos, a primeira forma de contato verdadeiro que o analista pode ter com o paciente.

Todo o processo de análise leva B. a adquirir uma maior capacidade para dar–se conta e compreender (insight) as consequências dessa falta de intimidade e de comunicação em sua vida, e ele passa a relatar isso para o analista:

ao tentar ser eu mesmo, tive que usar sustentáculos que já não são mais necessários. Sinto agora uma esperança muito mais positiva. Posso visualizar uma nova situação, um futuro previsível, não tão remoto, em que eu talvez possa dizer que consegui. Antes eu achava que não havia perspectiva para mim de realmente começar a existir. Era como se eu fosse um desafio a você. "Faça o que quiser porque eu duvido que algo realmente aconteça". (1986a[1972/55]/2001, p. 204)

Ao lado dessa aquisição, B. vai–se mostrando também surpreso com a descoberta em si de uma maior espontaneidade, da presença da excitação nos acontecimentos de sua vida, de planos para o futuro, de novos sentimentos, do fato, como diz ele, de que estar consigo mesmo se tornou uma carga menos pesada, e tudo isso vai consolidando nele o contraponto dessa ausência.

Já no final do tratamento, Winnicott evidencia para o paciente um aspecto, até agora silencioso, que manteve e possibilitou o essencial da relação entre eles, naquilo que ele passou a denominar nessa análise de troca sutil, ou seja, a conquista da confiança e da intimidade que surge dentro de uma relação de comunicação profunda, a qual exatamente não aconteceu com os pais. As diversas formas de retraimento que o paciente experimentou na relação com Winnicott eram, na verdade "uma expressão contínua de seu desespero quanto à possibilidade de um encontro e de uma troca sutil entre nós dois" (1986a[1972/55]/2001, p. 232). B. concorda e afirma: "creio que a idéia da troca sutil sempre esteve na minha mente, pois reconheço que estive procurando algo assim, sem que realmente soubesse disso" (1986a[1972/55]/2001, p. 232). Winnicott assegura a seu paciente: "Isso que nós agora chamamos interação sutil vem acontecendo o tempo todo na análise. Não é algo que talvez aconteça amanhã, mas algo que está acontecendo agora" (1986a[1972/55]/2001, p. 232), e continua: "a palavra amor significa muitas coisas diferentes, mas tem que incluir essa experiência de troca sutil. Podemos dizer que você está vivenciando amor e cuidado nessa situação" (1986a[1972/55]/2001, p. 232).

Depois de ter colo, seguido das experimentações de sair e voltar para o colo, chega o momento em que B. precisaria, na realidade dos acontecimentos, experimentar um lugar separado, no qual seus próprios contornos e limites poderiam ser testados.

Abandonar a análise é um tema que surge em vários momentos do tratamento e que ganha significados diferentes de acordo com o amadurecimento que vai sendo conquistado por B. Se, nas primeiras fases da análise, essa possibilidade era apenas fantasiada e tinha como função a revivência da experiência de abandono dos pais, agora, numa situação sustentada por Winnicott, perto do término da mesma, o abandono adquire uma possibilidade real e carrega o sentido de um desafio, de uma rivalidade entre o paciente e o analista, de uma aposta nos ganhos adquiridos pelo tratamento.

Winnicott não vacila diante da dúvida de B. em finalizar a análise e deixa ao paciente, nesse momento, a responsabilidade por essa decisão, sabendo que era na situação de análise, em primeira mão, que B. precisaria começar a se a ver com seus atos e escolhas e com as consequências deles. B. sai de férias e não volta para a análise.

Nove meses depois, escreve uma carta a Winnicott na qual relata planos e decisões, entre elas a de ter resolvido abandonar a análise, demonstrando, dessa forma, a conquista de uma posição. Deixa claro que sabe que o tratamento ainda não acabou, mas faz transparecer a adquirida flexibilidade nas situações de sua vida, antes impensável, quando aponta que, no caso de um possível retorno à análise, ele poderá ir à procura de um novo terapeuta caso não seja possível a Winnicott recebê–lo novamente.

Referências

Dias, C. R. (2009). O papel do pai no processo de amadurecimento em Winnicott. Natureza humana, 11(2), 55–96.

Dias, E. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Khan, M. (2001). Introdução. In D. W. Winnicott (2001/1986a[1972/55]). Holding e interpretação (2a ed., pp. 1–25). São Paulo: Martins Fontes.

Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1988; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1988)

Winnicott, D. W. (1994). Ilustração clínica de O Uso de um Objeto. In D. Winnicott (1994/1989a). Explorações psicanalíticas (pp. 183–185). Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1989; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1989vt[1968])

Winnicott, D. W. (1994). O medo do colapso (Breakdown). In D. Winnicott (1994/1989a). Explorações psicanalíticas (pp. 70–76). Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1974; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1974)

Winnicott, D. W. (2001). A criança de cinco anos. In D. Winnicott (2001/1965a), A família e o desenvolvimento individual (2a ed., pp. 49–57). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1965; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1965q[1962])

Winnicott, D. W. (2001). Família e maturidade emocional. In D. Winnicott (2001/1965a), A família e o desenvolvimento individual (2a ed.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1965; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1965p[1960])

Winnicott, D. W. (2001). Holding e interpretação (2a ed.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1986; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1986a[1972/55])

 

 

1 Refiro–me aqui ao relato das sessões que Winnicott fez no livro "Holding e Interpretação" e não às anotações do autor, citadas por Masud Khan no prefácio do livro.
2 Na linha do processo de amadurecimento pessoal, a conquista da identidade em uma unidade integrada é pré–condição para que a criança elabore as questões do estágio do concernimento, bem como, posteriormente, do estágio edípico. Essa conquista ocorre no estágio do Eu Sou. Para uma maior compreensão desse ponto, cf. Dias (2003).
3 A necessidade de perfeição da mãe de B. advinha de uma ansiedade sua, e isso nada tinha que ver com as necessidades do bebê. Nesse sentido, o cuidado oferecido a B. por sua mãe estava ancorado nas dificuldades desta, e não surgiu como uma resposta a algo que partisse do bebê, a seu tempo e a seu modo. Em outras palavras, a ilusão de onipotência não pôde se estabelecer. Essa foi uma das formas pelas quais a inconfiabilidade materna se manifestou O exame minucioso das diversas falhas maternas ajudaria a compreender os prejuízos que já existiam em B. quando este entrou em contato com o pai; porém, essa análise ultrapassaria os limites deste artigo.
4 B. havia procurado na relação com a esposa a dependência da qual necessitava.
5 Reproduzo a descrição que B. faz da insegurança ambiental que tomou conta de sua vida e da necessidade, de alguma forma sempre reconhecida por ele, de encontrar estabilidade e sustentação. Ele descreve: "No momento mais agudo da minha doença, eu me sentia como se estivesse num atoleiro ou tentando escalar uma montanha de pedrinhas, perdendo terreno a cada passo que eu dava. O ambiente que me cercava estava longe de ser estático, era uma dramatização da insegurança dinâmica. Mas, mesmo naquela época, eu já sabia que ansiava por uma segurança básica" (1986a[1972/55]/2001, p. 212).
6 A primeira análise de B. com Winnicott começou quando o paciente tinha 19 anos e durou 2 anos. Depois houve um grande intervalo de tempo, durante o qual Winnicott manteve contato apenas com a mãe de B. Aos 31 anos, B. retornou à análise e permaneceu por cerca de mais 2 anos. Ao afirmar que a análise de B. com Winnicott durou treze anos, Khan inclui, no cálculo, todo o longo intervalo entre os dois períodos de análise. Na verdade, como se pode verificar na citação a seguir, Khan fala não tanto da duração da análise, mas da manutenção por Winnicott de sua relação com o paciente: "não devemos esquecer que, para Winnicott, esta análise durou treze anos, e que depois ele manteve esse paciente em sua memória o tempo todo" (Khan, 2001, p. 19).
7 No início da vida do bebê, cabem ao pai dois principais papéis: primeiro, ser uma mãe substituta para o bebê e, segundo, dar holding à mãe (cf. Dias, Claudia2009).
8Vale a pena mencionar o comentário de Winnicott sobre a dificuldade que certas crianças apresentam para afastarem–se de suas mães (e pais), devido ao fato de perderem, rapidamente, seu lugar no centro das preocupações parentais. Ele explica, usando como exemplo a criança que inicia sua vida escolar, que "se, quando a criança volta da escola, encontra instalada na mãe uma nova preocupação, não achará mais lugar para si, ou então terá que lutar para reconquistar seu espaço no coração da mãe. Essa batalha torna–se para a criança mais importante do que a escola primária. Na maioria dos casos essa criança não se adaptará à escola primária" (1965q[1962]/2001a, p. 54).
9 Ou seja, um tema que acompanha todo o processo de amadurecimento e que aparece de modo característico segundo a problemática específica relativa a cada etapa da vida
10 A fantasia é, muitas vezes, maior que a realidade, inclusive por não ter limites. Se, em dado momento, a criança não encontra os contornos da realidade, a fantasia pode facilmente se tornar assustadora.
11 Em Freud, toda essa questão se dá, fundamentalmente, no âmbito de uma elaboração intrapsíquica.
11 Em Freud, toda essa questão se dá, fundamentalmente, no âmbito de uma elaboração intrapsíquica
12 Para uma compreensão maior da questão teórico–clínica mencionada neste ponto, remeto o leitor ao texto "O Medo do colapso" (1974/1994).