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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.5 no.2 São Paulo  2010

 

Artigos

 

Como se transmite a experiência analítica? Leitura de uma "case history" de D. W. Winnicott*

 

How to transmit the analytic experience? Readings of a case–history from D. W. Winnicott

 

Jean Florence

Sociedade Belga de Psicanálise
e–mail: jean.florence@skynet.be

 

 


Resumo

Comentando o caso reportado por Winnicott no capítulo 2 de "O brincar e a realidade" ("Sonhar, fantasiar, viver", uma história de caso que ilustra uma dissociação primária), quero pôr em evidência a maneira original como Winnicott procede para transmitir a experiência psicanalítica. Esta transmissão vincula, de maneira viva e inseparável, a prática e a teoria, bem como leva a considerar como essa experiência alarga a problemática freudiana da atividade do fantasiar (Das Phantasieren), do sonho e do desejo

Palavras–chave: Fantasiar, sonhar, desejar, experiência psicanalítica.


Resumé

En commentant le cas rapporté par Winnicott au chapitre 2 de "Jeu et réalité" ("Rêver, fantasmer, vivre" – une histoire de cas illustrant une dissociation primaire), je veux mettre en évidence la manière originale dont Winnicott procède pour transmettre l'expérience psychanalytique. Cette transmission lie de manière vivante et indissociable la pratique et la théorie; elle amène à considérer comment cette expérience élargit la problématique freudienne de l'activité fantasmatique (das Phantasieren), du rêve et du désir

Mots–clés: fantasmer, rêver, désirer, expérience psychanalytique.


Abstract

Beginning with a consideration of what a case study represents, in general, and specifically in the first steps of the discovery of psychoanalysis, I will closely accompany the case the Winnicott presents in a chapter of "Playing and Reality": a case of primary disassociation. I will be very attentive to his manner of analytic interaction. The utilization of dreams has a very original place. I will conclude at a more theoretical level: the status of "fantasizing" in Winnicott compared with the "Phantasieren" of Freud, and the consequence of their practical concepts; and in clinical application, putting into evidence the particular characteristics of the style of transmission that he left us.

Keywords: to fantasize, to dream, to wish, psychoanalytical experience.


 

 

1. Introdução

Desde a publicação conjunta de J. Breuer e S. Freud dos "Estudos sobre a histeria", em 1895, pode–se apreciar como, desde seus primórdios, a experiência da clínica analítica encontrou no relato de casos (case histories; Krankengeschichte) uma forma essencial para sua comunicação. A psicanálise mostra neles toda a complexidade de sua relação com a ciência. Na realidade, ela é chamada a prestar contas de seu processo de investigação, de seu método, do modo de construção de seus conceitos, da elaboração de suas hipóteses e da validade de suas generalizações. Mas só pode fazê–lo a partir de seu único ponto de apoio: o encontro singular de duas pessoas, fundado na confiança dos poderes da palavra e da transferência.

Claro que dando a conhecer o seu novo método terapêutico através do relato de casos, Freud incluía–se em uma tradição muito antiga de transmissão do saber das ciências do homem. De fato, sabemos bem que o estudo de casos foi desenvolvido ao longo de séculos na casuística, desde aquela dos talmudistas, canonistas, confessores e médicos até os modernos psiquiatras, psicólogos, economistas e antropólogos. Mas, parece–me que Freud radicalizou a questão das possibilidades iniciáticas, pedagógicas ou epistêmicas do estudo de casos, abrindo esse estudo (de casos) à dimensão do inconsciente, do sexual, da interação transferencial, da língua. Ele resumiu essa abertura, angustiante com relação ao domínio do sábio, numa observação em que ele reconhece, após ter relatado a história de Katarina,1 moça de 18 anos, que

eu não fui sempre psicoterapeuta. Como outros neurologistas, fui acostumado a referir–me aos diagnósticos locais e estabelecer os prognósticos servindo–me da eletroterapia. Por esse motivo, surpreendo–me ao constatar que minhas observações de pacientes são lidas como romances e que lhes falta, digamos, o carimbo de seriedade científica. Devo consolar–me dizendo–me que essa situação é evidentemente atribuível à própria natureza do objeto e não a minha escolha pessoal. (Freud, 1893–1895/1989, p. 174)

Essa observação está cheia de tudo o que problematizamos neste colóquio em torno dos casos de Winnicott. Se reconhecermos a dimensão poética (romanceada, fictícia, narrativa) dessas histórias contadas pelos psicanalistas, encontraremos, no centro de nossa experiência, aquilo que ela tem de mais específico, de mais convincente e, ao mesmo tempo, de mais difícil de ser comunicado para constituir um saber. A partir daí, não é surpreendente que Winnicott, como Freud, de forma profunda e quase orgânica, tenha caminhado com Shakespeare como companheiro de estrada.

Uma questão me guia nessa pergunta sobre a transmissão da experiência analítica: como o escritor (Dichter) que se torna analista marca, nessa escrita muito específica, a sua própria implicação no texto, como faz aparecer suas dúvidas, seus desvios, seus erros, e mostra a que ponto o processo terapêutico metamorfoseou a ele mesmo, seja no seu ser como em seu saber ou em sua teoria. Nas grandes dificuldades que experimentei na minha prática, é essa relação verdadeira com o que impõe limites ou mesmo derrotas nos escritos de Freud, de Ferenczi e de Winnicott, que realmente me encorajaram a prosseguir, a não desesperar.

Falarei, agora, do caso relatado por Winnicott no capítulo II de "O brincar e a realidade": "Sonhar, fantasiar e viver: uma história clínica que descreve uma dissociação primária" (Winnicott, 1971h/1975). Tentarei ser fiel, seguindo o mais próximo possível o texto original, ao estilo e ao ritmo de seu trabalho. Veremos que a escolha de palavras e sua tradução em diversas línguas faz–nos fazer um movimento bastante interessante ao centro da teoria psicanalítica. A confrontação com Freud é inevitável no que se refere à questão do estatuto teórico da fantasia e suas consequências no manejo da própria cura. Veremos que a escuta, a mais atenta e a mais rigorosa possível de uma única paciente, pode levar a sacudir seriamente os fundamentos teóricos que nos pareciam estabelecidos. Isso nos permitirá, para terminar, pôr em evidência o ensinamento original que nos foi transmitido por Winnicott.

 

2. Um caso de dissociação primária

Trata–se de um fragmento de análise: o relato de algumas sessões graças às quais Winnicott pôde colher ao vivo "sutis diferenças qualitativas" que existem entre as variações de "fantasying". Como traduzir esse particípio presente ativo, tomado nesse uso substantivado que a língua inglesa permite (e que, de outro lado, sob a forma de infinitivo substantivado, autoriza a língua alemã para Freud: "das Phantasieren"? O tradutor francês Cl. Monod propõe "fantasmatisation" ou, mais adiante no capítulo "activité fantasmatique" (atividade fantasmática, atividade fantasística). Esse termo tem aqui um sentido conceitual próprio da teoria psicanalítica, mesmo mantendo uma ligação com o uso corrente da língua. Em francês, "fantasmer", "fantasme", só entraram na língua por vulgarização da psicanálise:2 geralmente utilizam–se os termos imaginar, imaginação ou fantasia.

Devemos, portanto, ler Winnicott sabendo das múltiplas possibilidades que a tradução nos permite, para nossa sorte e para nosso constrangimento.

Winnicott fundamenta sua reflexão em uma sessão de análise na qual lhe pareceu não apenas significativo, mas central o contraste entre "fantasying" e "dreaming" (sonhar).

Tal diferenciação já lhe tinha sido imposta, notadamente em um artigo de 1935 "Sobre a defesa maníaca" (Winnicott, 1958k[1935]/2000). A referência a este artigo me parece importante, pois aí sustenta ele a utilidade de distinguir entre a realidade interior, que é oposta à realidade exterior, do "fantasying". "O fantasiar (fantasying)", escreve ele, "faz parte do esforço realizado pelo indivíduo para encarar a realidade interior. O fantasiar e os sonhos acordados (day–dreamings) são manipulações onipotentes da realidade exterior. O controle onipotente da realidade implica a fantasia relativa à realidade. O indivíduo chega à realidade exterior através das fantasias onipotentes elaboradas no esforço feito para fugir da realidade interior" (Winnicott, 1958k[1935]/2000, p. 199), no caso, aquela da angústia depressiva.

O caso apresentado aqui "é aquele de uma mulher em idade madura que, no decorrer da análise, descobriu progressivamente a que ponto sua vida inteira foi perturbada pela fantasmatização (fantasying) ou alguma coisa da ordem do sonho diurno (day–dreaming)" (Winnicott, 1971h/1975, p. 45). O trabalho analítico permitiu–lhe separar, nitidamente, a atividade de fantasiar e a atividade de sonhar e de viver realmente em relação aos objetos reais. Impõe–se, portanto, aqui, pôr de um lado o fantasiar e, de outro, sonhar e viver. Eis aqui um paradoxo winnicottiano: como não se surpreender ao ver, aqui, associado aquilo que o senso comum e Freud dissociam? De fato, depois da teoria do aparelho psíquico, tal como Freud a construiu no capítulo VII de "A interpretação dos sonhos", bem como nas elaborações ulteriores, o sonho e o sonho diurno são, de alguma forma, atividades ligadas uma à outra. A própria atividade lúdica provém da mesma fonte e opõe–se à realidade. Devemos voltar a esse paradoxo: ele contém toda a originalidade da abordagem winnicottiana da psique e dos estados "borderline".

O reconhecimento desse paradoxo é da mesma ordem do reconhecimento de um processo de dissociação, de fato diferente daquele do recalcamento responsável pela sintomatologia neurótica.

O recalcamento age na formação dos sonhos e nos sentimentos inerentes à vida: ele é percebido a partir dos processos que orientam o retorno do recalcado (condensação, deslocamento, simbolização etc.). No caso aqui considerado, o fantasiar está inacessível; ele absorve muita energia, mas fica fora tanto do sonho como da vida. É como alguma coisa que se estabeleceu cedo na vida (a partir dos 2 ou 3 anos, ou até mais cedo), parecendo uma primeira "cura" chupando o polegar; cura falhada, porque não oferece uma possibilidade de saída para a transformação simbólica da realidade.

Winnicott relaciona estreitamente a possibilidade de se tornar uma pessoa "total", em consequência do processo de integração permitido pela análise, e a transformação dessa defesa "desrealizadora" (déréalisante) em imaginação realmente criadora, conectada com o sonho e com a realidade.

Como apreender essas "sutis diferenças qualitativas" entre fantasiar e imaginação?

Durante uma sessão, no fim da tarde, percebendo um canto do céu, a paciente disse: "Estou sobre estas pequenas nuvens rosa. Posso caminhar em cima delas". Winnicott não intervém: isto pode ser uma fuga no imaginário ("an imaginative flight"). Pode ser, também, uma forma imaginativa de enriquecer a vida, ou, ainda, material para sonhar. Talvez, ao mesmo tempo, essa coisa particular pertença, para a paciente, a um estado dissociado, e isso não pode se tornar consciente porque nunca há uma pessoa inteira ("a whole person") que possa estar consciente de dois ou mais estados dissociados frequentemente presentes. Winnicott aceita flutuar nessa incerteza. "Assim, a paciente pode estar sentada em seu quarto não fazendo nada e, entretanto, em sua fantasia (in her fantasy), ela pintou um quadro, realizou alguma coisa interessante em seu trabalho, ou ainda foi passear no campo. Ou, do ponto de vista do observador, não aconteceu nada. Por outro lado, ela pode perfeitamente estar sentada em seu quarto e pensar em seu trabalho, em projetos, em férias – o que é uma espécie de exploração imaginária do mundo e do local onde o sonho e a vida são uma única e mesma coisa", porque o sonho e a vida são habitados pelo desejo, adicionaria eu.

Isso nos leva a considerar, nos diversos modos da atividade imaginária, sua relação respectiva com a temporalidade. No fantasiar, o que acontece, acontece imediatamente, exceto que nada acontece! Estados similares podem ser reconhecidos na análise e discriminados se o analista prestar atenção neles: porque a diferença entre "fantasiar" e "imaginar" escapa à paciente assim como escaparia à gravação sonora de uma sessão.

A paciente, que possui reais dons artísticos, é capaz de compreender que ela não faz nada com eles, que decepciona aos outros e a si mesma, chegando a pensar em homicídio, que se transforma em ideias de suicídio, para que cessem a tristeza e o ressentimento. Essa questão de homicídio voltará, permitindo uma abertura decisiva para o real. Antes, Winnicott evoca a infância da paciente. O padrão de relacionamento que se estabeleceu desde cedo com a mãe foi alterado de maneira demasiadamente abrupta; a mãe mudou seu modo de ser com ela, e ela passou, "cedo demais, de um estado de grande satisfação para a desilusão, angústia, ao abandono de toda esperança na relação de objeto". Quanto ao pai, se ele tentou compensar as falhas da mãe, acabou por reproduzir o mesmo modelo que se tornou parte integrante da criança. Sua falha foi pensar nela como uma mulher em potencial, ignorando completamente o fato de que ela era potencialmente masculina ("male"). Em capítulo posterior, Winnicott esclarecerá o que ele entende por elemento femininos e masculinos em uma pessoa. Ele distingue, principalmente, a relação do feminino com o ser e a do masculino com o fazer.3

A instauração desse modelo dissociativo começou quando a paciente era menina, a mais jovem entre irmãos e irmãs. Essas crianças, às quais se permitiu, frequentemente, que tomassem conta de si mesmas, foram muito cedo capazes de organizar seus jogos. Sendo a caçula, ela chegava a um mundo já organizado antes de sua chegada: inteligente, ela tentou adaptar–se. Contudo, nunca conseguia contribuir ativamente com nada para esses jogos aos quais ela se submetia, sem achar satisfação nisso. Sem dúvida, os outros não percebiam que ela estava fundamentalmente ausente. Do ponto de vista dela, enquanto brincava com os outros, ela só fantasiava ("She was all the time engaged in fantasying"). Ela vivia realmente nesse fantasiar (réverie) com base nessa atividade mental dissociada. Durante longos períodos, sua defesa consistia em viver em conformidade com esse fantasiar e em se observar jogando os jogos das outras crianças, como se ela observasse alguma outra pessoa.

Mais tarde, ela viveu sua vida de tal forma que o que se passava não tinha importância para ela. Não se sentindo existir plenamente – mesmo estando na escola, e depois no trabalho –, ela continuava nessa outra vida, vida que punha em jogo essa parte dissociada dela mesma. Essa parte dela mesma, a mais importante, era mantida fora de sua vida. Ela tentou muitas vezes juntar as duas partes de sua personalidade, mas o fazia com tal rebeldia e de forma contestatória, que provocava conflitos com a sociedade. Passava uma boa parte de sua existência sem fazer nada, mascarando esse vazio com atividades (herdeiras do infantil chupar o polegar) como fumar ou dedicar–se a jogos de paciência, tão aborrecidos quanto obsessivos, sem que isso lhe trouxesse alegria alguma.

Durante a análise, ela pôde se dar conta de que tal existência poderia um dia levá–la a um hospital psiquiátrico, "incontinente, inativa e imóvel e, mesmo assim, mantendo em sua mente um fantasiar contínuo mediante o qual a onipotência era mantida e se realizariam coisas maravilhosas, em um estado dissociado" Essa onipotência, separada de toda experiência compartilhada, não deriva da dependência criativa, mas da desesperança de poder depender de alguém.

 

3. Contribuição dos sonhos no tratamento analítico

Como chegar a renunciar a essa onipotência desesperançada? Winnicott cita dois sonhos que permitiram sair um pouco da fixidez desse funcionamento dissociado. Aqui de novo se revela a eficácia da aceitação de um paradoxo: o sonho pode exercer a função de acordar o sujeito, de fazê–lo sair da reclusão do devaneio e de trazê–lo de volta à vida. Mas isso passa pelo modo como o analista reveste o sonho como uma criação que surge em um momento dado na dinâmica de uma cura. O sonho, como a vida, é uma coisa séria.

O primeiro sonho é evocado sem nenhuma convicção e sem ligação com sentimento algum. É apenas após a sessão, que Winnicott prolonga além de uma hora e meia, que a paciente começa a ceder à emoção. Ela sonha que um homem medíocre é o pai de seu filho. Ela não tem filho na realidade, mas inventou um há anos e ele continua crescendo. Essa criança é uma menina. Compreende–se que se trata de uma representação dela mesma.

Em outro sonho, ocorrido uma semana antes, ela sentia um ressentimento intenso em relação a sua mãe – à qual, diz Winnicott, é muito apegada –, porque sua mãe a havia privado de seus próprios filhos. Esse sonho lhe pareceu bizarro, e ela o comenta dizendo: "engraçado, é como se eu desejasse um filho, enquanto que em meu pensamento consciente, sei bem que quando penso em crianças é apenas para que lhes seja evitado que nasçam... é como se eu tivesse escondido em algum lugar o sentimento de que há pessoas que acham que a vida não é tão ruim assim" (1971h/1975, p. 51).

A conexão dos dois sonhos permite uma apercepção interessante: após duas horas de sessão (vemos aqui Winnicott usar o tempo que esse trabalho impõe para superar a dissociação), ela sentiu em relação a sua mãe uma onda de ódio de uma qualidade nova, muito mais próxima do homicídio que do ódio. Ela pôde perceber que esse ódio se refere a algo específico, de modo muito mais claro que antes. Ela chega a pensar que o palerma ("the slob"), o pai de seu filho, esconde seu próprio pai à sua mãe – e que é ele, o marido de sua mãe, que é o pai desta criança. Ela estava perto de sentir que seria assassinada por sua mãe. Winnicott enfatiza que aqui temos realmente que lidar ao mesmo tempo com o sonho e com a vida; não estamos mais dissociados na fantasia.

Esse fragmento importante do tratamento mostra a pertinência da problematização, anunciada no início, da concepção das relações entre imaginar, sonhar, devanear, fantasiar. As distinções se tornam mais vivas para a paciente e para o analista. Devanear não é viver. Brincar criativamente (ao contrário dos jogos de paciência executados em uma espécie de ausência), sonhar e viver são da mesma ordem. No fim da sessão, a paciente pode perguntar: "Quando caminho nesta nuvem rosa, é minha imaginação que enriquece a vida ou é esta coisa que você chama de fantasiar, que acontece quando eu não faço nada e que me faz sentir que não existo?" (1971h/1975, p. 52).

Na sessão seguinte, ela traz outro sonho que é uma continuação do trabalho analítico: "Você falava, diz ela, da forma como a fantasia interfere com o sonho. Esta noite acordei à meia–noite. Trabalhava em um molde de um vestido que eu cortava febrilmente. Eu fazia tudo e nada ao mesmo tempo e estava exasperada. Isso é sonhar ou fantasiar? Tomei consciência do que se passava, mas neste momento acordei" (1971h/1975, p. 52).

Toda a sessão se passa procurando estabelecer a relação entre fantasiar e sonhar.

Ela nota que a implicação de seu corpo no fantasiar suscita uma grande tensão, mas, como nada acontece, ela fica com o sentimento de ser candidata à doença coronariana, à hipertensão e a úlceras de estômago – o que ela teve efetivamente.

Voltando ao sonho do vestido, sonho vivido no estado de vigília, parece que era uma defesa contra o sonhar. "Fantasiar", diz–lhe Winnicott, "não é nada mais do que fazer um vestido. O vestido não tem nenhum valor simbólico. Um gato é um gato. No sonho, ao contrário, como pude mostrar com a sua ajuda, a mesma coisa teria tido uma significação simbólica" (1971h/1975, p. 54).

Do sonho, Winnicott retém tratar–se, para ela, de poder emergir da amorfia: como se fosse ela mesma esse material antes de ser um molde, ajeitado, cortado, juntado! Aí surge a esperança de que alguma coisa pudesse sair desse informe, esperança surgida da confiança que ela tem em seu analista, que deve neutralizar tudo o que ela carrega da infância.

Ora, precisamente em sua infância, seu ambiente não tinha, ao que parece, permitido nem compreendido que ela deveria ter podido partir da amorfia e a havia modelado segundo um padrão estabelecido por outros. Ao constatar isso, ela ficou realmente encolerizada.

Winnicott observa, no final da sessão, que, se houve algum efeito terapêutico, foi antes de tudo por ela ter podido chegar a essa cólera intensa, cólera experimentada por alguma coisa que não era louca, mas dotada de uma motivação lógica.

Segue–se outra sessão, que Winnicott deixa alongar–se por duas horas, durante a qual ela adormece, após ter evocado grandes atividades de arrumação, mas com o medo de as ter realizado para obedecer a um modelo, para brincar de fazer progressos para o benefício de seu analista. Ela usava um vestido que ela tinha conseguido fazer ela mesma. Quando acordou, após 10 minutos, achou que tinha adormecido para ter sonhos para seu analista.

Winnicott não segue essa pista e responde que ela adormeceu porque tinha vontade de dormir. Ela se sente então muito mais real.

É como se essa intervenção criasse um espaço de elaboração comum, entre a paciente e o analista. Ele lhe diz que o fantasiar acontecia relacionado a um assunto específico, e que não ia além disso. Não tinha nenhum valor poético. Todavia, o sonho, que retomava os elementos dessa fantasia, continha poesia. Porque o sonho – pelo jogo da condensação – junta camadas sucessivas de significados, liga–as ao passado, ao futuro, ao dentro e ao fora. Essa poesia do sonho está ausente na atividade fantasmática que, de alguma forma, opera fora do tempo, fora do corpo, fora da ligação com o outro, fora de todo prazer. Existe simbolismo no sonho; no fantasiar, não. Ela compreendeu que isso também se aplicava ao jogo de paciência, executado durante horas, no seu quarto vazio: "o quarto está realmente vazio, disse ela, porque quando jogo paciência, eu não existo" (1971h/1975, p. 58).

Winnicott fica extremamente atento para que suas intervenções (por exemplo, sobre a necessidade de amorfia – ligada, como sabemos, à sua concepção da não–integração4 como fase necessária para viver antes da integração) não suscitem na paciente o medo de estar, no presente, se conformando a um modelo, a um "padrão" de seu analista. Do que decorre esta conclusão muito prudente:

Pareceu–me, ao fim da sessão, que podíamos pensar que o trabalho da sessão anterior tinha tido um efeito profundo. Por outro lado, eu estava bastante ciente do grande perigo de estar contente ou mesmo satisfeito. Nestas circunstâncias, a neutralidade do analista é necessária, como o é para todo tratamento. Neste tipo de trabalho, sabemos que estamos sempre no começo, e que o melhor é não esperar demais [In this kind of work, we know that we are always starting again, and the less we expect the better]. (1971h/1975, p. 58)

 

4. Reflexões sobre o manejo da relação analítica

Essa foi a leitura que fiz desse fragmento de cura, cujo fio tentei seguir, sem poder aqui retomar todos os seus detalhes. Fiquei surpreso pelo caráter dialogal desse relato; reconhecemos aqui o traço evocado por Freud – a própria natureza "da coisa" que nos captura no encontro analítico nos força, para sermos fiéis além de respeitosa e rigorosamente verídicos (e portanto "científicos"), a adotar o modo de expressão que é o mais próximo: o modo da narração romanceada ou do drama. É evidente que essa estrutura de linguagem aberta à dimensão poética ou dramática, pela própria natureza, acolhe simultaneamente o leitor em várias dimensões, no centro das quais um movimento identificatório flexível é possível para um e para o outro dos parceiros, ao mesmo tempo em que ocorre um distanciamento da reflexão, do comentário interior e da necessária imbricação com o que acontece com as referências teóricas. Os conceitos – sejam aqueles que formam o tesouro compartilhado da comunidade teórica dos psicanalistas, sejam aqueles que são novos, inspirados diretamente pelas palavras trocadas na cura (por exemplo, "formlessness" ou "dissociation") – são a garantia de que estes movimentos de identificação múltiplos não se fixem e permaneçam perpetuamente expostos à crítica.

Tal é, no meu julgamento, o caráter essencial da maneira como D. W. Winnicott nos transmite a experiência analítica. Ele nos convida a partilhar de um intercâmbio em múltiplas vozes, e, nesse concerto, existe um lugar para nós, para nossas perguntas, para nossas surpresas, para nossas aporias. Winnicott, por manter sem esperteza, mas com firmeza, a sua posição subjetiva singular, é inimitável. Por outro lado, ele é um autêntico inovador.

Para abrir a discussão, gostaria de destacar duas linhas de reflexão, de que eu me sinto de alguma forma herdeiro, em seu questionamento de analista. Uma linha teórica, de um lado, e uma linha iniciática, de outro.

a) "Fantasying" e "Phantasieren"

A questão teórica crucial que esse texto coloca, totalmente fundamentada e legitimada no tratamento, é a questão do estatuto do "fantasying". Uma pesquisa anterior me havia feito percorrer a teorização da fantasia na experiência freudiana. Pareceu–me, para resumir seu teor, que, para Freud, a atividade de fantasiar é igualmente o modo de proceder do "desejo" como tal. Originariamente, alucinar o seio, que uma primeira vez trouxe prazer, é desejá–lo, é ativamente reavivar os traços mnésicos desse mítico prazer que não jamais voltará tal qual. Uma diferença irreparável abre o sujeito para o desejo, que se estende entre a satisfação esperada, inigualável, e a satisfação obtida, todas as vezes subsequentes em que a mãe (o seio) reaparece. Alucinar torna–se o modelo do desejar e, a partir daí, do pensamento inconsciente e da atividade incessante do fantasiar que é igualmente o infatigável movimento do desejo, tendido entre o presente, o passado e o futuro. No pequeno ensaio de Freud "Escritores criativos e devaneios", toda essa concepção está resumida – isto para acentuar a importância dessa teoria em comparação com a de Winnicott –, e esta concepção engloba, em um único gesto, a atividade de alucinar, desejar, de fantasiar, de devanear, de sonhar, de produzir sintomas e de produzir ficções literárias.

O jogo infantil é tomado na mesma série – poderíamos dizer, no mesmo paradigma –, já que o jogo infantil (coisa absolutamente séria) serve de modelo para pensar ao mesmo tempo as fantasias do adolescente, as fantasias dos adultos e as neuroses, a criação de piadas e todas as criações culturais.

Vemos aqui Winnicott sendo levado a separar duas ordens de atividade psíquica para poder prestar contas àquilo que ele percebe na relação de sua paciente com sua vida, sua história, seu analista. Viver, imaginar e sonhar estão em relação ativa com a realidade; devanear ou fantasiar são uma forma de não viver.

Mas ele afirma, ao mesmo tempo, que não é sempre possível observar os indícios dessa diferença que, ele sublinha, é muito sutil.

Compreendemos até que ponto uma teoria depende do terreno clínico de onde saiu. Para Winnicott, trata–se da clínica de jovens crianças, de psicóticos e de casos "borderline", enquanto para Freud a experiência clínica era essencialmente aquela dos neuróticos. Isso não dá a mesma concepção de desejo.

b) Abertura para a transferência

A outra linha de reflexão refere–se ao seu modo de fazer, seu manejo concreto da relação analítica, seu modo de presença intensamente atento aos ritmos, aos detalhes, aos gestos e movimentos da paciente e o cuidado rigoroso da observação de sua própria implicação, da contratransferência. Isso acontece em suas intervenções, suas interpretações, suas hesitações e também nas interrogações que ele partilha com a paciente.

Eu gostaria, para terminar, de recorrer ao testemunho de Margaret Little, que apareceu no conjunto de textos e poemas que ela publicou em Londres, em 1986, sob o título Transference Neurosis and Transference Psychosis – toward Basic Unity (transferência neurótica e transferência psicótica – em direção à unidade básica).

Diversos textos evocam sua relação de analisanda e de colega de Winnicott, mas eu reteria aqui apenas algumas notas sintéticas que nos comuniquem como, do lado dos pacientes, era percebida sua ação de analista. Esses textos me dão pessoalmente uma espécie de encorajamento para manter o trabalho analítico do qual às vezes posso ter medo, e me defender, como alguns analistas "fóbicos ou paranóides", da contratransferência.

O estilo de Winnicott faz–me também pensar naquele de Ferenczi, que denuncia a hipocrisia profissional ou a distância altiva e objetiva dos analistas.5

Darei as últimas palavras a Margareth Little, confiando a ela o cuidado de concluir essas considerações sobre o feliz encontro que representa para mim – como para todos vocês, tenho certeza – o homem e o analista Winnicott. Antes, quero destacar o que a leitura repetitiva desse caso ajudou–me a reconhecer com clareza e vivacidade: a capacidade de sustentar o paradoxo e a ambivalência, a importância do confronto, o valor criativo da amorfia e do caos, da destrutividade e dos afetos de cólera, do ódio e do homicídio (que são vetores do sentimento de ser real), a necessidade de descobrir o que é vivo e por si mesmo as coisas já ditas, as noções bem conhecidas (dissociação, recalcamento etc.) e formulá–las de forma própria, a atenção ao meio ambiente (o mais precoce como o mais atual), o sentido da reciprocidade (que não é a simetria), a continuidade na presença, a confiança indestrutível nos recursos simbolizadores do brincar, a liberdade de dar à sessão o tempo que ele acha necessário (a relação do tempo na sessão poderia ser comparada ou oposta à prática lacaniana da pontuação).

Eis aqui, então, algumas palavras de Margaret Little. Eu as cito porque encontro nelas a relação delicada com as palavras que não perde analogia com os poetas:

Ele respondia às perguntas diretamente e em primeira pessoa, e só depois se perguntava (sozinho e frequentemente com o paciente) por que a pergunta tinha sido feita. Por que naquele momento? E que angústia inconsciente tinha por trás? Era eu quem trabalhava em meu próprio ritmo, era ele que se adaptava. Se acontecesse de ele exercer alguma pressão, era porque as circunstâncias, imprevistas e externas, o exigiam. Isso era muito importante para mim. Era o que me permitia ser eu mesma, enquanto antes, toda vez pressionada e depois contida, eu funcionava com um ritmo e movimentos que não eram os meus.

Ele fazia muito poucas interpretações e só as fazia quando seu conteúdo aflorava no umbral de meu consciente. Naquele momento, claro, a interpretação soava certa. Ele não era "infalível", mas exprimia sugestões e suposições: "eu penso que talvez...", "eu me pergunto se..." ou "poderíamos dizer que...". Assim, eu podia saborear ou sentir suas palavras e estava livre em seguida para rejeitá–las ou para aceitá–las. As interpretações não eram feitas no registro da função simbólica, à qual por outro lado eu não tinha acesso. (Little, 1992, p. 49)

 

 

Referências

Ferenczi, S. (1982). Confusion de langue entre l'adulte et l'enfant. In S. Ferenczi, Oeuvres completes (Vol. 4, 1927–1933). Paris: Payot.

Florence, J. (1991). Théorie du fantasme dans la clinique freudienne. Esquisses psychanalytiques, 16, 123–138.

Florence, J. (1992). Ferenczi inactuel? Psychanalyse, 8, 61–75.

Freud, S. (1989). El creador literário y el fantaseo. In S. Freud, Sigmund Freud – Obras completas (Vol. 9, pp. 123–137). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1908[1907])

Freud, S. & Breuer, J. (1989). Estudios sobre la histeria. In S. Freud, Sigmund Freud – Obras completas (Vol. 2). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1893–1895)

Laplanche, J. & Pontalis, J.–B. (1964). Fantasme originaire, fantasmes des origines, origine du fantasme. Les Temps Modernes, 215, 1833–1868.

Little, M. (1986). Transference Neurosis and Transference Psychosis. Londres: Toward Basic Unity.         [ Links ]

Little, M. (1992). Ansiedades psicóticas e prevenção: registro pessoal de uma análise com Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1971a)

Winnicott, D. W. (1975). A criatividade e suas origens. In D. Winnicott (1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1971g)

Winnicott, D. W. (1975). Os elementos masculino e feminino expelidos (split–off) encontrados em homens e mulheres. In D. Winnicott (1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1971va)

Winnicott, D. W. (1975). Sonhar, fantasiar e viver: uma história clínica que descreve uma dissociação primária. In D. Winnicott (1975/1971a), O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. ((Trabalho original publicado em 1971; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1971h)

Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. São Paulo: Imago. (Trabalho original publicado em 1988; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1988)

Winnicott, D. W. (2000). A defesa maníaca. In D. Winnicott (2000/1958a), Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958[1935]; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1958k[1935])

Winnicott, D. W. (2000). Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958; respeitando–se a classificação de Huljmand, temos 1958a) Tradução: Maria Luisa Bizzarri

 

 

1 Há muitos começos, diz Winnicott – o nascimento biológico é certamente um deles –, mas em especial há o começo que consiste em alcançar a posição do EU SOU, a partir da qual se pode viver a vida. Esse "nascimento" já não é biológico, mas ontológico.
2
É preciso acrescentar que algumas escolas lançam mão da ortografia "fantasme" e "phantasme" para distinguir a atividade consciente/pré–consciente da atividade inconsciente. Ver, a esse respeito, o artigo fundamental de J. Laplanche & J.–B. Pontalis (1964), "Fantasme originaire, fantasmes des origines, origine du fantasme" [Fantasia originária, fantasias das origens, origem da fantasia], pp. 1833–1868. Ver também nossa contribuição: Florence, 1991, "Théorie du fantasme dans la clinique freudienne" [Teoria da fantasia na clínica freudiana], pp. 123–138. Nota do tradutor: após esclarecimento do autor acerca da tradução francesa do termo fantasying, ele usa, ao longo do texto, para referir–se a esse conceito winnicottiano, ora o termo original, fantasying, ora as traduções francesas utilizadas "fantasmatisation" ou "activité fantasmatique". Para esta edição, decidimos traduzir todos esses termos por "fantasiar", tal como foi adotado na tradução para a nossa língua. Para sermos precisos e traduzir bem o termo original fantasying, referido ao fenômeno clínico descrito por Winnicott, talvez fosse necessário adotar a expressão "fantasiar dissociado", mas essa é uma resolução ainda a ser tomada.
3
Ver o item "Elementos masculinos puros e elementos femininos puros" dentro de "Os elementos masculino e feminino expelidos (split–off) encontrados em homens e mulheres" (1971va/1975), no capítulo V: "A criatividade e suas origens" (1971g/1975) de "O brincar e a realidade" (1971a/1975). Aí se faz alusão ao personagem de Hamlet, no qual Winnicott reconhece o modo de defesa por dissociação.
4
Encontramos na quarta parte de sua obra "Natureza humana" (1988/1990), que trata "da teoria do instinto à teoria do ego", a exposição sistemática da concepção da fase de não–integração que precede aquela da integração.
5 Cf. Ferenczi, 1982, "Confusion de langue entre l'adulte et l'enfant" . Ver nosso estudo (Florence, 1992): "Ferenczi inactuel?", pp. 61–75.
6 Como o termo "convenience", aqui, pode dar margem a mal–entendidos, esclareço que, no Webster's Dicionary, uma das significações do termo é a seguinte: "anyting that saves or simplifies work".
*Texto da palestra apresentada pelo autor no XIII Colóquio Winnicott: "Os casos clínicos de Winnicott", 2008, organizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana e pela Sociedade Brasileira de Fenomenologia, realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, de 29 a 31 de maio de 2008.