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Winnicott e-prints

On-line version ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.6 no.2 São Paulo  2011

 

Artigos

 

O lugar e a função do avô, aquele que é pai duas vezes: um estudo a partir de D. W. Winnicott

 

The place and function of the grandfather, who is twice father: an essay based on D. W. Winnicott

 

 

Alfredo Naffah Neto

Psicanalista, professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica
e-mail: naffahneto@gmail.com

 

 


Resumo

Este artigo realiza um estudo sobre a função do avô no seio da família contemporânea, constatando que ele ocupa um lugar marginal, de maior distanciamento com relação a papéis e estereótipos familiares, o que lhe permite intervir em situações emergenciais, no cuidado dos netos. O tema é desenvolvido a partir do relato de um paciente em análise.

Palavras–chave: mercado de trabalho, feminismo, pai, mãe, avô, avó.


Abstract

This article enquires about the function of the grandfather in the contemporary family, stating that he occupies a marginal place, involving a bigger distance from the family roles and stereotypes, which allows him to act in emergency situations, for the care of the grandchildren. The theme is developed following the report of an author's patient in psychoanalysis.

Keywords: working market, feminism, father, mother, grandfather, grandmother.


 

 

1. O relato de um paciente

Este relato foi-me feito por um paciente de 65 anos, também psicanalista, e descrito nos mínimos detalhes, já que, na ocasião, ele estava bastante encantado com a netinha de dois anos e meio e com a sua performance de avô, no episódio relatado. Tento, aqui, transcrever o seu relato, o mais fielmente possível, tal qual minha memória o guardou. Antônio iniciou a sessão dizendo:

Esse fim de semana fomos para a nossa casa de campo em Atibaia: eu; minha mulher; a Júlia, minha filha; Pedro, seu marido e a Ritinha, minha neta de dois anos e meio. A Júlia está tentando engravidar pela segunda vez e não está conseguindo; por isso, resolveu tentar essa coisa moderna, meio maluca, de inseminação in vitro. Justamente nesse fim de semana, tinha de estar de repouso, não podendo pegar a Ritinha no colo, esperando para ver se o óvulo fecundado, e implantado no útero, grudava. Como já era a segunda tentativa, estavam todos meio apreensivos e minha mulher justamente tinha pensado em irmos passar o fim de semana com eles para ajudar no que fosse preciso.

No sábado à noite, a Ritinha estava intratável, a mãe e o pai já tinham feito todas as tentativas para pô-la para dormir e ela já tinha expulsado ambos do quarto. Então minha mulher foi ver se conseguia o impossível. Enquanto ela tentava, tentei conversar com a Júlia e o Pedro, alertando-os de que a Ritinha devia estar percebendo que alguma coisa estranha estava acontecendo, com essa história de a mãe não estar podendo pegá-la no colo. E como não sabia do que se tratava, devia estar estranhando muito e criando fantasias aterrorizadoras, com medo de perder a mãe; por isso devia estar tão brava. Então, lhes disse que deviam contar, assim que possível, para a Ritinha, do seu projeto de ter outro filho. Disse-lhes, ainda, que muito embora o relato desse desejo/projeto pudesse produzir nela um impacto – fazendo ruir seu sentimento de onipotência de filha única –, ainda era melhor do que as fantasias que ela devia estar criando.

Em seguida, fui escovar os dentes, no banheiro do meu quarto, quando fui surpreendido pela Ritinha, toda lampeira, com os dois ursinhos no colo e acompanhada pela minha mulher. Chegou até mim e disse, com um ar muito decidido: "Sabe, vovô, o problema é que a gente não controla a cabeça da gente, e aí os bichos aparecem; vem o leão, o tigre e aí eu fico com medo. Mas os bichos não são de verdade, não é?"

Você pode não acreditar, mas ela fala assim mesmo; apesar dos dois anos e meio, tem uma linguagem superdesenvolvida, como a de uma menina mais velha. Mas a minha resposta não foi lá muito boa, pois, talvez até em função dessa linguagem tão perfeita, me esqueci que respondia para uma menininha. Disse: "Os bichos não são de verdade, não; são só fantasia". Ela ouviu minha resposta, repetiu: "São só fantasia..." e seguiu o seu caminho. E eu continuei a escovar os dentes. Mais tarde minha mulher me contou que ela comentara: "Fantasia de a gente vestir, não é vovó?".

Em seguida, percebi que ela se sentara em frente da televisão e queria, de todo jeito, que colocassem um dos seus DVDs preferidos e que tanto a minha mulher quanto os seus pais relutavam, tentando convencê-la a ir para a cama. E que, de novo, ela estava muito brava. Quando percebi que ninguém estava conseguindo nada, resolvi intervir de novo.

Cheguei perto dela e disse, calmamente: "Você está muito brava, não é?". E ela respondeu: "Estou!" Retruquei: "Está com muita raiva, não é?". E ela respondeu: "É". Então me sentei no sofá junto com ela e ela encostou a cabecinha no meu ombro, se aconchegando carinhosamente. Nesse momento, seu pai chegou: "Ritinha, é hora de dormir; se você não quer dormir na sua cama, hoje – mas só hoje – você pode dormir na cama do papai e da mamãe". Ao que ela replicou prontamente: "Não! Quero dormir com o vovô e a vovó". E seu pai: "Não senhora, não vai incomodar o vovô e a vovó não!". Mas eu disse: "Deixe ela vir". E peguei-a no colo e levei-a para a nossa cama, e ela se colocou bem no meio, entre mim e a avó.

Então ela me disse: "Sabe, vovô, o problema é que a vagem quer entrar aqui". E repetiu a frase enquanto, estranhamente, apontava para a região da sua pequena vagina. Minha mulher perguntou: "Você está falando da vagem que comeu no almoço?", ao que eu lhe retruquei, falando em inglês: "She is not talking about that". E lhe perguntei: "Você está falando da vagem de fazer nenês?" e ela respondeu: "É; da vagem de fazer nenês." Então, eu lhe disse: "Essa vagem quer entrar no corpo da sua mãe, não é no seu corpo". E ela repetiu: "... no corpo da mamãe, não é no meu corpo". Ficou pensativa por uns instantes e quis descer da cama. Em seguida subiu novamente e voltou à carga com a história dos bichos: "Pois é, vovô, esses bichos que ficam na minha cabeça não são de verdade, não é? Porque os bichos de verdade estão todos no zoológico, não é?". Ela estava me dando uma segundo chance e aproveitei: "Não são de verdade, não; são de mentirinha, mas quando aparecem na sua cabeça você fica muito brava". E minha mulher acrescentou: "E quer bater na mamãe e no papai". E Ritinha retrucou: "E quero bater no vovô e na vovó". Em seguida, pareceu se acalmar, ficou pensativa por uns instantes e disse: "Quero ir dormir com a mamãe". Então, peguei-a no colo e levei-a para a mãe. Quando voltei para o quarto, minha mulher disse, brincalhona: "Parabéns, Dr. Winnicott". E fomos dormir.

No dia seguinte, vim saber que ela chegara no quarto dos pais ainda um pouco agitada, mas que – muito rapidamente – se acalmara inteiramente, vindo a dormir aconchegada no corpo da mãe, a noite inteira. Voltei a encontrá-la no café da manhã, quando ela me pediu uma torrada com requeijão e, enquanto comia, me disse: "Sabe, vovô, quando eu era pequenininha, eu mamava no peito da minha mãe, mas agora eu sou uma menina grande e não mamo mais". E eu lhe respondi: "É; agora você come torrada com requeijão".

O relato do episódio encerrou-se aí e Antônio passou o pouco tempo que ainda restava de sessão elaborando a sua função de avô.

 

2. O lugar e a função do avô

O avô não constitui uma figura à qual se dê muita importância, de forma geral, nas questões de dinâmica familial. Quando se fala dos avós, em geral é a avó, como ajudante principal da mãe nos cuidados da criança pequena, quem ocupa um lugar relevante na bibliografia.1 Nos tempos atuais, especialmente, tenho ouvido muitos relatos de avós que cuidam dos netos pequenos, grande parte do tempo, substituindo a mãe, já que esta, como profissional do mercado de trabalho, após os poucos meses de licença-maternidade – ou, até mesmo, antes disso –, é obrigada a voltar a trabalhar período integral. E quando a avó não está disponível, são os berçários e escolas maternais que cumprem tal função.2

Não é esse o caso da avó descrita no episódio do meu paciente, já que a mãe em questão cuidou da filha intensamente, durante o primeiro ano e meio de vida. No entanto, essa avó tem tido uma presença importante, como substituta da mãe desde o início, já que o casal passou o primeiro mês, após o nascimento da filha, na casa dos pais maternos e, desde então, a avó criou uma ligação afetiva muito grande com a neta, substituindo a mãe sempre que necessário. O avô, também, tornou-se uma figura importante, bastante querida pela neta, muito embora de uma forma diferente da avó, ocupando um lugar mais marginal (mas, sobre isso, falarei mais adiante).

Quando a avó torna-se uma espécie de mãe substituta, é geralmente mais permissiva e menos exigente do que a mãe verdadeira, que – no dia a dia – geralmente é obrigada e colocar limites mais rígidos nos diferentes caprichos infantis: não querer comer tal coisa, só querer colocar uma mesma roupa etc. Assim, é comum mães que trabalham fora, período integral, além de terem de lidar com a raiva da criança, ao retornar do trabalho e ir buscá-la na casa dos avós, ainda terem, grande parte das vezes, de lidar com o ciúme provocado pelo chamego – e, às vezes, até preferência – que os filhos demonstram por essa supermãe idealizada chamada avó.

É justamente por essa razão que, no episódio relatado, quando a mãe e o pai de Ritinha não conseguem pôr a filha para dormir, é a avó que é chamada, em seguida, para a tarefa difícil. Mas, é justamente por ter se tornado uma substituta da mãe que ela também falha. Aí, mãe, pai e avó ocupam posições similares, ou seja, os três estão tão imbuídos da responsabilidade de fazer Ritinha dormir, que lhes falta qualquer distanciamento para terem uma visão global da situação. É somente o avô, devido ao lugar marginal que ocupa na constelação da família, que consegue improvisar uma solução para a situação emergencial.

Evidentemente, vocês podem sustentar que, por ser ele, além de avô, também psicanalista, esta última qualificação lhe dá uma condição maior de compreender e lidar com a situação em foco. Embora isso seja verdade, gostaria, entretanto, de argumentar no sentido de relativizar tal constatação, ponderando que a condição de psicanalista, se acrescenta algo importante na sua capacidade de lidar com a situação, não constitui a condição mor para tal feito. Quero defender a tese de que é a condição de avô que lhe permite tal proeza. Mas, para isso, cumpre definir melhor em que consiste essa marginalidade, já assinalada, do lugar do avô.

A tese que defendo é a de que o avô vem, cada vez mais, ocupando algumas funções que, originalmente, eram do pai, na concepção de Winnicott; pelo menos, parcialmente. Mas vou desenvolver o argumento parte por parte.

A divisão entre homens e mulheres no trabalho da casa e no cuidado dos filhos, cada vez maior desde os avanços do feminismo, no século passado, tem levado a certa indiscriminação nas funções de pai e mãe. Como cada um dos cônjuges trabalha fora e contribui para as despesas da casa, as funções de cuidado dos bebês têm, cada vez mais, sido divididas entre pai e mãe, o que, em si, não é um mal. Entretanto, quando mãe e pai passam a representar meros cuidadores abstratos, indistintamente intercambiáveis, perdendo as características próprias que distinguem uma função da outra, a coisa muda de figura.

Winnicott via a natureza humana do homem e da mulher como fundamentalmente distintas. Num texto sobre o feminismo (Winnicott, 1986g[1964]/1990), ele assinala que todos nós – homens ou mulheres – nascemos de um ventre materno e dependemos, nos primeiros tempos, dos cuidados dessa mesma mulher que nos pariu. Eu cito Winnicott:

Quanto mais isso é examinado, mais se torna necessário termos um termo MULHER que torne possível a comparação entre homens e mulheres. (...) MULHER é a mãe reconhecida dos primeiros estágios de vida de cada homem e mulher. Seguindo isso, podemos encontrar uma nova forma de afirmar a diferença entre os sexos. As mulheres têm, em si mesmas, de lidar com a sua relação com a MULHER, por identificação com ela. Para cada mulher, há sempre três mulheres: 1) a menina bebê; 2) a mãe; 3) a mãe da mãe. (Winnicott, 1986g[1964]/1990, pp. 191-192)

Resumindo: Winnicott vê a mulher como sempre submergida na corrente transgeracional, como uma espécie de guardiã dos mistérios da vida, por isso sempre dividida entre passado (sua mãe, que a gerou), presente (ela própria) e futuro (seu bebê mulher, que futuramente dará continuidade ao ciclo de vida). E isso independentemente de a mulher em questão ter ou não ter filhos, ter filhos do sexo masculino ou feminino.3 Quanto ao gênero masculino, ao contrário disso, Winnicott o vê como uno e exclusivo, e nos diz que quanto mais cada homem singular se desenvolve, mais ele se torna uma totalidade pessoal (com exceção dos casos patológicos). Eu o cito: “O homem não pode
fazer isso que a mulher faz, de estar submerso na corrente (geracional), sem violar o
todo de sua natureza” (Winnicott, 1986g[1964]/1990, p. 192).

Eis aí, pois, um primeiro argumento que coloca a avó diretamente implicada e participante da vida familial e relega o avô a um espaço marginal. Pois, como todo homem, o avô sempre será individual, singular, único, não podendo estar mergulhado na corrente transgeracional, como a avó, sem violar a sua natureza.4

A partir dessas postulações sobre as características próprias do homem e da mulher, acrescidas àquelas que dão à mãe do bebê condições especiais de cuidar do seu rebento, por meio da preocupação materna primária – quer dizer, a possibilidade de regredir à experiência passada de ter sido cuidada por uma mãe e, a partir daí, poder identificar-se às necessidades do filho recém-nascido –, é possível se entender por que Winnicott não pensava que um pai seria inteiramente capaz de substituir uma mãe e vice-versa. Nessa equivalência, algumas coisas se perdem.

Muito embora o pai seja visto pelo bebê, nos primeiros tempos, como um aspecto da mãe,5 é necessário que ele possa, de fato, permanecer no seu lugar, distinto, de esposo e pai, por várias razões. A primeira delas é para que, enquanto tal, ele possa dar suporte material e afetivo à esposa, dando-lhes condições de cuidar do filho pequeno durante o tempo que for preciso. A segunda razão considera que somente o pai permanecendo na sua posição própria, no seio da família, dará oportunidade ao filho de vir a percebê-lo como uma terceira figura, distinta da mãe. E, assim, durante todo o desenvolvimento do complexo de Édipo, poder ser a figura de rivalidade do menino e de amor erótico da menina – e vice-versa, já que o complexo de Édipo é sempre duplo –, cumprindo as funções que lhe são próprias, como pai. Isso, além de poder aparecer para o filho como uma referência única: exemplo de integração, de totalidade pessoal, num período em que a criança ainda está em busca de sua própria individualidade, confundida que está com a mãe.

Ora, podemos considerar que a crescente indistinção entre as funções de pai e mãe – criada por certo tipo de cultura feminista e que vemos na contemporaneidade – desloca o pai de sua posição própria e o mantém, grande parte do tempo, como uma espécie de segunda mãe, prejudicando consideravelmente que possa permanecer no lugar de pai. O mesmo acontece com a função materna, quando a mãe é promovida a uma espécie de segundo pai, indistinta do mesmo.6

Convém enfatizar que não estou, em momento nenhum, dizendo que o pai não possa ajudar a mãe no cuidado dos filhos pequenos; essa ajuda faz parte da sua função de suporte à esposa. Entretanto, uma ajuda ou mesmo uma divisão de trabalho não significam, necessariamente, uma abolição das diferenças entre pai e mãe.

Há casos, entretanto, em que a mãe – por razões de morte, doença ou impossibilidade afetiva – não pode cumprir com as suas funções. Nesses casos, o pai poderá vir a ser um substituto materno importante; o mesmo acontecendo com a mãe, na ausência de um pai presente. Mas – é bom lembrar –, não sem prejuízo no cumprimento de suas funções específicas. Não é possível ser pai e mãe, ao mesmo tempo, sem algum tipo de prejuízo nas duas funções implicadas.

É evidente que um pai, dada a sua natureza masculina distinta da natureza feminina da mãe – pelo menos na concepção winnicottiana –, nunca chegará a se confundir inteiramente com a mãe aos olhos da criança. Nessa direção, o próprio Winnicott salienta que, mesmo nos períodos iniciais, nos quais ele aparece à criança "como um aspecto da mãe", ainda assim, é com caracteres distintos: "duro, severo, implacável, intransigente, indestrutível" (Winnicott, 1986d[1966]/1990, p. 131). Entretanto, acrescenta que somente "sob circunstâncias favoráveis" o pai "torna-se aquele homem com características de um ser humano, alguém que pode ser temido, odiado, amado e respeitado" (Winnicott, 1986d[1966]/1990, p. 131). Ou seja, um pai pouco distinto da mãe tenderá a aparecer, para a criança, por mais tempo, como um aspecto da mesma – ainda que com caracteres distintos – e, mesmo quando se torna um ser humano diferenciado, as duas funções familiais poderão permanecer bastante misturadas.

Na mesma linha, quando mãe, pai e avó encontram-se todos identificados num mesmo tipo de fazer – como no exemplo citado, o de fazer a criança dormir –, é o avô que pode aparecer como a figura distinta, íntegra, capaz de manter um espaço discriminativo que lhe possibilita ver e ouvir a criança como um ser humano, para além de qualquer estereótipo de papel ou função familial. É justamente isso que define o que denominei, anteriormente, espaço marginal do avô: marginal, no sentido de estar à margem de uma dinâmica familial que tende a capturar os outros membros num mesmo tipo de enredo.7

 

3. Retomando o nosso caso

No exemplo que estamos examinando aqui, fica a impressão de que a captura de mãe, pai e avó pela dinâmica sem saída – resultante da tentativa de fazer Ritinha dormir – é mais situacional do que estrutural, já que sabemos que essa mãe cuidou de sua filha durante os primeiros tempos, sacrificando, para tanto, um tempo que poderia ter sido dedicado à sua profissão. Ou seja, é possível que a captura se deva, em grande parte, à dinâmica na qual mãe e pai estão igualmente envolvidos – fazer nidar um ovo implantado no útero da mulher – e na qual a avó acaba envolvida por identificação.

De qualquer modo, convém lembrar que é a própria Ritinha quem escolhe o avô como interlocutor privilegiado quando – no momento em que ele escova os dentes, chega dizendo: "Sabe, vovô, o problema é que a gente não controla a cabeça da gente, e aí os bichos aparecem; vem o leão, o tigre e aí eu fico com medo. Mas os bichos não são de verdade, não é?".

Ora, essa escolha não é casual; ela acontece porque, de alguma forma, Ritinha intui que o avô é o único que não foi capturado pela tarefa de fazê-la dormir e que essa posição "marginal" o torna um interlocutor privilegiado.

O que acontece, em seguida, é que o avô, pego de surpresa, dá uma resposta adulta demais, dizendo que é tudo "fantasia", palavra que, no vocabulário dessa menina de dois anos e meio, significa "roupa de se fantasiar". Sem dúvida nenhuma, oportunidade perdida.

Mas logo em seguida, no episódio da televisão, aparece uma nova chance de intervir e aí o avô consegue, finalmente, um contato efetivo com a neta, ao nomear o sentimento dela: "Você está muito brava, não é?". E ela responde: "Estou!" Retruca: "Está com muita raiva, não é?". E ela responde: "É". Para realizar essa intervenção, volto a repetir, não é necessário ser psicanalista, basta ser avô e ter alguma sensibilidade.

Ritinha sente-se aliviada ao se perceber compreendida, tanto assim que relaxa, pela primeira vez, encostando carinhosamente a cabeça no ombro do avô. E, quando seu pai sugere que ela durma na cama dele e da mãe, ela retruca, dando preferência à cama dos avós. Sinal de que a conversa com o avô ainda não terminou, está apenas começando.

Em seguida vem o episódio em que Ritinha fala da "vagem" que quer entrar na sua vagina, no qual, aí sim, é inegável que a condição de psicanalista do avô ajudou-o, de fato, na compreensão dessa fala/gesto, que se processa num nível simbólico. A prova disso é que a intervenção da avó foi inteiramente factual: "Você está falando da vagem que comeu no almoço?", à qual o avô retruca: "She is not talking about that". E logo percebe – sendo confirmado pela neta – que o objeto que está em foco é a "vagem de fazer nenês".

Aí intervém, sem dúvida, o avô/psicanalista que percebe que, devido à intensa identificação com a mãe, Ritinha encontra-se misturada ao corpo materno, de uma mulher querendo engravidar e, para tanto, tendo de copular com o marido ou, quiçá, de receber, por meio de algum objeto pontiagudo, um ovo fecundado artificialmente no interior do útero. Terá Ritinha presenciado algum ato sexual entre os pais, durante alguma dessas noites em que dormiu na cama dos pais? Ou trata-se de uma comunicação entre ela e sua mãe inteiramente realizada em nível inconsciente, como, aliás, Freud já sugerira a possibilidade? Faltam-nos, evidentemente, dados clínicos para corroborar qualquer uma das duas hipóteses. De qualquer forma, a interpretação do avô/psicanalista visa a ajudar Ritinha a se discriminar do corpo materno.

O episódio que se segue é a retomada a fala dos bichos: "Pois é, vovô, esses bichos que ficam na minha cabeça não são de verdade, não é? Porque os bichos de verdade estão todos no zoológico, não é?". Ao que o avô retruca: "Não são de verdade, não; são de mentirinha, mas quando aparecem na sua cabeça você fica muito brava". E a avó acrescenta: "E quer bater na mamãe e no papai". E Ritinha conclui: "E quero bater no vovô e na vovó". Em seguida, parece se acalmar, fica pensativa por uns instantes e diz: "Quero ir dormir com a mamãe".

É a retomada da fala dos bichos por Ritinha que dá ensejo para que o avô os associe com a raiva anteriormente nomeada – sendo complementado pela fala da avó –, o que finalmente acalma a menina e lhe permite concluir a conversa com os avós e poder retornar à guarda dos pais. Aí, novamente, é possível argumentar que a condição de psicanalista do avô o ajuda em sua tarefa, o que, sem dúvida, é verdadeiro. Entretanto, não é nada impossível que outro avô, não psicanalista, por caminhos diferentes, não pudesse chegar a resultados semelhantes.

O importante é que, ao se sentir compreendida, Ritinha pode aliviar a culpa que sente pela raiva dirigida aos pais. Como adultos, poderíamos descrever esse processo – a partir da nossa lógica própria, diferente da de uma criança dessa idade – como um pensamento do gênero: "Se são os bichos ferozes que invadem a minha cabeça e eu não posso evitar que isso aconteça, já que a gente não controla a própria cabeça, então não sou tão culpada assim".8 Ou seja, Ritinha resgata-se como ser humano, cujos impulsos agressivos são parte constituinte, inexpugnável, cuja única possibilidade é virem a ser apropriados, dominados e dirigidos pelo self, de forma paulatina e por meio de um longo processo de elaboração imaginativa das funções corporais.

Nesse processo, após elaborar a raiva que a dominava, Ritinha entra num processo de regressão, vindo a dormir encostada no corpo da mãe, como se fosse um bebezinho. Mas essa regressão é necessária para que, vindo a ocupar o lugar de um bebê, ela possa vir a perceber que cresceu, que já é uma menina maior. E também para que, por meio do contato/contraste com o corpo materno, possa vir a discriminar-se dele no nível da experiência (dando estofo próprio à interpretação do avô). Esse processo permite, pois, que possa diferenciar-se tanto da mãe quanto desse irmãozinho rival imaginário, ainda em fase de concepção.

Testemunho disso é a sua conversa com o avô, na manhã seguinte: "Sabe, vovô, quando eu era pequenininha, eu mamava no peito da minha mãe, mas agora eu sou uma menina grande e não mamo mais". E o avô lhe responde: "É; agora você come torrada com requeijão".

 

4. Concluindo

As grandes mudanças que vem sofrendo a família, seja com o crescente número de separações entre casais – gerando novas configurações familiais – seja com a transformação das relações e funções familiais, com as transformações do mercado de trabalho e o desenvolvimento da cultura feminista, obrigam-nos e rever e redefinir todo o quadro e seus componentes.

Nessa direção, é possível que uma parte das funções que antes eram típicas da figura paterna esteja sendo prejudicada pela crescente indistinção entre as atribuições de pai e mãe, e pela ausência, cada vez maior, da mulher e do homem nos seus lugares na família. E que, em função disso, as figuras de avó e avô estejam sendo requisitadas para novas funções.

Não se trata aqui, evidentemente, de postular que um avô possa substituir um pai, em todas as suas funções, da mesma forma que é impossível uma avó substituir inteiramente uma mãe. Entretanto, é inegável que os avós podem, sim, tapar alguns buracos – como já o vêm fazendo – nessa dinâmica familial cada vez mais deficitária.

No que se refere ao avô, o que lhe garante essa possibilidade é o seu espaço marginal na família, que escapa à crescente captura das figuras de mãe, pai e avó por uma dinâmica que os leva, cada vez mais, a se tornarem mães substitutas, devido tanto ao movimento de expansão do capital – responsável pela inclusão da mão de obra feminina no trabalho assalariado – quanto por certo tipo de cultura feminista – que tende a requisitar, cada vez mais, que o pai seja um equivalente formal da mãe, podendo substituí-la em todas as funções.

Dentre as atribuições que até então faziam parte do repertório paterno, o avô vem herdando algumas delas: muitos avôs têm dado (juntamente com as respectivas avós) suporte material e afetivo às filhas, na época de gravidez e parto, seja por insuficiência de renda ou ausência efetiva dos maridos, demasiadamente envolvidos em seus trabalhos. De forma análoga, os avôs têm podido aparecer para os netos como uma figura integrada, exclusiva, a referência-modelo que o pai, por excessiva indiferenciação da função materna, muitas vezes tem deixado de ser, pelo menos em momentos importantes do desenvolvimento infantil.

É talvez na elaboração do complexo de Édipo que a ausência de um pai viril se faz sentir de forma mais cabal, já que a criança não poderá experimentar aquele tipo de rivalidade saudável, capaz de protegê-la dos impulsos sexuais incestuosos, permitindo-lhe se apropriar de sua sexualidade com menos temor e menos culpa. E essa constitui uma tarefa que o avô não é capaz de assumir, já que não participa diretamente do triângulo amoroso no qual a criança está envolvida.9 Crianças que não podem experimentar essa rivalidade com o pai frequentemente são obrigadas a inibir seus impulsos sexuais/agressivos, produzindo um tônus vital depressivo, como Winnicott relatou no caso B (Winnicott, 1986a/1989).

De tudo isso, o que nos resta dos ensinamentos de Winnicott é que a distinção entre os gêneros, homem e mulher, faz parte da natureza humana e é essencial ao crescimento e desenvolvimento saudável do rebento humano. Muito embora ele nos ensine que tanto homens quanto mulheres possuam na constituição de sua personalidade elementos fêmeas e machos,10 que lhes dão, respectivamente, a possibilidade de ser-no-mundo e de fazer-no-mundo (Winnicott, 1971va[1966]/1992), e possam ter escolhas de objetos sexuais distintas: heterossexuais, homossexuais ou bissexuais (Winnicott, 1988), para além disso tudo, a distinção entre os gêneros não pode ser esquecida.

E que, nessa direção, "ser mãe" e "ser pai" são coisas diversas, cuja equivalência, pura e simples, cria lacunas no desenvolvimento infantil.11

Entretanto, a história do mundo não está no nosso controle e os rumos que a sociedade e a cultura vêm tomando solicitam, cada vez mais, uma função ativa dos avós como parceiros na criação dos netos. Nesses interstícios, o avô pode, sem dúvida alguma, ocupar um lugar e desempenhar uma função privilegiados.

 

 

Referências

Dolto, F. (1998). Os caminhos da educação. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1990). The child and the family group. In D. Winnicott (1990/1986b), Home is where we start from. Londres: Penguin Books. (Trabalho original publicado em 1986[1966]; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1986d[1966])

Winnicott, D. W. (1990). This feminism. In D. Winnicott (1990/1986b), Home is where we start from, Londres: Penguin Books. (Trabalho original publicado em 1986[1964]; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1986g[1964]         [ Links ])

Winnicott, D. W. (1992). On the split-off male and female elements. In D. Winnicott (1992/1989a), Psycho-analytic explorations. Cambridge: Massachusetts; Harvard University Press. (Trabalho original publicado em 1971[1966]; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1971va[1966]         [ Links ])

Winnicott, D. W. (1989). Holding and interpretation. London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1986; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1986a)         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1988). The concept of health using instinct theory. In D. Winnicott, D. W. (1988/). Human nature. Londres: Free Association Books. (Trabalho original publicado em 1988; respeitando-se a classificação de Huljmand, temos 1988)        [ Links ]

 

 

1 Françoise Dolto, num livro sobre educação, publicado na França em 1994 e traduzido para o português em 1998 (Dolto, 1998), dedica um capítulo aos avós ("Os avós", pp. 171-183), não dando destaque maior a nenhum dos dois elementos do par. Entretanto, examina a questão de ângulos diferentes deste artigo: dá um destaque maior aos conflitos mais frequentes entre pais e avós e, quando entra nas funções dos avós na dinâmica familiar, não as examina em profundidade – especialmente se considerarmos as crescentes mudanças pelas quais vem passando a família contemporânea – ; apenas oferece alguma luz quando trata do complexo de Édipo. Mas sobre isso falarei mais adiante.
2
Tenho observado, inclusive, casos extremos, como o de uma executiva que adotou uma menina de um ano e poucos meses, bastante traumatizada e necessitando de cuidados ambientais intensos – inclusive para poder regredir a estágios de dependência anteriores, a fim de reparar lacunas no seu desenvolvimento –, e, em seguida, matriculou-a numa escola maternal, período integral, já que tinha de trabalhar o dia inteiro, e inclusive viajar a trabalho por longos períodos, deixando o bebê aos cuidados do marido e da escola. Obviamente, a menina veio a se apegar intensamente a uma tia, bastante maternal, com quem ficava em alguns fins de semana, muitas vezes não querendo voltar para o colo da mãe, quando esta retornava.
3 Sem dúvida, esse conceito de MULHER (grafado em maiúsculas) pode vir a ser interpretado como uma noção atemporal de mulher e, assim, despertar críticas de historiadores e cientistas sociais, sempre sequiosos de demonstrar que nem sempre, ao longo da história da humanidade, a mulher teve as mesmas características, incluída aí a questão da maternidade e do cuidado dos filhos. É possível, a partir daí, inclusive, virem a acusar Winnicott de metafísico (por postular um conceito abstrato, fora do tempo), ou pelo menos, de dar às funções biológicas (de procriação) um papel determinante e decisivo na constituição do ser mulher, relegando a um segundo plano as determinações históricas. Mas essa é uma questão que não me cabe examinar aqui, por questões de tempo e espaço.

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Por essas razões, Winnicott via as raízes do feminismo como, ao mesmo tempo, uma espécie de fixação da sociedade numa dominância fálica (ou seja, de presença ou ausência de pênis como definidora de homens e mulheres) e numa inveja das mulheres dessa unicidade e exclusividade, característica do gênero masculino (Winnicott, 1986g[1964]/1990). Aí, também, sua visão pode ser criticada como reducionista, já que o feminismo veio a abarcar correntes distintas e, muitas vezes, até contraditórias entre si: cito, aqui, um grupo feminista que apregoa o lesbianismo como forma de excluir os homens das relações amorosas, muito diferente de outro que luta para ampliar o período de licença-maternidade das mulheres. Isso apenas à guisa de exemplo. Mas temos de nos lembrar do ano em que o artigo foi escrito, 1964, e das características do movimento feminista nesses anos, mais reivindicadoras da mera igualdade formal homem-mulher.
5 Winnicott acrescenta: "como um aspecto da mãe que é duro, severo, implacável, intransigente, indestrutível e que, sob circunstâncias favoráveis, gradualmente se torna aquele homem com características de um ser humano, alguém que pode ser temido, odiado, amado e respeitado" (Winnicott, 1986d[1966]/1990, p. 131).
6 É evidente que com a recente possibilidade de casais homossexuais masculinos e femininos virem a adotar bebês, teremos, muito brevemente, um contingente de crianças com dois pais ou duas mães ou, pelo menos, com mães adotivas do sexo masculino e pais adotivos do sexo feminino. Que mudanças isso produzirá na constituição da subjetividade infantil é algo, entretanto, que somente poderá ser avaliado ao longo do tempo.
7 Evidentemente, não estou, em momento nenhum, dizendo que o avô é a única figura que tem essa possibilidade, já que algum outro parente – tia, tio, prima etc. – ou mesmo uma babá, pouco confundida com a função materna, poderiam também cumprir essa função. Mas, há de se convir que, no nível de uma maior proximidade familial, o avô ocupa, sem dúvida, uma posição privilegiada.
8 É evidente que uma criança de dois anos e meio ainda não tem esse tipo de pensamento lógico formal, nem tampouco que os insights se processem por um pensamento desse gênero, ocorrendo por via muito mais intuitiva do que racional. A formulação do processo nessa forma de pensamento tem apenas a função didática de facilitar a sua compreensão racional aqui no texto.
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Françoise Dolto examina essa incompetência dos avôs para funcionarem como terceiro elemento no complexo de Édipo dos netos, no caso de mães separadas de seus maridos e que voltam a morar na casa dos pais. Ela nos diz: "O complexo de Édipo é caracterizado, de fato, pelo amor que a criança tem pelo genitor do sexo oposto, o que implica rivalidade com o genitor do mesmo sexo. Mas essa rivalidade, essa oposição normalmente se resolve sublimando-se, elevando-se acima do conflito entre pessoa e pessoa, de sorte que a criança (menino) se identifica com o que, no pai, possui a mãe, isto é, a virilidade. Ora, se o menino substitui o pai pelo avô, não pode identificar-se com o princípio masculino do avô, pois essa virilidade não possui, justamente, sua mãe. A socialização da criança fica, assim, perturbada e corre o risco de desviar-se para sempre" (Dolto, 1998, p. 180).
10 Eu, normalmente, prefiro traduzir female element como "elemento fêmea" e male element como "elemento macho" e não como "elemento feminino" e "elemento masculino", como comumente aparecem nas traduções oficiais, já que Winnicott faz uso dos adjetivos male e female e não masculine e feminine.
11Obviamente, não penso que possamos comparar a constituição da subjetividade de nossos bebês com, por exemplo, a de bebês indígenas, em tribos nas quais as funções maternas sejam coletivamente distribuídas entre as mulheres da tribo, passando o bebê por mães variadas. E nas quais as relações de parentesco se constituam de forma diferente das nossas. Isso significa dizer que as conclusões a que chego, aqui, somente são válidas para o mundo "civilizado", ocidental, capitalista e para o tipo de constituição psíquica que lhe é próprio. Não alimento ilusões sobre qualquer tipo de universalidade das teorias psicanalíticas...