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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.6 no.2 São Paulo  2011

 

Artigos

 

Neurose e sexualidade: o caso Hesta e a visão winnicottianaessários

 

Neurosis and sexuality: the case Hesta and the Winnicott's approach

 

 

Tânia Corrallo Hammoud

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Professora do CWSP
e-mail: taniac.h@uol.com.br

 

 


Resumo

O artigo faz algumas articulações teóricas entre sexualidade e neurose, tal como formuladas por Winnicott. Uma vez que essas questões adquirem clareza especial nos textos nos quais ele apresenta seus casos, foi escolhido o caso Hesta para servir de fio condutor para essas considerações. O texto fará referência às diferenças de concepção relativas a esses temas entre Winnicott e Freud, mas buscará, sobretudo, explicitar a teoria e a clínica de Winnicott quando diante de um caso de neurose.

Palavras–chave: neurose, sexualidade, elaboração imaginativa, integração, amadurecimento.


Abstract

The article makes some theoretical links between sexuality and neurosis as formulated by Winnicott. Once these issues acquire special clarity in the texts in which he presents his cases, the case Hesta was chosen as a guide to these considerations. The text will refer to the design differences on these issues between Freud and Winnicott, but above all seek to explain the theory and practice of Winnicott when faced with a case of neurosis.

Keywords: neurosis, sexuality, imaginative elaboration, integration, maturational processes.


 

 

1. Introdução

Ao formular, ao longo do tempo, sua compreensão a respeito do lugar da sexualidade na constituição psíquica do indivíduo, e especificamente na constituição da neurose, Winnicott reafirma sua forma própria de entendimento dessas questões, forma que será diferente daquela proposta por Freud.

Freud entende a sexualidade como representação psíquica das excitações corporais, como pulsões, e considera que os destinos destas estarão na base da constituição do indivíduo. Os conflitos sexuais, tendo o complexo de Édipo como conflito central, ocupam, assim, um lugar fundamental na constituição da vida psíquica, na constituição da neurose e da ordem cultural, em todas suas formas de manifestação.

Winnicott reconhece a importância da descoberta freudiana e vai além dela, produzindo uma nova ordem de compreensão desses fenômenos. Para Winnicott, a sexualidade, entendida como instinto, não como pulsão, não está presente desde o início, assim como não o estão todos os demais instintos. O corpo está presente desde o início, e é com apoio nele e na interação com ele que o psíquico se constitui. Para que isso aconteça, no entanto, é preciso que, em um processo gradativo de amadurecimento, uma experiência de elaboração das exigências instintivas possa acontecer. Winnicott dá a esse fenômeno o nome de elaboração imaginativa. Simultaneamente, em função da tendência à integração presente em cada indivíduo, precisarão acontecer experiências que propiciem essa integração, para que o indivíduo como pessoa total possa emergir e passe a integrar todos os demais acontecimentos da vida. Esses conceitos serão desenvolvidos mais adiante. Nesse contexto, a sexualidade é uma maneira específica de vivenciar a instintualidade e só poderá ser integrada num momento mais tardio do processo de amadurecimento, quando existir um Eu que possa realizar essa operação. De acordo com Winnicott, portanto, a sexualidade adulta é resultado de um processo de amadurecimento, processo esse apoiado nas excitações corporais de toda ordem, mas também, e talvez sobretudo, nas relações humanas. Para Winnicott,

a sexualidade humana adulta é resultado de um processo de amadurecimento que parte de duas raízes em si mesmas não-sexuais: excitações corpóreas de todos os tipos e relações inter-humanas. As aquisições principais realizadas ao longo desse processo são duas: 1) o desenvolvimento da vida instintual, que consiste na elaboração imaginativa de todos os instintos – impulsos de natureza biológica –, integração desses instintos no si-mesmo e nas relações interpessoais, duais, triangulares ou múltiplas, terminando por estabelecer a sexualidade como o tipo instintual dominante na fase adulta e 2) o desenvolvimento de características sexuais não fundadas biologicamente, decorrentes de inter-relacionamentos de diferentes tipos. (Loparic, 2007, pp. 315-316)

As articulações entre sexualidade e neurose formuladas por Winnicott adquirem clareza especial nos textos nos quais ele apresenta seus casos. O caso Hesta (Winnicott, 1971j/1984, pp. 188 a 205) é um desses exemplos. Nele fica claro seu entendimento do lugar da sexualidade na constituição psíquica, permitindo reflexões sobre as diferenças teóricas e clínicas de sua compreensão em relação à freudiana. Através desse caso, é possível tornar clara a teoria e a clínica de Winnicott nas questões relativas à articulação entre neurose e sexualidade.

 

2. Alguns pressupostos da teoria winnicottiana

Winnicott vai conceber a natureza humana como algo que parte de um estado de não ser para outro, de ser, em um movimento contínuo, do nascimento até a morte. A continuidade desse estado de ser é condição para a constituição sadia do psiquismo humano. Se estivéssemos falando de uma bolha, para que esta continuasse existindo (Winnicott, 1988/1990, p. 148), seria necessário que a pressão externa estivesse adaptada à pressão interna. Caso contrário, ela poderia explodir ou, para que essa desintegração não ocorresse, a bolha precisaria cuidar do ambiente interno ou externo, deixando de existir por si mesma e passando a reagir a essa invasão. No caso do bebê, se houvesse essa adaptação do ambiente externo, ele poderia continuar existindo, continuar sendo, caso contrário, teria de reagir defensivamente a essa intrusão. Ser a partir de um movimento próprio é condição para a constituição psíquica saudável.

Este é um primeiro fundamento de sua teoria: o amadurecimento se dá em função de movimentos que levam o ser humano do não-ser ao ser, e é a continuidade desse movimento, presente por toda a vida, que será a base da constituição psíquica sadia.

Winnicott vai postular, ainda, a existência de um estado inicial de não-integração e uma tendência inata à integração, origem e condição dessa possibilidade de ser si mesmo. A partir de um estado inicial de não-integração, momento no qual não se pode falar de um bebê, mas de uma espécie de amálgama mãe-bebê, o indivíduo caminha para a conquista de diferentes tipos de integração. Em contato consigo mesmo e com o mundo, o indivíduo vai desenvolvendo diferentes modos de relação com a realidade: realidade subjetiva, realidade transicional e realidade objetivamente percebida e compartilhada (estes são conceitos fundamentais, mas que não serão aqui desenvolvidos). São diferentes necessidades de integração que irão comparecendo ao longo do processo de amadurecimento e que serão chamadas por Winnicott de tarefas do indivíduo ao longo desse processo: integrar tempo e espaço, integrar psique e soma, integrar a si mesmo e a realidade externa – tarefa que perdurará, também de diferentes modos, ao longo de toda vida.

São, portanto, acontecimentos da vida: continuar existindo, continuar integrando. São acontecimentos que se constituem em necessidades do existir, necessidades que precisam ser conciliadas, ou como na imagem da bolha, precisam ser equilibradas, na relação com o ambiente externo. É importante distinguir essas necessidades daquelas relativas ao desenvolvimento instintual. Ao falar em necessidades, Winnicott não está se referindo às necessidades instintuais.

Deve-se ressaltar que ao me referir a satisfazer as necessidades do lactente não estou me referindo à satisfação de instintos. Na área que estou examinando, os instintos não estão ainda claramente definidos como internos ao lactente. Os instintos podem ser tão externos como o troar de um trovão ou uma pancada. O ego do lactente está criando força e, como consequência, está a caminho de um estado em que as exigências do id [exigências da vida instintual] serão sentidas como parte do si-mesmo, não como ambientais. (Winnicott, 1965m[1960]/1983, p. 129)

As necessidades das quais Winnicott fala são aquelas da ordem da experiência vivida e da formação de um si-mesmo espontâneo e pessoal, apoiadas num ambiente facilitador. É preciso que, através de uma relação suficientemente boa com o ambiente, uma determinada ordem de experiência se dê, uma integração ocorra e a continuidade da existência aconteça.

A natureza humana, portanto, diferentemente da forma como a entende a psicanálise clássica, tem seu fundamento na necessidade e não no desejo e, ainda, não numa necessidade de qualquer ordem, mas na necessidade específica de ser e de se relacionar de forma integrada.

Uma passagem do livro de Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas" (Rosa, 1965, p. 20), faz lembrar essa concepção de Winnicott sobre a natureza humana. Rosa diz pela boca do jagunço Riobaldo: "O senhor mire veja, o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando". Poder-se-ia dizer, elas vão sempre sendo.

A permanente necessidade de ser e a permanente tarefa de integração, que nos acompanha pela vida afora, nos coloca diante do fato mais importante e bonito do mundo, sendo também o mais complexo, qual seja, o de que nós nunca estamos terminados, vamos sempre mudando, vamos sempre sendo. Certamente Winnicott e Guimarães Rosa não se conheceram, mas há entre eles uma identidade de compreensão sobre o devir humano. Vai acontecendo o crescimento, vai acontecendo a necessidade de ir resolvendo, uma depois da outra, as mais diversas tarefas de integração: do nascimento até a morte. Como a vida não é fácil e como somos seres frágeis e dependentes do meio, vai acontecer uma necessária conciliação entre o indivíduo e o ambiente de forma permanente; caso contrário, é como se existíssemos de alguma forma não acontecida (Loparic, 2000).

Essa conciliação está, de um lado, apoiada na tendência inata à integração e, de outro, na interação com um ambiente, do qual o ser humano depende em diferentes graus ao longo da vida. A cada momento da vida existe uma tarefa básica de integração que se faz necessária. Essa tarefa será específica para cada momento do amadurecimento e acontecerá diante de um grau de dependência do ambiente, que irá da dependência absoluta à independência relativa, determinando uma necessidade de ordem também específica. O ambiente precisará responder exatamente a essa necessidade, propiciando ao indivíduo aquilo que lhe permitirá continuar existindo de forma significativa.

E aí está outra questão fundamental para Winnicott: viver de forma significativa. Para ele não basta sobreviver, não basta só viver. Para Winnicott, é preciso que a vida valha a pena ser vivida, é preciso ser significativa. Como se criam as significações? Exatamente pela possibilidade de cada ser humano criar o mundo a partir de seu contato espontâneo com essa realidade externa. A realização dessa tarefa, qual seja, o encontro da significação da vida, depende do que ele chama de elaboração imaginativa das experiências de viver. É essa elaboração, que, ancorada na aliança psicossomática, vai garantindo significados ao viver, significados que terão de ser sempre pessoais (Loparic, 2007). O ambiente entra para garantir, através de um manejo adequado, a possibilidade de encontro desse significado. A partir daí, é possível a vivência de algo que Winnicott chamará de verdadeiro si-mesmo, base de todas as experiências significativas. O si-mesmo verdadeiro será aquele que permitirá a "experiência de continuidade", experiência que garantirá o viver criativo, a um só tempo pessoal e compartilhado.

Continuidade da existência, necessidade de integração, dependência do ambiente, aliança psicossomática, elaboração imaginativa das funções, viver de forma significativa, viver de forma criativa, elaborando, sonhando...

O caso que será estudado adiante tem nesses conceitos fundamentais a base da ação terapêutica desenvolvida por Winnicott. Ainda que diante das questões da neurose, revividas na adolescência, são as tarefas da vida que estarão presentes, vividas segundo as características e necessidades desse estágio e manejadas segundo esses pressupostos.

 

3. Pressupostos básicos da articulação entre neurose e sexualidade para Winnicott

Winnicott vai definir a neurose como se segue:

O paciente existe como pessoa, é uma pessoa total, que reconhece objetos como totais; acha-se bem-alojado em seu próprio corpo e a capacidade de relacionamentos objetais está bem estabelecida. Desde este ponto de vista, o paciente encontra-se em dificuldades, e estas surgem dos conflitos que resultam da experiência de relacionamentos objetais. Naturalmente, os conflitos mais graves aparecem em conexão com a vida instintual, isto é, as variadas excitações com acompanhamentos corporais que têm como fonte a capacidade que o corpo possui de ficar excitado – de modo geral e localizado. (Winnicott, 1989vl[1961]/1994, p. 53)

Ou ainda: "é aqui e exatamente aqui que estamos lidando com as tensões e estresses internos, os conflitos, principalmente inconscientes e pertencentes aos domínios da realidade psíquica total do indivíduo" (Winnicott, 1989vl[1961]/1994, p. 57).

São várias as questões que estão aí envolvidas e que se articulam com a teoria do amadurecimento, porém, no que diz respeito à questão específica da sexualidade, podemos constatar que, por um lado, a sexualidade é reconhecida como central na neurose, as questões edípicas aí envolvidas igualmente, bem como a existência de um inconsciente no qual se travam os conflitos de amor e ódio típicos desse momento. Por outro lado, Winnicott diz que a criança que vive esse momento é já uma pessoa total, isto é, várias conquistas do amadurecimento já se deram. Para que a sexualidade seja integrada, ela deverá ser vivida por uma pessoa total, que chegou a um estado de relativa saúde mental. Nesse estágio, a criança é capaz de brincar e sonhar e, a partir daí, elaborar seus conflitos, ancorada nesse tripé conquistado nas fases anteriores, qual seja, integração, personalização, relações de objeto.

A partir desse solo seguro, todos os conflitos desse momento edípico relacionam-se com o conflito básico de todo ser humano: a possibilidade de primeiro ser, continuar existindo de forma que seja possível reconhecer em si mesmo e no outro pessoas totais, bem alojadas em seus próprios corpos, atuando no mundo de forma implicada, a partir da possibilidade de relacionar-se com a realidade externa, sem perder demasiadamente sua espontaneidade.

por diversas maneiras demonstrei, espero eu, que, no estágio do complexo edipiano, é imensamente valioso que a criança possa seguir vivendo em um ambiente assentado de lar, de maneira que seja seguro brincar e sonhar, e que o impulso a ser amoroso possa ser transformado em um gesto efetivo, no momento apropriado. (Winnicott, 1989vl[1961]/1994, p. 57; os dois primeiros itálicos são do autor, os demais são meus)

Para poder integrar instintos, amor e ódio, e todas as demais experiências naturais do viver, a criança precisa de um ambiente suficientemente bom, que lhe propicie brincar, sonhar e ter acolhido seu gesto espontâneo. Pode-se dizer que, ao longo do processo de amadurecimento, a criança precisa de colos, colos que se ampliarão desde o colo da mãe, passando pelo dos pais como casal e o da família, até chegar às várias instituições organizadas da sociedade. No caso de Hesta, foi a ausência do colo materno primeiro, e depois o do casal, que estiveram na origem de seus sintomas.

 

4. O caso Hesta

Hesta era uma adolescente que tinha sintomas que pareciam envolver uma relação clara com a sexualidade. O aparecimento da doença coincidia com a primeira menstruação e ela tinha dúvidas a respeito de sua identidade sexual. No entanto, a ação terapêutica de Winnicott durante a consulta é guiada por sua teoria do amadurecimento, na qual a sexualidade se faz presente, porém, não como fator causal.

Hesta é uma adolescente de 16 anos quando chega para a consulta. Ela ficara nervosa desde seu primeiro fluxo menstrual aos 14 anos, época na qual os pais viveram uma crise no casamento, que já se resolvera à época da entrevista.

Aos 15 anos, não conseguia dormir, era hipersensível ao que os outros pensavam a seu respeito e tinha sentimentos de falta de adaptação tanto na escola como na vida pessoal. Tinha medo de que pudesse ser lésbica. Podiam ser observadas manifestações maníaco-depressivas, mas ela insistia no fato de que não havia nada de errado com ela. Aos 16 anos, época da consulta, tinha sintomas excêntricos, e o medo de que pudesse se matar. Recusava hospitalização. Tratada em casa, perdeu a hostilidade generalizada e engordou. Passou a se comportar como uma criança de oito anos, fazendo caretas e conversando com pessoas ausentes.

Ao longo da descrição da consulta terapêutica, Winnicott vai sublinhando o entendimento de que a origem da doença ligava-se à questão do amadurecimento, ainda que a sexualidade estivesse ali presente. Na origem da doença havia, em primeiro lugar, o sentimento de perda da mãe como ambiente confiável e, na sequência, a perda da confiança no casal parental como apoio para seu desenvolvimento, como ficará claro a seguir.

Winnicott descreve Hesta como uma menina gorda, potencialmente hostil e assinala, um pouco enfeitada, como se tivesse atendido à solicitação de ir vestida adequadamente para se encontrar com o médico.

Winnicott já sabia que Hesta era uma adolescente que se recusava a realizar as tarefas escolares, ia mal na escola, mesmo sendo inteligente. Mantinha uma atitude genérica de desafio em relação ao ambiente.

Pode-se pensar que, ao perceber que Hesta apresentava-se de forma hostil e pesada, Winnicott resolve iniciar a consulta de forma descontraída e, para brincar com ela, lhe diz que acabara de voltar de férias e estava um pouco relutante em voltar a trabalhar.

Desde esse início, é sua teoria do amadurecimento que lhe serve de guia. O brincar está na base do viver saudável e da possibilidade de comunicação em análise. Era, portanto, necessário propiciar a essa menina hostil e pesada uma certa leveza, e é o que Winnicott lhe oferece.

Winnicott percebe, então, que Hesta gostara de ouvir a brincadeira e passa a falar de si mesma. Conta que estava com problemas na escola porque não havia feito as provas e, mesmo que as tivesse feito, não iria bem, porque não havia estudado. Deixa clara sua forma desafiante de ser nesse momento. No entanto, não vai além na descrição de seus problemas. Achava-se normal, achava que estava certa. Os pais é que, para ela, eram anormais. Diz: "Houve um tempo em que papai e mamãe não se davam bem, quando eu estava com treze anos, ou doze, mas o problema principal foi quando eu estava com quatorze anos, quando tive uma depressão séria" (Winnicott, 1971j/1984, p. 189).

De forma significativa para o entendimento da origem dos sintomas, Winnicott vai frisar que Hesta relutava em aceitar a teoria de que ficara doente em função de seus ciclos menstruais. Aquilo que sua fala acentua é a briga dos pais. Pode-se pensar que se trata de uma forma de hostilidade e desafio, certamente! Mas, poderia ser também uma possibilidade de afirmação de si mesma. No caso do adolescente, onde há um desafio, há uma forma de afirmação da própria identidade, ainda que de forma imatura. É assim que Winnicott entende o amadurecimento nessa fase. É de sua identidade como pessoa que essa adolescente está tratando.

A partir daí, Winnicott propõe o jogo dos rabiscos. Rapidamente, e de forma bastante concentrada, ela desenha e dá nomes aos desenhos: um rato-cachorro; um desenho em duas fases: uma forma circular e uma forma angulosa; um rabisco Winnicott transforma em uma menina que, ela diz, está pedindo socorro; Winnicott transforma o pedido de socorro (provavelmente o dela a ele) numa conversa sobre os Beatles, brincando de novo, pode-se dizer.

O terceiro desenho é de um peixe pulando para fora do mar, que ela chama de peixe-dançarino. Winnicott percebe em Hesta uma capacidade de dedicação séria ao que lhe havia proposto, concluindo que, na verdade, ela possuía condições para estudar, caso isso pudesse lhe interessar, ao mesmo tempo em que assinala que ela era capaz de brincadeiras. Entendo que Winnicott quer assinalar que Hesta era, na verdade, capaz de trabalhar, sendo leve e criativa ao mesmo tempo, alguém muito diferente da adolescente que se apresentava ao mundo – gorda e sem capacidade de estudar.

É importante notar que Winnicott enfatiza a compreensão que esses desenhos lhe trazem: a capacidade de Hesta para brincadeiras imaginativas e criativas. Conclui, então, que ela podia contar com uma força de ego tal que, diz ele: "a capacitava, no curso do tempo, a usar suas experiências instintuais, ao invés de ser ferida por elas" (Winnicott, 1971j/1984, p. 190).

Por que é para isso que ele olha? Porque a ele interessa, no curso de uma análise, ou de uma consulta terapêutica, o diagnóstico da força de ego, necessária para a capacidade de viver criativamente, força de ego que lhe servirá de guia dos manejos que se farão necessários ao longo do trabalho. Para haver um ego que possa dar conta da experiência, é preciso ter ocorrido toda uma fase anterior de integrações para as quais Winnicott está olhando.

Na sequência, ela faz um desenho só dela. Trata-se do rosto de um homem que ela chama de o homem sinistro. Winnicott entende que está diante da comunicação de seu tema central e pensa: poderia ser eu mesmo, ou seu pai como figura sexual, ou um homem com más intenções, como um médico tentando, através da cura, ameaçar sua individualidade. Não interpreta, a fim de permitir a coexistência de vários significados. Veja-se que entre os significados está a sexualidade, mas também a possibilidade de sentir uma ameaça à sua individualidade.

Depois disso, Winnicott brinca novamente com ela, dizendo: "Espero que sua mãe pense que estamos trabalhando" (Winnicott, 1971j/1984, p. 193, itálico do autor). O brincar é usado como uma espécie de manejo para ganhar confiança e permitir a comunicação, objetivo fundamental da consulta.

Em função do ganho de confiança, ela desenha um jogador de futebol americano... com sardas. Pode-se perceber que ela perseverava em seu tema, porém, desta vez, com comicidade, brincando! Nesse ponto, Winnicott pôde introduzir a dúvida a respeito de sua identidade sexual e lhe pergunta se, caso tivesse escolha, teria nascido menino ou menina.

Seguem-se considerações de ordem psicológica. Ela afirma que cada um gosta de ser o que é. Pode-se perceber que essa fala confirma aquilo que de mais importante estava em jogo para Hesta, a possibilidade de ser ela mesma, como se ela já tivesse lido sobre o verdadeiro e o falso si-mesmo!

No desenho sete ela faz um dinossauro bebê. Embora Winnicott não faça referência direta ao fato, esse dinossauro tem o rabo evidentemente fálico e Winnicott percebe a retomada da fantasia sobre homens. Pensa que talvez esteja em jogo a inveja do pênis. De novo prefere não interpretar.

Em seguida, de forma bastante significativa, Hesta faz do rabisco dele um desenho do "João e o Pé de Feijão". Winnicott se dá conta de que ela está usando de forma ativa sua capacidade criativa e entende, com isso, que ela já havia ultrapassado bem a fase fálica. Sobre isso ele esclarece: "Hesta se tornou ativa em sua expressão criativa, sendo isso uma coisa que meninas podem fazer tão bem quanto meninos. Um pênis não é necessário" (Winnicott, 1971j/1984, p. 194).

No desenho nove, Winnicott aponta que ela volta a usar o formato do rabisco em duas etapas: ângulos, masculino, e círculos, feminino. Ele faz de seu rabisco o desenho de um casal, explicando que seu desenho era uma espécie de interpretação das duas etapas dos rabiscos dela: as duas possibilidades do princípio homem e mulher de sua técnica de rabiscar.

Como pode ser entendida essa interpretação? Hesta já havia informado que seus sintomas, apesar de terem surgido simultaneamente à primeira menstruação, estavam de fato ligados à crise dos pais. Era o casal parental que estava envolvido com sua doença. Ela, que estava certamente às voltas com sua instintualidade, havia perdido os pais como apoio e sustentação para seu desenvolvimento, e era como se não soubesse mais o que fazer com sua sexualidade. Perdera o rumo. Não podia mais dar conta de seus impulsos instintuais. Seu corpo feminino ela o encobre, ficando gorda, e sua identidade ela não sabe qual é.

Nesse desenho nove, quando ela repete as duas fases de seus rabiscos, o círculo e o ângulo, masculino e feminino, Winnicott, entendendo que ali há uma dissociação, não uma repressão, integra o elemento feminino e o masculino, desenhando um casal unido, assinalando a questão essencial: a dificuldade de integração de seus elementos masculinos e femininos em função da falta de apoio do casal parental unido.

Pode-se pensar que, ao desenhar um casal unido, Winnicott faz de fato uma boa interpretação, que, por ter podido funcionar assim, permite à Hesta, no desenho seguinte, ser ela mesma. Ela faz o desenho de uma moça com um chapéu, integrando, dessa forma, signos masculinos (o chapéu), e sendo ela mesma, uma menina, claramente retomando contato consigo mesma, de forma integrada nesse momento. Winnicott se diz surpreso pela forma como ambos foram capazes de fazer, juntos, o retrato dessa menina. Força de ego, de um lado, capacidade de manejo, de outro, levando à possibilidade de retomada do crescimento; parece ser aqui o suporte da ação de Winnicott no encontro com Hesta. Nas palavras de Winnicott:

Percebi que ela estava consciente de seu eu físico, de uma maneira muito natural e de um modo que indicava autoaceitação. Aqui é possível ver o desenho com o chapéu como parte da autoaceitação de Hesta como menina e a redução de sua inveja do pênis em brincadeiras com chapéus e outros símbolos do órgão masculino, que aparece naturalmente nas roupas das mulheres e em seus interesses intelectuais de centenas de maneiras, e que mostram para meninos e homens, o sinal de que o tema da inveja do pênis está se tornando controlável na menina, ao lado da total descoberta pela mulher do uso de seu corpo e personalidade femininas. Neste ponto me senti convencido da capacidade de Hesta de aceitar a puberdade e o crescimento para ser uma mulher adulta. (Winnicott, 1971j/1984, p. 197).

Para Winnicott, portanto, a inveja do pênis é apenas uma etapa da feminilidade, que pode ser ultrapassada. Nem reprimida, nem sublimada, apenas integrada para um uso posterior criativo.

Nesse momento, algo de extremamente importante se passa. Hesta volta a fazer um desenho em duas etapas, referindo-se de novo à sua dissociação. Enquanto Winnicott pensava o que fazer com esse novo rabisco (provavelmente surpreso pelo retorno do tema, após um bom momento de integração), ela introduz uma nova regra no jogo e pede que ele a desafie a fazer ela mesma algo com seu próprio rabisco. Desenha, então, uma mulher com uma criança em uma canoa. A mulher está feliz, mas a criança está indiferente. Winnicott conclui que ela fazia referência ao início mais precoce de sua sintomatologia, quando sua mãe havia lhe feito falta.

Constata-se que as angústias da menina, para Winnicott, tinham origem na falta do colo de uma mãe, que não pôde lhe dar sustentação, naquele momento, ajudando-a, por exemplo, a entender as mudanças em seu corpo. Ambiente que, num segundo momento, lhe falta como colo, quando, em função das brigas dos pais, não pôde estar ali para aceitar e lidar com seus desafios de adolescente.

Ela volta no desenho seguinte ao tema do redondo e do pontudo e, dessa vez, Winnicott faz de seus rabiscos uma menina secando-se depois do banho. Embora Winnicott não faça referência explícita a isso, pode-se ver no desenho uma menina bem redonda, como ela, cheia de formas. Ela fica muito contente, chamando-a de Lady de Plymouth, local onde ela sabia que Winnicott havia passado as férias. Sobre esse desenho, Winnicott não faz nenhum comentário, mas talvez se possa pensar que havia também, através desse desenho, uma espécie de nova interpretação, que poderia ser formulada como se segue: percebo que você cresceu, percebo sua feminilidade, e posso também perceber suas fantasias em relação a mim, sabendo que nós não vamos confundir sonho com realidade. Podemos brincar de você ser a Lady de Plymouth.

Nesse ponto, sabendo que ela havia atingido fantasias de qualidade altamente pessoal, Winnicott lhe pede sonhos, a fim de atingir camadas mais profundas de comunicação. Ela fala de sonhos nos quais aparecem dificuldades na escola, sonhos com os pais como gêmeos, e sonhos de aviões que explodiam, falando sobre a vergonha de não poder de fato voar. Winnicott lhe propõe uma conversa sobre sonhos e realidade, assinalando a característica enfadonha da realidade quando comparada à liberdade do sonho. Hesta lembra, então, de sonhos em que voava, depois de conversar com o pai sobre pássaros. Winnicott entende que ela lhe revelava ter tido um momento real de desilusão na relação com o pai. Pode-se concluir que Winnicott mostra que, se ali com ele era possível brincar de ser a Lady de Plymouth, como em fantasias ou em sonhos, distinguindo claramente o brincar da realidade, com o pai isto só pôde ser vivido de forma dissociada, como desilusão. O casal parental, ao lhe faltar como "rocha firme" de sua união, não lhe propiciara essa distinção necessária entre sonho e realidade. Não lhe propiciara essa integração.

O desenho que se segue, Harpo Marx tocando harpa, revela. para Winnicott, a admissão de uma identificação masculina, que ele associa aos sentimentos de inadequação, inclusive na escola. De alguma forma, pode-se pensar que essa consulta terapêutica estava também em relação a essa questão, propiciando-lhe a expressão mais integrada de seus sintomas. Poderia ter um elemento de identificação masculina integrado à sua personalidade, sem perda da adequação, sem perda de sua identidade sexual feminina.

Significativamente, ela volta a fazer o rabisco em duas etapas, redondo e pontudo, só que agora superpostos e Winnicott pede que ela o deixe assim mesmo. Ela o chama de "contraste". Pode ser percebido aí um belo exemplo de integração masculino-feminino!

No desenho seguinte, Winnicott transforma seu rabisco num relógio, fazendo referência ao tempo. Diz: "Estávamos lidando com o fator tempo, que o adolescente sente como a maior manifestação do princípio de realidade" (Winnicott, 1971j/1984, p. 202).

O final da consulta também se aproximava. Ela se lembra do médico que a mantinha em consulta sem dizer coisa alguma e como ela sentia isso como uma enorme perda de tempo. Winnicott percebe que deveria deixá-la ir, assim que isso se manifestasse como desejo, ou ali também haveria desperdício de tempo.

O último desenho, a partir de um rabisco de Winnicott, a leva de volta a seu dilema básico, a paralisia diante da escolha entre duas possibilidades. Isso incluía sua tendência maníaco-depressiva. Ela hesita entre um camelo e uma mulher negra, entre um homem e uma mulher e, finalmente, transforma o rabisco de Winnicott em um filhote de hipopótamo.

Para poder amadurecer como adolescente, integrando os dois princípios de sua personalidade, masculino e feminino, era preciso voltar no tempo, era preciso regredir. Depois desse desenho, ela fala que, quando crescer, será mãe de dois ou quatro filhos, fechando assim sua consulta. Regredindo num ambiente confiável, poderia retomar seu amadurecimento e vir a ser mulher adulta e mãe.

O médico e a mãe relatam como haviam sentido melhoras significativas nela após essa consulta. A mãe diz: "Essa é a primeira vez que alguém conseguiu se comunicar com essa garota, desde que ela ficou doente aos quatorze anos" (Winnicott, 1971j/1984, p. 205). Ela é retirada da escola, passa a ser tratada em casa por uma pessoa que a acompanha em sua necessidade de regressão e, após algum tempo, a pedido dela mesma, volta para a escola, tendo ocorrido uma melhora nos sintomas maníaco-depressivos.

 

5. Conclusão

Está claro a partir de Hesta que, para Winnicott, o que pode perturbar o desenvolvimento psíquico não é o desenvolvimento sexual e os conflitos daí decorrentes, mas o amadurecimento emocional, apoiado no significado do viver, tendo o ambiente uma importância decisiva no surgimento dos distúrbios psíquicos.

Hesta tinha perdido o apoio da mãe, depois dos pais, em um momento em que tinha que integrar amor e ódio em um corpo em transformação, num momento de imaturidade. Era do manejo dessas questões que ela precisava para reencontrar a si mesma.

Desde que o ambiente sobreviva aos ataques de raiva e destrutividade, aos desejos incestuosos e de mortes, e acolha os gestos de amor, a criança poderá tolerar, aceitar e, principalmente, integrar esses impulsos, essas fantasias e esses sentimentos ambivalentes.

A tarefa básica continua sendo a integração e não a repressão ou sublimação dos instintos, e é o ambiente, sobrevivendo à destrutividade e acolhendo o gesto de amor, que propiciará essa integração.

A sexualidade está lá, é claro, mas, acima disso, está lá a necessidade de que esse ambiente, que agora é o casal parental, possa dar o suporte, atendendo-o em todas suas demais necessidades. A tarefa da criança, na fase em que a neurose pode se estruturar, é a integração de amor e ódio. A tarefa do ambiente suficientemente bom é sobreviver a esses impulsos de amor e ódio, sendo que o ambiente sobrevive não através da rocha viva da castração, não através da interdição do desejo, mas através da rocha firme da união parental, que permanece viva, apesar dos impulsos da criança. É do casal e da família que a criança precisa para essa integração.

Ao se manterem unidos, é como se pai e mãe dissessem: pode amar e odiar, sem medo, nós estamos aqui, nós "seguramos as pontas". Isso permite à criança a integração de seus impulsos e, mais uma vez, diferenciar o real do sonho. O sonho, podendo permanecer como sonho, dá significado à vida. O sonho, sendo só um sonho, pode continuar existindo e ajudar a levar, no caso do menino, do ódio ao pai à rivalidade saudável com o outro, e do amor à mãe ao amor por todas as outras mulheres do mundo, menos a mamãe!

É a teoria do amadurecimento o guia do entendimento e da atuação clínica de Winnicott, mesmo quando diante de casos de neurose.

A única companhia que tenho ao explorar o território desconhecido de um novo caso é a teoria que levo comigo e que se tem tornado parte de mim e em relação à qual sequer tenho que pensar de forma deliberada. Esta é a teoria do desenvolvimento emocional do indivíduo, que inclui, para mim, a história total do relacionamento individual da criança com seu meio ambiente específico. (Winnicott, 1971vc/1984, p. 14)

 

 

Referências

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Winnicott, D. W. (1984). Hesta aos 16 anos, caso 11. In D. Winnicott (1984/1971b), Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971; respeitando-se a classificação Huljmand, temos 1971j)        [ Links ]

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