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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.7 no.1 São Paulo  2012

 

Artigos

 

A universalização da falta: o risco normativo da psicanálise lacaniana

 

The universalization of the lack: the normative risk of Lacanian psychoanalysis

 

Richard Theisen Simanke

Departamento de Psicologia, Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
e-mail: richardsimanke@uol.com.br

 

 


Resumo

Este artigo parte da análise da teoria freudiana da sexualidade. A crítica que Freud desenvolve das teorias médicas da sexualidade é reinterpretada como endereçada ao caráter normativo da sua redução da sexualidade à reprodução desconstruída por Freud nos Três ensaios. A seguir, discute-se até que ponto Freud conseguiu manter sua reflexão sobre a sexualidade isenta de considerações de ordem normativas e sugere-se a oscilação, em sua teoria sexual, entre um discurso sobre a diferença, em que essa diretriz poderia ser mantida, e um discurso sobre a falta, em que a sexualidade masculina seria tomada como norma para a concepção da sexualidade feminina. A universalização desse discurso sobre a falta, que é característica da psicanálise lacaniana, por sua vez, traria consigo o risco de generalização dessa atitude normativa. Os efeitos dessa atitude são, então, rastreados no desenvolvimento das ideias de Lacan e alguns de seus conceitos mais significativos são reinterpretados em termos de um esforço para superar ou evitar essas consequências normativas, incluindo-se aí a evolução do conceito de Nome-do-Pai, suas reflexões mais tardias sobre a especificidade do gozo feminino e, sobretudo, sua caracterização da psicanálise como um discurso ético e a formulação da noção de uma ética do real. Por fim, discute-se até que ponto essa orientação teórica compromete a concepção da psicanálise como uma prática de transformação do sujeito

Palavras–chave: Freud, Sigmund, 1856-1939; Lacan, Jacques, 1901-1981; falta; diferença; norma.


Abstract

This paper starts from the analysis of Freud's theory of sexuality. Freud's critique of the medical theories of sexuality is reinterpreted as addressed to the normative character of their reduction of sexuality to reproduction, which is deconstructed by Freud in his Three essays. Next, it is discussed to what extent Freud was able to maintain his reflection on sexuality free from normative considerations. It is suggested that his sexual theory wavers between a discourse on the difference and a discourse on the lack; in the first case, the non-normative guideline could be maintained, but, in the second, male sexuality would be taken as a norm for the conception of female sex uality. The universalization of this discourse on the lack, which is typical of Lacanian psychoanalysis, would in turn bring with it the risk of generalizing this normative attitude. The effects of this attitude are then followed in the development of Lacan's ideas. Some of his most important concepts are reinterpreted as an effort to avoid or overcome these normative consequences, including the evolution of the concept of Name-of-the-Father, Lacan's late reflection on the specificity of the feminine enjoyment (jouissance) and, above all, his characterization of psychoanalysis as an ethical discourse and the notion of an ethics of the real. Finally, it is discussed to what extent this theoretical orientation undermines psychoanalysis conception as a transformative practice of the subject.

Keywords: Freud, Sigmund, 1856-1939; Lacan Lacan, Jacques, 1901-1981; lack; difference; norm.


 

 

1. Introdução

O argumento freudiano, em sua crítica das concepções médicas da sexualidade que lhe eram contemporâneas, pode ser entendido no sentido de que reduzir a sexualidade à reprodução sequer consista em uma definição insuficiente da mesma. Essa restrição excessiva sugeriria não se tratar de uma definição propriamente dita, mas, antes, de uma norma sexual travestida de definição – uma prescrição daquilo que é aceitável como conduta sexual em um certo contexto sócio-histórico, e não uma descrição daquilo em que a sexualidade consiste. A crítica desenvolvida por Freud no primeiro dos "Três ensaios"pode, assim, ser reconstruída como um esforço de separar, no tratamento da sexualidade, as questões de fato (o que a sexualidade é) das questões normativas que se imiscuem em sua investigação (o que a sexualidade deve ser). Evidência disto é que o principal argumento da psicopatologia da época para considerar as perversões como sexuais, muito embora elas se afastassem por definição da meta reprodutiva, é que estaríamos aí diante de formas anormais da sexualidade (em geral, constitucionalmente anormais: taras hereditárias etc.).

Pode-se duvidar, no entanto, de que Freud tenha obtido pleno êxito em expurgar completamente sua concepção da sexualidade de considerações de ordem normativa. Embora tenha demolido peça por peça a norma reprodutiva, ele tende, na análise diferencial da sexualidade feminina e masculina, a tomar a segunda como um parâmetro para a consideração da primeira. Ao tratar da sexualidade feminina, Freud claramente hesita entre um discurso sobre a diferença e um discurso sobre a falta. Na medida em que este último predomine, ele estaria assumindo a sexualidade masculina como norma para a abordagem da feminina, de tal maneira que uma mulher seria sempre um homem menos alguma coisa (o falo, em todas as suas dimensões, simbólicas, imaginárias etc.).

A universalização desse discurso sobre a falta na psicanálise lacaniana tendeu a agravar e generalizar esse problema, que Lacan tentou solucionar quer procurando dissolver a diferença entre questões normativas e questões de fato (ao propor, por exemplo, uma "ética do real”), quer atribuindo à mulher a possibilidade de um gozo não fálico e, com isso, a possibilidade de uma feminilidade não histérica.

Trata-se, aqui, portanto, de analisar a proposta lacaniana da psicanálise como um discurso ético não normativo, sua reflexão tardia sobre a sexualidade feminina e o tratamento de algumas outras noções centrais em sua teoria (o conceito de Nome-do-Pai, por exemplo) como expressão de certo desconforto com o risco normativo trazido por tomadas de posição teóricas que são rigorosamente inaugurais em sua psicanálise. Procura-se, ainda, analisar comparativa e diferencialmente a posição freudiana e lacaniana a propósito dessas questões, ponderando seu alcance e seus limites.

 

2. Norma e conceito na crítica freudiana da sexualidade

Freud foi confrontado com a necessidade de teorizar mais intensivamente sobre a sexualidade desde o momento em que renunciou à assim chamada "teoria de sedução”. Com efeito, a constatação de que as cenas de sedução não são lembranças de acontecimentos objetiva e passivamente vividos na infância – mas, antes, fantasias sexuais infantis – requer o abandono da ideia de que a infância seja uma etapa "pré-sexual"do desenvolvimento. Contudo, o reconhecimento da sexualidade infantil, por sua vez, requer uma ampla redefinição do próprio conceito de sexualidade. Enquanto sustentou a teoria da sedução, a noção de sexualidade como algo que surge na puberdade e está relacionado direta ou indiretamente à função biológica da reprodução era suficiente para Freud. Na verdade, era imprescindível, pois apenas isso explicava o caráter traumático de recordações sexuais infantis quanto reativadas após a puberdade. Não é surpreendente, portanto, que, após o abandono dessa teoria, Freud muito rapidamente tenha começado a trabalhar com a hipótese de uma sexualidade infantil e com a ideia de uma relativa independência da sexualidade no tocante à reprodução. Assim, já em 1898, ele afirmava que:

A verdadeira etiologia das psiconeuroses deve ser encontrada nas experiências infantis e, mais uma vez – e exclusivamente – em impressões relacionadas com a vida sexual. Equivocamo-nos em ignorar inteiramente a vida sexual das crianças; na minha experiência, as crianças são capazes de todas as atividades sexuais psíquicas e, também, muitas somáticas. Assim como o aparelho sexual humano total não está restrito aos genitais externos e às duas glândulas reprodutivas, a vida sexual humana não começa apenas com a puberdade, como uma inspeção superficial pode fazer parecer. Não obstante, é verdade que a organização e a evolução da espécie humana se esforça por evitar qualquer grau mais elevado de atividade sexual durante a infância. (Freud, 1905a/1975, p. 280)

Contudo, a crítica sistemática do conceito de sexualidade, imprescindível para tornar inteligível a possibilidade dessa sexualidade infantil, só seria plenamente desenvolvida dos "Três ensaios"(Freud, 1905b/1975) e constantemente retomada e reafirmada depois disso. Ali, como se sabe, sobretudo no primeiro ensaio, Freud recorre às evidências fornecidas pela consideração das chamadas perversões sexuais para sustentar essa crítica da sexualidade como algo fundamentalmente vinculado à reprodução. O essencial de seu argumento é que essas inúmeras formas "patológicas"de manifestação da sexualidade, fartamente descritas e classificadas na literatura médica da época, possuem como único traço comum em sua imensa variedade justamente a desconsideração de qualquer meta reprodutiva. Não obstante, isso jamais representou obstáculo para a identificação do caráter sexual dessas práticas ditas perversas. Isso por si só deveria ser suficiente, segundo Freud, para, pelo menos, limitar a significação reprodutiva do conceito de sexualidade, mesmo que uma formulação positiva de tal conceito ainda estivesse por ser alcançada:

Vocês não devem esquecer que, no momento, não possuímos nenhum critério geralmente reconhecido para a natureza sexual de um processo, a não ser, mais uma vez, uma conexão com a função reprodutiva, que temos que rejeitar como sendo muito limitado. [...] as perversões sexuais dos adultos são algo tangível e não ambíguo. Como já se revela no nome pelo qual são universalmente conhecidas, elas são inquestionavelmente sexuais. Quer elas sejam descritas como indicações de degeneração ou de qualquer outra maneira, ninguém teve ainda coragem de classificá-las como qualquer outra coisa a não ser fenômenos da vida sexual. Apenas por causa delas, estamos justificados em afirmar que a sexualidade e a reprodução não coincidem, pois é óbvio que todas elas renegam a finalidade da reprodução. (Freud, 1917b/1975, p. 320)

Pode-se dizer que o que Freud detecta em sua crítica é uma inconsistência interna na definição do conceito de sexualidade com que opera a medicina de sua época. Em outros termos, haveria um descompasso entre a intensão e a extensão do conceito: o significado que lhe é atribuído não corresponde ao campo de objetos e fenômenos ao qual ele é aplicado, caso contrário, seria preciso reconhecer que as perversões não podem ser, por definição, sexuais, uma vez que consistem em práticas que inviabilizam o cumprimento da meta reprodutiva.

No entanto, o exame das perversões sexuais não cumpre apenas essa função negativa e crítica na argumentação freudiana. Nas entrelinhas dessa crítica, Freud procura extrair os elementos que permitiriam uma definição positiva da sexualidade, ainda que esta permaneça em grande medida implícita em sua teoria. É assim que se deve entender o esboço de uma "classificação"das perversões que Freud elabora no primeiro dos "Três ensaios"– e não, é claro, com alguma espécie de tímida contribuição à já vasta nosografia das psicopatias sexuais. Ele propõe agrupar as perversões em desvios quanto à meta sexual normal (a união genital ou coito) e desvios quanto ao objeto sexual normal (o objeto heterossexual, adulto ou reprodutivamente capaz). Essa proposta, por um lado, chama a atenção para a extrema limitação do conceito de sexualidade como reprodução: ao definir de forma assim restritiva a meta e o objeto da sexualidade, esse conceito implica deixar de fora não apenas as perversões (universalmente reconhecidas e condenadas como sexuais), mas também as práticas corriqueiras e, em princípio, não patológicas do prazer preliminar (Vorlust), isto é, as carícias, beijos e outras ações que preparam mesmo um casal heterossexual para a realização do coito. Entretanto, por outro lado, essa classificação esboçada por Freud coloca em primeiro plano as noções de meta e de objeto como elementos centrais de uma definição de sexualidade. Se o conceito de sexualidade como reprodução os restringe excessivamente (ao coito e ao objeto adequado ao coito para fins de fecundação), é preciso então se perguntar até onde é necessário ampliar seu alcance.

Do lado do objeto, parece ser difícil encontrar qualquer limite para a sua variação, uma vez rompida a restrição do objeto reprodutivamente adequado. A fenomenologia clínica das perversões revela que o objeto pode ser do mesmo sexo, pode ser um animal ou um cadáver e, no fetichismo mais extremo, pode ser virtualmente qualquer coisa: um objeto inanimado ou, mesmo, inexistente (no caso apresentado por Freud em 1927 para ilustrar sua análise do fetichismo, o fetiche em questão era um "brilho no nariz"alucinatório ou quase alucinatório). Ora, dizer que a sexualidade pode ter virtualmente qualquer objeto equivale a dizer que ela, enquanto tal, não tem objeto, no sentido de que não pode ser definida ou ter o seu limite traçado pela referência a certo tipo de objetos. Essa consequência da consideração das perversões é formalizada metapsicologicamente pela caracterização do objeto da pulsão como indefinidamente variável (Freud, 1915/1975). Ainda nos "Três ensaios”, ela é assumida pela caracterização da sexualidade infantil – a matriz originária da sexualidade – como autoerótica, isto é, como prescindindo do objeto para alcançar a satisfação. Em uma palavra, uma vez que a sexualidade é, em si mesma, autoerótica que ela pode ter, em princípio, qualquer objeto, e este só surge como um resultado mais ou menos tardio do seu desenvolvimento.

No tocante à meta, as perversões revelaram, igualmente, que, mesmo na presença de um objeto adequado à reprodução (um ser humano adulto, do sexo oposto etc.), a sexualidade pode buscar metas totalmente afastadas da união genital ou coito: os exemplos paradigmáticos de Freud são os pares voyeurismo/exibicionismo e sadismo/masoquismo, em que a união genital é substituída pelas ações de ver e ser visto pelo objeto ou de infligir-lhe ou sofrer dor. No entanto, embora a reprodução não esteja necessariamente possibilitada como meta, tal como ocorre com o coito, há sempre alguma espécie de prazer corporal envolvido no ato sexual. A meta que se pode, então, universalmente atribuir a sexualidade é a busca de um prazer corporal desvinculado de qualquer consideração pelas demais funções biológicas desempenhadas pelas partes do corpo envolvidas (seja ela a reprodução ou qualquer outra). Essa definição da meta sexual evidencia ainda o nexo com as perversões, a partir de cuja consideração ela pôde ser enunciada. A sexualidade infantil e a sexualidade como um todo resultarão daí definidas como originariamente perversas:

Tampouco me queixo se vocês acharem o parentesco entre a atividade sexual infantil e as perversões sexuais algo muito surpreendente. Mas é, de fato, autoevidente que, se uma criança tem uma vida sexual, ela, com certeza, será de tipo perverso; pois, exceto por algumas sugestões obscuras, a criança carece daquilo que faz da sexualidade uma função reprodutiva. Por outro lado, o abandono da função reprodutiva é o traço comum de todas as perversões. Nós efetivamente descrevemos uma atividade sexual como perversa se ela abdicou da meta da reprodução e busca a obtenção de prazer como uma meta independente da mesma. Então, como vocês verão, o ponto de ruptura e de virada no desenvolvimento da vida sexual está em ela tornar-se subordinada aos propósitos da reprodução. A tudo que acontece antes dessa reviravolta e, igualmente, que a desconsidera e visa somente a obtenção de prazer é dado o nome pejorativo de 'perverso' e, como tal, é proscrito. (Freud, 1917a/1975, p. 316)

Da mesma forma como a tese do autoerotismo originário da sexualidade resultou da ampliação do conceito do objeto sexual, a outra característica principal que Freud atribuiu à sexualidade infantil – seu polimorfismo, isto é, o fato de as diversas zonas erógenas buscarem atingir suas metas independentemente umas das outras – deriva também dessa ampliação da noção mesma da meta sexual. Assim como o autoerotismo, essa característica é pensada como uma propriedade originária da sexualidade como um todo. O prazer de órgão (Organlust) atribuído à sexualidade infantil pode ser assim entendido como uma característica geral da sexualidade quando descrito no plano exclusivamente pulsional, no qual, justamente, não se pode esperar encontrar a especificação do objeto.

Até aqui, a redefinição freudiana do conceito de sexualidade parece consistir simplesmente em uma ampliação de sua significação e, consequentemente, de seu campo de aplicação. Contudo, quando se considera retrospectivamente seu ponto de partida, pode-se interpretar diferentemente o sentido daquele conceito de sexualidade como restrita à reprodução, de cuja crítica Freud partiu. De fato, contrastar aquela formulação com a que Freud propõe em substituição faz ressaltar a sua extrema insuficiência, isto é, o fato de que ela deixa de fora quase tudo o que efetivamente ocorre no campo da sexualidade. No limite, pode-se dizer que tamanho descompasso é um indício de que sequer se tratava de um efetivo conceito de sexualidade – fosse bom ou ruim –, mas de uma norma sexual apresentada pela medicina como se fosse uma definição. Em outras palavras, a crítica freudiana da sexualidade pode ser reconstruída como implicando que identificar sexualidade e reprodução não é, de forma alguma, uma descrição daquilo que a sexualidade é, e sim uma prescrição daquilo que a sexualidade deveria ser – daquilo que seria aceitável como prática sexual dentro de certo contexto histórico-social, com a sua moralidade específica, seus valores, e assim por diante. A própria ideia de perversão (Abirrung) em cujo contexto essa reflexão foi conduzida implica a ideia de desvio em relação a um padrão estabelecido. De fato, a única justificativa que poderia ser – e era – fornecida para considerar as perversões como sexuais e, ainda assim, sustentar a equiparação entre sexualidade e reprodução era que, nesses casos, tratava-se de uma sexualidade anormal – em geral, patológica e constitucionalmente anormal, resultando de alguma espécie de tara hereditária etc. Em contraste, a posição de Freud foi a de recusar essa desqualificação e incluir as práticas perversas em uma concepção geral da sexualidade:

[...] que atitude devemos adotar para com essas formas não usuais de satisfação sexual? [...] Se [...] argumentarmos que não precisamos deixar nossas concepções sobre a vida sexual serem desencaminhadas por elas, por serem todas aberrações e desvios da pulsão sexual, uma resposta séria é requerida. A não ser que possamos compreender essas formas patológicas de sexualidade e coordená-las com a vida sexual normal, não podemos tampouco compreender a sexualidade normal. Em suma, resta-nos a tarefa inevitável de fornecer uma explicação teórica completa de como essas perversões podem ocorrer e de sua conexão com o que é descrito como sexualidade normal. (Freud, 1917a/1975, pp. 306-307)

Tratar-se-ia para Freud, portanto, não tanto de substituir um conceito ruim de sexualidade por um conceito melhor, mas antes de substituir uma norma sexual que se passava por conceito por uma definição daquilo em que a sexualidade efetivamente consiste. Sua posição tampouco pode ser descrita como programaticamente libertária, como já foi interpretada por alguns (Foucault, por exemplo), apenas para decepcionarem-se depois com as supostas recaídas normalizantes de Freud. Não se tratava para Freud de propor a substituição de uma norma repressiva por outra norma, mais flexível ou permissiva, mas sim de retirar a consideração da sexualidade de uma perspectiva normativa, fosse ela qual fosse, e colocá-la em um registro científico que, a seu ver, deve operar com definições descritivas, e não com prescrições: "Mas para a ciência isso não basta. Por meio de investugações cuidadosas [...], chegamos a conhecer grupos de indivíduos cuja 'vida sexual' se desvia, da maneira mais surpreendente, da figura usual da média"(Freud, 1917a/1975, p. 304).

No entanto, se Freud aparentemente teve sucesso na desconstrução e no questionamento da norma reprodutiva da sexualidade, isso não quer dizer que ele tenha sido igualmente bem-sucedido em expurgar sua concepção da sexualidade de toda e qualquer consideração de ordem normativa. De fato, como diversos de seus críticos já apontaram, a teoria freudiana tende a tomar a sexualidade masculina como um modelo a partir do qual pensar a sexualidade feminina. Como resultado, esta última aparece definida como uma variação da primeira ou como uma versão imperfeita da primeira. A forma principal como isso se manifesta na teoria está na centralidade concedida ao falo – conceito que designa o conjunto dos efeitos simbólicos ou imaginários do órgão sexual masculino na economia psíquica tanto do homem quanto da mulher –, no desenvolvimento da teoria do complexo de castração e do complexo de Édipo, que complementam a visão freudiana da sexualidade nos anos posteriores à primeira publicação dos "Três ensaios”. Isso teria resultado, entre outras coisas, equiparações infelizes, por parte de Freud, entre feminilidade e passividade, generalizando injustificadamente uma característica contingente à posição da mulher na sociedade ocidental em um certo momento da sua história. Dessa atitude proviriam ainda formulações ainda mais questionáveis, como a malfadada "inveja do pênis”, que não apenas coloca as características da sexualidade feminina na dependência de certa definição da sexualidade masculina, como ainda eleva esta última à condição de ideal inalcançável para a realização sexual da mulher, que estaria assim condenada a esforços inúteis de compensar a sua "deficiência”, quer sob a forma neurótica da histeria, quer mediante a satisfação substitutiva socialmente aceita da decepção fálica em que consistiria a maternidade.

Gabbi Jr. (2005) interpreta nesses termos a concepção da feminilidade pressuposta na análise freudiana do caso Dora. A dificuldade de reconhecer e atribuir o devido peso à escolha de objeto homossexual da paciente não teria, segundo ele, resultado tão somente de um ponto cego transferencial de Freud, como este mesmo admitiu, mas, sobretudo, da impossibilidade teórica de conceber a feminilidade fora do modelo da castração. Segundo essa visão, a posição feminina seria obtida por subtração relativamente à posição masculina – grosso modo, uma mulher seria um homem privado do falo. Daí a centralidade da figura paterna na dinâmica do complexo de Édipo a partir da qual Freud tenta compreender a histeria de Dora. Não haveria, assim, a possibilidade de uma escolha homossexual feminina que não fosse derivada de uma escolha edípica primariamente direcionada ao pai:

Mas essa castração, para nós, seria precisamente a fantasia teórica freudiana, segundo a qual toda relação amorosa pressupõe a passagem pelo pai. Não há como existir para Freud um vínculo amoroso entre duas mulheres que não tenha como termo de mediação a figura paterna. (Gabbi Jr., 2005, p. 199)

Para o autor, a temática da bissexualidade originária que permeia a análise de Dora estaria comprometida com essa visão fálica da sexualidade que domina a teorização freudiana sobre o complexo de Édipo. Nessa perspectiva, o falo seria um elemento essencial da masculinidade que, por sua vez, representaria o essencial da sexualidade em geral, de tal maneira que a feminilidade surgiria como uma modificação secundária e, no limite, potencialmente patológica dessa sexualidade originariamente masculina. A única solução seria, então, o abandono da hipótese da bissexualidade:

Uma possível saída para a psicanálise seria considerar o falo como tendo a função de ser um operador da sexualidade e não como sendo a essência do masculino. Isto é, afastar a concepção da bissexualidade [...] que se expressa pela suposição de que haveria uma composição entre duas substâncias, a masculina e a feminina. Em Freud, a última é sempre entendida como elemento perturbador do sistema. (Gabbi Jr., 2005, p. 200)

Em suma, os problemas da teoria e da clínica freudiana da histeria, sobretudo no que se refere à conceitualização da transferência, seriam consequências dessa "ausência de uma concepção positiva da feminilidade"(Gabbi Jr., 2005, p. 200).

Birman (2006) identifica esse mesmo tipo de problema na teorização freudiana sobre a feminilidade. No entanto, ele reconhece também a presença de outro modelo que permitiria uma abordagem mais promissora da sexualidade na psicanálise, inclusive no que diz respeito à discussão das consequências éticas e políticas das diferenças relacionadas ao gênero – um tema central das formas de pensamento da assim chamada pós-modernidade. Ele parte da distinção proposta por Laqueur entre dois modelos historicamente constituídos – o modelo do "sexo único"e o modelo da "diferença sexual"– utilizados para a consideração diferencial da sexualidade masculina e feminina:

Em A fábrica do sexo, o historiador Laqueur propõe a existência de dois diferentes paradigmas sobre as relações entre os sexos, forjados pelo Ocidente da Antiguidade até a modernidade. O primeiro paradigma, esboçado por Aristóteles e desenvolvido posteriormente por Galeno na sua forma definitiva, enunciava a existência do sexo único, que perdurou até o século XVIII. O segundo, constitutivo da modernidade, foi formulado ao longo do século XVIII e expôs o conceito da diferença sexual. (Birman, 2006, pp. 169-170)


O primeiro enfatizaria uma hierarquia entre a masculinidade e a feminilidade, com o sexo masculino ocupando uma posição superior. Ele seria identificado com a perfeição, a completude e a atividade, enquanto o sexo feminino ocuparia uma posição subordinada, identificando-se com a imperfeição e a passividade. A nuança que esse autor introduz no exame do problema da sexualidade em Freud está em reconhecer que, embora Freud tenha claramente adotado o modelo do sexo único (a sexualidade fálica) ao longo da maior parte de sua reflexão, o outro modelo também comparece na formação de seu pensamento, manifestando-se, ainda que tardiamente, na hipótese até certo ponto surpreendente de uma feminilidade originária:

O que nos interessa destacar aqui, inicialmente, foi como Freud conjugou, na sua leitura da sexualidade, os dois paradigmas anteriores, introduzindo, no modelo da diferença sexual, características fundamentais do modelo do sexo único. Um amálgama desses dois modelos foi aqui forjado. A centralidade atribuída ao falo, no inconsciente sexual enunciado por Freud, era fundamental, na medida em que aquele, na sua relação de identidade e de diferença com o pênis, seria, então, a marca indelével do sexo único no campo do discurso freudiano. [...] Pela segunda, no entanto, enunciada apenas no final daquele discurso, a feminilidade estaria na origem, invertendo, pois, a tradição do patriarcado. Nesse contexto, as figuras do masculino e do feminino seriam defesas articuladas em torno do falo contra a feminilidade originária, de maneira que a feminilidade estaria no fundamento do erotismo e seria a forma básica de subjetivação. (Birman, 2006, p. 174-175)

Essa segunda posição se manifestaria bem tardiamente em Freud, em um de seus últimos trabalhos – e, além disso, indiretamente, no exame das dificuldades e resistências que decorrem da análise de uma rejeição, tanto nos homens quanto nas mulheres, dessa forma primordial de feminilidade. Esta seria identificada com a passividade inicial inevitável de ambos os sexos nas suas relações com o mundo e com os outros, inserindo-se no tema mais amplo das consequências psíquicas da prematuração e do desamparo do ser humano ao nascer. Ainda, segundo Birman, "foi desse fundo originário da feminilidade que algumas novas figuras se destacaram na cartografia do inconsciente, sendo então delineadas pelo discurso freudiano no seu desdobramento teórico final. Cabe destacar aqui a figura do desamparo [...]"(Birman, 2006, p. 177). O tema do desamparo – o fator biológico determinante no psiquismo, segundo Freud – é uma das manifestações da importância crescente que a biologia tem para Freud nesse período final da sua obra. Não é surpreendente, então, que essa mesma ênfase reapareça explicitamente no momento em que essa recusa da feminilidade originária está em questão. Diz Freud: "[...] para o campo psíquico, o campo biológico, de fato, desempenha o papel de fundamento subjacente. O repúdio da feminilidade pode não ser outra coisa que um fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo"(Freud, 1937/1975, p. 252).

Essa feminilidade originária escaparia, assim, à lógica fálica que caracteriza a diferenciação entre o masculino e o feminino, a qual só se constrói a partir dessa recusa inaugural:

No entanto, em "Análise com fim e análise sem fim”, o discurso freudiano assumiu outra direção de leitura, na qual a feminilidade passaria a se inscrever agora na origem. A feminilidade seria uma forma de sexo originário, diferente, pois, do masculino e do feminino, um outro sexo, justamente porque não seria marcado pelo falo. Por isso mesmo, homens e mulheres construídos pela lógica fálica repudiariam e teriam horror da feminilidade. Vale dizer, as condições masculina e feminina seriam sempre fálicas em oposição à feminilidade repudiada. (Birman, 2006, 176)


É interessante notar que, quando Freud introduz essa noção de uma feminilidade originária, ele, no mesmo ato, caracteriza a célebre inveja do pênis como uma forma especificamente feminina de repúdio àquela feminilidade (a manifestação tipicamente masculina seria o esforço para escapar a uma atitude passiva diante de outros homens). A inveja do pênis deixa, assim, de ser remetida a um complexo de masculinidade qualquer da mulher e, com isso, de se encontrar subordinada a uma sexualidade originariamente fálica (isto é, masculina). Ao contrário, essa sexualidade fálica, em suas diferentes manifestações (inveja do pênis para a mulher, angústia de castração para o homem) seria o resultado da atitude defensiva, própria de ambos os sexos, diante de uma posição inicial passiva comum que, segundo os próprios termos em que Freud desenvolveu até aqui sua teoria sexual, só pode ser caracterizada como feminina. É nesse sentido que, segundo Birman, haveria, enfim, em Freud, a constituição de um modelo híbrido que combina elementos tanto do modelo do sexo único quanto do modelo da diferença sexual. Nas palavras de Freud:


Os dois temas [a inveja do pênis e a luta contra uma atitude passiva] estão vinculados à distinção entre os sexos; um é tão característico dos homens quanto o outro é característico das mulheres. Apesar da dissimilaridade de seu conteúdo, há uma óbvia correspondência entre eles. Algo que ambos os sexos têm em comum foi forçado, pela diferença entre eles, a diferentes formas de expressão. [...] O que é comum aos dois temas foi distinguido, muito cedo, pela nomenclatura psicanalítica como uma atitude com relação ao complexo de castração. [...] Penso que, desde o começo, repúdio da feminilidade teria sido a descrição correta dessa característica notável da vida psíquica dos seres humanos. (Freud, 1937/1975, p. 250)


No entanto, essa manifestação tardia do modelo da diferença sexual não é absolutamente sem precedentes em Freud. De fato, no período final de sua obra, pelo menos a partir de O ego e o id, pode-se observar seu empenho em superar a limitação em sua teoria da sexualidade que era colocada pelo fato de a sexualidade masculina ter sido privilegiada em primeiro lugar e pela ideia de que se poderiam obter as características da sexualidade feminina simplesmente invertendo os seus termos. Em outras palavras, Freud reconhece que, até então, procedera como se os dois sexos fossem uma espécie de imagem espelhada um do outro, de tal modo que a descrição da masculinidade fosse suficiente para obter uma descrição adequada da feminilidade, fazendo-se as devidas conversões. O lugar onde isso fica mais evidente é no desenvolvimento da teoria do complexo de Édipo. Em primeiro lugar, Freud passa a reconhecer, explicitamente, que a forma direta do complexo é apenas uma parte da história: tanto o menino como a menina podem, em diferentes momentos, identificar-se e tomar os progenitores de ambos os sexos como objeto. É necessário levar em conta, diz ele, "o complexo de Édipo mais completo, que é duplicado, positivo e negativo, e é devido à bissexualidade originariamente presente na criança"(Freud, 1923/1975, p. 33).


Esse reconhecimento, por sua vez, contribuirá para a ruptura da tese da simetria entre o Édipo feminino e masculino. Por exemplo, ele abre caminho para o reconhecimento pleno de que o primeiro objeto de ambos os sexos é o mesmo (a mãe) e, por conseguinte, o menino se encontra, a princípio, no complexo de Édipo dito direto (escolha do progenitor do sexo oposto), enquanto a menina se encontra no Édipo dito invertido (escolha do progenitor do mesmo sexo). Uma série de diferenças decorre daí, concernente a como e por que cada um dos sexos passa pelas diversas fases da dinâmica edípica. O mais importante, no entanto, é que essa mudança de atitude abre caminho para a ruptura com o que Birman descreve como o modelo do sexo único: Freud passa a reconhecer que não é mais possível tomar o sexo masculino como parâmetro para uma concepção do feminino. É interessante notar como o reconhecimento dessa impossibilidade tende a se expressar no sentido da necessidade de pensar o problema dos gêneros em termos de diferença, e não mais de carência relativa a um modelo ideal:

Ao examinarmos as formas psíquicas mais precoces assumidas pela vida sexual das crianças, acostumamo-nos a tomar como objeto de nossas investigações a criança masculina, o menino. Com as meninas, assim supúnhamos, as coisas deviam ser semelhantes, embora, de uma maneira ou outra, elas devessem ser, não obstante, diferentes. O ponto do desenvolvimento em que residia essa diferença não podia ser claramente determinado. (Freud, 1925/1975, p. 249)


Ainda que Freud tenda a resvalar de volta aos termos do modelo masculino – de onde resultam suas formulações mais criticadas como imposição de uma concepção fálica da sexualidade à mulher –, mesmo essas formulações podem adquirir um sentido mais nuançado quando consideradas no contexto dessa reflexão sobre as diferenças. Assim, a visão da mulher como "castrada"– com a consequente nostalgia do falo, "inveja do pênis”, etc. – aparece como uma reação típica e especificamente feminina à descoberta traumática da diferença sexual, enquanto a reação típica masculina seria a angústia de castração: "Assim se produz a diferença essencial de que a menina aceita a castração como um fato consumado, enquanto o menino teme a possibilidade da sua ocorrência"(Freud, 1924/1975, p. 178). No entanto, para além do tipo de efeito subjetivo específico que essa descoberta tipicamente provoca em cada sexo, está o fato de que a castração enquanto trauma – no sentido psicanalítico, de abandono forçado da posição narcísica – é comum a ambos os sexos, assim como o complexo de castração, que designa o conjunto dos efeitos da descoberta da diferença e dos esforços de elaborá-la. Em outras palavras, o que ambos os sexos descobrem é o caráter incontornável da diferença, ainda que essa descoberta possa, em certo contexto contingente de valorização da posição masculina, ser tipicamente vivida pela menina como a descoberta de uma falta.

A diferença entre o desenvolvimento sexual de homens e mulheres no estágio que estivemos considerando é uma consequência inteligível da distinção anatômica entre seus genitais e da situação psíquica envolvida nela; ela corresponde à diferença entre a castração consumada e a que foi apenas ameaçada. (Freud, 1925/1975, pp. 256-257)


Embora Freud não assuma claramente essa posição, talvez ela não seja incompatível com o que ele de fato formula, pelo menos em alguns de seus aspectos. Em suma, seria possível dizer que, na consideração dos problemas ligados às diferenças de gênero em sua teoria sexual, Freud oscila entre um discurso sobre a falta – ligado ao modelo do sexo único – e um discurso sobre a diferença. Na medida em que o primeiro predomine, teríamos todos os problemas de uma desvalorização, em última instância, ideologicamente comprometida do feminino na sua relação com o masculino.1 Na medida em que predomine o segundo, haveria maiores possibilidades de uma teorização psicanalítica mais equilibrada sobre a diferença sexual e, assim, a possibilidade também de uma contribuição mais proveitosa da psicanálise aos estudos de gênero. Apesar de suas limitações, parece haver um movimento bastante claro do pensamento de Freud nessa segunda direção, culminando, por exemplo, na hipótese de uma feminilidade originária, em clara ruptura com o primado do falo.

 

3. Lacan: as figuras da falta e os sintomas do desconforto

No mesmo texto em que expõe a convivência, em Freud, de dois modelos conflitantes sobre a natureza da sexualidade, Birman considera a posição de Lacan como menos promissora e, à sua maneira, mais comprometida com uma concepção fálica da sexualidade, com todas as suas consequências éticas e políticas:

[...] a tese sustentada pelo discurso de Lacan concede fundamento teórico para a lógica, a ética e a política do patriarcado, pela qual a figura do pai, como signo de exceção e representante da Lei, confere uma aura de superioridade hierárquica da figura do homem em relação à da mulher. [...] Num mundo em que o discurso feminista, inicialmente, e o gay, em seguida, romperam radicalmente com os pressupostos do patriarcado, no qual as mulheres passaram a demandar a igualdade de direitos com os homens e os homossexuais pretenderam legitimar a sua condição homoerótica, o discurso lacaniano fica mal das pernas [...]. (Birman, 2006, p. 168)

Deixando de lado o terreno específico da sexualidade, talvez se possa argumentar que esse tipo de posicionamento lacaniano é um sintoma de certas tomadas de posição suas que, por um lado, são perfeitamente inaugurais e definem grande parte do sentido de seu pensamento; por outro, acarretam consequências que repercutem em questões às vezes bastante distantes daquelas em que essas posições são explicitamente assumidas. Uma delas, que é central para os temas aqui em discussão, pode ser identificada na generalização ou universalização de um discurso sobre a falta que é uma das características mais chamativas e, inclusive, celebradas da psicanálise lacaniana. Como se viu acima, Freud oscila entre um discurso sobre a falta e um discurso sobre a diferença em sua teoria sexual. Na medida em que predomine o discurso sobre a falta – expresso na insistência em temas como a castração feminina e a inveja do pênis –, sua concepção tende a tomar a sexualidade masculina como um padrão ou norma a partir da qual concebe a sexualidade feminina. Com isso, ele reintroduz a visão normativa que criticara inicialmente no tocante à identificação entre sexualidade e reprodução e, assim, fracassa, pelo menos parcialmente, em expurgar sua teoria sexual de toda espécie de normatividade e atribuir uma significação exclusivamente descritiva às categorias que emprega para teorizar sobre o comportamento sexual. Ao contrário, a prevalência de um discurso sobre a diferença – para onde sua teoria parece se encaminhar ao final – ofereceria perspectivas mais promissoras.

Em Lacan, essa ambiguidade inexiste. Ele assume, desde muito cedo, o que se designa aqui como um discurso sobre a falta e, de fato, o amplia e lhe concede um alcance que este jamais encontrara em Freud. Se for verdade que esse tipo de posicionamento tende a conduzir a uma visão normatizante do sujeito – seja este o sujeito da sexualidade ou de qualquer outro ato psíquico –, haveria uma espécie de risco normativo inerente à psicanálise lacaniana. Por um lado, isso permite compreender melhor a limitação "patriarcal"de sua visão dos problemas ligados ao gênero que foi apontada acima, ao inseri-la em um contexto teórico ampliado. Esse contexto explicaria ainda o destaque que outros temas teóricos recebem em Lacan, como o privilégio atribuído ao complexo de castração, além do próprio conceito central de Nome-do-Pai2 – este último mais diretamente implicado nessa visão patriarcal da sexualidade. Por outro lado, podem-se compreender certos desenvolvimentos típicos da teorização lacaniana como sintomas da percepção desse risco normativo e do desconforto relativo a suas consequências. Entre esses desenvolvimentos, incluir-se-iam a obsessão pelo tema da Lei, a caracterização da psicanálise como um discurso ético e suas teorizações mais tardias sobre a sexuação e o problema do gozo feminino.

O tema da falta é, como se sabe, inaugural e onipresente em Lacan. Ele deriva de sua adesão inicial à perspectiva neo-hegeliana disseminada nos meios intelectuais franceses dos anos 30, com sua concepção do desejo como negatividade, isto é, como negação do dado natural que engendra a realidade propriamente humana. Essa perspectiva faz-se notavelmente presente na releitura antropologizante da Fenomenologia do espírito protagonizada por Kojève, cujos passos Lacan segue pelo menos durante algum tempo (Simanke, 2002). Com o tempo essa perspectiva antropológica é abandonada e esse discurso sobre a falta vai adquirir conotações mais explicitamente ontológicas. Suas manifestações mais precoces giram em torno de uma crítica do conceito de relação de objeto que deixa clara a origem desse posicionamento em uma concepção do desejo como falta, como algo que define a natureza humana. Por exemplo: "a relação do homem não é com esse objeto, mas com a falta assumida como via do desejo"(Lacan, 1958, p. 319).Essa concepção, de imediato, revela o contexto de uma visão da sexualidade centrada no falo no qual ela se formula: "A criança apreende a falta do objeto ligada ao fato de que a mãe deseja o falo, é introduzida numa dialética endereçada à falta do objeto"(Lacan, 1958, p. 319).

O tema da falta em Lacan está indissociavelmente ligado à sua concepção formalista e estrutural do simbolismo. Com efeito, em um primeiro momento ele flerta com a hipótese de uma carência biológica constitutiva da espécie humana – vejam-se os temas da prematuração do nascimento e da neotenia retirados da embriologia de Lodewijk Bolk –, a qual deixaria uma espécie de vazio biológico a ser preenchido pelos determinantes simbólicos e imaginários no processo de constituição do sujeito. No entanto, logo essa carência será pensada como um efeito da própria entrada do sujeito no simbólico e de sua "sujeição"à lei da palavra. As ordens do desejo e a do significante convergem, então, em sua função de negação da dimensão natural do sujeito e de sua conaturalidade com o objeto. A figura de retórica da metonímia – na reinterpretação formal que o estruturalismo linguístico dela faz – servirá então para representar esse modo de operação do desejo, sempre explicitamente articulado com a temática da falta. Lacan refere-se assim à:

[...] estrutura metonímica, indicando que é a conexão do significante com o significante que permite a elisão pela qual o significante instala a falta do ser na relação de objeto, servindo-se do valor de reenvio da significação para investi-la com o desejo visando essa falta que ele sustenta. (Lacan, 1957/1966, p. 515)

Com a evolução do pensamento de Lacan, essa noção de falta adquire cada vez mais um alcance ontológico, quando então se exprimirá frequentemente como uma "falta para ser"(manque à être) do sujeito. Essa noção é colocada no centro mesmo da concepção da prática psicanalítica, por exemplo, quando Lacan afirma que é preciso "reconhecer a falta para ser do sujeito como o coração da experiência analítica, como o campo mesmo que se desdobra a paixão do neurótico"(Lacan, 1961/1966, p. 613). Ela não perde, no entanto, suas articulações conceituais com a teoria do significante e a função constitutiva do desejo, muito antes pelo contrário. Assim, ainda nesse mesmo texto, ao comentar a análise de um sonho de uma paciente de Freud que envolvia o desejo de comer caviar, Lacan diz:

Vejamos, por ora, que o desejo, se ele é significado como insatisfeito, o é pelo significante "caviar”, na medida em que o significante o simboliza como inacessível, mas que, desde o momento em que ele desliza como desejo no caviar, o desejo pelo caviar é sua metonímia, tornada necessária pela falta para ser a que ele se atém. [...] O verdadeiro dessa aparência é que o desejo é a metonímia da falta para ser. (Lacan, 1961/1966, p. 622)


A referência dessa ideia de uma falta ontologicamente constitutiva à temática do falo – que estava dada desde o início – permanece como uma característica central da perspectiva lacaniana sobre a sexualidade: "Fica claro, por isso, que a análise revela que o falo tem a função de significante da falta para ser que determina, no sujeito, sua relação com o significante"(Lacan, 1960/1966, p. 710). A redefinição que Lacan faz do falo como "significante da falta"é um dos aspectos mais celebrados de suas teorias. Com isso, ele quer dizer que o falo é o símbolo da diferença sexual, nessa concepção formal do simbolismo que ele retira do estruturalismo e que se condensa no conceito de significante. Entretanto, o fato de que a consideração da diferença é reconduzida à perspectiva da falta fica bem caracterizada pela referência ao falo explicitamente definido como o significante da falta. Mesmo que essa falta seja, evidentemente, definida como constitutiva do sujeito em geral, não é irrelevante que ela se expresse mediante esse privilégio concedido a um conceito que representa o conjunto dos efeitos imaginários e simbólicos, na economia psíquica, da presença ou ausência do órgão masculino. Em suma, essa significação cada vez mais ontológica que a noção de falta assume em Lacan não encobre o fato de que, em seu pensamento, o predomínio do discurso da falta sobre o da diferença (ou a redução do segundo ao primeiro) seja bem mais decidido do que em Freud. O próprio destaque concedido ao conceito de falo – em Freud, uma noção bem mais discreta e de alcance muito mais restrito – evidencia isso muito bem, ainda que Lacan se esforce, como de costume, para estabelecer uma filiação freudiana para essa ideia:

De qualquer modo, reencontra-se a ideia de estrutura que a abordagem de Freud introduziu, a saber, que a relação de privação ou de falta para ser que o falo simboliza se estabelece como derivação da falta para ter, que é engendrada por toda frustração particular ou global da demanda [...]. (Lacan, 1964/1966, pp. 729-730)


O alcance concedido à noção de falta torna-se, de fato, um argumento importante para o abandono, por parte de Lacan, da perspectiva antropológica – ou, pelo menos, para a assunção de uma espécie de antropologia negativa, em que o problema clássico da antropologia filosófica (o ser do homem) se metamorfoseia na questão da falta para ser que faz o homem. Essa ideia permeia boa parte das elaborações lacanianas mais tardias, mas, em alguns momentos, ela se exprime da forma mais inequívoca possível: "De fato, a psicanálise refuta toda ideia do homem até aqui apresentada. É preciso dizer que todas elas, por mais numerosas que fossem, não se atinham a nada antes da psicanálise. O objeto da psicanálise não é o homem, é aquilo que lhe falta"(Lacan, 1966a, p. 13).

Por mais distante que possa parecer da perspectiva freudiana, essa espécie de antropologia negativa (ou, mesmo, ontologia negativa)3 também é, retrospectivamente atribuída a Freud, quando se trata de discutir o problema das consequências éticas da psicanálise: "Freud certamente fala ao coração desse nó de verdade em que o desejo e sua regra dão-se as mãos, a esse 'isso' em que sua natureza participa menos do ente do homem que dessa falta para ser da qual ela porta a marca"(Lacan, 1986a, p. 176).

Seja como for, essa articulação entre a falta para ser, o falo e o desejo se prolonga até os confins do pensamento lacaniano, inclusive se exprimindo em uma referência a Espinosa que a amarra às origens da teoria na tese de psiquiatria de 1932, colocada inteiramente sob a égide dessa referência. Desejo, falo, castração e falta: são esses os ingredientes dessa ontologia negativa do sujeito que, como em Freud – mas mais acentuadamente ainda – se ancora no campo da sexualidade para dali ser extrapolada para a totalidade da vida psíquica: "Em seu desejo, o psicanalisante pode saber o que ele é. Pura falta, enquanto (– φ)4 , é por meio da castração, seja qual for o seu sexo, que ele encontra lugar na relação dita genital"(Lacan, 1978, p. 16). A referência inaugural a Espinosa retorna seguidamente nesse contexto; sua menção aqui serve para documentar a permanência dessa posição teórica ao longo de todo o desenvolvimento da reflexão de Lacan sobre o sujeito, que antecede mesmo o seu comprometimento mais sistemático com a psicanálise:

Há ou não o sentimento de que alguma coisa se repete em sua vida, sempre a mesma, e de que isso é o que é mais ele? O que é essa alguma coisa que se repete? Um certo modo do Gozar. O Gozar do ser falante se articula, é por isso mesmo que ele vai até o ponto do estereótipo, mas um estereótipo que é bem o estereótipo de cada um. Há alguma coisa que testemunha sobre uma falta verdadeiramente essencial. Mesmo os filósofos – é verdade que atrasados com relação a Espinosa – tinham chegado à conclusão de que a essência do homem é o desejo. (Lacan, 1974, pp. 5-6)


Essa referência à Espinosa para exprimir a tese central do desejo como essência do humano aparece, em outros contextos, mais diretamente relacionada com os temas da castração e da sexualidade fálica:

A falta para ser que constitui a alienação se instala a reduzi-la ao desejo, não que este seja não pensar (sejamos espinosistas aqui), mas ele obtém seu lugar por essa encarnação do sujeito que se chama castração e pelo órgão da falha que o falo aí se torna. Tal é o vazio tão incômodo de abordar. (Lacan, 1968, p. 190)


Espinosa talvez seja a referência filosófica mais duradoura de Lacan, embora seja sempre difícil precisar o sentido próprio dessas referências (Simanke, 2005). Lacan, como se sabe, colocou uma proposição do Livro III da Ética como epígrafe da sua tese de psiquiatria de 1932: "Uma afecção qualquer de cada indivíduo difere da afecção de outro, na medida em que a essência de um difere da essência de outro"(Spinoza, 1677/1965, p. 192). A referência ao desejo – a "afecção"que realmente interessa Lacan aqui – aparece explicitada na demostratio dessa mesma proposição: "Mas o Desejo é a natureza mesma ou a essência de cada um; portanto, o Desejo de cada um difere do Desejo de outro na medida em que a natureza ou essência de um difere da essência de outro"(Spinoza, 1677/1965, p. 192-193). A essa concepção do desejo como essência do sujeito logo viria a se acrescentar a concepção do desejo como negatividade, como todas as suas consequências.

Esse privilégio ou universalização da falta tem diversos efeitos bastante perceptíveis na orientação teórica de Lacan. Por exemplo, a valorização do complexo de castração em detrimento do complexo de Édipo, inclusive com uma crítica contida endereçada a Freud por ter permanecido atrelado ao "ponto de vista da neurose"como resultado de sua visão edípica da subjetividade (Juranville, 1987). Mais importantes são as consequências dessa inclinação normativa que se manifesta na tese de psiquiatria e se prolonga depois, amparada nesse discurso sobre a falta que se generaliza cada vez mais. Em sua obra psiquiátrica, essa atitude era virtualmente inevitável. Lacan começa a carreira como médico e como clínico, e as questões normativas são indissociáveis da prática médica.5 Elas são, de fato, muito presentes na psiquiatria, em que o problema da aúde mental dificilmente consegue evitar ser contaminado por considerações de ordem moral. Freud, ao contrário, começa como cientista e apenas relutantemente se encaminha para a clínica das doenças nervosas para a qual procura transportar a atitude científica forjada inicialmente. Daí a preocupação em separar questões normativas e questões de fato na investigação da sexualidade, como se procurou mostrar anteriormente.

As questões iniciais com que Lacan se defronta inicialmente são, além disso, típicas da medicina da sua época e fornecem os parâmetros que nortearão suas investigações teóricas subsequentes no campo da psicanálise. Um dos exemplos é sua tomada de posição a favor da psicogênese das doenças mentais, que se opunha à tese da organogênese (segundo a qual as psicoses seriam doenças orgânicas com sintomas psíquicos). A hipótese psicogênica específica que Lacan propõe elabora a noção de personalidade como uma estrutura reacional erigida diante das crises sociovitais típicas do desenvolvimento (desmame, puberdade, maternidade etc.) e como reação a estas. Ele recusa a ideia de uma ruptura entre a personalidade pré-mórbida do doente e a psicose propriamente dita, considerando esta última como a construção de uma personalidade psicótica (e não como desorganização de uma personalidade previamente normal). Com isso, ele afasta uma concepção puramente deficitária dos delírios e sintomas em geral: estas seriam formas em si mesmas válidas de conhecimento (a relação cognitiva com o meio ao qual o sujeito reage na construção de sua personalidade), mas formuladas a partir de princípios específicos da personalidade delirante, os quais, por uma série de razões que têm que ser identificadas caso a caso, estariam em algum grau de discordância com aqueles normalmente compartilhados pela organização social na qual o sujeito se produz. Dessa maneira, o critério último para distinguir o normal e o patológico acaba sendo definido como o assentimento social.6 A psicose seria uma estrutura reacional (personalidade) não sancionada pelo meio; o psicótico, aquele que por uma série de acidentes do seu desenvolvimento, em que fatores sociais e constitucionais continuamente interagem – não se reconhece nos valores e significações que definem a sua realidade social e que, portanto, não pode se fazer reconhecer dentro desta. A temática do reconhecimento já se delineia, pois aqui se tornará cada vez mais explícita à medida que se intensifique o contato de Lacan com o pensamento neo-hegeliano francês nos anos subsequentes. Entretanto, o critério para a distinção entre as estruturas clínicas – neurose e psicose, por exemplo – fica desde então definido em termos explicitamente normativos: trata-se de um critério segundo o qual se decide quais sujeitos podem ser recebidos em certa estrutura e quais não.

Essa constatação talvez nos ajude a compreender as reverberações igualmente normativas – embora, talvez, não mais tão explícitas – de uma noção tão central do pensamento lacaniano como a de Nome-do-Pai. Desde o seu surgimento, no início dos anos 50, essa noção se refere à função de interdição do pai no complexo de Édipo, de suporte do tabu do incesto etc. Lacan caracteristicamente joga com a homofonia entre le nom du père e le non du père para exprimir essa função (Evans, 1997). A significação do conceito se amplia e se sistematiza nos anos seguintes, quando então ele passa a ser escrito com maiúsculas e com hífen. Ele é definido como o significante fundamental que confere identidade simbólica ao sujeito: a repressão – isto é, sua conservação no inconsciente – desse significante na saída do Édipo dá origem à neurose, que é o modo de ser do sujeito no interior da ordem simbólica (isto é, da estrutura da cultura); a foraclusão7 do mesmo, por sua vez, dá origem à psicose, que, correspondentemente, é o modo de ser do sujeito enquanto excluído dessa mesma ordem.

É num acidente desse registro do que aí se realiza – a saber, a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro – e no fracasso da metáfora paterna que nós designamos a falha que dá à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose. (Lacan, 1958/1966, p. 575)


É possível, portanto, considerar esse conceito como um desenvolvimento e uma sofisticação do critério do assentimento social proposto na tese de psiquiatria, mas que conserva a sua significação fundamental, traduzindo-a em termos psicanalíticos e articulando-a com os conceitos freudianos mais ou menos amplamente reinterpretados por Lacan (complexo de Édipo, castração, falo etc.):

A Verwerfung será, portanto, tida por nós como foraclusão do significante. No ponto em que – nós veremos como – é chamado o Nome-do-Pai, pode, pois, responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocara um furo correspondente no lugar da significação fálica. (Lacan, 1958/1966, p. 558)


Embora não seja possível desenvolver longamente esse ponto aqui, vale a pena observar en passant que a questão mais específica da feminilidade, quando é examinada por Lacan no contexto de sua teorização sobre as psicoses, apresenta uma tendência ao falocentrismo ainda mais acentuada do que Freud em seus piores momentos. Quando Freud rompe com a tese da simetria entre o Édipo feminino e masculino, como se viu acima, isso se revelou uma oportunidade para avançar uma abordagem da feminilidade que escapasse, pelo menos parcialmente, ao modelo normativo masculino até então indiscriminadamente utilizado. Em Lacan, ao contrário, a dissimetria entre o desenvolvimento psicossexual do menino e da menina será ocasião para uma afirmação ainda mais veemente da dependência da feminilidade relativa à simbolização fálica e à passagem inevitável pela identificação com o pai (lembremos a crítica que Gabbi Jr. endereçava a Freud acima, exatamente a esse propósito). Assim, em sua discussão no caso Dora no seminário sobre as psicoses, Lacan afirma:

Não há, propriamente falando, diríamos, simbolização do sexo da mulher como tal. Em todo caso, a simbolização não é a mesma, não tem a mesma fonte, não tem o mesmo modo de acesso que a simbolização do sexo do homem. E isso porque o imaginário fornece apenas uma ausência ali onde há, em outro lugar, um símbolo muito prevalente. É a prevalência da Gestalt fálica que, na realização do complexo edipiano, força a mulher a esse desvio pela identificação com o pai e, portanto, durante algum tempo, a tomar os mesmos caminhos que o rapaz. O acesso da mulher ao complexo edipiano [...] se faz passando pelo pai. (Lacan, 1981, p. 198)


Apenas no Seminário 20 (Lacan, 1975), Lacan reconhecerá a possibilidade de atribuir à mulher um gozo não fálico e, com isso, a possibilidade de uma feminilidade não histérica. No entanto, esse desenvolvimento tardio de seu pensamento pode ser interpretado, justamente, como sintoma de certo desconforto com as consequências normativas de seus pressupostos e como uma tentativa de superá-las ou, pelo menos, atenuá-las. O mesmo pode ser dito da evolução de sua concepção sobre o sentido e a função do Nome-do-Pai: a partir de certo momento, Lacan deixa de referir-se a esse termo no singular, passando a usá-lo no plural – por exemplo, no seminário interrompido de 1963, que se deveria intitular Os nomes do pai (Lacan, 1963) e no seminário Les non-dupes errent (Lacan, 1973-74), em que Lacan explicitamente faz uso da homofonia com "les noms-du-père”. Zenoni discute essa evolução interna do pensamento de Lacan e enfatiza a ruptura com uma concepção centralizante e normatizante da ordem simbólica anteriormente expressa pelo uso do termo no singular:

O status do Nome-do-Pai muda, então, a partir do momento em que a função de fundamento do Outro, a função de autodemonstração do Outro, que ele deveria garantir, evidencia-se como impossível. Ao mesmo tempo em que se enfatiza o pai real, o Nome-do-Pai deixa de aparecer como idêntico ao Outro, interno ao Outro, como se fosse sua consistência, para somente aparecer como uma máscara, um semblante que vela sua inconsistência. [...] Ao fazer isso, ele perde sua unicidade, já que termos variados podem cumprir essa função de tapa-buraco, e nenhum deles é, por definição, o significante primeiro que está ausente. Se há vários Nomes-do-Pai, é porque nenhum deles é o Nome-do-Pai: nada corresponde a um nome próprio, todos não passam de semblantes. (Zenoni, 2007, p. 22)8


Entretanto, talvez o tema a respeito do qual esse risco normativo da psicanálise lacaniana, o esforço para neutralizá-lo e sua conexão com a universalização do discurso sobre a falta se manifestem mais claramente, seja a verdadeira obsessão de Lacan pelo tema da Lei, quando articulada com sua reflexão sobre a ética da psicanálise. Esse tema é tão distintivo das idiossincrasias de seu pensamento que quase basta encontrar o termo "Lei"(principalmente se grafado com maiúscula) em um texto psicanalítico para identificá-lo como lacaniano. A lei para Lacan – assim como para Lévi-Strauss, cuja influência se manifesta claramente aqui – é, acima de tudo, o conjunto de princípios universais que governam qualquer troca simbólica: econômica, de parentesco e, acima de tudo, linguística. De fato, essa estrutura legal, por assim dizer, da linguagem identifica-se com a própria ordem simbólica e, por aí, com a própria instituição da cultura como realidade especificamente humana, em ruptura com a ordem natural. A proibição do incesto – introduzida e sustentada pela função paterna na dinâmica do Édipo – é tão somente a sua manifestação subjetiva mais evidente. Contudo, por essa via, o tema da Lei se articula com o da falta: a proibição do acesso pleno ao gozo do objeto pelo pai instancia o fato de que o desejo humano permanece estruturalmente insatisfeito não por uma proibição contingente (como pode aparecer em uma fantasia incestuosa, por exemplo), mas pelo fato mesmo de que esse desejo é instituído pela própria separação da natureza que engendra a realidade humana. Esse desejo é, literalmente, um desejo de nada (um "nada revelado”, nas palavras de Kojève, de quem Lacan recebe boa parte dessas ideias) ou, em outras palavras, um desejo puro – um desejo que seria pura negatividade.

É esse desejo puro – desejo enquanto tal, para além de qualquer consideração sobre as possibilidades de sua realização – que Lacan virtualmente identifica a sua concepção da subjetividade. No entanto, há uma relação estreita entre o desejo e a Lei: "o desejo é o avesso da lei”, diz Lacan (1963/1966, p. 787), não apenas porque a lei regulamenta o desejo, mas, acima de tudo, porque ela também o engendra (com a proibição, por exemplo) e impõe a sua realização. Lacan, como se sabe, reinterpreta o princípio do prazer freudiano como uma diretriz de "gozar o mínimo possível”, enquanto o imperativo categórico superegoico em estado puro é reinterpretado como um imperativo de gozo absoluto. Nada há de surpreendente, portanto, em que Lacan tenha sido levado, em algum momento, a abordar o desejo no contexto de suas implicações éticas e morais, inclusive resgatando as fórmulas espinosistas mencionadas acima:

O desejo é ou não subjetividade? Essa questão não esperou a análise para ser colocada. Ela está aí desde sempre, desde a origem disso que se pode chamar experiência moral. O desejo é, ao mesmo tempo, subjetividade: ele é isso que está no coração mesmo de nossa subjetividade, o que é mais essencialmente sujeito. Ele é, simultaneamente, algo que é também o contrário, que se opõe como uma resistência, como um paradoxo, como um núcleo rejeitado, como um núcleo refutável. É a partir daí – eu insisti nisso várias vezes – que toda experiência ética se desenvolveu numa perspectiva ao termo da qual nós temos a fórmula enigmática de Espinosa de que 'O desejo, cupiditas, é a essência mesma do homem. (Lacan, 1958-1959, sessão de 01.07.1959)


A multiplicação dos Nomes-do-Pai pôde ser compreendida, como se viu, como um esforço de neutralizar as conotações normativas do conceito na sua formulação original (critério de pertencimento ou não à ordem simbólica). Pode-se compreender em um sentido semelhante o esforço de Lacan de evitar cuidadosamente uma caracterização de sua ética da psicanálise como qualquer espécie de moral prescritiva. Por um lado, quando essa ética impõe ao sujeito não renunciar a seu desejo, é a sustentação da relação ao desejo enquanto tal (o "desejo puro”) que ela impõe ao sujeito, e não a busca irrefreada de sua realização, que se confundiria com uma espécie qualquer de hedonismo. Daí a insistência de Lacan em que a ética da psicanálise passe ao largo de qualquer concepção do Bem, seja ele o prazer ou qualquer outro. Entretanto, sem ser uma ética do bem, ela é ainda uma ética do dever, como a aproximação com Kant revela, mesmo que a referência concomitante a Sade evite que ela se confunda com a prescrição de um ideal ascético. Todavia, não basta identificar o imperativo categórico como um imperativo de gozo. Afinal, a moral libertina sadeana é ainda uma moral prescritiva: deve-se gozar até o fim. A solução tão celebrada de Lacan foi deslocar paradoxalmente sua reflexão ética do registro do ideal para o do real: a ética da psicanálise é uma ética do real, que inscreve essa relação imperativa com o desejo no âmago do próprio ser do sujeito:

Mais de uma vez, na época em que eu falava do simbólico e do imaginário e de sua interação recíproca, alguns entre vocês se perguntaram o que era, afinal de contas, o real. Ora, coisa curiosa para um pensamento sumário que pensaria que toda exploração da ética deve visar o domínio do ideal, senão do irreal, nós iremos, ao contrário, inversamente, no sentido de um aprofundamento da noção do real. A questão ética, na medida em que a posição de Freud aí nos faz progredir, se articula por uma orientação do posicionamento do homem com relação ao real. (Lacan, 1986b, p. 20-21)


Ou seja, há uma norma em questão, mas não se trata de uma norma prescritiva, e sim constitutiva: o sujeito humano se constitui nessa relação com a negatividade de seu desejo, que ele deve, portanto, sustentar, independentemente de quais forem suas crenças morais específicas. Essa noção de uma ética do real deixa de parecer uma novidade assim tão grande se for remontada às origens lévi-straussianas do discurso de Lacan sobre o Lei. Segundo a formulação célebre da significação do tabu do incesto para a justificação teórica da tese da ruptura entre natureza e cultura em As estruturas elementares de parentesco, "a proibição do incesto está ao mesmo tempo no limiar da cultura, na cultura, e em certo sentido é a própria cultura"(Lévi-Strauss, 1949/1982, p. 50). Se a lei que proíbe o incesto é a própria cultura, e se o ser do sujeito naquilo que ele tem de propriamente humano é a dimensão cultural de sua existência, para além da animalidade de seu organismo biológico, então essa lei é constitutiva da realidade desse sujeito. Trata-se, pois, de um princípio ético que assume uma significação efetivamente ontológica. Como o núcleo dessa realidade (o "Kern unseres Wesen"freudiano, que Lacan tanto aprecia) é representado na teoria psicanalítica pelo inconsciente e, mais especificamente, pelo desejo inconsciente, a afirmação de Lacan de que o estatuto do inconsciente é ético e não ôntico se torna bem mais compreesível – se não, no limite, tautológica.9

A função da psicanálise seria tão somente colocar o sujeito em posição de reconhecer a modulação subjetiva que essa relação com o desejo assume em cada caso – contingente aos acidentes do desenvolvimento e da história individual – e confrontá-lo com a necessidade imperativa de sustentar essa relação como uma condição elementar para, simplesmente, se tornar plenamente aquilo que ele já terá sido desde sempre de qualquer maneira. As incômodas consequências normativas da visão lacaniana do desejo e do sujeito se encontrariam, assim, aparentemente, neutralizadas: a psicanálise não prescreve nada ao analisante – nem um bem, nem um dever –, mas apenas lhe permite reconhecer e assumir esse desejo, essa perda ou essa falta em torno da qual ele fragilmente se constitui e com os quais ele precisa viver, seja lá como for.

 

4. Considerações finais: uma ética da resignação?

Entretanto, essa solução não é inteiramente isenta de seus próprios perigos. Inscrever um imperativo ético categórico no âmago da própria realidade do sujeito pode ser interpretado no sentido de que não há nada de fundamental que a psicanálise realmente possa mudar. Seu único objetivo seria confrontar o sujeito com aquilo que ele é e, no máximo, levá-lo a conviver com sua verdade. Em outras palavras, o potencial transformador da intervenção psicanalítica pode ser posto em risco por uma tal compreensão de sua natureza. O princípio maior da ética lacaniana é, como se viu, a confrontação do sujeito com o seu próprio desejo, enquanto desejo, e a sustentação dessa confrontação. Ao mesmo tempo, a concepção lacaniana do desejo está profundamente comprometida com o onipresente discurso sobre a falta em seu pensamento. A ideia de uma ética do real e a centralidade mesma que o registro do real passa ter em Lacan a partir desse momento (a virada dos anos 60) fazem com que a negatividade, que antes era própria do simbólico (o símbolo como negação da natureza, a palavra como morte da coisa etc.), se estenda ao próprio real: este será tipicamente apresentado por meio de fórmulas negativas como o "impossível"ou "aquilo que não para de não se escrever"etc. Com isso, o princípio da ética lacaniana passaria a significar a necessidade da confrontação do sujeito com esse impossível, com esse "furo"(trou) em torno do qual ele precariamente se constitui, em suma, com sua finitude e impotência – ou, pelo menos, corre um sério risco de ser interpretado dessa maneira.

É uma interpretação como essa que Deleuze parece ter em mente, em um famoso comentário crítico feito à psicanálise em geral, mas cujos termos (muitos dos quais foram discutidos aqui) deixam claro que se endereça especialmente à orientação lacaniana. Para ele, na atualização lacaniana da psicanálise:

[...] a significância substituiu a interpretação, o significante substituiu o significado, o silêncio do analista substituiu seu comentário, a castração revelou-se mais certa do que Édipo, as funções estruturais substituíram a imagem dos progenitores, o nome do Pai substitui meu papai. Não vemos grandes mudanças na prática. [...] Por mais que nos digam: vocês não compreendem nada, Édipo não é papai e mamãe, é o simbólico, a lei, o acesso à cultura, é o efeito do significante, é a finitude o sujeito, é a "falta a ser que é a vida”. E se não é Édipo, será a castração ou as pretensas pulsões de morte. Os psicanalistas ensinam a resignação infinita, são os últimos padres (não, haverá outros depois). (Deleuze e Parnet, 1998, p. 97)


O tom humorístico não esconde a seriedade da crítica: a psicanálise, cujas metas pareceriam, à primeira vista, comprometê-la com uma "ética da transformação”, aparece, a um escrutínio mais rigoroso, como comprometida com uma "ética da resignação”, que é quase a sua perfeita antítese. Levada às suas últimas consequências, essa interpretação apresentaria a psicanálise como uma espécie de estoicismo vulgar, erigindo em ideal uma versão popular da apatheia clássica. Deleuze parece ter qualquer coisa assim em mente, quando afirma, nesse mesmo comentário (dessa vez mencionando explicitamente Freud): "A psicanálise torna-se cada vez mais ciceroniana, e Freud sempre foi um romano"(Deleuze e Parnet, 1998, p. 93).

O objetivo aqui não foi sustentar que a psicanálise lacaniana conduz necessariamente a essas consequências, mas apenas apontar que alguns de seus compromissos teóricos rigorosamente inaugurais podem dar origem a linhas de reflexão que levem nessa direção. Por isso, falou-se tão somente de um risco normativo que, não obstante, precisa ser levado em conta na avaliação do potencial dessa teoria em contribuir para debates contemporâneos que põem em jogo o problema da aplicação mais ampla de princípios éticos extraídos da prática psicanalítica, seja nas questões relacionadas ao gênero ou quaisquer outras. A posição freudiana foi elegida como termo de comparação por fornecer um ponto de partida para a reflexão sobre a posição lacaniana – a alternativa entre um discurso sobre a falta e um discurso sobre a diferença mencionada no início. Apesar de ser mais frequentemente interpretada como conservadora, se comparada às posições lacanianas, ela parece ser capaz de fornecer um ponto de partida mais promissor, dependendo da perspectiva e da estratégia de leitura adotada, deixando entrever uma terceira via entre a resignação, de um lado – seja a resignação depressiva ou a resignação altaneira das "belas almas"– e, de outro, a aposta em tecnologias sociais e terapêuticas ingenuamente autonomistas.



 

 

Referências

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1 Na conferência introdutória sobre A feminilidade, Freud restringe consideravelmente a equação simples entre feminilidade e passividade: "Mesmo na esfera da vida sexual humana, vocês logo verão quão inadequado é fazer o comportamento masculino coincidir com a atividade e o feminino com a passividade"(Freud, 1933/1975, p. 115). Ele inclusive reconhece o viés social implicado nessa equivalência: "Mas nisso devemos nos acautelar para não subestimar a influência dos costumes sociais que [...] forçam a mulher a situações passivas"(Freud, 1933/1975, p. 116).
2
A esse respeito, Birman observa ainda que, no contexto sociocultural contemporâneo, "[...] o Nome-do-pai está em processo evidente da liquidação"(Birman, 2006, p. 169).
3 "Por onde se percebe que o ser do sujeito é a sutura de uma falta"(Lacan, 1966b, p. 270). Para maiores desenvolvimentos sobre a questão de uma ontologia negativa em Lacan – a saber, de uma ontologia que conceda todo o seu peso à irredutibilidade das determinações negativas na constituição do real –, veja-se Safatle (2006) e Dunker (2006), entre outros.
4
O símbolo (– φ) na escrita lacaniana designa o falo simbólico, isto é, o significante da falta propriamente dito, enquanto (+ φ) designaria o falo imaginário, que sustenta a fantasia de superação da castração, preenchimento da falta e resgate da plenitude narcísica (essa é a função do objeto fetichista, por exemplo).
5 Não se trata apenas da questão, classicamente analisada por Canguilhem (1966), de que o desenvolvimento histórico da medicina ocidental levou ao surgimento, no século XIX, de uma concepção quantitativa da doença, segundo a qual o saudável e o mórbido distinguem-se em grau, mas não em natureza. Essa concepção teria levado à identificação do conceito estatístico de norma com o de saúde, resultando na oposição entre normal e patológico que dá nome a seu livro. O fato de que essa alternativa ainda soe perfeitamente natural (embora o contrário de normal seja "anormal"e o contrário de patológico seja "saudável”, evidentemente) mostra como essa concepção continua a repercutir na medicina contemporânea. No entanto, o conceito de saúde tem, em si mesmo, uma significação normativa (o que é "melhor"ou "pior"para um organismo etc.), e nenhuma medicina se define sem alguma espécie de oposição entre saúde e doença. De fato, a argumentação de Canguilhem enfatiza o caráter individual e singularizante da normatividade orgânica, que ele, por sua vez, extrai de sua própria concepção sobre a natureza do fato vital. Sua posição é que a medicina precisa levar em conta essa normatividade intrínseca que dá sentido ao que, para cada organismo e em cada circunstância, constitui o estado de saúde, em vez de um conceito uniformizante que define o normal como aquilo que é estatisticamente mais provável e/ou possui uma intensidade intermediária. No entanto, não se trata de excluir quaisquer considerações normativas da concepção da prática médica, o que seria um contrassenso.
6 Ver Simanke (2002, pp. 128-129) para uma discussão mais detalhada do sentido desse critério. Observe-se desde já, no entanto, que, em virtude da hipótese central da tese lacaniana de uma gênese social da personalidade (isto é, do sujeito psíquico), o assentimento social de que ele fala cumpre uma função efetivamente constitutiva. O psicótico lacaniano não pode ser, de forma simplista, reduzido a um inconformista.
7 O termo forclusion – que Lacan propõe como uma tradução livre da Verwerfung freudiana – tem uma origem jurídica e gramatical, contextos em que as questões normativas são evidentemente centrais. Juridicamente, designa a prescrição ou perda de um direito (aparentemente, em suas origens medievais, significava a perda do direito de se abrigar dentro dos muros das cidades, daí a seu sentido literal de "ação de trancar do lado de fora”); gramaticalmente, relaciona-se com a ideia de negação (o forclusivo é o termo que arremata e estrutura a negação, como o 'rien' em 'je ne sais rien').
8 Ou ainda: "[...] o Nome-do-Pai multiplica-se em tantos nomes quantos forem os suportes à sua função, tornando-se ao mesmo tempo, por causa de sua própria multiplicidade, um artifício, algo que ninguém pode usar sem tomá-lo por aquilo que ele não é, sem tomá-lo por um elemento de coesão da ordem simbólica que não existe"(Zenoni, 2007, p. 23).
9 Mais precisamente, Lacan diz: "o estatuto do inconsciente, que eu lhes indico tão frágil no plano ôntico, é ético"(Lacan, 1973/1979, p. 37).