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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.7 no.2 São Paulo  2012

 

Artigos

 

"Sobre uma concepção de manejo na clínica winnicottiana1

 

About a concept of management in Winnicott's clinic

 

 

Tania Corrallo Hammoud2

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae, professora do Centro Winnicott de São Paulo

e-mail: tania.h@uol.com.br

 

 


Resumo

Com ênfase na questão do manejo, o texto faz uma articulação entre os conceitos de criatividade primária, elementos masculinos e femininos puros, brincar e possibilidade de ser, tal como eles aparecem em um caso clínico relatado por Winnicott, em O brincar e a realidade. Procura-se demonstrar como o manejo ali descrito põe em cena esses conceitos, que levarão o paciente ao resgate de si mesmo e à possibilidade de conclusão de sua análise.

Palavras–chave: manejo, criatividade, elementos masculino e feminino puros, brincar.


Abstract

The text makes a link between the concepts of primary creativity, masculine and feminine pure elements, play and ability to be as they appear in a reported case by Winnicott on Playing and Reality. It seeks to demonstrate how management described there brings up these concepts that will lead the patient to rescue hia real self and takes the pacient to the possibility of concluding the analysis.

Keywords: management, creativity, masculine and feminine pure elements, play.


 

 

A aranha do meu destino

Faz teias de eu não pensar.

Não soube o que era em menino,

Sou adulto sem o achar.

É que a teia, de espalhada

Apanhou-me o querer ir…

Sou uma vida baloiçada

Na consciência de existir

A aranha da minha sorte

Faz teia de muro a muro…

Sou presa do meu suporte.


(Fernando Pessoa; Poesias Inéditas; Domínio Público)


1. Introdução


Proponho neste texto tomar um caso clínico de Winnicott, já bastante estudado, mas que me pareceu particularmente rico para pensarmos a questão do manejo na clínica winnicottiana. O caso, conhecido como caso FM, nos é relatado no capítulo cinco de O brincar e a realidade, que trata da origem da criatividade (1971g/1971, pp. 95-120). Embora ali vários importantes conceitos sejam abordados, vou olhar para esse caso do ponto de vista específico do manejo e buscar relacioná-lo com a teoria do amadurecimento, com os conceitos de masculino e feminino puros e o conceito de criatividade ali apresentado, em sua íntima relação com o desenvolvimento da capacidade de brincar e de ser. A criatividade ali conceituada, como sabemos, não se refere à criação artística consagrada, mas diz respeito à forma pela qual o indivíduo se relaciona com a realidade externa. Trata-se de algo do indivíduo que lhe é próprio e exclusivo e que, ao lhe pertencer e poder se manifestar na realidade externa, espontaneamente, colorindo-a à sua forma, o faz sentir-se vivo, permitindo-lhe ser de maneira significativa. Essa forma criativa de relação com o mundo se contrapõe à submissão, que leva à doença (1971g/1971, pp. 100-101).

Winnicott vai relacionar criatividade com a provisão ambiental primitiva e com os elementos femininos e masculinos puros, encontrados tanto em homens como mulheres, vinculando, numa concepção inovadora, a conciliação desses elementos à origem da criatividade, nesse sentido da criatividade como faceta originária da constituição do psiquismo e condição para a existência significativa.

Na alternância de seus estados de quietude e excitabilidade, a criança precisa da presença viva da mãe, de posse desses dois elementos – feminino e masculino puros. Na quietude, a criança precisa da mãe também em quietude, de forma que ela possa estar lá, de várias formas sutis, identificando e atendendo às necessidades da criança, mas ainda não percebida por ela. O bebê pode, através do ser da mãe, ser ele mesmo em quietude: o momento da possibilidade do feminino puro. O segundo momento, o da excitabilidade, da inquietude, exige da mãe um gesto, uma ação, que permita à criança a ilusão da criação do objeto, introduzido apenas gradativamente ao bebê: o momento do masculino puro.

Enquanto o elemento feminino propicia a vivência de ser, base de todas as identificações, o elemento masculino propicia o atuar, agir, base do fazer no mundo (1971va[1966]/1994, p. 143), ambos se complementando na origem do ato criativo, na origem do ser. Se a mãe falha no uso de seu elemento feminino, o bebê perde algo de sua capacidade de existir, de ser. Se a mãe falha no uso de seu elemento masculino, o bebê perde algo de sua capacidade de se relacionar e atuar no mundo.

Ser e atuar no mundo significativamente dependem da conjugação do elemento feminino puro com o elemento masculino puro. O elemento feminino relaciona-se ao ser; o elemento masculino, ao fazer. Ser e fazer conciliam subjetivo e objetivo. A possibilidade da mãe de estar com o bebê, de posse de seu elemento feminino, possibilita o ser do bebê, a partir dessa comunicação silenciosa entre ambos. De posse de seu elemento masculino, atendendo às necessidades do bebê, a mãe possibilita a criação do objeto, que nesse primeiro momento ainda é subjetivo. Essas duas formas de ser no mundo permitem a criatividade originária, na medida em que vão propiciando a base para o contato com o mundo de forma pessoal, desde a sua origem. Para Winnicott, o viver criativo está intimamente vinculado à ideia da conjugação entre mundo objetivo e mundo subjetivo, realizada de modo que seja preservada a subjetividade, a criatividade. A partir do caso FM, o autor entende que esse processo de criação pessoal do mundo está assentado, desde a sua origem, nessa conciliação entre os elementos femininos puros e masculinos puros da mãe, propiciando ao bebê a experiência de sua criatividade primária. Conjugação primeira entre bebê e ambiente fundante do ser e fazer no mundo, de forma significativa.

Os elementos masculinos e femininos puros da personalidade desse paciente encontravam-se dissociados, impedindo-o de ser ele mesmo no mundo, de forma criativa, verdadeira. É com um olhar especial para a trajetória que tornou possível o resgate dessa integração e de seu decorrente viver criativo que iremos percorrer esse caso, com interesse específico pelo entendimento daquilo que foi por Winnicott, nesse caso, chamado de manejo.

 


2. O caso FM

O paciente é um homem de meia idade, casado, com filhos e bem-sucedido numa profissão liberal. Já havia feito algumas longas análises, mas algo permanecia, impedindo-o de deixar o tratamento. Sabia que não tinha encontrado aquilo que de fato o levara à análise. Era um homem, mas sentia-se por vezes como uma mulher, duvidava de sua masculinidade, não estava na posse integrada de si mesmo. Não poderia deixar a análise com o sentimento de ser uma mulher (1971va[1966]/1994, p. 144).

Winnicott nos chama a atenção para o fato de que vai relatar uma experiência que lhe trouxe algo de novo: a descoberta da origem da criatividade e sua relação com os aspectos femininos e masculinos, dissociados na maior parte de nossos pacientes – e atribui a mudança à maneira pela qual ele pôde manejar o fato ali apresentado.

Na fase atual dessa análise chegou-se a algo novo para mim. Algo que se relacionava à maneira pela qual eu entrava em contato com o elemento não-masculino de sua personalidade... A mudança relativa a essa fase específica é mostrada pela maneira com que pude manejar o fato. (1971a/1971, pp. 104-105; itálicos do autor)

Ele está nos falando de algo que classifica como manejo e ao qual atribui a importante mudança que se processou em ambos, paciente e analista, conforme ele sublinha. Vejamos como e por quê.

O paciente falava de maneira usual, mas Winnicott se percebe impressionado pela sensação de que era como se o paciente lhe falasse de inveja do pênis. Evidentemente, isso era dissonante com o que se passava. Era com um homem que ele estava, mas se sentia olhando e escutando uma moça, que estava ali, sem o saber, revelando a ele suas questões femininas. Embora constatando estar diante de uma percepção bizarra, Winnicott resolve tomar em conta seus sentimentos e sua percepção e usá-los ali, dizendo: "Estou ouvindo uma moça. Sei perfeitamente bem que você é um homem, mas estou ouvindo e falando com uma moça. Estou dizendo a ela: você está falando sobre inveja do pênis" (1971a/1971, p. 105).

Winnicott sabia estar, ao fazer essa interpretação, num espaço da ordem do brincar e que, por ser assim, tal interpretação não seria intrusiva (1971a/1971, p. 105).

De fato, e em função disso, a interpretação produz um efeito profundo.

Após uma pausa, o paciente diz: "Se eu falasse a alguém sobre essa moça seria chamado de louco".

Nesse momento, Winnicott, podendo identificar e ficar com a sua parte, manejo fundamental, lhe responde: "Não é que você tenha contado isso a alguém; sou eu que vejo a moça falar, quando, na realidade, em meu divã acha-se um homem. O louco sou eu" (1971a/1971, p. 105).

A partir desse momento, o círculo vicioso no qual a análise estivera presa se rompe. O paciente pôde libertar-se de um dilema. Ele diz: "Eu mesmo nunca poderia dizer (sabendo-me um homem), sou uma moça. Não sou louco assim. Mas você disse e falou para ambas as partes de mim" (1971a/1971, p. 105).

Winnicott acrescenta: "Aquela loucura que era minha capacitou-o a ver-se como uma moça, a partir de minha posição" (1971a/1971, p. 105; itálicos do autor).

Podemos pensar que aquilo de que esse homem necessitava era de alguém que, vendo-o como uma moça, pudesse assumir, com base em sua própria posição, sua própria "loucura". Não por acaso, é essa a frase que Winnicott destaca em seu texto, deixando claro que é este o ato fundamental: a admissão de sua própria "loucura". É isso que Winnicott apresenta ao paciente, é isso que ele lhe concede, liberando-o para ser ele mesmo, um homem. Com essa experiência, o paciente pôde sentir que sua análise poderia finalmente caminhar para o seu fim. São vários os desdobramentos nessa e nas próximas sessões. Porém, o fundamental do ponto de vista do manejo já havia acontecido (1989vp[1959/63]/1994, p. 148).

Retomando: esse paciente havia tido que ajustar-se à ideia da mãe de que ele, seu bebê, era uma menina (1989vp[1959/63]/1994, p. 149).

"Presa de seu suporte", como diria Fernando Pessoa, ele teve que dispor suas defesas com base nesse padrão. É de identidade e identificação masculina e feminina que Winnicott nos fala, bem como de suas origens. Porém, ao falar de masculino e feminino puros, não é de uma origem pulsional inconsciente que ele está tratando (1989vp[1959/63]/1994, p. 149). Para Winnicott, a sexualidade humana tem origem no processo de amadurecimento.

No texto em que aborda as origens da sexualidade para Winnicott, Loparic (2005, p. 17) descreve como os conflitos do tipo sexual se relacionam de maneira mais profunda com o ser e o fazer (feminino e masculino), entendidos como processos essenciais da constituição do psiquismo humano. No bojo dessa análise conceitual sobre a teoria da sexualidade humana para Winnicott, Loparic vai fazer referência a esse caso, chamando-nos especialmente a atenção para a dissociação da parte feminina da sexualidade. Referindo-se ao processo de constituição desse paciente diante de uma mãe que o tratava como uma menina, Loparic afirma:

O preço a pagar foi uma forma de loucura: a dissociação entre essa identificação com a mãe-fêmea – esse elemento feminino dentro dele, não-instintual, meramente relacional – e a sua identidade masculina, gerando permanente conflito que se manifestava, por um lado, na busca não conclusiva de companhias homossexuais e pelos protestos e pelas reivindicações da menina que estava nele e por sua identidade cindida. (2005, p. 343)

Era à "loucura" da mãe que esse homem estava submetido, era dessa "loucura" que ele precisava se libertar. Através essencialmente do manejo, a "loucura" da mãe, que via uma menina onde existia um menino, foi trazida diretamente ao presente, por meio da afirmativa: "Sou eu que estou louco".

É de novo Winnicott quem diz: "O ponto crucial do problema do manejo estava justamente aqui, nessa interpretação, a qual, confesso, quase não me permiti efetuar" (1989a/1994, p. 108; o itálico é meu).

São vários os desdobramentos tanto teóricos como clínicos que esse atendimento proporciona a Winnicott, porém, vamos ficar com a questão clínica do manejo. Interessa-nos pensar a partir daí o que de específico havia nessa interpretação/manejo que permitia a esse paciente finalmente poder pensar no final de sua longa jornada de análises. O término da análise, para a moça que existia nele, só poderia ser a descoberta de que ele de fato era uma moça. Era evidente que seu elemento masculino não poderia aceitar isso e, portanto, sem "devolver" à mãe/analista, a "loucura" que não lhe pertencia, não poderia haver término de análise (1971a/1971, p. 107).

Vamos nos ater a duas questões: Por que a interpretação apresentada produziu tal efeito? Por que Winnicott classifica o que se passou como manejo?

A interpretação produziu efeito, porque foi apresentada ao paciente no exato momento em que algo se produzia como experiência, experiência calcada nesse encontro, encontro marcado pela possibilidade mútua do brincar criativo e que os remetia, a ambos, a uma experiência já vivida, que pôde ser reconhecida e usada pelos dois, na medida da possibilidade de Winnicott de brincar, assumindo sua própria "loucura", usando criativamente a análise como um espaço potencial, propiciando uma integração jamais inteiramente alcançada. A mãe o via desde um ponto de vista louco e intrusivamente impedia sua continuidade de ser – "É que a teia, de espalhada apanhou-me o querer ir..." (Fernando Pessoa) –; a continuidade de ser, o seu querer ir, lhe haviam sido "apanhados". Era preciso recuperar o seu querer ir, era preciso ser ele mesmo, um homem. Era essa continuidade de ser que o paciente fora buscar na análise.

De posse de seu elemento feminino, a Winnicott coube a tarefa de identificar a necessidade do paciente, não uma necessidade qualquer, mas essa desse encontro que leva à continuidade de ser, do "querer ir". De posse de seu elemento masculino, ele pôde apresentar a interpretação ao paciente, na forma de uma brincadeira. De posse de seus elementos femininos e masculinos integrados, usando de seu conhecimento, a funcionar ali como parte daquilo que permite a escuta devotada ao paciente, tal qual uma mãe suficientemente boa, identificada com os movimentos de seu bebê, Winnicott, nesse momento, experimentou a sensação que ele pôde identificar, nomear e apresentar ao paciente como sua "loucura".

Ele nos adverte: isso não tem nada de fácil. É preciso poder não só identificar algo que aparece e produz uma sensação estranha, demandando escuta e consideração, é preciso também poder brincar com isso, ou seja, num ato criativo e corajoso, ser o que não se é, sendo-o ao mesmo tempo. A "loucura" da mãe foi trazida diretamente ao presente e, através desse manejo, o paciente pôde viver a experiência de se sentir são num ambiente louco e se sentir livre para ser ele mesmo. A interpretação só ganhou importância decisiva, e poderíamos dizer vital, no sentido que Winnicott dá à passagem da saúde para aquilo que de fato conta no viver, quando este pôde experimentar, identificar e apresentar ao paciente a "loucura" que outrora fora da mãe. Capacidade, sem dúvida, associada à possibilidade de Winnicott estar ali vivo e brincando, no sentido que ele dá a esses dois conceitos. Nas palavras de Winnicott:


Isso nos dá indicação para o procedimento terapêutico: propiciar oportunidade para a experiência amorfa e para os impulsos criativos, motores e sensórios, que constituem a matéria-prima do brincar. É com base no brincar, que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem. Não somos mais introvertidos ou extrovertidos. Experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, no excitante entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, e numa área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos. (1971a/1971, p. 93)


O que de fundamental se passa na análise envolve estar vivo, espontâneo, brincando.

 


3. O manejo

O sentido aqui pensado de manejo situa o conceito num lugar de importância e significação especial, na clínica. O manejo restitui a continuidade de ser, permite o resgate do sentido da vida, permite ao paciente a possibilidade de ser ele mesmo de forma integrada e permite, em função disso, o final da análise. Essa continuidade é dada pela passagem por esse novo "teste da realidade" no encontro com o novo objeto externo, na sessão de análise. A ação criativa, da qual o manejo nessa acepção é fruto, propicia ao paciente, por sua vez, a experiência de recriação da realidade, a partir da experiência real com o outro. O ser primeiro, o fazer e o agir depois são os protagonistas desse processo: os elementos feminino e masculino, agora em perfeita conjugação, não mais dissociados, como até então fora a condição de existência desse homem (1989vp[1959/63]/1994, p. 149).

É assim, no bojo da busca de entendimento da origem da criatividade, num contexto em que o brincar e a criatividade estão em cena, pela conjugação dos elementos femininos e masculinos puros, que Winnicott nos apresenta esse caso. Rastreando suas ideias, vamos retomar essa parte do caminho de sua teoria até a clínica do manejo.

A condição natural para o desenvolvimento que acabará por levar o indivíduo a ser no mundo, de maneira significativa para si mesmo e para os demais, depende da provisão ambiental, depende no início, essencialmente, da mãe. Num primeiro momento, a mãe precisa ser capaz de propiciar ao bebê a experiência de ser ele mesmo, no processo de encontro com o mundo. Trata-se, nesse momento, de poder viver o encontro com o mundo como criação pessoal, experiência que só se torna possível diante da possibilidade, por parte da mãe, de plena identificação das necessidades do bebê. Este é o primeiro momento, o do objeto subjetivo, o da ilusão de onipotência. Este é o momento do feminino puro.

Num segundo momento e na medida do desenvolvimento de seu bebê, a mãe começa a propiciar a ele experiências de desilusão. Essas experiências dão ao bebê a condição de começar gradativamente a perceber o objeto como separado. O papel da mãe aqui é apresentar ao bebê um objeto que lhe proporcione esta transição, a do objeto subjetivo, ainda parte dele mesmo, para o objeto objetivo, separado e com existência própria. É desde esse momento que a experiência do elemento masculino entra em ação. Nesse momento, a mãe apresentará ao bebê algo que lhe facilitará o contato com a realidade externa, separada do eu, realidade que será exposta ao bebê também na medida de sua possibilidade de sobreviver a essa experiência. O objeto transicional, algo igualmente apresentado pela mãe e criado pelo bebê, faz parte dessa caminhada, é a forma que o bebê dá à ilusão criativa, é "o que torna possível ao indivíduo enfrentar o imenso choque da perda da onipotência" (1989a/1994, p. 102), movimento tão inexorável quanto necessário.

O elemento masculino (fazer) e a experiência da transicionalidade (dar forma à ilusão de onipotência), bem como a experiência de destruição do objeto subjetivo, são condições para a passagem significativa para o contato pleno com a realidade, porém, só se farão possíveis assentados firmemente na experiência anterior de Ser, favorecida por "um ambiente fornecedor suficientemente bom de elemento feminino, [que] deve ser uma questão de detalhes muito sutis de manejo" (1971va[1966]/1994, p. 141; o itálico é meu).

Retomando: por meio da possibilidade da mãe de ser a partir de seu elemento feminino, a criança poderá ser ela mesma, de sorte que a vida lhe pareça significativa ou, diante dessa impossibilidade, o bebê terá sua capacidade de ser interrompida e carente de significação. Com a possibilidade de a própria criança encontrar o seio, que foi ali apresentado a ela pela mãe, sendo, portanto, criado e apresentado a um só tempo, paradoxo que precisa ser apenas aceito e vivido e não entendido ou solucionado, é que se constituirá o EU SOU pleno de significado. Sendo-lhe possível agir segundo seu elemento masculino, elemento masculino aqui associado à ideia do fazer, a mãe irá dar a possibilidade ao bebê de ir gradativamente ao encontro objetivo com a realidade externa, no uso de seu próprio elemento masculino, ausentando-se ou apresentando-se (ou a qualquer outro objeto necessário), quando e na forma possível ao bebê, propiciando a passagem do subjetivamente concebido para o objetivamente compartilhado.

Muito mais do que o desmame, o que dói ao ser humano é a necessidade de reconhecer que, devido à estrutura temporal do seu existir, depois de experienciar a identidade total com o real, base inicial da sua capacidade de existir, ele terá que passar, para poder continuar existindo, pela experiência da diferença total. Dito de outra maneira, o seu dilema básico é insolúvel. Não havendo meios de ser resolvido, pode ser esquecido ou, então, assumido e suportado, isto é, tolerado. (Loparic, 2005, pp. 350-351)

Penso que Loparic expõe de forma clara, nesse texto, aquilo que busco aqui formular, ou seja, diante da tarefa de aceitação da realidade, que nos coloca permanentemente nesse fio de navalha entre o que é subjetivamente concebido e o que é objetivamente percebido, conflito que não pode ser resolvido, mas apenas assumido e tolerado, como assevera Loparic (e, acrescentaria eu, usado criativamente), só a experiência que nos é concedida, que envolve a possibilidade de sermos nós mesmos, a partir de nossa própria criatividade, é que nos leva à capacidade de nos sentirmos reais e sentirmos que a vida vale a pena ser vivida. Manter vivo o sentimento de continuidade de ser, de ser si mesmo, eis o que importa!

Essa experiência nos proporciona um contato, um encontro com um ambiente capaz de ser e de fazer de forma integrada. Nesse contato, o objeto que é criado, a realidade externa em sua existência subjetiva para o bebê, nesse momento, é criado e encontrado tanto em sua existência como em sua significação, e ele o é através de uma ação suficientemente boa da mãe, através de um manejo. Penso que nessa acepção, sobre a qual busco aqui pensar, poderíamos entender o manejo, tal como ele é retomado na clínica, como algo que envolve o holding, o handling e a apresentação de objeto, tarefas que a mãe cumpre junto ao bebê, nessa primeiríssima fase.

Podemos pensar com Winnicott, portanto, que esse movimento que sustenta a continuidade de ser não passa pelo resgate de percepções, representações ou memórias. A continuidade da existência significativa passa por um gesto, por uma ação, por um manejo, tal como aquele ali presente na experiência oferecida pelo ambiente, que, partindo do objeto subjetivo, pela ilusão da criação do objeto, passa pelo objeto transicional e chega à percepção objetiva do mundo, percepção apoiada na capacidade de criar e brincar, surgida nesse mesmo espaço potencial. Tais ações assim propiciadas ao indivíduo condensam, em um mesmo movimento, realidade subjetiva e realidade objetiva, separando e inter-relacionando, mantendo e transformando as duas. O si-mesmo ganha existência viva e significativa, sendo o protagonista dessa complicada conciliação entre realidade interna e externa e a vida, essa difícil realidade cotidiana ganha colorido e sentidos mais úteis e mais significativos para a própria pessoa e para o mundo no qual vive.

 


4. Esta concepção de manejo e a clínica winnicottiana

Ao buscar entender os reais significados das vivências de seu paciente, Winnicott chega a algumas formulações decisivas a respeito da teoria da sexualidade humana, formulando conceitos revolucionários sobre os significados da existência dos aspectos femininos e masculinos puros, na origem da constituição do psiquismo humano. Algumas das consequências decisivas dessas descobertas aparecerão na clínica.

Podemos pensar, portanto, que momentos de mudança significativa na clínica passam por essa modalidade de manejo, algo que, como enfatiza Winnicott, é árduo emocionalmente, nos demanda nada menos que mudanças profundas também em nós e nos envolve como pessoas que têm que estar ali sendo e fazendo algo, verdadeiramente sintonizados com aquele que nos demanda, isto é, acertando, errando, usando com muito rigor e seriedade todo nosso conhecimento, para podermos, enfim, "ficarmos com a nossa parte", sem invasão do território de experiências do outro, para darmos, através disso, a possibilidade de sermos usados, a fim de que o outro se constitua como pessoa capaz de viver a vida plenamente.

No território da análise, aquilo que se passa de fundamental não é a transferência de representações pretéritas deslocadas para a figura do analista, mas, para Winnicott, é algo que tem a ver com experiências reais entre duas pessoas, em que uma concede à outra um espaço onde ela possa ser e encontrar objetos, que possam ser usados, um espaço potencial livre da intrusão do outro, onde se possa brincar e criar.

É a capacidade da mãe de ser, a partir do uso de seu elemento feminino na relação com seu bebê e de sua capacidade depois de fazer, por intermédio de seu elemento masculino, que o bebê pode vir a ser, fazer e se deixar fazer, como nos diz Winnicott.

Ao analista cabe, tal como a mãe, manejar o ambiente, sendo e fazendo, para que o paciente possa ser e fazer em seu próprio vir a ser.

A razão fundamental pela qual Winnicott atribui ao manejo a mudança que se produziu no caso FM está em sua própria condição de ser, condição que lhe permitiu conceder ao paciente a possibilidade de uso daquela interpretação. De posse de seu elemento feminino, ele identifica a necessidade do paciente; de posse de seu elemento masculino, ele apresenta o objeto, neste caso a interpretação, que pode dar sustentação para a passagem à existência do si-mesmo. De posse de sua criatividade, ele usa essa percepção para brincar com o paciente, ficando com a sua parte, não invadindo o espaço do paciente, apresentando algo que pôde levar os dois à experiência que retoma o núcleo da intrusão, que havia congelado o paciente naquela posição. Não se trata de resgates de qualquer ordem, nem de atribuição de significação: trata-se mais de trazer o passado para o presente, sob a forma de experiência, desta vez com alguém que pode se colocar num lugar e de uma determinada forma não invasiva, garantindo, assim, a continuidade de ser para o paciente.

O manejo na clínica, nessa acepção, passa pela possibilidade de cumprir com a função ambiental, outrora uma função materna, função que envolve segurar, manusear e apresentar o objeto ali e naquele momento em que ele pode ser criado pelo paciente, de forma a gerar confiança no ambiente, levando à possibilidade subsequente de uso do analista e do espaço potencial que ele pode oferecer. Ao analista ou àquele que o substitui em situações alternativas, como a mãe ou uma instituição, cabe, no manejo, propiciar a experiência que conduzirá ao lugar e ao momento – se assim podemos nos exprimir – que ficaram congelados e que precisam ser recriados ali no espaço potencial que confere ao paciente e ao analista a oportunidade de brincarem juntos, desfazendo a teia, tão bem entendida por Pessoa, que suporta e aprisiona a um só tempo.

Através da possibilidade compartilhada de brincar, criam-se significados a quatro mãos, que irão se estender para todo o território intermediário entre a realidade psíquica interna e o mundo externo, para todo o vasto e infinito campo da cultura, tal como partilhado por outras pessoas, dando ao paciente a possibilidade de ser e estar, do seu jeito e na sua forma, "na praia de mar de mundos infinitos" (Tagore apud Winnicott, 1971a/1971, p. 133), brincando com outras crianças, como nos diria ainda um outro poeta.

 

Referências

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Loparic, Z. (2005). Elementos da teoria winnicottiana da sexualidade. Natureza humana, 7(2), 311-358.         [ Links ]

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Winnicott, D. W. (1994). Sobre os elementos masculino e feminino ex-cindidos encontrados em homens e mulheres. In D. W. Winnicott (1994/1989a). Explorações psicanalíticas (pp. 133-144). Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1971[1966]; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1971va[1966]         [ Links ])

Winnicott, D. W. (1994). Material clínico (Parte II, cap. 28, "Sobre os elementos masculinos e femininos ex-cindidos (split-off)". In D. W. Winnicott (1994/1989a). Explorações psicanalíticas (pp. 144-150). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989[1959/63]; respeitando-se a classificação de Hjulmand, temos 1989vp [1959/63]         [ Links ])