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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.7 no.2 São Paulo  2012

 

Artigos

 

"Winnicott e a constituição pessoal para a formação do homem"1

 

Winnicott and personal constitution for the formation of man

 

 

Eder Soares Santos

Universidade Estadual de Londrina

e-mail: edersan@hotmail.com

 

 


Resumo

O artigo procura mostrar que Winnicott contribui com, pelo menos, dois sentidos para a educação: um diz respeito à formação do profissional que terá de lidar com problemas da natureza humana enquanto cuidador. A outra, refere-se a como cada pessoa pode chegar a ser um membro saudável da comunidade a qual ela pertence, podendo compartilhar e assumir responsabilidades com outras pessoas para a constituição de um ambiente suficientemente bom para se viver. Após ter mostrado esses dois aspectos na psicanálise de Winnicott, tratar-se-á do significado da constituição pessoal na teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott.

Palavras–chave: cuidado, educação, formação, amadurecimento, Winnicott.


Abstract

The article attempts to show that Winnicott contributes, at least, to two meanings of education: one concerns the training of professionals who have to deal with problems of human nature as care. The other refers to how each person can get to be a healthy member of the community to which it belongs, and can share responsibilities with others to form an environment good enough to live. After showing these two aspects in Winnicott's psychoanalysis we try to indicate a meaning of personal constitution in the Winnicott's theory of personal maturation.

Keywords: Care, Education, Formation, Maturity, Winnicott.


 

 

Winnicott e educação. Esses são dois temas inesgotáveis. Poder-se-ia perguntar, então, qual é a contribuição da psicanálise de Winnicott para a educação? Diria que é total e que há um esforço consciente de Winnicott em nos re-educar como profissionais de vários campos de atuação que somos e enquanto pessoas totais que queremos ser.

Ao dizer isso, creio, causa mais confusão que esclarecimento, pois Winnicott não foi um pedagogo nem nunca se dispôs a criar uma teoria da educação. Winnicott, durante sua vida profissional, esteve preocupado com a natureza humana e em saber como, na saúde, poderíamos poder ser o que somos.

Seu trabalho com pacientes com diferentes necessidades nos fornece um modo novo de olhar o mundo e tentar, a partir daí, pensar novas resoluções de questões que nos dizem respeito como pessoas que necessitam viver e conviver com outrem. Em outras palavras, Winnicott nos fornece um paradigma para podermos resolver problemas de nossa época que dizem respeito às relações entre humanos. E uma das mais preocupantes entre elas é a educação.

Novamente, eu poderia ser mal-entendido aqui; não esperem que Winnicott – e muito menos eu – tenha uma solução para os problemas que assolam a educação. Pelo menos, não para a educação enquanto sistema institucionalizado de caráter conteudista e que depende de seguir certas regras impostas pelo Ministério da Educação, Secretarias de Educação, Núcleos de Educação e coordenadores pedagógicos. Esse é um tipo específico de educação que se tornou necessária aos nossos modos de vida contemporânea e que merece ser discutida e debatida por profissionais gabaritados no assunto.

Lendo Winnicott, percebe-se que ele contribui com, pelo menos, dois sentidos para a educação: um diz respeito à formação do profissional que terá de lidar com problemas da natureza humana enquanto cuidador (professores, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, religiosos etc.). Outro refere-se a como cada pessoa pode chegar a ser um membro saudável da comunidade a qual ela pertence, podendo compartilhar e assumir responsabilidades com outras pessoas para a constituição de um ambiente suficientemente bom para se viver. Consequentemente, nesse segundo aspecto esta implicada a formação da pessoa em seu período escolar. Porém, notem, desde já, que isso é apenas uma parte da formação total de uma pessoa, algo do qual elas terão de ter maturidade para alcançar, conquistar e ultrapassar. E talvez nem todos estejam prontos para isso, embora a educação formal institucionalizada pareça querer assumir isso como certo a partir da chegada das crianças em idade escolar.

 

1. Educação do profissional cuidador

Meu primeiro passo deveria ser a explicitação da teoria do amadurecimento de Winnicott, mas se faz necessário tocar em outro ponto. Acredito que não temos um olhar solto sobre as coisas do mundo. De antemão, quando olho para algo, de alguma forma, já preciso ter uma noção do que é aquilo para o que olho para poder enxergar e lidar com isso. Se, ao olhar para um ypê branco, não sei dizer o que é isso que olho, então não posso dizer que isso é uma árvore e o quanto é bela, mesmo podendo percebê-la. Desde o momento em que os objetos nos são apresentados quando bebês, aprendemos a conformar nosso olhar, nosso conhecimento. Pensem numa figura típica da Gestalt, se eu cresci a vida toda com alguém me dizendo e mostrando que tal figura é um pato, dificilmente vou poder olhar para ela e ver um coelho. Isso não quer dizer que eu não possa começar a ver um coelho se outro alguém que vê coelho e não pato passar a me mostrar como fazê-lo. Isso não quer dizer que seja fácil e que de uma hora para outra em passarei a ver outra figura.

Do que vale mudar o meu olhar, acostumado a patos, a ver coelho? Quando vejo "pato", vejo também todo um contexto no qual os patos se inserem, o que eles fazem, como vivem e como lidam com as coisas ao seu redor. Quando passo a ver coelhos, todo esse contexto também muda.

Dito agora em contexto humano, para se ver o que a teoria do amadurecimento tem a oferecer em todo seu potencial e o que ela nos traz em termos de novas perspectivas, é preciso deixar seu olhar se conformar novamente. Não quero dizer com isso que a teoria psicanalítica tradicional, na qual fomos formados, deve ser jogada fora ou que não serve para mais nada. Dentro do seu contexto, ela continua a poder resolver vários problemas, porém esse contexto mesmo nos impede de poder olhar e resolver problemas em outra chave interpretativa.

Assim, o primeiro ganho ao se trabalhar com a teoria do amadurecimento pessoal é poder olhar e tentar solucionar certos problemas com uma nova chave conceitual. Dito em outros termos, trata-se de uma mudança de paradigmas. Muitos dos trabalhos da Associação Internacional Winnicottiana – sobretudo, os artigos de Loparic2 – mostram essa mudança. Porém, não para dizer que Winnicott seja melhor que Freud e outros psicanalistas de seu tempo, mas sim para mostrar que muitos problemas presentes na clínica e fora dela podem, partindo de outro referencial, ser melhor resolvidos.

Quero dizer com isso , caso se pretenda usar Winnicott para pensar a Educação, é preciso assumir o ponto de vista winnicottiano. É preciso se re-educar e aprender a olhar novamente para certo objeto de investigação.

Contudo, como disse acima, não se passa a ver os problemas de forma diferente de uma hora para outra. Nesse caso específico, para um nova com-formação do olhar, é preciso ler Winnicott por ele mesmo, ou seja, procurar ver em Winnicott suas contribuições originais para algum tema de investigação sem tentar subsumi-las a outras teorias.

 

2. Constituição pessoal: educação para ser total

Não se encontra nos escritos de Winnicott nenhum momento em que ele diga para mães, pais ou educadores em geral o que eles deveriam fazer para que seus filhos e alunos possam ser bem-sucedidos na vida. Winnicott não dá nenhuma receita. Porém, seus escritos têm um caráter propedêutico e podem ajudar muito os profissionais que lidam com mães, pais, filhos e alunos.

Sua argumentação parte do que poderíamos pensar que acontece quando tudo vai bem e as condições de cuidado são suficientemente boas. Obviamente, ele sabe que entre o que acontece de fato e o que ele descreve existem graus muito variáveis para mais ou para menos em relação às situações descritas do amadurecimento humano, mas, considerando-se o que se poderia esperar normalmente de uma pessoa física e psiquicamente saudável, é possível se ter algum parâmetro para se fazer alguma coisa pelas pessoas não saudáveis.

Farei uma breve apresentação a seguir da teoria do amadurecimento pessoal para tentar mostrar que desde o início, na relação de cuidado que se estabelece entre mãe e bebê, um ser que deve se tornar uma pessoal total já está em marcha, em formação. A teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott é formada pelo conjunto de conceitos e ideias que se encontram em suas diversas obras sobre teoria e prática psicanalíticas.3

Dada a amplitude de sua teoria, tocarei apenas em alguns pontos que podem nos ser de interesse para a discussão do tema de que trata este artigo. Constitui-se preocupação da psicanálise tradicional alguns dos seguintes temas: as pulsões, a forma de relacionamento do sujeito com os objetos (bons ou maus), os significados e/ou significantes que o sujeito possa produzir em seu discurso. Isso, com efeito, fez com que, mesmo quando o estudo psicanalítico se referisse a crianças muito novas, nunca se chegasse ao momento inicial do existir humano, ou melhor, fez com que nunca se olhasse esse momento como decisivo para o trabalho que estava sendo realizado, como indica o próprio Winnicott:

Gradualmente, a psicanálise foi ampliada, de modo a abranger até mesmo as crianças muito novas, digamos de dois anos e meio de idade. Isto, entretanto, não foi suficiente para o objetivo que temos em vista aqui, uma vez que as criancinhas de dois anos e meio estão, surpreendentemente, muito distantes de seus primeiros meses de vida, a menos que sejam doentes e imaturas. (Winnicott, 1986b/1999, p. 33)

Assim, é preciso atentar para o fato de que o paradigma a conduzir nossa leitura não é mais o mesmo que conduzira Freud em suas pesquisas, ou seja, aquele da teoria das pulsões reforçado pela da sexualidade, tendo como exemplar o complexo de Édipo.4 O conceito exemplar na teoria do amadurecimento pessoal é o do bebê no colo da mãe (cf. Loparic, 1997, p. 58).

Existir como um ser humano implica realizar certas tarefas e conquistas essenciais ao amadurecimento. Essas conquistas são marcadas por certas tendências, e a tendência à integração aparece como principal característica do processo maturativo. Esta deve se dar no tempo e no espaço e está relacionada ao cuidado suficientemente bom. Outra tendência, relacionada ao manejo, é a personalização, que, quando vai bem, proporciona o relacionamento do ego com um ego corporal, tendo a pele como membrana limitante. Uma última tendência que pode ser destacada é o início das relações objetais, possibilitada pela apresentação de objetos, momento em que o bebê começa a descobrir e a se adaptar, por si mesmo, aos objetos – esse momento não equivale àquele da satisfação pulsional tão acentuado pela teoria freudiana (cf. Winnicott, 1965n[1962]/1996, p. 59).

Devido ao fato de essa tendência à integração ser um estado a ser alcançado, a busca é, então, pelo estabelecimento de um si-mesmo unitário. É com a proteção que a mãe suficientemente boa5 oferece ao ego, a fim de evitar o surgimento das angústias impensáveis, que o ser humano pode constituir a sua personalidade no sentido de uma continuidade existencial

Pode-se dizer que uma proteção do ego suficientemente boa pela mãe (em relação às angústias impensáveis) possibilita ao novo ser humano construir uma personalidade no padrão da continuidade existencial. (Winnicott, 1965n[1962]/1996, p. 60)

A conquista da integração está baseada na unidade pessoal do ser, por isso a questão da continuidade existencial aparece em primeiro plano. Para que o lactente exista como uma unidade, é preciso um cuidado suficientemente bom, a fim de que ele possa diferenciar o seu "eu"do que é "não-eu". Winnicott descreve essa questão assim:

A integração está intimamente ligada à função ambiental de segurança [holding]. A realização da integração é a unidade. Primeiro vem o "eu"que inclui "todo resto é não-eu". Então vem eu sou, eu existo, adquiro experiências, enriqueço-me e tenho uma interação introjetiva e projetiva com o não-eu, o mundo real da realidade compartilhada. (Winnicott, 1965n[1962]/1996, p. 61)

Estando integrado, o bebê pode passar do estágio da dependência absoluta, que exige um alto grau de adaptação por parte da mãe às suas necessidades, para o estágio da dependência relativa, que vem a ser um estágio de adaptação às falhas graduais da mãe. Por fim, no desenrolar desse processo maturativo, o lactente segue rumo à independência, que lhe possibilita se defrontar com o mundo e com todas as suas complexidades (Winnicott, 1965r[1963]/1996, pp. 83-92).

Outro aspecto desse processo de amadurecimento também é relevante de ser mencionado, o do relacionamento do bebê com os objetos e da forma como ele começa a se relacionar com o mundo a sua volta. Para tanto, é preciso pensar no conceito de objetos transicionais. Winnicott define como objetos transicionais aqueles objetos usados no controle da realidade externa, e como fenômeno transicional a técnica empregada para esse controle (Winnicott, 1988, p. 106).

Isso quer dizer que o objeto que é percebido objetivamente por nós será percebido pelo bebê como um objeto subjetivo, pois é criado por ele por uma espécie de alucinação. Sendo assim, a mãe deve apresentar os objetos ao bebê no momento adequado, a fim de que ele, em alucinando um objeto (punho, dedos, pulso etc.), tenha a ilusão de que esse objeto pode ser criado e de que o que é criado é o mundo.

A mãe é boa (...) quando deixa um objeto real estar exatamente onde o lactente está alucinando um objeto tanto que, de fato, o lactente tem [gains] a ilusão de que o mundo pode ser criado e que o que foi criado é o mundo. (Winnicott, 1989i[1959]/1989, p. 53)

A mãe possibilita ao bebê a ilusão de que os objetos da realidade externa podem ser reais para ele mesmo, pois os objetos só podem ser alucinados se forem sentidos como reais.

O que permite a continuidade da ilusão, com modificações graduais na onipotência, são exatamente esses fenômenos que se iniciam com o apego ao objeto transicional e dão início à capacidade de simbolização, desenvolvem-se depois na possibilidade de brincar e se estendem, à medida que o amadurecimento prossegue, por todo o espaço cultural. (Dias, 1998, p. 156)

O que para nós poderia parecer loucura, isto é, viver em um estado alucinatório, é uma condição na qual o bebê, graças aos objetos transicionais, parece se encontrar o tempo todo.

O lactente com um objeto transicional está, em minha opinião, o tempo todo neste estado [alucinatório] que nós lhe permitimos estar e embora isso seja loucura, não se deve chamar de loucura. (Winnicott, 1989i[1959]/1989, p. 54)

Isso nos faz pensar em onipotência, aqui entendida como onipotência nos estágios da mais tenra infância. A partir de então, o lactente vai do sentimento de controle onipotente dos objetos ao abandono desse controle, e chega ao ponto culminante do reconhecimento de que outras coisas acontecem fora do seu controle pessoal: "A transição vai do controle onipotente dos objetos externos até o abandono [relinquishment] dos fenômenos que existem fora do controle pessoal"(Winnicott, 1989i[1959]/1989, p. 55).

Ora, alguma coisa parece mudar no que diz respeito às relações com os objetos. Na perspectiva winnicottiana, estes não são simplesmente dados na natureza, o que obriga o indivíduo que cai no mundo a ter de usar de complexas racionalizações para representá-los. Do ponto de vista do bebê, os objetos estão lá na natureza porque eles foram criados por ele e por qualquer outro dentro de um mundo subjetivo igualmente criado.

Num primeiro momento, a passagem do mundo dos objetos subjetivos para o mundo dos objetos objetivos parece ser impossível, já que cada um se sustenta em "realidade"diferente. Tal impossibilidade é, realmente, apenas aparente. Essa passagem, na verdade uma transição, é feita através de um espaço intermediário, um espaço potencial ou de uma terceira área do que existe (third area of exisiting), pois "o bebê ainda não tem o sentido do que é externo ou do que é interno, o lugar da relação é um 'entre'"(Winnicott, 1989i[1959]/1989, p. 157). Assim, três áreas se nos apresentam. A primeira, em que o fundamental é o indivíduo psíquico ou a realidade interna, é a realidade psíquica pessoal, por meio da qual o indivíduo alucina (no sentido winnicottiano) e pode criar; é a área do mundo subjetivo. A segunda área, a do mundo objetivo, é a da realidade externa, organizada gradualmente para distinguir o "eu"do "não-eu", a fim de se estabelecer um si-mesmo. Por fim, a terceira área é a do fenômeno transicional, que servirá de base para a simbolização, e é nela que se encontra o germe para a riqueza de uma vida cultural em sociedade.

Essas diferentes áreas da experiência não se sucedem uma à outra. O bebê, aponta Dias, não transita de um objeto para outro, nem de um espaço para outro, ele transita, nele mesmo, de um para outro sentido de realidade. Ela acrescenta:

Pode ocorrer de o mesmo objeto, que é de início subjetivo, passar a ser transicional. Não se trata, portanto, de que um certo objeto é subjetivo e outro é transicional. O que se altera não é o objeto mas o sentido de realidade deste, e é a isso que Winnicott se refere quando diz que esse fenômeno nos permite observar algo sobre a natureza do objeto, ou seja, sobre a mudança na natureza do objeto dentro do processo de amadurecimento. (Dias, 1998, p. 158)

Percebe-se, assim, que Winnicott concorda, de certo modo, com a descrição que Freud oferece do complexo de Édipo, isto é, de que o objetivo que se apresenta na fantasia é o amor libidinal do filho pela mãe, o qual envolve a morte de alguém, a morte do pai. A punição vem em forma de castração, representada simbolicamente. Essa castração simbólica é uma espécie de alívio para a criança: "A angústia de castração é o que capacita a criança a continuar a viver, ou o que permite ao pai continuar vivo"(Winnicott, 1988, p. 49).

Embora Winnicott aceite essa formulação freudiana do complexo de Édipo, a perspectiva na qual ela vai ser encarada é totalmente outra. Há muitas coisas que antecedem a chegada à fase do Édipo.

Firmemente estruturada como uma unidade e tendo-se tornado uma pessoa total, pela integração dos instintos e da responsabilidade acerca dos resultados da vida instintual, pode-se dizer que a criança não está mais sujeita ao risco de psicose. Ela tem agora saúde suficiente para enfrentar – e até para sucumbir – as dificuldades que são inerentes à administração da instintualidade no quadro das relações triangulares. (Dias, 1998, p. 180)

Só faz sentido usar o termo "complexo de Édipo"quando este descreve relações entre pessoas totais (whole persons). Portanto, para se alcançar a fase do complexo de Édipo, é preciso que a pessoa tenha sido bem cuidada e tenha tido um bom desenvolvimento da saúde, para que seja capaz de lidar com relações triangulares, ou seja, esteja preparada para aceitar a inteira força da capacidade de amar e as suas complicações.

Não é possível, segundo Winnicott, usar o termo "complexo de Édipo"aplicado às relações apenas entre duas pessoas, ainda mais quando uma delas, no caso, o bebê, ainda não atingiu a capacidade de perceber as pessoas que a rodeiam, nem a si mesma como uma pessoa completa.

Acredito que alguma coisa se perde quando o termo "complexo de Édipo"é aplicado às etapas anteriores em que só estão envolvidas duas pessoas, e a terceira pessoa ou objeto parcial está internalizado, é um fenômeno da realidade interna. Não posso ver nenhum valor na utilização do termo "complexo de Édipo"quando um ou mais de um dos três que formam o triângulo é um objeto parcial. No complexo de Édipo, ao menos do meu ponto de vista, cada um dos componentes do triângulo é uma pessoa total, não apenas para o observador, mas principalmente para a própria criança. (Winnicott, 1988, p. 49)

O complexo de Édipo é um acontecimento normal e significa saúde em uma criança que vem, desde o seu nascimento, tendo um desenvolvimento suficientemente bom. As dificuldades pertinentes ao estágio edípico não são, explica Dias, "resultado de falhas ambientais ou de negligência, mas dificuldades próprias à vida e às relações interpessoais. A criança tem agora suas próprias dificuldades e elas não podem ser prevenidas por cuidado materno adequado"(Dias, 1998, p. 181). Nesse período, desenvolvimento suficientemente bom quer significar, para a criança, que sua família permaneça intacta, que seus pais, que já lhe são bem conhecidos, sejam capazes de tolerar e continuar amando-a, mesmo que ela os ataque com sentimentos que variam entre amor e ódio. No caso contrário, isto é, um desenvolvimento que não teve sucesso suficiente, o que surgem são defesas contra a angústia que advêm do conflito pulsional. A principal dessas defesas é a repressão, momento em que surge um tipo especial de inconsciente: o inconsciente reprimido (cf. Dias, 1998, p. 182). Antes de indicar saúde, essas defesas podem nos remeter a sintomas que indicam doenças psíquicas causadas por um conflito de ambivalência que não conseguiu chegar a uma boa resolução.

O complexo de Édipo representa assim a descrição de um ganho em saúde. A doença não deriva do complexo de Édipo, mas da representação das ideias e inibição das funções que seguem ao doloroso conflito expresso pelo termo ambivalência, como, por exemplo, quando o menino se percebe odiando, desejando matar e temendo o pai que ele ama e em quem confia, porque está apaixonado pela esposa do pai. (Winnicott, 1988, p. 50)

Dessa forma, poder-se-ia pensar que, também em Winnicott, o complexo de Édipo é universal, já que é um acontecimento normal da saúde do ser humano. Mas isso não é verdade. O próprio Winnicott desautoriza esse tipo de conclusão, pois se complexo de Édipo é saúde, isso pressupõe um certo amadurecimento para se chegar até lá e, como se sabe, são muitos os que não conseguem chegar a um momento, em princípio, tão simples quanto o complexo de Édipo.

Poderia-se ver que no caso neurótico mais ou menos puro o material pré-genital era regressivo e a dinâmica pertencia ao período dos quatro anos, mas, por outro lado, em muitos casos havia doença e uma organização de defesas pertencentes a períodos anteriores da vida do lactente e muitos lactentes na verdade nunca chegaram a uma coisa tão simples como o complexo de Édipo na meninice. (Winnicott, 1965va[1962]/1996, p. 175)

Em outros momentos, Winnicott reafirma esse seu ponto de vista de que não é possível assumir a universalidade do complexo de Édipo. Por exemplo, falando sobre o uso do objeto no contexto de Moisés e o monoteísmo de Freud, afirma:

Não é que Freud esteja errado sobre o pai e a quantidade libidinal que se tornou reprimida. Porém, deve-se observar que uma proporção de pessoas no mundo não alcançou o complexo de Édipo. Elas nunca chegaram tão longe no seu desenvolvimento emocional. Portanto, para elas a repressão da figura paterna libidinizada tem pouca relevância. (Winnicott, 1989i[1959]/1989, p. 241)

Na opinião de Winnicott, caso se queira obter algum progresso, é preciso tomar outro ponto de partida para se estudar teorias como a da psicose – esquizofrenia e paranoia –, pois o complexo de Édipo não consegue responder às questões trazidas por esses tipos de problemas psíquicos.

Para se fazer progressos em direção de uma teoria das psicoses utilizável [workable], os analistas devem abandonar a completa [whole] ideia de esquizofrenia e paranoia entendidas em termos de regressão a partir do complexo de Édipo. (Winnicott, 1989i[1959]/1989, p. 246)

Os enfoques, as perspectivas, os pontos de partida mudaram. Winnicott, assim como muitos psicanalistas, trata de pacientes com problemas de ordem psíquica usando termos e conceitos que estão presentes na psicanálise de Freud e de Klein sem, no entanto, falar mais das mesmas coisas que esses autores. A psicanálise de Winnicott não é mais a mesma que a de Freud. Quais as diferenças entre um e outro, e o que isso implica?

As diferenças parecem surgir quando vários pontos da teoria freudiana e winnicottiana aparecem contrastados. As abordagens teóricas de ambos os autores tomam rumos diferentes, pois cada um tinha preocupações diferentes (por exemplo, Freud queria que a sua teoria psicanalítica fosse vista como uma teoria científica, enquanto Winnicott não demonstrava essa preocupação) e via o indivíduo que estava sob sua análise de modo diverso.

 

3. Algumas considerações winnicottianas sobre a educação

Como se pôde perceber, Winnicott não está interessado em explicar os acontecimentos psíquicos e os do mundo com base em uma teoria das pulsões (Triebe), tal como tentou Freud6. Winnicott fala de necessidades (needs): "as necessidades dos bebês e crianças pequenas não são variáveis, são inatas e inalteráveis"(Winnicott,1964a/1975, p. 203).

Estamos sempre em um processo de desenvolvimento maturativo que só termina com a nossa própria morte (cf. Winnicott, 1965r[1963]/1996, pp. 83-92). Desde o nosso início como bebês, essas necessidades que procuramos realizar implicam certas condições que precisam ser preenchidas e que variam de acordo com a idade de cada criança.

Uma dessas condições é a conquista da maturidade apropriada à idade. Essa conquista implica tanto uma elaboração gradual do eu como um todo, como uma unidade, quanto "um desenvolvimento gradual da capacidade de sentir que o mundo externo e o mundo interno são coisas relacionadas, mas não idênticas ao eu, o eu é individual e particular e jamais o mesmo em duas crianças"(Winnicott, 1965r[1963]/1996, p. 205).

Tendo uma criança conquistado maturidade suficientemente apropriada à sua idade e tendo ela conseguido elaborar a realidade de um "mundo externo7", surge então a necessidade de pensar a escola e a educação no mundo dessa criança. Qual a função da escola e qual o papel da educação – em especial, o papel do educador – no processo de amadurecimento pessoal?

Winnicott (1965r[1963]/1996, p. 214) oferece uma resposta bastante clara quanto à função da escola: "a função da escola maternal não é ser um substituto para uma mãe ausente, mas suplementar e ampliar o papel que, nos primeiros anos da criança, só a mãe desempenha". Embora ele se refira à escola maternal, isso poderia ser estendido àquelas de nível fundamental, pois a função que se espera da escola é a mesma, a saber, que ela não seja um substituto para uma ausência familiar. A escola, acrescenta Winnicott, deve servir como um apoio e não como uma alternativa para o lar da criança. Ela [a escola] pode fornecer oportunidade para uma profunda relação pessoal com outras pessoas que não os pais. Oportunidades se apresentam na pessoa daquele que educa e na de outras crianças, bem como no estabelecimento de uma tolerante estrutura em que as experiências podem ser realizadas (cf. Winnicott, 1964a/1975, p. 217).

Entre essas oportunidades, a escola pode criar condições para que o "mundo de fantasias"das crianças e a realidade possam coexistir de maneira enriquecedora, ou seja, criam-se condições para o que é intermediário entre o sonho e o real; principalmente, as brincadeiras são respeitadas e empregam-se estórias, desenhos e música (cf. Winnicott, 1964a/1975, p. 219).

 

4. Conceitos de formação

Ao se falar em educação, em sentido lato, se é levado também a falar em formação. Esse conceito veio aparecendo em nossa fala desde o início, mas não foi explicitado.

Herdamos esse conceito dos filósofos alemães dos séculos XVIII e XIX. Alguns pensadores desse período discutiram esse conceito, como Fichte, Humboldt, Winckelmann, Hölderlin e Nietzsche.

De Fichte herdamos a ideia de uma educação que promulga que "a formação para a humanidade deve ser agora submetida a uma arte refletida que atinja seguramente sua finalidade em tudo o que lhe é confiado [...]. A educação que eu propus deve, então, ser uma arte segura e refletida, para formar uma voa vontade, constante e infalível no homem; essa é sua primeira característica"(Fichte, 1994, p. 104 apud Weber, 2011, p. 45).

De Humboldt recebemos o plano de organização das instituições científicas superiores, que trata da autonomia das instituições de ensino, liberdade de pesquisa, responsabilidade pela formação intelectual e moral, e a concepção de que professor e aluno existem em função do desenvolvimento da ciência (cf. Weber, 2011, p. 47).

Formação, Bildung em alemão, pode ser caracterizada em três direções: 1) a concepção clássica – que tem em Winckelmann sua melhor expressão – em que Bildung é "um ideal pedagógico, voltado à resolução do antagonismo entre vida e espírito, o genérico e o individual, a natureza e a cultura"(Stirnimann, 1997, p. 14 apud Weber, 2011, p. 51); 2) a concepção romântica que "aponta na direção da valorização dos processos de incorporação de transformação [...] trata-se de Bildung enquanto cultivo"(Stirnimann, 1997 apud Weber, 2011, p. 52); e 3) a concepção trágica, sustentada por Hölderlin e Nietzsche "de que a imagem da Grécia legada pelo classicismo é ingênua, pois descuida de considerar que da própria destinação do homem, ou seja, da própria particularidade do seu modo de ser no mundo, emana a necessária consideração de um modo de ser que é absolutamente distinta da calmaria classicista do mundo [...]"(Stirnimann, 1997 apud Weber, 2011, p. 53).

Parece-me que todos esses sentidos de formação estão presentes hoje em dia em nossos projetos políticos pedagógicos, que têm a preocupação de tornar a criança um cidadão na sociedade capaz de certas habilidades específicas. Todavia, quando essas concepções são colocadas diante dos desdobramentos e questionamentos da filosofia contemporânea atual, como a de Heidegger, em que se vê claramente um domínio planetário por meio da técnica e um nivelamento dos seres humanos às requisições de um mundo totalmente impessoal, elas parecem perder seu efeito (cf. Heidegger, 2001).

 

5. Conclusão

A filosofia encontra-se em aporia com essas questões e com dificuldades de se movimentar nela. Parece-me que a teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott consegue escapar de algumas dificuldades que a filosofia tem quando pensa em formação, quando compreende formação em, pelo menos, dois sentidos que se complementam:

1º) formação de si mesmo: a formação de um si-mesmo não vai por si. Só chegamos a ser o que somos (ou não chegamos a sê-lo) em função dos cuidados que recebemos de alguém que se devotou nessa tarefa. Formação nesse aspecto não tem o sentido de educação enquanto ensino de alguma coisa a alguém. Aqui está implicado que há um ambiente confiável onde alguém provê minhas necessidades de modo suficientemente bom para que eu tenha a oportunidade de criar um mundo pessoal no qual viver. Esse primeiro sentido diz que educação enquanto formação deveria ser tomada como cuidado para que eu possa alcançar e conquistar meu potencial de aprender de acordo com meu tempo pessoal. E isso não implica a reprodução ou imitação do modo de vida de nenhum povo, cuja cultura tenha sido um belo exemplo para a humanidade, como era o caso da Grécia antiga.

2º) formação para ser-com-os-outros: um segundo sentido de formação que surge em consequência do primeiro e da necessidade de conquistar um sentido de moralidade, ou seja, a conquista de uma capacidade de poder assumir responsabilidade por suas ações em relação aos outros e ao mundo. Não se espera que por ter sido suficientemente bem cuidada uma criança vá ser passiva, boazinha e bem educada; o que se espera é que ela seja capaz de lidar com seus sentimentos de amor, ódio e agressividade, e que esteja e seja capaz de lidar com os conflitos pessoais que surgem desses sentimentos em relação aos outros. Podendo, por conseguinte, fazer parte da sociedade e contribuindo com esta de forma criativa e viva.

 

Referências

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1 Artigo apresentado por ocasião do V Colóquio Winnicott de Uberaba, em setembro de 2013.
2 Ver, por exemplo, Loparic, 1996, 1997 e 1999.
3 No Brasil, pode-se encontrar uma apresentação muito clara e minuciosa dessas ideias e conceitos no livro A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott, escrito por Dias (2003).
4 Note-se que a questão dos instintos (instincts), da sexualidade ou do complexo de Édipo não deixou de ter sua importância na psicanálise winnicottiana, mas não possui a mesma centralidade que tem na teoria freudiana. Para uma discussão sobre esse tema, ver Santos, 2010.
5 Suficientemente boa quer dizer boa na medida certa, sem exageros para mais ou para menos no seu cuidado com o bebê, isto é, adaptação às necessidades físicas do bebê, que proporciona, num primeiro estágio, um sentimento de segurança e confiabilidade no ambiente (cf. Winnicott, 1971g[1967]/1986, p. 199).
6 As tentativas freudianas de explicar a sociedade e o homem a ela pertencente com base em uma teoria das pulsões podem ser encontradas em várias obras, por exemplo, Totem e tabu (1913/1986).
7 Coloco entre aspas para ressaltar que não se trata de um mundo metafísico, como se agora existisse um mundo X, no qual estou vivendo, e então, depois, devo alcançar um mundo Y, mais perfeito, mais real. O mundo – seja pensado como interno ou externo – é sempre o mesmo, o que muda é nosso modo de compreensão e nossa lida com ele; algo que se dá gradualmente, através da conquista da maturidade.