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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.1 n.1 Barbacena dez. 2003

 

ARTIGOS

 

O sacrifício da razão e o espectro de nossos dias

 

The reason' sacrifice and the our days' spectrum

 

 

Maria Auxiliadora Cordaro Bichara*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo visa refletir sobre o aprisionamento do homem contemporâneo na irracionalidade objetiva e no disciplinamento psíquico, gerado pelo capitalismo monopolista e pelo desenvolvimento tecnológico. O atual estágio do capitalismo e da tecnologia favorece a formação de variados mecanismos psíquicos, ressaltando-se a inibição do pensamento. Com o pensamento inibido, o homem se torna alienado, objeto manipulável, automatizado e descartável. Incapacitado de refletir, efetua e pratica ações de violência e exclusão, perdendo, a cada momento, sua própria humanidade.

Palavras-chave: Inibição do pensamento, Consciência, Invisibilidade.


ABSTRACT

The article aims at reflecting about the contemporary man's imprisonment on objective irrationally and psychic disciplinary, generated by the monopolist capitalism and technologic improvement, The present stage of capitalism and technology helps the formation of many psychics mecanisms, sticking out the thought inhibition. With inhibited thought, man becomes alienated, a manipulable, automatized and rejected object. Unable to reflect, executes and practices violent and exclusion actions, losing, every moment, his own humanity.

Keywords: Thought inhibition, Conscious, Invisibility.


 

 

O pensar exalado no espectro

Diante da sofisticada barbárie contemporânea, "um novo espectro ronda o mundo"? Imitando grotescamente o início do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, a resposta a essa pergunta parece ser sim! Esse novo espectro que ronda o mundo capitalista atual, pior do que aquele do século XIX, se é que se pode imaginar algum capitalismo melhor do que outro, trata-se do crescimento do aprisionamento do homem na irracionalidade objetiva (Adorno & Horkheimer) e no disciplinamento psíquico (Propok, 1973)1, promovidos pela reciclagem do próprio capitalismo e pelos avanços das tecnologias. Esse novo espectro, porém, manifesta-se com diferentes facetas.

Os avanços do capitalismo e das tecnologias, com sua aparência de progresso e bem-estar, vêm provocando um maciço desemprego, que arrasta consigo inúmeros mal-estares: o empobrecimento, o sofrimento a submissão e a exploração invisível, que fazem o homem mergulhar em seu medo básico. Essa é uma das faces do novo espectro, provocado pela mobilização da ameaça da total desintegração do eu, que o remete à angústia mais primitiva: a do desamparo primordial.

O desamparo primordial faz o homem retornar a uma posição regressiva, não podendo usufruir do progresso, restando-lhe dominar seus medos e lutar pela autoconservação (Adorno & Horkheimer), o que o reduz à irracionalidade objetiva, ao inumano. Cada sujeito, com seu ego capturado pelo capitalismo tardio, torna-se mais um elemento dessa inumanidade, fazendo manobras defensivas diante do desamparo, o que o impede de pensar e o recoloca nessa mesma condição de inumanidade: "concretiza-se assim o mais antigo medo, o medo da perda do próprio nome" (Adorno & Horkheimer, 1985. p.43). Impossibilitado de realizar suas potencialidades, amedrontado e lutando pela sobrevivência, toda crítica e reflexão ficam excluídas de seu psiquismo (Adorno & Horkheimer). Tomando como exemplo a colaboração das ciências para a crítica e a reflexão, observa-se a própria psicanálise: foi criada para tentar aliviar o homem moderno de seus sofrimentos, propondo a ampliação dos estados da consciência, mas vem se tornando um instrumento desse aprisionamento. Da ampliação da consciência proposta por Freud estamos hoje frente à frente com sua dominação, por meio do disciplinamento psíquico.

Outra conseqüência do novo espectro que nos ronda, sobre a qual gostaríamos de nos deter, é a inibição do pensamento, que torna cada vez mais os sujeitos alienados, objetos manipuláveis, automatizados e descartáveis. Incapacitados de refletir, efetuam e praticam ações de violência e exclusão, perdendo, a cada momento, sua própria humanidade. Presos pelo medo da desintegração do eu, temem algo - algo perseguidor, com poderes ocultos, portanto sem possibilidades de simbolização e de pensamento; não percebem tampouco encontram explicação para seus sentimentos de desamparo. Responsabilizam-se por suas dificuldades, mesmo não sabendo de onde se originam, só lhes restando, assim, uma profunda sensação de fracasso.

Além do medo oriundo do próprio capitalismo monopolista, da globalização, do crescente desemprego, Slavoj Zizek (2003) contribui com sua análise sobre a tendência ameaçadora do desenvolvimento tecnológico - a tecnologia atual e a futura caminham para a invisibilidade, passam sem a percepção dos sujeitos: "...o desenvolvimento dos computadores [...] serão [...] substituídos por pequenas peças adaptadas de modo imperceptível a nossos ambientes ‘normais', permitindo que funcionem suavemente [...] serão invisíveis, em toda a parte e em lugar nenhum, tão poderosos que desaparecerão de nossas vistas" (2003, p.7). Essa invisibilidade produz como efeito um distanciamento de si e de seus pensamentos que, em um outro aspecto, pode significar outra faceta daquele mesmo espectro: um fantasma, algo invisível e onipotente, que bloqueia a interação, a experiência com as máquinas e com os outros. Tem-se, então, um espectro que nos circunda, com duas caras: uma do medo e a outra do fantasma, ambas imperceptíveis e invisíveis.

 

A visão aprisionada

A lógica do mundo capitalista é o aprisionamento dos sentidos e da consciência. Faz o homem não perceber que as relações sociais se materializam através da invisibilidade: seu espaço de aparecimento é também um espaço de desaparecimento. A sociedade capitalista utiliza os mais variados recursos para tentar encobrir, tornar invisíveis suas reais intenções, que são controle, a submissão e a dominação.

Para manter essas regras em funcionamento, cria vários dispositivos, além da própria tecnologia e da indústria cultural, na qual o real permanece oculto à percepção dos sujeitos. Por outro lado, cabe ressaltar que tanto os objetos percebidos como o próprio aparelho perceptivo e a vida psíquica são produtos históricos, quer dizer, a percepção e as subjetividades se modificam de acordo com a realidade sócio-histórica.

O controle não se dá mais pela força bruta, mas pelo disciplinamento psíquico, pela sutileza da manipulação do desejo, das fantasias, pelos mecanismos de defesa, nos quais as ações e as percepções agem a fim de ocultar as necessidades reais, o que facilita a criação de necessidades fictícias. Na sociedade burguesa, incentiva-se a percepção destinada a produzir, na consciência, a invisibilidade e/ou deformações nas aquisições cognitivas, adequadas ao sistema de dominação. O que se assiste é a utilização do conhecimento formulado pelas ciências, que se convertem em maneiras de afastar o pensamento e manter a ignorância.

Nesse sentido, há uma aliança perfeita entre os sujeitos e o capitalismo tardio, como diz Zizek (2003) pois, ao contrário do que se pensa, a curiosidade - o desejo de saber - não é "natural" no ser que tem como comportamento habitual o "Não quero saber". Todo o percurso para se chegar ao conhecimento implica o embate contra essa atitude. Para saber, é preciso que a força do desejo epistemológico se sobreponha ao da ignorância. É pelo desejo que uma consciência se aproxima de outra, para se apropriar do objeto desejado e alcançar o reconhecimento de si mesmo no outro. O desejo promove a percepção de que o outro é um outro da consciência, promove também a percepção de que não se pode pensar sem a presença de outros seres pensantes. O desejo de saber é oriundo da transformação da pulsão escópica em curiosidade, em ver o mundo, em conhecer as idéias, em discriminá-las. O olhar, porém, vem sendo dirigido para o não-olhar, o desejo e o pensamento se tornam objetos fetiches, mercadorias a serem consumidas cegamente.

A dominação mantida pelos caminhos invisíveis da tecnologia, que retira dos sujeitos a possibilidade perceptiva e cognitiva, recoloca a importância de se pensar o pensamento como veículo da liberdade e da emancipação, uma vez que ele vem sendo alijado dos sujeitos.

Apesar da invisibilidade e das tecnologias contribuírem para a conservação da cegueira e levarem o sujeito a atravessar e mergulhar nos espectros do fantasmagórico e do desamparo, é possível investigar essa invisibilidade, no sentido de libertá-la de seus véus, verificando, tal como concebe Adorno, o que a determina, por meio da separação e da decifração dos elementos, portadores de uma lógica que não se mostra encoberta mas, ao contrário, se sustenta na possibilidade de transformar as reações mais íntimas e ocultas do sujeito em meras reações passíveis de serem controladas.

Com esses fatores (que são sociais, culturais, econômicos) se transformam em conteúdos psíquicos subjetivos e interferem na percepção, na consciência e no pensamento? Apesar de os fundamentos da teoria psicanalítica estarem alicerçando a indústria cultural e o capitalismo, podem contribuir para a identificação dos processos pelos quais a realidade social exclui, deforma as percepções, inibe ou empurra o pensamento numa ou noutra direção, determinando certas ligações e impedindo outras. A psicanálise pode, ainda, verificar como se lida com o imaginário de uma forma recalcadora e quais os processos em que a razão e o pensamento podem libertar-se de suas amarras e o sujeito recuperar a capacidade de agir e interagir politicamente (Rouanet, 1985). Concordando com Zizek, deve-se objetivar pelo pensamento e pelo esclarecimento o sujeito: "... a atravessar o fantasmagórico étoffee du moi, o estofo de que são feitos nossos egos - e é somente através desse esforço que pode emergir a subjetividade propriamente dita.'' (p. 8)

 

Lições de psicanálise

Pensar o pensamento à luz da psicanálise é traçar os caminhos da reflexão imanente, que explora as interferências afetivas, os obstáculos internos ao sujeito dos limites do aparelho de significar/interpretar (Kaes, 1985), que impedem a objetividade do conhecimento. A constituição e o funcionamento do aparelho psíquico são produtos históricos, como já foi mencionado, em que os fatores sociais, econômicos, políticos e culturais afetam e modificam seu funcionamento de acordo com as modificações ocorridas na história. Esse caminho, portanto, terá dois eixos: em primeiro lugar, verificar como emerge o pensamento enquanto atividade psíquica e, em seguida, verificar as perturbações impeditivas de tal atividade, decorrentes da realidade externa.

Anzieu (1994), em seu livro L'ativité de la penseé - émergences et troubles, afirma que a atividade do pensamento consiste em várias operações que envolvem um trabalho psíquico de transformação, de ligação aos significados verbais e formais, e de desligamentos. Em última instância, o trabalho psíquico é um tratamento da excitação. Quando há excitação, o psiquismo recorre a algumas maneiras para descarregá-la. Uma delas é de forma automática, por meio de uma ação motora. Outra possibilidade é a ligação às representações de coisas e, por último, é o próprio pensamento, quando efetua o deslocamento de quantidades de energia de baixa intensidade sobre a rede de representações, e um investimento suficientemente forte para mantê-lo e também a atenção, o julgamento e a ação controlada. Freud definiu uma instância psíquica, tópica, denominada Ego, na qual se regulam esses processos do pensamento, julgamento, percepção, controle da motilidade, prova de realidade, antecipação, ordenação temporal dos processos mentais. O ego possui, ainda, fenômenos como racionalização e defesa compulsiva contra os investimentos pulsionais, os mecanismos de defesa. Contém, em seu núcleo, a consciência e possui uma dinâmica e uma economia similar a outros processos psíquicos. É inconsciente em grande parte, tem uma função mediadora e está sempre ameaçado por três perigos diferentes, que deve controlar: a adaptação à realidade externa, o domínio das pulsões do id e o controle da severidade do superego.

Toda a atividade do pensar nasce do conflito entre as pulsões libidinais e/ou destruidoras e os mecanismos defensivos. Ocorre em uma parte do ego consciente, do ego-realidade. Como já foi dito, essa atividade pode ser interrompida quando o ego perde sua capacidade de fazer ligações com as representações, pois seus dispositivos contra as angústias e fantasmas primitivos o ameaçam, colocando-o em risco de desintegração.

Um outro aspecto, que pode ser verificado, é que, em determinadas circunstâncias, o ego retira da consciência conteúdos psíquicos indesejáveis, protegendo o aparelho psíquico desses conteúdos, inibindo a percepção das representações a eles ligados. Essa inibição é um dos mecanismos defensivos do ego, de natureza inconsciente. A força geradora desses mecanismos de defesa é o princípio do prazer/desprazer: ao se defrontar com uma realidade produtora de desprazer, o ego desinveste a percepção a ela associada em um ato semelhante à fuga e, ou torna invisível a representação, ou a deforma.

Nessas situações, nas quais haja ameaça à capacidade em dar continuidade e manter a integridade do eu, devido à mobilização de uma angústia primitiva, as identificações fundamentais desaparecem, o sofrimento emerge por si mesmo, pelos objetos amados e nas relações com a alteridade, resultando na inibição dos processos de regulação do ego e o acionamento de mecanismos específicos.

O ego, ao retirar a percepção da representação desprazerosa, tornando-a invisível, produz o recalque ou a negação; quando desinveste a percepção deformando-a, utiliza mecanismos defensivos como: regressão, formação reativa, anulação retroativa, inversão e retorno sobre a própria pessoa, identificação, projeção e racionalização.

A negação caracteriza-se pelo modo no qual o indivíduo se recusa a aceitar a percepção de um fato que se impõe no mundo exterior. Diferencia-se do recalque, à medida que ele censura uma percepção interna, enquanto a negação é a censura de uma percepção do mundo externo. Não se trata, como na projeção, de um deslocamento da realidade interna para a externa, segundo as leis dos processos primários mas, literalmente, de uma não-percepção.

Um dos modelos da negação é a recusa em aceitar a diferença entre os sexos, principalmente a ''castração'' feminina. A negação é um mecanismo de defesa no qual a percepção da diferença anatômica é ameaçadora, coteja a criança com a possibilidade de que ela própria possa ser submetida à castração. A denegação põe em risco uma ameaça de violência, o que a leva a um desinvestimento da realidade exterior, retornando a energia libidinal para investimento no seu ego narcisista, promovendo o afastamento e denegação dessa realidade. Outro modelo da negação é aquele que se refere ao lugar do incógnito como pertencente à consciência, ao cognitivo, à pesquisa epistemológica, sendo um motor fundamental para todo questionamento. Está ligada, também, ao inconsciente e interessa ao saber, à ciência e suas investigações e na averiguação dos fenômenos do ambiente sócio-cultural. Esse aspecto será tratado mais adiante.

Outros modos de funcionamento dos mecanismos de defesa podem ser analisados tomando-se, como exemplo, uma representação a ser censurada oriunda de um impulso destrutivo contra autoridade. Lidar com essa representação a ser censurada implicaria o trabalho psíquico de:

• recalcar a representação, pelo desligamento da consciência;

• efetuar um processo de regressão libidinal, no qual o sujeito retrocedesse a uma etapa em que a hostilidade contra o pai era punida, fazendo-a permanecer sem ligação alguma com outra representação, ficando sem articulação com outras representações;

• estabelecer uma luta - uma formação reativa, que transforma as representações em sentido oposto à representação censurada;

• retornar e inverter sobre a própria pessoa, desviando sua hostilidade de seu verdadeiro alvo ou pela identificação;

• estabelecer uma identificação que leva o agredido a assumir a função de agressor;

• projetar para fora de si a representação hostil, atribuindo o ódio a inimigos, estabelecendo uma relação persecutória com os outros.

No caso das representações sociais, pode-se pensar que o ego realiza os mesmos mecanismos do recalque, ao se deparar alguma representação que considera perigosa, ou põe em ação os mecanismos recalcadores ou, ao prever a efetividade dos riscos antecipados, apaga-a, total ou parcialmente, por meio de um contra-investimento que implica a supressão de uma atitude, de um comportamento, uma representação, um pensamento, um sentido contrário ao da idéia a ser combatida. Esse contra-investimento pode ser deflagrado por perigos reais ou por perigos intrapsíquicos, que levam à emissão de sinais de angústia. Essa pode ser paralisante e impeditiva do trabalho psíquico dos sujeitos, pois não há um investimento libidinal capaz de fazer ligações, o que espressa ..."uma restrição de uma das funções do ego" (Freud, 1926, p.109), para executar essa operação.

Essa restrição de uma das funções do ego (esse efeito psíquico) foi considerada uma inibição por Freud, em 1926, no texto Inibição, sintoma e angústia. O processo de inibição, diz ele, é uma limitação normal das funções do ego, que pode ser decorrente da retirada da libido, para evitar o conflito entre o ego e o id. Em outros casos, como por exemplo, a inibição durante a atividade profissional, é um modo de evitar o conflito entre o ego e o superego, pois:

"Existem [...] inibições que servem à finalidade de autopunição [...] Não se permite ao ego levar a efeito essas atividades, porque trariam êxito e lucro, e isso são coisas que o severo superego proibiu. Assim o ego desiste também delas, a fim de evitar entrar em conflito com o superego." ( p.110)

A inibição do pensamento durante uma atividade profissional, como se verifica tanto em Freud como na compreensão de Roudinesco (1998, p.382), seria uma "limitação normal do ego" e não teria um caráter patológico, o qual estaria relacionado ao sintoma, que pode ou não conter uma inibição. O sintoma "é o substituto de uma satisfação pulsional não ocorrida: tal como o sonho e o ato falho, é uma formação de compromisso entre representações recalcadas e as instâncias recalcadoras" (idem). Um outro aspecto que diz respeito ao efeito inibidor provocado pela realização de uma tarefa psíquica complicada foi comentado por Freud, nesse mesmo artigo de 1926:

"Quando o ego se vê envolvido em uma tarefa psíquica particularmente difícil, como ocorre no luto, ou quando se verifica uma tremenda supressão de afeto, ou quando um fluxo contínuo de fantasias sexuais tem de ser mantido sob controle, ele perde uma quantidade tão grande de energia à sua disposição que tem de reduzir o dispêndio da mesma em muitos pontos." (p.110)

A mente humana e o próprio ego se originam de certas percepções privilegiadas que só podem surgir e funcionar a partir de uma complexa rede de relações sociais. Nos casos em que o ego aciona uma defesa inconsciente em resposta às angústias, sinais provocados pela realidade exterior, o que impossibilita ou deforma a percepção interna é toda uma parte da vida psíquica que se torna inacessível para o sujeito.

O ego é dependente de outras instâncias psíquicas. Está submetido ao superego, é muitas vezes atacado pela sua agressividade, pela sua severidade e moralidade, o que desencadeia no ego um grande sentimento de culpa. Possui uma pequena parte consciente, que decide o que deve se tornar consciente. Uma de suas funções é resolver se uma ação é ou não racional do ponto de vista da sobrevivência do sujeito. Deve, ainda, transformar em ação determinados impulsos. Sofre pressões internas mais ou menos perturbadoras, pois tem de exercer a exploração da realidade exterior e, à base das informações adquiridas, executar a regulação da barreira da consciência. Reflete, em grande parte, a impotência e a limitação do aparelho psíquico no contexto das relações sociais específicas.

Para Adorno, a integração social se baseava, no passado, em um tipo de socialização que possibilitava alguma autonomia, pois as instâncias psíquicas podiam realizar seus jogos: os impulsos do id pressionavam o ego e esse mediava a realidade com as forças ambíguas do superego. Hoje, não há uma regulação direta da vida psíquica pelas instâncias, mas pelo todo. No passado, a integração se fazia pela mediação de um superego ainda ambíguo, capaz de censurar não só o desejo mas também a realidade, à medida que ela incorporasse normas inaceitáveis. O ego era mais forte para decidir entre as exigências dos seus três "tiranos" - o id, o ideal do ego (que se submete, por amor, ao ideal do ego e também tenta corresponder às expectativas das autoridades) e o superego, em nome do princípio de realidade e não do sistema societário. No passado, os impulsos do id dirigidos ao ego e ao superego, que representa o social, eram arbitrados no interior do sujeito. Atualmente, a mediação entre as instâncias é obtida através da liberação do id, que está livre - com uma pequena condição: a de obedecer cegamente ao consumo e à sociedade global. As forças do desejo são desencadeadas, com a condição de colocarem sua liberdade a serviço do todo e a serviço da igualdade.

 

A inibição do pensamento e o encantamento do mundo

Ao se pensar o pensamento, tomamos como ponto de partida o novo espectro que nos ronda: a angústia do desamparo primordial e o fantasma da invisibilidade - do ocultamento e do encobrimento do real nas relações capitalistas contemporâneas. Esse espectro provoca o fracasso do pensamento e do esclarecimento como possibilidade humana de liberdade e emancipação.

Por outro lado, o pensar implicou uma reflexão imanente da estrutura mental subjetiva e suas ligações com as estruturas históricas e políticas. Detivemos-nos na análise da atividade psíquica do pensar, na qual se verificou a atuação do ego. Diante de desejos, representações (cujo aparecimento pode ser indesejável ou destrutivo para a consciência), um ou mais mecanismos de defesas egóicos podem ser acionados, como a negação, o recalque, a identificação, Essas manobras inconscientes produzem como efeito a paralisia ou a inibição do pensamento, e é resultante do evitamento de um conflito entre o ego, as normal sociais e outras situações vividas no cotidiano dos sujeitos, em que os homens se tornam coisas manipuláveis, descartáveis e, dessa mesma forma, estabelecem uma relação de manipulação com o mundo que os rodeia.

Adorno e Horkheimer (1985), no livro Dialética do esclarecimento, conceituam o esclarecimento como o termo "usado para designar o processo de desencantamento do mundo [grifo nosso], pelo qual as pessoas se libertam do medo de uma natureza desconhecida, à qual atribuem poderes ocultos para explicar seu desamparo face dela." (p.7)

No decorrer do texto, os autores apresentam uma ampla e complexa análise sobre o pensamento, o que nos deixa com a sensação de que nada de novo está sendo acrescentando aqui.

No entanto, quase 25 anos após sua tradução, houve uma renovação e uma reciclagem do capitalismo, um grande desenvolvimento tecnológico, principalmente na biogenética. O isolamento de genes responsáveis por algumas doenças proporciona previsões e diagnósticos precoces, sem a descoberta, contudo, de terapêuticas para essas mesmas doenças, Abre-se, com isso, um enorme espaço para a imaginação, o medo e o fantasma, ao mesmo tempo, em que há uma proliferação de pensadores defendendo o incremento da ignorância, diante da impotência da cura das doenças (Zizek, 2003). A ignorância, nesse caso, é proposta para se evitar o sofrimento psíquico. Esse, porém, se exacerba.

As descobertas tecnológicas e outras produções da cultura contemporânea incentivam a ignorância, fortalecem a negação da realidade exterior e instauram horror. O que significa a predominância desse mecanismo para a realidade dos sujeitos?

Em decorrência do mecanismo da negação, alguns psicanalistas (Escola Psicanalítica Francesa: Kaes e outros) afirmam que os sujeitos contemporâneos estão sofrendo e se encontram com "dificuldade" para pensar: o que significa uma complexidade maior do que a própria inibição. Explicitam que os conflitos atuais se organizam nas categorias do ser/não ser, do existir/não existir, os quais diferem dos antigos, pois expressavam a angústia do ter/não ter (histeria, por exemplo), indicando que o que é ignorado, negado, não pensado, oculto, não desaparece, se transforma. Nas famílias, nos grupos, nas instituições, comunidades, curiosamente, o que é negado se transmite de uns para os outros, de geração em geração, provocando perturbações psíquicas nas quais essa transmissão silenciosa do oculto perdura e regressa com a angústia da "urgência de ser" (Missenard & outros, 1989), uma vez que todo o negado é experimentado pelos sujeitos como o "não ser".

As relações sociais contemporâneas, marcadas pelo excesso de invisibilidade, de aparecimento e de desaparecimento, produzem nos sujeitos um impedimento de discriminar um dentro e um fora, pois "nada se vê", o que resulta em um processo de despersonalização e dissolução iminente. O sentimento de não ser é capaz de adquirir uma potência de destruição e de violência, e sem um lugar, um dentro, continente dessa potência no conjunto social, cada sujeito deve por si mesmo efetuar o recalque dessas representações hostis e, junto com o rechaço dessas representações, perder-se o pensamento e com ele a vida psíquica.

Nesse jogo, as relações sociais, sem dentro e sem fora, se mantêm repetitivas, mecânicas. Nelas, o sujeito desamparado e ameaçado pelo fantasmagórico solicita alguém protetor. Por outro lado, apesar das tentativas de afastar o indesejado da consciência, o recalcado retorna, a despersonalização se evidencia, sem possibilidade de simbolização, de deciframento, de novas invenções, colocando os sujeitos no sempre igual, no qual não há experimentação de novas formas de expressão, reafirmando o aprisionamento na irracionalidade objetiva.

Por outro lado, durante o processo de constituição e funcionamento do aparelho psíquico, existe a necessidade de operar esse mecanismo de negação, para poder manter e preservar sua organização. E, ainda, para o sujeito se inserir nos grupos e na própria sociedade, a operação do negativo é importante, pois a inclusão requer uma quantia de negatividade inerente à renúncia de uma parte da satisfação libidinal, ao abandono de alguns ideais, à renúncia de aspectos do narcisismo, além do que existe um limite no psiquismo humano para o pensamento e o saber.

Para se realizar a atividade do pensamento, é necessária a presença de um incógnito, que também provoca uma intensa e aflitiva angústia, que mobiliza a formulação de um enigma, de algo a ser decifrado, o que implica um trabalho psíquico, um investimento libidinal - capaz de fazer ligação, transmissão e transformação -, o uso do aparelho de significar e interpretar e da razão objetiva. O deciframento do enigma é fonte de prazer de pensar, de comunicação, do uso das palavras, a expressão de afetos a ele relacionados. Anima a curiosidade intelectual, a criação e a expressão, tornando a realidade racional.

Com o pensamento fora de uso, "o nada se vê e o nada se sabe" fica instituído e, com ele, o horror da despersonalização e do desamparo. O sujeito ameaçado pode se aliar, não ao esclarecimento, não "ao desencantamento do mundo" (Adorno & Horkheimer, 1985), pelo contrário "ao encantamento do mundo". Esse encantamento, evocado pela negação (necessária ao funcionamento psíquico) em aliança com as exigências da realidade externa, promove a almejada aparição de super-homens, capazes de os retirar do abismo e do fantasmagórico. Esses super poderosos, fomentadores "do encantamento do mundo, pode ser a religião, a ideologia, a ciência e a droga" (Birman, 1997, p. 176), farejam as relações sociais e cada sujeito, aguardando o encontro prometido: o sacrifício da razão.

 

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Endereço para correspondência
Rua Machado Bittencourt, 317/conj. 12 - Vila Mariana - (11) 5083-2954
E-mail: dorabichara@terra.com.br

Recebido em 9/10/2003

 

 

*Psicanalista, mestre em Psicologia e doutoranda em Psicologia Social na PUC-SP.
1MARCONDES FILHO, Ciro e FERNANDEZ, Florestan. Dieter Propok - SOCIOLOGIA, 1986.

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