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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.1 n.1 Barbacena dez. 2003

 

ARTIGOS

 

Reforma psiquiátrica e conceito de esclarecimento: reflexões críticas

 

Psychiatrical reform and idea of explanation: critical reflection

 

 

Fuad Kyrillos Neto*

Universidade Presidente Antônio Carlos - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda brevemente a história da reforma psiquiátrica no Brasil, apontando seu objetivo maior de favorecer a inclusão social dos usuários. Tece uma análise crítica da introdução do pensamento basagliano nos serviços e suas conseqüências práticas na busca da inclusão. A partir da afirmação de autores do campo da clínica, que apontam as dificuldades encontradas nos serviços abertos de saúde mental, utilizamos o conceito de esclarecimento formulado pela Teoria Crítica como forma de auxiliar nas discussões a respeito do acolhimento e tratamento de psicóticos.

Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, Inclusão, Psicanálise, Desrazão, Esclarecimento.


ABSTRACT

The article broaches briefly the history of the psychiatrical reform in Brazil, pointing its bigger purpose: promote the users social inclusion. It makes a critical analysis about the introduction of basaglian thought on the services and its practical consequences in search of inclusion. As from affirmations of the clinical area autors, that point the difficulties found in the open mental health services, we use the idea of explanation formulated by the critical theory, as a way to help the discussions about psychotic reception and treatment.

Keywords: Psychiatrical reform, Inclusion, Psychoanalysis, Unreason, Explanation.


 

 

Servir a um deus não postulado pelo eu,
Tão insano quanto o alcoolismo
.
Adorno & Horkheimer

 

 

Introdução

No Brasil, uma expressiva reforma psiquiátrica tomou vigor a partir da década de 90, pela iniciativa articulada dos três níveis gestores do Sistema Único de Saúde (SUS). Tal processo redundou na modificação de algumas formas jurídicas e na ênfase de políticas públicas sobre a questão. O projeto de lei 3.657/89, conhecido como Lei Paulo Delgado, proíbe a construção ou contratação de novos leitos psiquiátricos pelo poder público e prevê o redirecionamento dos recursos públicos para a criação de "recursos não manicomiais". Tal projeto foi aprovado em março de 2001, após 12 anos de tramitação no Congresso Nacional. Nesse período de tramitação da lei federal, oito leis estaduais entraram em vigência.

Concomitantemente, podemos assinalar o fechamento de um conjunto significativo de hospitais psiquiátricos que não atendiam minimamente a critérios básicos de assistência. Foram implantados serviços substitutivos ao modelo tradicional, como leitos psiquiátricos em hospitais gerais, e os chamados serviços de atenção diária, de base comunitária, que são cerca de 250 em todo o país.

Na publicação oficial do Ministério da Saúde (2000, p.5) fica marcado de forma clara e inequívoca o objetivo de:

"...alcançar em um futuro próximo uma atenção em saúde mental que garanta os direitos e promova a cidadania dos portadores de transtornos mentais no Brasil, favorecendo sua inclusão social." [grifo meu].

É preciso lembrar que esse enunciado resume e sintetiza um ensejo de mudança surgido na metade da década 70, no contexto do combate ao Estado autoritário. Naquele momento, surgem as primeiras críticas à ineficiência da assistência pública em saúde adotada pela administração federal, através do Ministério da Saúde. Também surgem denúncias de fraudes no sistema de financiamento dos serviços e, o que é mais significativo para o movimento da reforma, denúncias de abandono e maus tratos a que eram submetidos os pacientes internados em diversos hospícios do país.

Nesse contexto, surge o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) que, em 1979, promoveu evento ao qual estiveram presentes Franco Basaglia e Robert Castel. As denúncias da violência nos hospitais, alguns visitados por Basaglia, e o desrespeito aos direitos humanos provocaram grande impacto. Nesse evento tomou-se conhecimento da reforma psiquiátrica italiana. O MTSM, ao adotar um discurso humanitário em defesa dos pacientes internados, alcançou grande repercussão e fez avançar a luta até seu caráter definitivamente antimanicomial.

O avanço da luta antimanicomial trouxe ganhos significativos para a assistência aos portadores de transtornos mentais. No patamar institucional, apontamos como vantagens a desconstrução do modelo manicomial e a criação de uma rede de serviços com dispositivos diferenciados (urgências, leitos de retaguarda, oficinas terapêuticas, visitas domiciliares, etc.) em território definido, proporcionando qualidade ao atendimento do usuário.

Após o reconhecimento da força histórica que impelia a loucura para a condição de exclusão social, política e discursiva, o antimodelo surgeria como estratégia inversa a inclusão a cidadania e o retomo do palavra ao paciente.

Nesse contexto, o MTSM introduz um novo destinatário para seu discurso. Não se trata de enfrentar o discurso tecnocientífico da psiquiatria, nem apenas o discurso burocrático estatal. Ambos reproduzem aquilo que o MTSM localiza como problemático: o fechamento, a clausura, a circularidade que mantém a rede de autoridade sobre a experiência, sobre as trocas simbólicas e dispositivos técnicos do tratamento. Contra essa retórica da exclusão se apresenta, portanto, um novo participante, produzido e reconhecido por essa destinação: a opinião pública.

A preocupação com a função interpretativa da opinião pública, colocada na posição de observadora, faz produzir uma enunciação baseada na denúncia e no desmascaramento. Para tanto, a estratégia de discurso ampara-se no uso calculado de uma dupla cena: o desmascaramento da opressão política em paralelo ao desocultamento das práticas de submissão. Forma-se assim uma equação na qual controlar e oprimir se solidariza, paradoxalmente, com cuidar e amparar. Ambos concorrem para a produção de posições objetivantes, silenciosas e dóceis.

Percebemos um distanciamento entre a classe de sujeitos ativos, que no nosso caso são os trabalhadores - militantes e a "opinião", instância testemunha que assiste ao "espetáculo" e interpreta sua significação.

 

Desinstitucionalização e reforma psiquiátrica

Nas últimas décadas, o termo reforma psiquiátrica ganhou uma inflexão que passa a questionar os pressupostos da psiquiatria na condenação de seus efeitos de normatização e controle. A reforma psiquiátrica brasileira tem como principal característica a reivindicação da cidadania do louco.

Amarante (1995, p.91), coordenando uma pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública, define reforma psiquiátrica como:

"... um processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria."

A transformação do modelo clássico da psiquiatria deve ser obtida pela desinstitucionalização. O processo de desinstitucionalização iniciou-se na década de 60 com um grupo de psiquiatras que, a partir da observação do manicômio de Gorizia (Itália), criticaram a ação do paradigma racionalista (problema-solução) em psiquiatria. Segundo esses psiquiatras, a terapia deve ser entendida não tanto como uma relação individual entre médico e paciente mas, sobretudo, como um organizado de teoria, normas e prescrições. É em geral o processo pelo qual se liga o diagnóstico ao prognóstico, que conduz da doença à cura.

Entretanto, segundo a Psiquiatria Democrática Italiana, apesar dos pressupostos científicos e terapêuticos que pretendia ter, a psiquiatria constituiu uma primeira prática que não confirma esse paradigma racionalista, pois seu objeto, a doença mental, continua largamente indeterminado e indefinido.

Apesar do desenvolvimento das várias formas de terapia, a cronicidade continua a ser o objeto problemático por excelência, a questão e o sinal mais intenso das dificuldades da psiquiatria em alcançar a solução - a cura, sendo os manicômios a evidência concreta de tudo isso.

A desinstitucionalização é um trabalho prático de transformação que pretende desmontar a lógica manicomial para remontar o problema. Propõe transformar o modo como as pessoas são tratadas para transformar seu sofrimento. Dessa forma, o primeiro passo da desinstitucionalização consiste no fato de que não se pretende enfrentar a etiologia da doença mas, ao contrário, busca-se uma reproposição da solução que reorienta, de maneira global, complexa e concreta, a ação terapêutica como ação de transformação institucional.

Basaglia (1985, p. 101), no texto denominado As instituições da violência, após denunciar a violência ocorrida no interior dos hospitais psiquiátricos, lembra-nos que "a violência e a exclusão estão na base de todas as relações que se estabelecem em nossa sociedade".

Dessa forma, o usuário do serviço de saúde mental é definido pela exclusão social e não pela nosologia. Questionamos a forma de inclusão proposta pelo referido autor. Compensando as insuficiências apontadas por Basaglia, estaríamos incluindo socialmente o paciente? Partimos da premissa que a inclusão oferecida por meio da mera concessão de benefícios institucionais traz consigo a marca das privações e insuficiência, sendo terapeuticamente inócua. O usuário do programa de saúde mental é incluído socialmente através de sua condição de paciente psiquiátrico.

Nossas críticas estão em consonância com as afirmações de Fernandes (2000). Esse autor entende que o movimento da luta antimanicomial é inspirado no desejo dos trabalhadores de possuir uma prática eticamente balizada, considerando que a reforma psiquiátrica não propõe nenhum entendimento novo da loucura , sendo conservadora.

Essa posição está justificada sob o ponto de vista operatório em dois pilares: a eficácia medicamentosa e as diversas formas de psicoterapia. O uso da medicação psiquiátrica se dá diante do risco da passagem ao ato, em sua incidência mais aguda.

Já a chamada psicoterapia visa recompor os laços sociais desse paciente, tirá-lo do isolamento social, para o qual a psicose, por diversas razões, o conduz. Dessa forma, a psicoterapia, numa acepção geral, cada vez mais, constitui-se como micropolítica. A cidadania é usada assim de maneira intensa no contexto da reforma.

Essa micropolítica é baseada em dois pontos básicos: tolerância e negociação. A prática visa a articulação dos âmbitos locais (paciente, família e comunidade) aos âmbitos globais (o Estado e a própria sociedade). A micropolítica opera por meio de uma forçagem à negociação. Busca-se que a família, a comunidade (compreendam) e aceitem a peculiaridade de seu membro e, a partir daí, tenham maior tolerância. Tal tolerância supõe um uso de medicação suficiente para reduzir os riscos de passagem ao ato e uma busca constante de torná-lo hábil socialmente, para que suporte a ingerência dos outros na sua vida e possa negociar de algum modo com ela.

Chamamos essa estratégia de conservadora no sentido em que ela busca uma reintegração social, ou seja, o que Fernandes (2000 p.4) denomina "uma composição das demandas aos recursos e vice-versa". Sabemos do transtorno que representa a psicose e partilhamos da posição do autor, favorável a essa estratégia. No entanto, enfatizamos que a estratégia adotada pela reforma psiquiátrica escorrega no discurso dos partidários para se constituir na ontologia social da psicose. Como conseqüência, temos profissionais engajados numa tentativa de equacionar a psicose dentro dos instrumentos disponíveis nos serviços orientados pela Psiquiatria Democrática Italiana: medicação e psicoterapia, micropolítica e pedagógica.

Parece-nos que tal posição traz consigo um otimismo, ou seja, uma crença de que é possível incorporar a loucura, ou seja, dominá-la e incorporá-la à razão. A decadência dos serviços com inspiração exclusivamente antipsiquiátrica pode ser sutil. O ímpeto ao consumo de medicação pode transformar o psicótico em um drogadicto dócil, e a eficácia terapêutica pode se degenerar numa tentativa de adequar o paciente às funcionalidades do dia-a-dia.

Apelamos para o conceito de esclarecimento em uma tentativa de refletir e superar essa "sutil decadência".

 

O esclarecimento na reforma

Adorno & Horkheimer, no prefácio da Dialética do esclarecimento, oferecem-nos interessantes idéias para nossa investigação. Os autores se propuseram a grandiosa tarefa de descobrir porque a humanidade, ao invés de entrar em um estado verdadeiramente humano, caminha para uma nova barbárie. Eles apontam como principal problema da civilização burguesa não a atividade, mas o sentido da ciência.

Sobre a necessidade da constante reflexão para o aprimoramento das idéias os autores nos advertem:

"Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. Abandonando seus inimigos à reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade." (p.13)

Assim, temos uma marcada preocupação desses autores com a destruição do esclarecimento. Uma crítica a um movimento legítimo, que propõe o fim dos manicômios e a restituição da cidadania aos chamados "loucos", corre o risco de ser interpretada como "retrógrada". Porém, a recaída do esclarecimento está nas proibições e no cerceamento da nossa imaginação, que, como nos lembra Adorno & Horkheimer, "prepara o caminho para o desvario político" (p.13). O esclarecimento não deve ser paralisado pelo temor da verdade.

Outro aspecto importante a ser considerado é que desejar que o objeto seja tal qual o pensamos é limitador do pensamento. Tanto que Adorno, ao discorrer sobre as relações entre sujeito e objeto, adverte-nos que "a reflexão do sujeito sobre seu formalismo é a reflexão sobre a sociedade..." (1995, p. 199). O sujeito é socialmente construído e também constrói a sociedade. Os autores consideram que a liberdade está no sujeito construir, liberando-se do que o constrói.

Lembramos que o conceito de esclarecimento está intimamente ligado a um desencantamento do mundo. Seu principal objetivo é a dissolução dos mitos e a substituição da imaginação pelo saber.

Consideramos que o desencantamento deva incidir sobre o otimismo da Psiquiatria Democrática Italiana de incorporar a loucura à razão por meio da medicação e da micropolítica pedagógica. A pretensão de conter a loucura, mantendo-a no meio social de maneira aceitável, faz com que a medicação se transforme num alicerce indispensável ao tratamento. Já a família é "aconselhada" a ser tolerante com as singularidades do paciente.

Quais os obstáculos e as conseqüências desse "desencantamento" na Psiquiatria Democrática Italiana? Os autores nos fornecem importantes subsídios ao afirmarem que:

"... o horror mítico do esclarecimento tem por objeto o mito. Ele não o descobre meramente em conceitos e palavras não aclarados, como presume a linguagem, mas em toda manifestação humana que não se situe no quadro teleológico da autoconservação." (p. 41)

Nossa posição é apontar os limites da autoconservação, de forma a evitar que a prática nos serviços de inspiração basagliana se torne exclusivamente autoconservação. Esse movimento se dá através da repetição estereotipada e estéril dos princípios da antipsiquiatria, impedindo o avanço do esclarecimento.

Essa repetição se dá de maneira mais acentuada por meio da distribuição indiscriminada de benefícios para os usuários do serviço. tais como cestas básicas, passes de ônibus, refeições, entre outros. A justificativa para esse fornecimento de benefícios é o acesso à cidadania e à reinserção social do usuário.

Consideramos que a assistência, da forma como realizada no serviço, se aproxima perigosamente da noção de compaixão, uma virtude burguesa. Os "loucos", excluídos socialmente, não têm condições de gerir sua vida, encontram-se em situação humilhante, e os profissionais do serviço irão salvá-los. Essa posição tem uma incidência positiva junto à opinião pública, porém transforma os NAPS em serviços cronificantes, com uma grande quantidade de dependentes.

Consideramos essa posição - que leva à cronificação de usuários, por meio da distribuição de benefícios - conservadora, pois não produz ímpeto de mudança nos indivíduos. Adorno & Horkheimer (1985) nos dizem que:

"A autoconservação continua a ter, enquanto instinto natural e como os demais impulsos, uma má consciência. Só a atividade industriosa e as instituições que devem servir a ela - isto é, a mediação que conquistou autonomia, o aparelho, a organização, o sistemático - gozam tanto no conhecimento quanto na prática, da reputação de serem racionais. As emoções estão inseridas nisso." (p. 90)

Parece-nos que a irracionalidade e o sofrimento inerentes à loucura tornam-se mito na Psiquiatria Democrática Italiana. A violência e a brusquidão de algumas condutas psicóticas, que os manuais de psiquiatria denominam "reações anti-sociais" ameaçam a autoconservação da reforma psiquiátrica. Basta lembrarmos de alguns slogans amplamente utilizados pelos partidários da Psiquiatria Democrática Italiana: "De perto ninguém é normal", Maluco Beleza", entre outros.

Esse universo discursivo sugere uma tendência a desconsiderar as peculiaridades e sofrimento do sujeito psicótico. A ênfase é totalmente colocada na cidadania do "louco". Dessa forma, encaminhamo-nos para uma ontologia social da psicose. Vista exclusivamente dessa forma, a dimensão da racionalidade torna-se privilegiada na compreensão da loucura.

Consideramos, porém, fértil para o cotidiano dos serviços substitutivos, apontar os limites da razão. Diversas vezes, como nos lembram Adorno & Horkheimer, a razão serve à dominação e muitas vezes oculta a desrazão.

Como conseqüência dessa concepção basagliana de loucura, nos é vetado o diálogo com a desrazão. O mito nega a possibilidade de viver a contradição (razão-desrazão), fechando o diálogo com a produção delirante do psicótico. Adorno (1995) considera que simular que o objeto é incomensurável ao sujeito cega a comunicação entre ambos.

Adorno & Horkheimer (1985) nos auxiliam a entender as conseqüências dessa desconsideração das especificidades da estrutura psicótica na Psiquiatria Democrática Italiana:

"A suspensão do conceito - não importa se isso ocorreu em nome do progresso ou da cultura, que há muito já haviam se coligado contra a verdade - abriu caminho à mentira. Esta encontrava lugar num mundo que se contentava em verificar sentenças protocolares e conservava o pensamento - degradado em obra dos grandes pensadores - como uma espécie de slogan antiquado, do qual não se pode mais distinguir a verdade neutralizada como patrimônio cultural." (p. 51)

A Psiquiatria Democrática Italiana, com pertinência, critica o paradigma psiquiátrico, considerando a psiquiatria uma instituição que absorve e administra "resíduos", denunciando suas relações com a justiça e com a classe das pessoas internadas. Porém, ao formular tais críticas, suspendeu o uso de conceitos fundamentais para o acolhimento e tratamento da loucura, tais como subjetividade e desrazão. Assim, a inserção social, tão aspirada pelos partidários do movimento da luta antimanicomial, desacompanhada de uma perspectiva de subjetividade, tornou-se uma volta compulsiva e imprudente ao círculo produtivo.

Sobre o aspecto da rápida adaptação aos princípios da sociedade, aspirada no cotidiano dos serviços abertos, Adorno faz uma observação precisa:

"A loucura sancionada dispensa da prova de realidade que, necessariamente, leva à consciência debilitada antagonismos insuportáveis, como os da necessidade subjetiva e a privação objetiva." (1995, p. 211)

Acreditamos que a retomada da proposta freudiana para a desrazão produza uma fértil interlocução com a Psiquiatria Democrática Italiana. A negação desse saber sobre a desrazão torna os serviços substitutivos uma maquinaria de adequar "loucos" à sociedade. Importante ressaltar que enquanto a psiquiatria negava o lugar social da loucura, a invenção freudiana consistiu justamente em positivar a desrazão, propondo que o delírio contém uma razão e um saber. Não consideramos tal proposta antagônica aos princípios da reforma. Pelo contrário, pode enriquecê-la ao proporcionar-lhe a dimensão da singularidade do sujeito.

Ressaltamos que uma importante contribuição que Adorno & Horkheimer nos trazem é a compreensão de que Freud não deixa de reconhecer nos indivíduos aquilo que é reificado. O psicológico é algo produzido socialmente, mas não de forma imediata. Ele é mediado. Uma vez produzido, tem linguagem própria, sendo possível localizar o que pretensamente foi deixado de fora: a sociedade.

Consideramos que o contexto criado pela reforma psiquiátrica, que propicia a inserção social do usuário, traz significativas possibilidades para um trabalho que considere a desrazão e a subjetividade. No campo das psicoses, a psicanálise tem um acúmulo teórico e experiencial no que diz respeito à linguagem e com o discurso no campo do Outro. Acreditamos que esses elementos, suspensos na Psiquiatra Democrática Italiana, possam, por intermédio do esclarecimento dos limites da razão, constituir-se em operadores interessantes para uma inserção social que contemple o sujeito em sua especificidade.

 

Referência bibliográfica

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Endereço para correspondência
Rua Galeão Coutinho, 251/22 - Embaré - 11040-210 - Santos, SP - Tel. (013) 3236-4856
E-mail: fuadneto@uol.com.br

Recebido em 16/10/2003

 

 

*Doutorando em Psicologia Social pela PUC-SP, docente do curso de Psicologia da UNIPAC.

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