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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.2 no.2 Barbacena June 2004

 

ARTIGOS

 

25 anos depois, ainda

 

25 years later, again

 

 

Carlo Viganò; Roseli Cordeiro Pereira (Tradução)*

Associação Mundial de Psicanálise - França
Causa Freudiana de Paris - França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ao recordar os 25 anos da implantação da Lei 180 na Itália, o artigo aborda a dimensão clínica da animação no tratamento de pacientes psicóticos. Considera a animação como um saber relativo à relação, que torna o Outro parceiro do sujeito "doente", favorecendo o vínculo social. Essa concepção de animação propõe uma reanimação dos serviços de saúde mental em que seja possível a interlocução com o mal-estar mental.

Palavras-chave: Lei 180, Animação, Clínica, Subjetividade, Parceria.


ABSTRACT

When remembering the 25 years of the implantation of Law 180 in Italy, the article approaches the clinical dimension of the animation in the treatment of psychotic patients. It considers the animation while one to know relative to the relation, that becomes the Other partner of the "sick person" favoring the social bond. This conception of animation recommend a reanimation of the services of mental health where an interlocution is possible with the badly to be mental.

Keywords: Law 180, Animation, Clinic, Subjectivity, Partnership.


 

 

Ao estímulo anti-institucional do movimento suscitado por Basaglia contribui, inicialmente, sua orientação existencialista, tornando-se decisiva em seguida aquela derivada de uma visão social da clínica. Creio que esta concessão da clínica da doença mental peça hoje um adiamento.

O 68 tinha dado as palavras de ordem para a contestação das instituições que veiculavam os conteúdos de uma sociedade "disciplinar" (segundo a terminologia foucaultiana). Tratava-se de combater as instituições sociais de modelo oitocentesco, fundadas sobre o discurso do mestre, isto é, sobre um modo de afirmar a idendidade subjetiva em oposição à alteridade do Outro ou, mais precisamente, à diversidade do gozo do Outro (racismo).

Para Basaglia, assim como para o movimento daqueles anos, foi uma leitura marxista daquela sociedade a individuar o sujeito "revolucionário".

Hoje, vivemos na sociedade que aquele movimento contribuiu para transformar. É uma sociedade que vive a insígnia da tolerância, veiculada pela ideologia do mercado mundial. Assim se exprimem Hardt e Negri em O império: "a circulação, a mobilidade, a diversidade e as misturas são suas condições de possibilidade. O comércio chama para contar as diferenças, e quanto mais elas existam, melhor é." Retenho que também à clássica clínica social da doença mental restam hoje o "horizonte de uma noção disciplinar, pré-imperial, do gozo" (ibidem).

Nós devemos, ao contrário, fazer as contas com um novo tipo de segregação (não mais "institucionalização") do mal-estar mental, baseado mais sobre as nosografias estatísticas do DSM (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais) e sobre a pluralização dos "distúrbios" que isolam os sujeitos nas classes a que pertencem, às quais são estimulados a identificar com seu próprio distúrbio (coisa que geralmente fazem de boa vontade com a idéia de uma auto&–ajuda) e a praticar uma diversidade de auto-medicação química.

Num contexto social similar, não me parece que se possa atender qualquer coisa de uma reforma de lei (também porque a Lei 180 continua a ser uma boa lei), ao invés, se devem reencontrar ou recriar as linhas daquela transformação social que Basaglia retinha como essencial, além da lei. Construir uma cidade que torne possível a vida ao louco e ao diferente.

Essa exigência torna de enorme atualidade a "questão preliminar" posta por Lacan — "a todo tratamento possível da psicose" (publicada nos Escritos, em 1966). Só hoje se colhe plenamente a importância dele: trata-se, disse Lacan, de vencer o prejuízo social no qual um comportamento anormal (alucinação, assim como a passagem ao ato) vem automaticamente preso e, portanto, tratado como o signo do sujeito (perigoso e por isso, obrigatoriamente, ser reeducado). A experiência da Psicanálise vem subverter a visão social da doença mental. Essa, de fato, pode demonstrar que seus sintomas são sem sujeito. Não só: para que um sujeito nasça, "venha a ser" ali onde o distúrbio se manifestou, é preciso a intervenção de um parceiro capaz de entrar em relação com a rede simbólica, da qual estes fenômenos anormais são o sedimento, o efeito de um apelo a um sujeito em potencial, mas forcluso no ato.

Parece fábula, mas é realidade científica: se no real social aquela rede simbólica encontra uma encarnação, um lugar vivente que não prenda o ato, este torna-se o interlocutor de uma subjetividade potencial e assiste ao ato de nascimento de um sujeito nunca louco.

Fazer-se interlocutor de um sujeito em potencial é o fruto de uma subversão ética, de uma decisão e de um ato que não são reduzíveis nem a um saber científico, nem a um texto de lei. O impasse hoje dos serviços psiquiátricos, que são aqueles públicos ou aqueles diversos no privado-social, testemunha a urgência dessa transformação ética. Como reanimar esses serviços, como reabilitá-los à interlocução possível com o mal-estar mental, que seja criativa (poética) de uma subjetividade nova? E por isso, digamos, qual nova forma de amor que todos estamos procurando?

Proponho que leiam os 25 anos da Lei 180 à luz desta questão e a esta intenção reporto, em seguida, algumas reflexões sobre o tema da "animação em Psiquiatria" que desenvolvi num encontro organizado pelo DSM de Ravenna. São o fruto da experiência de alguém que aceitou a "questão preliminar" posta por Lacan.

 

A animação em Psiquiatria

Antes de tudo, uma pontuação: a animação é uma dimensão essencial da clínica psiquiátrica. Uso a palavra clínica porque ela para mim está sendo pouco recuperada. A palavra "clínica" é derivada de kliné (leito), e quer dizer aprender ao leito do doente: pela escuta, pela relação, pela presença do doente, do sujeito na sua irrepetível particularidade.

A intervenção do Dr. Bassi se refere à Psiquiatria clássica e não à tecnológica, mas para compreender melhor a articulação entre essas duas tendências faria estas considerações: não existe só uma inovação no campo dos serviços, mas existe sobretudo um desenvolvimento e uma inovação da parte dos pacientes. Uma estatística feita recentemente pelo meu amigo Andreoli, de Genebra, afirma que a utilização clássica dos serviços provocada pela psicose — que é aquela da qual me ocuparei na minha relação, a dos doentes que têm uma variedade de questões estruturais e, por certos aspectos irreversíveis, mas não por isso, não devam ser inseridos e pensados com um objetivo de inserção social — resguarda 18% da utilização do serviço psiquiátrico; uma faixa que ficou estável antes até da Lei 180, quando os manicômios foram abertos. Nos anos 50, começou-se a inserir outra patologia, das depressões, que teve enorme incremento exponencial na população, que ora se estabilizou com os fármacos e que concerne a cerca de 40% da utilização do nosso serviço.

A outra parte resguarda a metade da utilização atual, aquela que ele chamava "patologia do controle das emoções", que se manifesta com a modalidade multifatorial da crise, de faixa etária sempre mais jovem (tendencialmente adolescente), a qual se exprime com anorexia, dependência, violência, instabilidade de humor, entre ooutras. O problema é como articular o saber a partir da grave patologia psicótica clássica; grave é uma palavra que não me agrada por nada. É uma faixa de sujeitos que tem uma estrutura particular, na qual o termo gravidade tem mais conotação social negativa que psicopatológica. São os clássicos diferentes que, não por isso, são tomados necessariamente para se pensar o sentido de gravidade ou de periculosidade. No estudo de Andreoli, esses 18% dos pacientes custam aos serviços quase 70% da despesa; este é um problema que aos organizadores administrativos põe o seguinte quesito: como os 18% da população custam tanto assim?

Creio que conseguimos fazer melhor Podemos talvez pensar onde está o desperdício, onde está a elefantíase de um sistema de tratamento no que diz respeito à patologia. Seguramente, está na dificuldade diagnóstica inicial de separar essas três faixas de utilização do serviço, as quais sumariamente acenei.

Tratar os 100% das pessoas que passam pelos nossos serviços como esquizofrênicos — sem uma intervenção rápida sobre uma crise, que se pode resolver com uma noite de sono —, chamando os parentes ou os conviventes, ou compreendendo a contingência que é criada no determinar aquela crise, se economizariam anos e anos em um funil que leva todos versus um modelo da Psiquiatria. De qualquer parte chegam: da droga, de uma crise de violência, de uma tentativa de suicídio. O aparato tende a levar todos a um tratamento eterno, cronificante. Sobre essa consideração existe grande dispêndio de energia, dinheiro, esforços e também desumanidade. Isso como premissa.

A minha intervenção é, como está escrito no programa, uma lição magistral; terá um pouco as características de um discurso introdutório, que procura dar um lugar à animação no tratamento da doença mental. Partirei de algumas considerações que encontrei nas entrevistas reportadas num dos dois livretos incluídos no material do Convênio; parecem a mim ótima partida, porque, com respeito à animação, dizem que é uma experiência (e sublinho a palavra experiência) precisa, completa, que não é confundível com outras. Mas de outra parte, todos os entrevistados fazem notar que nos encontramos frente à história de uma tradição institucional que fica cada vez mais marginal, até um tendencial desaparecimento. A partir, sobretudo, do fato de que essa experiência encontra dificuldade para ser enquadrada, definida em um protocolo, em uma definição de qualquer modo técnica.

A animação tem raiz histórica ligada às doenças estruturais, clássicas, aquelas que uma vez foram do manicômio. Não tinham um diagnóstico estruturado ali, o modelo era aquele da doença psicótica. A animação nesse campo refletia a herança basagliana e andava contra a institucionalização desses doentes. Esse é o primeiro ponto.

Outro ponto importante é que a mudança da utilização dos serviços psiquiátricos está modificando a modelização espontânea, inconsciente, da doença para cada um operador1 , e no curso dessa mudança a referência à animação torna-se mais problemática; porque é claro que um jovem que esteve em crise, que tentou suicídio, porque brigou com a namorada, não pode ter o mesmo tipo de animação de um esquizofrênico ou de uma senhora que sofre de ataque de pânico.

Existem, portanto, necessidades diversas à frente da dificuldade de dar uma clara teoria de como se diferencia a anima. Entende-se a animação como dar ânimo ao paciente, animá-lo. Proponho pensarmos que o problema do ânimo resguarda o operador e não o paciente. Assim eu leio a implicação do operador em seu desejo subjetivo, além das técnicas e dos modelos de doença que ele tem.

Uma quarta conotação: a animação resguarda o parceiro do paciente, o que eu chamarei o "Outro" do paciente — quem, como e por quanto tempo está com ele. As observações sobre tempo da animação resguardam o fato que, muitas vezes, pensa-se que seja uma atividade desenvolvida no tempo livre. Mas todos dizem: esses pacientes têm um tempo livre que dura 24 horas sobre 24 horas. É estranho pensar uma atividade do tempo livre para pessoas oprimidas pelo mesmo tempo livre. Mas, se reportamos a palavra "tempo livre" a essa dimensão de liberdade no envolver do tempo, se compreende melhor qual é o tempo onde se vai alcançar a experiência da animação; porque o tempo do psicótico, na realidade, não é um tempo livre, mas mais que ocupado, ao contrário, só ocupado, um tempo blindado. O psicótico é uma pessoa que hiper trabalha, que faz um duplo trabalho: o de relação com o exterior, no qual procura se adequar às nossas expectativas; e aquele do seu interior, que é um trabalho muito empenhativo, ainda que enigmático e pouco visível. Por isso um psicótico, que está no leito o dia todo, disse-me certa vez: "estou cansadíssimo", e com toda razão.

Uma ulterior observação encontrada nas entrevistas é a questão institucional confrontada aos problemas de impacto com um paciente psicótico que deve ser animado. É uma dimensão que se destaca claramente da formação médico-biológica. Quanto mais isso se identifica com uma formação técnico-científica operativa, que define uma escala específica de atividades, tanto menos se encontra disposto e disponível ao tema da animação. Isso não quer dizer que o que é da animação deva se tornar um tema especialístico, uma nova definição de catálogos. Não somente. Estamos falando de um tema transversal no que diz respeito ao saber técnico-científico; é um saber relativo à relação que não se faz em substância sobre os livros; é um saber capaz de fazer, que requer preparação muito elevada, que se aprende com o paciente.

Última nota que prelevo das entrevistas é relativa a uma especificidade maior da animação, ou seja: a animação resguarda o corpo do paciente, mas também o do operador. O corpo além do organismo, além da biologia, o corpo que se diverte, que goza. Não é só um corpo vivo (problema médico), mas é o corpo de um vivente, qualquer um que trabalha a fazê-lo próprio.

A hipótese que trago é que a animação, seja aquele ato da clínica que mais se aproxima a isto, corresponde ao tema da cura no campo da saúde mental. Aqui, cura não pode ser restituída integralmente, mas deve ser estabilizada subjetivamente, e um sujeito só é estável se tornar-se criativo, capaz de um gozo não auto&–erótico, não autístico, mas um gozo que passe pelo Outro animado, que deve encontrar um interlocutor, pelo qual aprenda a encontrar satisfação com um outro. Proponho uma definição de animação: é isto que torna o Outro não inerte, mas parceiro das satisfações do sujeito "doente". Ser parceiro com o paciente em um gozo novo não autístico resguarda o corpo e o discurso — isso é o vínculo social.

 

Não existe terapia sem animação

Daremos qualquer conotação mais clínica, precisa, à metodologia da animação. Basaglia reconhecia que o manicômio foi, para todos os operadores, uma grande escola de vida. Felicitava que esse valor fosse mantido também na vida de todos nos dias depois da abolição do manicômio. Que coisa é esse valor? Que coisa se aprendia? Aprendia-se como pode exprimir-se o psicótico, que é fora do discurso e fora da palavra. Como se exprime seu estilo para externar as emoções, o amor, o reconhecimento, que é hiper-realístico, tudo jogado no real, fora da simulação da palavra? Como já dizia Freud, não é verdade que o psicótico não tenha capacidade de transferência; certo é que a transferência, no psicótico, não é como no neurótico, que veicula a angústia e, por isso, pode ser tratado com os famosos colóquios (ou verdadeiramente a Psicanálise).

O psicótico não tem aquele tipo de transferência, por isso não é tratado com os colóquios, é tratado com as palavras. Há uma transferência real. Como o psicótico é, no fundo, ligado aos muros que o encerram, que tipo de transferência há sobre este lugar físico? Existe material para colher qual é, e como é maciça, a capacidade de transferência de um psicótico. E temos visto no trabalho de desmanicomialização que raia de dificuldade têm tido muitos doentes para deixar o lugar onde viveram 10, 15, 20 anos. Não por uma atitude animalesca, de adomesticação, mas por uma proteção, por uma facilitação que esses lugares foram capazes de dar à sua cotidianidade: o ritmo do sono, da vigília, da nutrição, das satisfações. Por isso as dificuldades encontradas no organizar novos percursos regulados e facilitados do mesmo tipo, mas de maneira mais evoluída.

Para tanto, o psicótico não é fora da relação, há uma transferência que é toda no real, nas coisas, toda no uso que faz dessas coisas. E é um uso particular que o psicótico faz do corpo, no qual o gozo realiza-se fora do corpo, porque o sujeito não chegou a apropriar-se dele, a fazê-lo próprio, como se não tivesse um corpo próprio. É o caso do esquizofrênico, feito de tantos pedaços que, em alguns dias, fala de uma mão, logo em seguida são as articulações que falam... São sempre em segmentos do corpo que se concentra sua relação e seu mundo. Este já é um primeiro objetivo do trabalho de animação: familiarizar-se com o próprio corpo, substancialmente estranho.

Vejamos então qual é o trabalho que faz o psicótico, quando é deixado, digamos, a si mesmo, sem parceiro, alienado no puro real. Aqui, fundamentalmente me apoio a um formalismo psicanalítico, assim divulgado para podê-lo utilizar fora de um contexto especialístico. Normalmente, é o discurso que nos dá um lugar na existência, na realidade (o que Freud chamava "a conexão relacional" que nominava Édipo). Por isso o pai, a mãe, o filho, a triangulação para que haja uma ponte discursiva, um vínculo social para os gozos do Outro e daqueles do sujeito. O sujeito encontra no vínculo um lugar simbólico, uma representação sua, que é seu valor fálico.O termo falo se refere à esfera da sexualidade, é uma função e não um órgão, seja para o homem ou para a mulher. E a passagem do orgânico à função simbólica é aquilo que dá ordem, que dá legalidade às satisfações humanas.

O psicótico é aquele que tem as dificuldades para alcançar a organização edípica e, por isso, simbólica do próprio corpo. Não tem condição de organizar a própria busca do prazer e a relação consigo mesmo por meio da linguagem da palavra, por meio da troca de perguntas, de doações e de espera — aquilo a que chamamos amor. Encontra-se numa condição fora do discurso, por isso sem competência de localizar uma imagem de interesse, de adotar as estratégias de aproximação e logo prever a resposta do outro. Esta esfera de organização simbólica é disturbada. Para tanto, a condição na qual se encontra a viver o psicótico é de dificuldade na organização simbólica. O psicótico se encontrará em condição de marginalização nos confrontos de qualquer troca social, e o interlocutor aparecerá como alguém que se apresenta com o caractere de persecutoriedade, de enigmaticidade, por isso o sujeito não consegue entrar no jogo. O jogo social torna-se sempre mais persecutório na experiência do psicótico. E, percebendo-se ser fora do jogo relacional, simbólico, deve-se defender do Outro, da chamada a jogar. Pensa que toda relação humana corre o risco de fazer sentir um apelo ao sujeito, todo signo que colhe como referido a si torna-se uma chamada que é persecutória, sob forma de voz, fenômenos de todo tipo que o resguardam além de toda a possibilidade de criar um escudo protegido. Por isso, a qualidade persecutória do Outro e o congelamento de tudo o que é simbólico a partir deste seu ser estranho à produção do sentido, do jogo simbólico. Tudo o que leva à primeira operação do trabalho psicótico, que chamarei de autodefesa.

Segunda operação do psicótico, e aqui vamos ao duplo trabalho. O psicótico faz uma segunda operação, que chamarei de autoconstrução. Essa operação demonstra que, mesmo sendo fora do discurso, da operação simbólica, ele não é fora da linguagem; pensamos no modo mais elementar com o qual se exprime essa forma de autoconstrução: estes gestos repetitivos que supõem escansão elementar, significante, simbólica, feita de um mais e um menos, em linha com a linguagem da eletrônica. São movimentos monótonos que escansionam uma diferença, como o metrônomo que assinala o tempo para quem se exercita a tocar um instrumento. O psicótico produz assim um mundo simbólico próprio, que não se comunica com o mundo simbólico com o qual se deparou ao não entrar em conexão com aquela realidade na qual não encontrou um lugar próprio. Todos esses gestos repetitivos, todos os jogos com objetos, todas as operações, sejam elementares ou evoluídas, dão sentido à sua existência. São a construção de um mundo simbólico de suplência que, porém, o permite sobreviver.

Dito isso, vejamos então por meio de qual mecanismo o psicótico pode encontrar sua estabilidade, uma vida integrada com o resto da vida social, uma forma de integração. A partir desses mecanismos ele tenta, fundamentalmente, criar no Outro uma ordem pacificante que o permita viver protegido da persecutoriedade do Outro. Espero que tudo seja claro: persecutoriedade não intencional da sociedade, mas estrutural. Por isso a estabilização do psicótico advém por meio do seu trabalho de cortar a persecutoriedade do Outro, de introduzir as regras e fazer tornar-se previsível sua parceria. O manicômio, neste sentido, era escola de vida, porque se propunha como um laboratório no qual se produziam espontaneamente todas essas operações. Havia o valor de um campo de observação certo para quem sabia observar. Hoje se requer muito mais atenção, existem todas essas estruturas, e o campo de observação muitas vezes é a moradia, a família, o lugar onde vive o sujeito. E nós somos menos levados a ter uma percepção inteira desses movimentos do sujeito, porque nossa observação é fragmentada pelas listas, lugares, ocasiões sociais nas quais não temos essa observação inteira da dinâmica do sujeito. Ele se encontra a fazer esse trabalho sozinho. Nós, que somos o seu Outro, somos tendencialmente divididos, fragmentados no fazer parceria do sujeito; por isso, por certos aspectos, estamos tornando mais difícil a tarefa do psicótico. O problema não é tanto pensar a integração como um retorno à possibilidade de compreender toda a vida do sujeito, mas aquilo que era antes realizado pelo lugar de vida do manicômio devemos realizá-lo na nossa cabeça, deve ser integrado ao nosso modo de conceber a relação com o paciente. Para tanto, não existe necessidade de reconstruir lugares, mau grado estes movidos a retornar sobre os passos feitos. O problema é, uma vez abolido o lugar físico de integração, reencontrar uma integração na relação com o paciente e relacionar-se com ele, dando conta de toda sua história.

Outro exemplo de despedaçamento da nossa parceria é o momento em que o paciente resguarda uma esquizofrenia funcional da intervenção. Pessoas que, nas diversas equipes, reestruturações de serviços e mudanças de médicos, mudaram diagnósticos e estratégias de intervenção; discursos completamente partidos feitos à familia no que diz respeito ao precedente, no qual o sujeito devia integrar, como pudesse, esse "conjunto" de programas feitos em cima dele, procurando contentar todos aqueles operadores que se sucederam na sua experiência. Para um psicótico, reconstruir a própria existência e contentar todas essas pessoas é um verdadeiro problema. Isso para sublinhar uma fragmentação que prescinde da história. Os cartões2 logo não contêm quase nada, os familiares em certo ponto morrem e o paciente é quase sempre a única fonte de informação concreta. Os diagnósticos se formam seguindo os modelos: esquizofrênicos, borderline, deprimido...; e com fármacos que, algumas vezes, são verdadeiros coquetéis universais, prescritos por anos e anos, até que chega um outro e muda a terapia, mais precisamente, modifica o coquetel.

Ora listarei rapidamente três níveis dessas operações, nas quais o paciente procura regular a própria relação com o Outro. A primeira é aquela de introduzir no Outro uma falta, descompletar o Outro: um Outro completo, que tem as respostas para tudo, aquilo que nós chamamos totalitarismo, não o permite viver. O psicótico deve criar espaço para poder nascer como sujeito. E é sobre esse ponto que a intervenção do psicótico, que procura criar um corte no parceiro, acaba por agir — autisticamente — sobre o próprio corpo. Daí todas as auto-mutilações; também a própria anorexia pode ser pensada como uma intervenção de auto-mutilação. E naturalmente há, também, a violência heteroagressiva.

A segunda operação é a de erotizar uma parte do corpo ou, mais freqüentemente, um apêndice do corpo, um objeto que pode ser um foulard, um tipo de vestimenta, uma divisa, uma insígnia, onde o sujeito encontra como símbolo o que o reconhece e lhe permite ser reconhecido pelo Outro. Uma bizarria no vestir-se ou dos objetos que guarda na bolsa.

O terceiro trabalho que o psicótico faz é o da construção sexual. Esse é um argumento que, muitas vezes, nos nossos congressos, não é levado em consideração: a sexualidade dos pacientes dos quais nos ocupamos. Como ele constrói uma identidade sexual a partir dessa dificuldade na troca simbólica? É sobre esse ponto que o sujeito tende a construir um ponto de identidade, uma identificação que constitui o núcleo ou o ponto de partida para todas as elaborações delirantes: construir um ponto de reconhecimento simbólico de si e de projeção sobre o mundo e sobre as relações possíveis com o mundo. No que diz respeito a essa construção — que dá lugar sexuado e simbólico ao sujeito e que pode ser grandiosa, persecutória... — o problema de fazer parceiro nesse mundo de construção delirante é um dos mais delicados. Porque é claro que não é sobre versante da realidade que se faz frente a essa construção, mas é com uma modalidade mais transversal que se pode aceitar, relativizar e levar à quase normalidade essa construção, chegando a fazer funcionar o delírio como um fantasma e como uma fantasia.

 

Conclusão

A modo de conclusão, gostaria de acenar como se pode pensar uma parceria por parte da instituição e dos operadores nesse mundo de elaboração subjetiva. Tudo isso serviria para criar suspense sobre o que podemos fazer e como animar o serviço que se oferece como parceiro nesse tipo de experiência. Por isso a função do parceiro, da instituição, é aquela de tranqüilizar o sujeito, ajudá-lo e acompanhá-lo na construção dessa regulação do seu Outro, dessa ordem que não foi encontrada nos tempos normais. Eu creio que se pode pensar a dois tempos de acompanhamento:

• antes de tudo, o parceiro deve se fazer um objeto bom para o paciente; como dizia Winnicott, "uma mãe suficientemente boa". Suficientemente boa não quer dizer de tudo boa, porque resultaria persecutória. As mães dos psicóticos, para quem tem experiência no campo, sabem que são mães muitíssimo boas, pegam esse filho como objeto e o invadem com seu próprio tratamento, fazem dele o objeto substitutivo para sua satisfação. Todavia, estabelecer uma boa relação quer dizer fundamentalmente conseguir ser parceiro desse trabalho espontâneo que o psicótico faz, começar a colher dele as linhas estruturais, compreendê-lo. A famosa escola da qual falava Basaglia: entrar em relação com o que ele já fez como auto-tratamento e construir um acompanhamento positivo no auto-tratamento.

• o segundo movimento é aquele em que o parceiro muda o lugar e se coloca em uma posição mais Outra, se coloca do ponto de vista do Outro, por isso, tendencialmente, do Outro social e começa a restituir ao paciente aquilo que seu olhar o faz ver. A partir de uma posição suficientemente boa, de não completude, de não saber tudo, pode se fazer com que o paciente comece a se ver por meio do Outro que demonstrou estar ali, de não abandoná-lo e também de não ter um saber pré-constituído sobre ele; fazer com que o paciente comece a ser visto pelo Outro de maneira não persecutória, mas ver que o outro colhe suas mudanças de humor, colhe suas fúrias e procura decodificar todos esses momentos; por isso um Outro não persecutório pode começar a restituir ao sujeito qualquer coisa dos atos que ele mesmo praticou. Não é nunca uma interpretação. Nós tentamos chegar a compreender aquilo que sentiu, e assim reconstruir junto ao paciente esses seus gozos internos que não encontraram nenhuma via de comunicação.

Eis que esses dois movimentos são a forma com a qual o gozo auto-erótico, de auto-lesão do sujeito, pode começar, por intermédio do Outro, tolerar ser compreendido, comentado e participado com o outro. Nessa direção, qualquer iniciativa é útil ao fornecer ocasiões não estreitamente codificadas no sentido médico-biológico. É um tipo de restituição, de encargo, também nos momentos de tratamento pelo remédio, pela injeção; qualquer momento animado pode ser de troca. Pode-se animar a distribuição das pílulas; a visita médica, também, se coloca na ótica daquele parceiro, de uma enunciação subjetiva do sujeito.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: cvigano@ tin.it

Recebido em 14/01/2004

 

 

Tradução do abstract: Marcos Faria
*Psiquiatra e psicanalista radicado em Milão, é membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Causa Freudiana de Paris. Integrante da Comissão de Saúde Mental da Associação Mundial de Psicanálise.

1No Brasil conhecido como acompanhante terapêutico. (N.T.)
2Nos serviços de saúde brasileiro, comumente chamado de prontuários. (N.T.)

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