SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.2 issue2Identity crisis in postmodernity author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.2 no.2 Barbacena June 2004

 

ARTIGOS

 

O mundo do crime: possibilidade de intervenção a adolescentes em conflito com a lei

 

The world of crime: possibility of intervention with adolescents in conflict with law

 

 

Ângela Buciano do Rosário*

Universidade Presidente Antônio Carlos - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende discorrer sobre a problemática do adolescente infrator, considerando a adolescência enquanto momento de transformações marcado por atravessamentos culturais. Com base em fragmentos discursivos de adolescentes que cumprem medida sócio-educativa de privação de liberdade, o artigo aborda discursos distintos que se dão no interior de uma instituição que acolhe esses adolescentes. A partir de reflexão que considera as relações institucionais, os discursos presentes e a busca de uma identidade, serão abordados questionamen-tos sobre a possibilidade de intervenção junto a essa população.

Palavras-chave: Adolescência, Discurso, Identidade, Subjetividade, Transgressão.


ABSTRACT

This article intends to discourse about problematic one of the adolescent infractor, considering the adolescent while moment of transformations marked for cultural changes. Being based in discursive fragments of adolescents who accomplish social-educative measure of freedom privation, this article aproaches distinct speeches that happen in the interior of a institution that it receives these adolescents. From of a reflection that it considers the institucional relations, the speeches and search of a identity, they will be aproaches questionings about the intervention possibility together this population.

Keywords: Adolescence, Identity, Subjectivity, Transgression.


 

 

Glorificação do crime e identidade marginal

O número de adolescentes envolvidos em atos infracionais vem crescendo significativamente a cada dia. Conforme dados do IBGE,1 o Brasil é o terceiro entre os 60 países do mundo mais violentos em assassinatos. O índice cresceu 48% entre jovens de 15 a 24 anos. Veículos de comunicação2 de grande circulação apontam a crescente inserção, na criminalidade, de uma população cada vez mais jovem. Anunciam o fracasso do poder público e o descrédito em instituições que acolhem o adolescente infrator.

Esse artigo pretende abordar a intervenção possível ao adolescente que comete atos infracionais, considerando o universo simbólico (mundo) em que estão inseridos. Mas o que leva o crescente envolvimento de adolescentes em atos infracionais?

Foucault (1987, p.61), ao referir a perda da importância da ilegalidade popular no final do século XVIII, quando os "folhetins" (apócrifos contendo narrativas de crimes e vidas infames dos criminosos, necessário para a justiça fundamentar a "verdade" diante do povo) deram lugar à literatura policial, devido a modificações da função da política da ilegalidade popular, nos lembra que:

"[...] uma literatura em que o crime é glorificado mas porque é uma das belas-artes, porque só pode ser obra de seres de exceção, porque revela a monstruosidade dos fortes e dos poderosos, porque a perversidade é ainda uma maneira de ser privilegiado [...] É, aparentemente, a descoberta da beleza e da grandeza do crime; na realidade, é a afirmação de que a grandeza também tem direito ao crime e se torna mesmo privilégio dos que são realmente grandes."

Essa glorificação do crime é continuamente ressaltada na linguagem dos adolescentes internos da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor - FEBEM do município de Guarujá, estado de São Paulo. Em um grupo realizado na referida unidade,3 encontramos os seguintes fragmentos discursivos:

"O crime compensa para quem investe. Tem um maluco na minha quebrada, o cara já é velhão e ainda tá (sic) no crime. Ele sim é bandido. Nós somos sombra, somos pipoca."

"Meu padrasto fazia parte do PCC. Era um bandido de proceder. Já matou muito maluco. Até na hora da morte ele foi homem. Morreu com honra, porque em nenhum momento pediu por sua vida."

Esses fragmentos discursivos nos mostram um fascínio desses adolescentes por pessoas ligadas à criminalidade. Pessoas que, por meio dos atos criminosos, adquirem, para esses jovens, autoridade e respeitabilidade. Retornando à Foucault, encontramos nessas falas a aspiração ao privilégio de se tornarem realmente "grandes" no mundo da criminalidade. Tais falas apontam para o que Foucault denomina de beleza e grandeza do crime: o padrasto que morre com honra, sem pedir pela vida, e o amigo que é "velhão" e ainda está no crime.

Ao ingressar na instituição, após procedimentos de rotina, o adolescente recém-chegado é encaminhado para o "convívio" com os demais adolescentes internos. Estes, por sua vez, aproximam-se do novato e, antes mesmo de perguntar o nome do recém-chegado, perguntam-lhe "em que caiu". Ou seja, o artigo do Código Penal que corresponde ao delito que o levou à internação. A identificação de tal artigo fala de uma representação com o mundo em que esses jovens estão inseridos, o "mundo do crime". E assim eles se identificam. Como semelhantes. Com uma linguagem própria, que os aglutinam entre si e os distanciam da chamada "sociedade".

Goffman (2003, p.41), ao se referir à idealização como forma de uma representação ser "socializada", a fim de se ajustar às expectativas da sociedade em que é apresentada, nos diz:

"Assim, quando o indivíduo se apresenta diante dos outros, seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade e até realmente mais do que o comportamento do indivíduo como um todo."

Assim eles se reconhecem, e o ato infracional toma uma dimensão de status perante seus semelhantes. Sua identidade é de "bandido" e, assim, ele se mostra e é reconhecido. Retomando Foucault, temos o crime como uma "bela arte", obras de seres de exceção. Goffman nos leva a pensar que eles se apresentam e se reconhecem desse modo.

O mundo desses adolescentes, seus valores e suas referências enfim, o universo em que estão inseridos, é diferente e em oposição ao mundo dos profissionais que os acolhem. Enquanto os adolescentes glorificam o crime, os profissionais os condenam, muitas vezes de maneira moral.

 

Discurso moral x discurso do crime

A referida instituição tem como ponto de âncora em seu funcionamento a disciplina. Tal disciplina implica desde a distribuição dos adolescentes no espaço institucional às condutas de comportamento estabelecidos.

Para tanto, logo que ingressam na unidade, os adolescentes são orientados quanto à postura que deverão manter (mãos para trás) e aos novos hábitos de convívio, como pedir licença ao passar por algum funcionário, andar nos espaços internos somente com a presença do funcionário. Se for um grupo de adolescentes, o deslocamento deverá ser em formação (enfileirados por ordem de tamanho). Sobre a organização que objetiva a disciplina, Foucault (1987) diz que a ordem é um instrumento para organizar o múltiplo a fim de percorrê-lo e dominá-lo.

A ordem estabelecida deverá ser seguida. Aqueles que se destacam pelo comportamento, boa avaliação no ensino formal e atividades extracurriculares serão recompensados. Aqueles que transgredirem as normas de convivência serão punidos.

A punição disciplinar, segundo Foucault (1987), possui duplo sistema: gratificação/sanção. Sistema este que garante o processo de treinamento e correção. O referido autor percorre a história do poder das punições, chegando ao fim do século XVIII diante de três maneiras ou tecnologias do poder de punir, quais sejam:

• Monárquico: nesse modelo, a punição é um cerimonial de soberania. Aplica-se sobre o corpo do condenado, havendo assim a presença física do soberano e de seu poder. A força do soberano traz a marca. O inimigo é vencido e seu corpo supliciado.

• Juristas Reformadores: a punição proposta pelos juristas reformadores não utiliza marcas, mas sinais ou representações. Tais representações (idéias) devem ter uma aceitação o mais universal possível. Dessa forma, quem aplica a punição é o corpo social. Essa forma de punir visa a requalificação dos indivíduos como sujeitos de direito.

• Instituição Carcerária: é aplicada pelo aparelho administrativo. Visa a coerção do indivíduo por meio do treinamento do corpo e a obtenção de hábitos no comportamento. O corpo do indivíduo é treinado.

Parece-nos que essa instituição está bem próxima de um sistema que, pelo treinamento do comportamento, a obtenção de novos hábitos, as limitações do corpo (postura, formação...), obtém a disciplina presente no cotidiano. Sobre o poder disciplinar, Foucault (1987) nos lembra que sua função maior é "adestrar". A disciplina, segundo o autor, é a técnica que toma os indivíduos como objetos e instrumentos de seu exercício.

Os adolescentes disciplinados cumprem seu papel diante da instituição. Ao mesmo tempo que se distanciam de seus disciplinadores, aproximam-se de seus pares. Com esses "sujeitos adestrados", reprodutores de condutas institucionais prescritas, a lacuna que separa profissional/adolescente tende a se expandir. Parece-nos que essa forma de punir solidifica os valores do grupo, que se aglutina como aqueles que devem ser "adestrados". Por outro lado, os adolescentes permanecem em posição de opositores aos valores expressos pela instituição. Exemplificamos tal oposição com a denominação "funça", expressa pelos internos em referência pejorativa aos funcionários.

Durante o cumprimento da medida sócio-educativa de internação,4 o adolescente, durante todo o período (em média nove meses), é acompanhado por profissionais. Esse acompanhamento inclui, além de atendimentos individuais, avaliações diárias de comportamento e desenvolvimento escolar e extra-curricular (atividades esportivas, profissionalizantes, culturais e de lazer).

A medida sócio-educativa de internação não prevê um período preestabelecido. O tempo que o adolescente permanecerá na instituição dependerá de sua evolução, relatada periodicamente ao juiz de competência, sendo que a periodicidade do envio desse relatório poderá ser determinado pelo mesmo.

Foucault (1987, p.15) nos lembra:

"O juiz de nossos dias - magistrado ou jurado - faz outra coisa bem diferente de "julgar". E ele não julga mais sozinho. Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juízes paralelos se multiplicaram em torno do julgamento principal: peritos psiquiátricos ou psicológicos, magistrados da aplicação das penas, educadores, funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir..."

Dessa forma, funcionários ou juízes paralelos decidem o merecimento de uma progressão de medida por meio da constante avaliação do adolescente no cotidiano de sua internação, com o envio de relatório para o informe do juiz.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a internação corresponde à medida sócio-educativa mais severa. Na unidade tem-se como prática rotineira solicitar à autoridade judiciária, por intermédio da equipe técnica, progressão de medida favorecendo a desinternação. Cumpre salientar que as demais medidas sócio-educativas estão dispostas no artigo 112 do ECA, quais sejam: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional.

Uma vez disciplinado, no sentido foucaultiano de adestramento, esse adolescente estaria correspondendo às expectativas institucionais e conquistando, por intermédio dos juízes paralelos, a tão esperada liberdade. Mas a identidade "bandido" permanece e se solidifica. À medida que são "adestrados", com o objetivo de manter a ordem institucional, cristalizam-se em um ponto comum: o ato infracional, que os levou à internação. São identificados e se identificam como bandidos, como nos lembra Ciampa (1987, p.163):

"Uma vez que a identidade pressuposta é re-posta, ela é vista como dada e não como se dando, num contínuo processo de identificação. É como se, uma vez identificado o indivíduo, a produção de sua identidade se esgotasse com o produto."

O autor se refere à identidade como história. Considerando que a história termina somente com a morte, temos que o ser humano é inacabado. Está sendo no mundo. Essa é sua condição. Assim, quando um adolescente é coisificado, sendo a marginalidade sua única possibilidade de ser - lembrando que, segundo Heidegger, "o ser é determinado a partir da identidade, como um traço desta identidade"5 - é autenticada sua identidade marginal. Ele é bandido.

Sua linguagem e seu discurso fazem parte de um universo simbólico próprio que os aproximam entre si e os distanciam da "sociedade", a qual é colocada por eles como não fazendo parte de seu mundo e em oposição ao "mundo do crime".

Crime e moral convivem num único espaço e se evidenciam pelo discurso presente no cotidiano institucional, que comporta várias significações para a expressão "o mundo do crime" que, em determinadas circunstâncias, assume a faceta de justificativa de uma condição social adversa. Em outras ocasiões, o crime toma a feição de "vagabundagem e mau caratismo", e deve ser combatido com rigidez. Essa instituição também acolhe o discurso do crime como ignorância, fruto da desinformação de nossos adolescentes e de seus familiares. Frente a essa gama de significações, a análise do discurso, ao descrever discursos como práticas sociais, auxiliará a avaliação crítica dos processos de circulação e consumo dos sentidos. Consumo este que é fundamental na construção de identidades.

Orlandi (1999, p.16), ao se referir à língua, não a considera enquanto um sistema abstrato:

"[...] mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos, seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade."

A concepção de discurso, adotada pela autora, considera fundamental a questão do sentido. Seu referencial de discurso se encontra sustentado em três pilares: sujeito, história e linguagem. A partir desta compreensão de discurso que considera a historicidade e a prática social, podemos sugerir dois discursos distintos que surgem no interior da instituição:

"Ladrão de proceder roba boy, não roba trabalhador. Porque se eu robo o relógio do boy o pai dele dá outro. Se eu robo o carro do boy o seguro dá outro (sic)."

Tal fragmento, se interpretado do ponto de vista moral, pode levar esse adolescente a se deparar com uma intervenção pedagógica prescritiva, que denuncia seu "erro" e indica a maneira "correta" de ser um "bom homem". Considerando que a medida sócio-educativa de privação de liberdade seja, via de regra, o último "recurso" como sanção a um ato infracional, em quantas situações de sua vida social esse adolescente já ouviu a prescrição moral do que é "certo" ou "errado"?

Antagonicamente, temos o discurso que chamaremos "do crime", o qual, diante da mesma afirmação, poderá justificar o ato de roubar do rico (boy) como atitude virtuosa. Retornando a Foucault (a literatura policial como grandeza dos seres de exceção), tal afirmação é reiterada na fala do adolescente como um ato de ladrão de proceder.6

O discurso moral, entretanto, poderá aproximar-se do discurso do crime em um caráter que chamarei cínico. Isso poderá ocorrer quando tal discurso justifica a infração como única alternativa ao desfavorecimento socioeconômico em que o adolescente se encontra.

Utilizei o termo cínico para marcar que tal postura retira do próprio sujeito a responsabilidade de responder pelo ato que o levou à internação, delegando tal atribuição a uma outra instância. Sabemos que em nossa sociedade contemporânea, na qual o apelo ao consumo se dá de modo ilimitado, o ato infracional pode ser uma justificativa, principalmente em se tratando de pessoas de posição social menos favorecida. No entanto, podemos verificar que o número de jovens de classe média que cometem crimes vem crescendo significativamente.

 

Adolescência e transgressão

A adolescência é um período de transformações marcado pelos ideais sociais vigentes. Pensarmos a problemática do adolescente infrator é refletir o risco adolescente, considerando a cultura na qual está inserido. Dessa forma, Marin (2003), na compreensão do processo de subjetivação do adolescente, propõe considerar o adolescente o paradigma do sujeito humano. O colocar-se na rede social, mantendo singularidade e autonomia, corresponderia ao drama de sua subjetivação.

Numa sociedade que cultua objetos, em que o ter é a condição de ser, as implicações nesse momento da vida tornam-se ainda mais contundentes. As condições subjetivas do adolescentes estão frágeis. É o momento de experimentar, transgredir, testar e burlar as leis em busca de uma nova identidade que aspira à inserção no mundo adulto.

Conte (1997), ao traçar pontos de aproximação entre atos delinqüentes e episódios toxicomaníacos buscados como recurso para a sustentação subjetiva do adolescente moderno, refere que tais atos se apresentam como uma via para alcançar o sucesso, a exceção e o reconhecimento. No entanto, na ausência de pontos referenciais, os atos delinqüentes e toxicomaníacos têm servido para alguns adolescentes como ancoragem e não apenas para um passeio informal motivado pela curiosidade.

Em outro fragmento discursivo, temos a arma como objeto concreto de transgressão, que representa a forma de consumo que garante uma posição de privilégio na obtenção do status marginal:

"Se eu tô com o ferro na cintura as minas colam (sic)."

Tal representação é autenticada pela figura feminina, que também se sente atraída pelo objeto, tanto que se aproxima desse adolescente por causa do revólver à mostra. Assim, em consonância com Conte, o que poderia ser um "passeio informal" pela transgressão adquire dimensão que pode servir como determinante de uma identidade, uma identidade marginal. À medida que o sujeito é significado por meio do objeto, emerge o anúncio da incidência dos valores de uma sociedade marcada pelo consumo, presentificado da mesma maneira no "mundo do crime".

 

Ato infracional e responsabilidade

Após o percurso realizado, passando pelos discursos presentes no cotidiano de uma instituição que acolhe adolescentes infratores, pelas peculiaridades da adolescência e o que a ela está posto pela sociedade contemporânea, retornemos à questão inicial. Qual intervenção possível ao adolescente que comete atos infracionais, considerando o universo simbólico no qual estão inseridos?

Não tenho a pretensão de definir a intervenção adequada, mas considero relevante traçar alguns aspectos para a reflexão dessa problemática.

Sabemos que a adolescência é um período turbulento na vida dos seres humanos, marcado por transformações que envolvem fatores culturais, sociais e biológicos. Na busca de uma identidade adulta, a contestação e a transgressão tornam-se marcantes como forma de experimentar e testar as regras que até então se faziam imperativas. Essa experimentação na adolescência, somada a fatores socioculturais, corroboram a formação de valores do sujeito adolescente e traça os rumos de sua inserção em um mundo que ainda não é seu, o mundo adulto.

É nesse período de crise (entendida como possibilidade de escolha, necessária para o desenvolvimento) que o adolescente experimenta tais modificações com grande intensidade e angústia. A busca por um status adulto traz consigo a agressividade imprescindível para a formação de uma nova identidade.

Tal agressividade poderá ser direcionada para construções socialmente valorizadas ou para o confronto destrutivo com a lei. Isso impõe um desafio para as instituições que acolhem o adolescente infrator. Como canalizar essa agressividade, esse ímpeto juvenil, em força criativa, socialmente relevante? Certamente a resposta a tal indagação será permeada pelo oferecimento de atividades que possibilitem ao adolescente a descoberta de habilidades, gostos, que constituam uma faceta de sua identidade. Porém, cabe uma ressalva: esse oferecimento de atividades não deve tomar a conotação de mera ocupação para "mentes vazias", sob pena do serviço se transformar em um clube recreativo, com toda falta de pretensão que tal idéia traz consigo.

Assim, defendemos o princípio de que as férteis interações sociais que as atividades dirigidas aos adolescentes possibilitam sejam alvo de uma leitura minuciosa por parte dos trabalhadores das instituições, considerando a história de vida do adolescente, seu contexto subjetivo, para tornar efetiva qualquer intervenção com esses sujeitos.

Os questionamentos que ora se fizeram implicam considerar o adolescente infrator como sujeito inscrito em uma história. Considerá-lo sujeito corresponde colocá-lo em questão com o ato que o levou à internação. Para tanto, é necessário uma aproximação. Aproximar-se desse sujeito implica em uma escuta isenta de prescrições e de justificativas, que considere seu mundo, suas referências e seus valores.

Somente com a aproximação que considere as peculiaridades e diferenças existentes poderá ser possível colocá-lo em questão. Quando esse adolescente é colocado em questão, torna-se o sujeito de sua história, adquirindo dimensão de responsabilidade por suas atitudes. Dessa forma, o adolescente infrator terá que responder pelo seu ato, produzindo sentido para suas escolhas.

Colocá-lo em questão é possibilitar, por meio de seus próprios recursos como sujeito, a construção de um sentido. Quando uma atitude adquire sentido, é possível ser resignificada. É por meio da resignificação de um ato que poderá se dar a ampliação das possibilidades e a apropriação das escolhas.

 

Referências

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8.069, de 13 de julho de 1990.        [ Links ]

CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a história da Severina. Um ensaio de psicologia social. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.        [ Links ]

CONTE, Marta. Ser herói já era: seja famoso, seja toxicômano, seja marginal! In Adolescência: entre o passado e o futuro. Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, Editora Artes e Ofícios, 1997.        [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história de violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.        [ Links ]

GOFFMAN, Erving. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.        [ Links ]

HEIDEGGER, Martin. Identidade e diferença. In Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.        [ Links ]

MARIN, Isabel da Silva Kahn. Violência e transgressão: interrogando a adolescência. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, Editora Escuta, 2003, n.3, v.VI.        [ Links ]

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios & procedimentos. Campinas: Editora Pontes, 1999.        [ Links ]

Recebido em novembro de 2003
Revisado para publicação em fevereiro de 2004

 

 

Endereço para correspondência
Rua José Linhares, 21 - Santa Tereza - 36201-088 - Barbacena, MG - (32) 3333-6858
E-mail: angelabr@ig.com.br

 

 

*Docente do curso de Psicologia da UNIPAC/Ubá, com especialização em Plantão Psicológico e Rede de Apoio em Saúde Mental pela Universidade de São Paulo. Especialista em Saúde Mental pela Fundap-SP.
1Dados obtidos no site www.ibge.org.br.
2Isso aqui é uma guerra. Folha de São Paulo, folhateen, 10/03/2003. A violência dos moleques. Revista Época, 21/10/2002. KEHL, Maria Rita. O risco adolescente: as incertezas da passagem para a vida adulta. Revista Época, 23/09/2002.
3Grupo realizado semanalmente com adolescentes do sexo masculino, na faixa etária de 15-17 anos, que visava favorecer a circulação da palavra e a reflexão de conteúdos sugeridos pelos adolescentes como maneira de significar seus atos. Os temas abordados eram da escolha dos adolescentes e discutidos com o auxílio de recursos como filmes, músicas, reportagens (jornais e revistas) e literatura. Importante ressaltar que tal grupo (diferente das demais atividades realizadas na unidade) acontecia a portas fechadas, sem a presença do profissional responsável pela segurança, viabilizando assim uma fala em que as prescrições institucionais não se faziam tão presentes. O material utilizado nesse artigo é fruto das anotações da autora realizadas imediatamente após o término da atividade.
4Artigo 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
5Heidegger, M. Identidade e diferença. In Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 75.
6Proceder, na gíria dos adolescentes em questão, corresponde a uma atitude correta e digna.

Creative Commons License