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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.2 n.2 Barbacena jun. 2004

 

RESENHAS

 

 

Jaqueline dos Santos Marques*

Universidade Presidente Antônio Carlos - Brasil

 

 

FERNANDES, M.A.M. (org.). Quando uma criança precisa de análise? São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004, 118 p.

Maria Auxiliadora Mascarenhas Fernandes, organizadora de Quando uma criança precisa de análise?, é psicanalista, membro do Espaço Moebius.

Essa obra se divide em trabalhos que abordam a clínica terapêutica sobre diversos aspectos: Dois eixos na referência das demandas em psicanálise com crianças, de Erik Porge; João e seu leão, de Sandra Pedreira; A vida não é cor-de-rosa..., de Aurélio Souza; As aspirações do pai, de Alba Almeida; Quando se cala uma criança, Sônia Magalhães; A criança e seu corpo como universo de símbolos, Denise Martins; Neurose na infância não é nenhum bicho papão, de Helson Ramos; A psicanálise com crianças, Emílio Rodrigué, e O a(r)riscado: reflexões sobre a angústia e a letra, de Liane Trece.

Alguns pontos importantes podem ser considerados em cada um desses textos. Na apresentação, Maria Auxiliadora relata o fato de as crianças chegarem ao consultório portando um mal-estar que às vezes nem é dela. Nem sempre, o que angustia os pais, o tormento é realmente da criança. O sintoma quer ser escutado e pode se manifestar na falta de alimentação, ou de sono. Os infans querem, com isso, dizer que algo não está bem. Na consulta, as entrevistas preliminares são de suma importância para o analista pois, por meio delas, se saberá qual sintoma a criança porta.

O primeiro texto traz breve explicação sobre complexo de Édipo e diferença sexual, ressaltando que tal diferenciação não ocorre da mesma maneira para meninos e meninas. No tocante à psicanálise com crianças, alerta para suas particularidades, ressaltando que o problema da criança se situa sobre dois eixos: o vertical (laços de gerações) e o horizontal (relação dos pais com a sexualidade), os quais reforçam dois pólos: vertical (relações edípicas) e horizontal (diferença e relação sexual). Cabe ao analista interpretar o sintoma em função de um único pólo, em geral o vertical. O trabalho de análise consiste em diferenciar pólos e eixos, para então dividir as demandas da criança em três categorias - demandas formuladas diretamente pela criança; demandas da criança que se ligam indiretamente aos pais; o problema da criança está ligado diretamente a um fantasma. Ao final do texto de Porge, encontramos uma interessante entrevista com o psicanalista argentino Emilio Rodrigué.

Em João e seu leão, definem-se e diferenciam-se questões que as crianças trazem sobre a vida, o que irá definir a neurose infantil e o sofrimento do sintoma que a neurose infantil causa. Para fundamentar sua argumentação, a autora retoma a erótica de Freud e Lacan ao falar sobre o leão de João, caso clínico por ela tratado. João, garoto de quatro anos, é levado pela mãe ao consultório por sua insistência em dizer que em seu armário tem um leão.

O terceiro texto, A vida não é cor-de-rosa..., é abordada a sexuação e a identidade sexual, segundo conceitos de Lacan e Freud. No humano, a sexualidade não é condição natural, mas sim determinada por um constructo artificial de sua mente. A escolha do parceiro sexual obedece ao artefato da mente que é chamado, pela Psicanálise, de fantasma fundamental, o qual regula a vida, as escolhas e as posições sexuada. À diferença dos sexos implica a função fálica. Como suporte, o autor usa filme homônimo de Alan Bainer, no qual o personagem Ludovic é um homem que sonha mudar de sexo para encontrar a adequação entre sua crença e sua anatomia.

As aspirações do pai fala da presença do pai, inscrito na constituição do sujeito como agente da castração, aquele sobre quem incide as repercussões da diferença sexual e seus sintomas. Saber quando, onde e sobre que elemento da história do sujeito um pai fracassou é a dificuldade essencial na condução da cura.

Texto de Philippe Ariès serve de base para Quando se cala uma criança, no qual se discute os sérios danos psíquicos causados à criança exposta a risco pelos adultos. Há relato de um fragmento da clínica: criança de 4 anos se nega, segundo a mãe, a falar na escola. Não participa de atividades que exijam sua fala ou canto, porém em sua casa conversa normalmente com sua mãe, seu pai e com a babá. Após algumas sessões, constatou-se que o que "cala uma criança" era o que ela aprendera: em presença de estranho, de alguém não-familiar, estaria exposta ao risco de passar à posição de sujeito, perdendo a posição de objeto. A cura vem depois de algumas consultas.

A criança e seu corpo... fala do uso que a criança faz do corpo para se comunicar frente as angústias, medos e as euforias. São colocados uma série de sintomas que o infans apresenta querendo dizer que algo não está bem (um deles é o choro do bebê). Na perspectiva psicanalítica, o corpo não é corpo biológico, mas corpo erótico, e a sexualidade é constituída na relação com a linguagem e a ordem simbólica. Enfim, para compreender o humano é necessário adequar as dependências das condições sensoriais para entendê-las na relação simbólica. Os sintomas são mensagens que devem ser decodificadas, são expressões da veracidade de uma história.

Inicialmente, o sexto texto abre com um comentário sobre o que seria a neurose, a qual tem o Édipo como núcleo e envolve a condição humana. Após defini-la, introduz-se o conceito de que a neurose infantil é o protótipo da neurose que será mais tarde a do adulto. Na infância, a neurose é a manifestação de efeitos patológicos, como a incapacidade de produzir excesso de sofrimento e angústia. São indispensáveis ao trabalho clínico todas as conjecturas psicanalíticas sobre o que se passa em cada fase, aliadas à escuta/observação e ao acompanhamento do discurso da criança. É tarefa do analista ouvi-lo e acompanhá-lo, por meio de desenhos, brincadeiras e riscos.

A psicanálise com crianças é escrito sob o viés da psicanálise kleiniana, que utiliza a atenção lúdica, e da psicanálise annafreudiana, que trabalha com a atenção flutuante. A psicanálise da criança contribui para a construção da teoria psicanalítica das perversões. É colocada também a co-gestão (relação criadora entre duas pessoas) como módulo terapêutico. A terapia do garoto Gabriel, relatada nesse capítulo, é apontada como modelo de co-gestão.

O último texto, por fim, relata casos de crianças encaminhadas ao consultório pela escola, que se queixa da impossibilidade de domínio da escrita. Como sabemos, o ato de escrever, de rabiscar e de contar inscreve o significante próprio para cada um. Será descrito o processo utilizado na clínica com a escrita. O autor recorre à teoria psicanalítica lacaniana para tratar letra a partir da dimensão do real que, ligado ao simbólico e ao imaginário, forma a estrutura do falante. Outro referencial teórico, do ponto de vista educacional, é a teoria da psicogênese da língua escrita. São colocados os caminhos da letra em Lacan e a função da escrita, que permite a comunicação. A função da análise é levar o analisando a ler o que diz. Quando não somos o que escrevemos somos escrevedores (desempenhamos papel social); se somos o que escrevemos, a(r)riscamos (protagonistas da obra).

O livro aborda conceitos fundamentais à clínica psicanalítica, como neurose, sintomas, sexuação. Por isso, a leitura de Quando uma criança precisa de análise? é indispensável para leitores interessados no fantástico mundo das crianças. Pois, como disse Emílio Rodrigué, "analisar uma criança é uma aventura."

 

 

*Aluna do 3º período de Psicologia da UNIPAC/Ubá

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