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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.2 no.3 Barbacena Nov. 2004

 

ARTIGOS

 

Recuperar a saúde mental

 

To recuperate the mental health

 

 

Carlo Viganò I, II,*; Roseli Cordeiro Pereira (tradução)

IAssociação Mundial de Psicanálise. Comissão de Saúde Mental
IICausa Freudiana de Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com o presente artigo, pretende-se mostrar a importância do humor na clínica psicanalítica. Ao abordar a comicidade, ressalta-se seu efeito propiciador de prazer nas relações sociais e sua dimensão sanitária. Considera-se que esta, a chave humorística, possa exercer um efeito positivo em todo o campo da saúde.

Palavras-chave:: Psicanálise, Clinica psicanalítica, Laço social, Humor.


ABSTRACT

This paper intends to show the importance of the humour in the psychoanalytical clinics. In approaching the comic mood, it has emerged its effect providing pleasure in the social relationships and its sanitary dimension. This humorist key can have a positive effect on the whole health field.

Keywords: Psychoanalysis, Psychoanalytical clinics, Social network, Humour.


 

 

Não pretendo com esse título denunciar uma situação de "mau sanidade" no campo da doença mental, pelo menos não na direção dos debates televisivos em torno dos episódios de clonagem. A minha batuta, antes que à organização dos tratamentos, aponta ao adjetivo mental, o qual não me parece gozar de boa saúde.

É uma hipótese embasada em minha experiência: a prática da clínica psicanalítica tem de fato como objetivo tratar o "mental" da saúde, modificar a mentalidade com a qual o sujeito vive a própria saúde. Trata-se, mais precisamente, de reabrir o horizonte, a relação entre a qual colocar a questão e, a partir daí, a prática para obtenção da saúde. Quando dizemos que se deve retificar a relação do sujeito com o real, indicamos a condição para que ele comece a se tornar o artífice do próprio bem-estar. De fato, quem vem até nós está convencido de que a causa do seu mal-estar seja real, o que é justo. O psicanalista não é aquele que simplesmente diz o que são "problemas psicológicos", não opondo o psicológico ao real. Não reduz o real ao campo das biotecnologias. Ele sabe que os efeitos da palavra incidem profundamente na biologia do corpo vivente.

Por isso, quando se diz que a doença mental é uma doença como as outras, pensamos ser uma conquista a condição de saber que todas as doenças são uma experiência do ser falante, o que nos torna responsáveis pelo nosso estado de saúde. Tanto é verdade que cuidamos da higiene, dos hábitos alimentares, do movimento, etc. A clínica psicanalítica nos recorda um hábito muitas vezes esquecido: o de curar o humor, de tornar a depressão um verdadeiro e próprio problema social.

Ser espirituoso é uma faculdade, como a memória ou a inteligência, que consiste na capacidade de criar aquele prazer social que chamamos humorismo. A argúcia é uma faculdade que requer cultivo, tanto que quase sempre se desenvolve a partir da condição subjetiva que, como disse Freud, "não são muito diferentes daquelas da doença neurótica". Sabemos que muitos atores cômicos e escritores humorísticos seriam julgados deprimidos se estudadas sua condição própria de vida, como se para eles o humorismo representasse um tipo de auto-medicação.

Também a originalidade do louco, a bizarria de seu pensamento ou de seu comportamento, muitas vezes resultam em fonte de comicidade. São muitas as piadas sobre loucos. Nesse caso, se estabelece uma dupla, composta pela pessoa espirituosa e pela pessoa-objeto - o louco, no qual primeiro se revela qualquer indício cômico. Para que se produza o efeito social do prazer, o efeito liberatório do riso que rompe tensões, ocorre que se passe dessa dupla ao grupo, que exista a "terceira pessoa" (como a chama Freud), ou o público, como dizemos nós hoje. É ali que se produz o efeito de hilaridade. É a terceira pessoa que decide se a batida é eficaz. A eficácia é aquela de desinibir (o que já deve suceder na primeira pessoa), produzindo prazer, porém, só quando acontece na terceira: não se ri sozinho.

O êxito da presença de espírito é um prazer social, que sucede no Outro, por isso parecendo-me um bom exemplo de tratamento do mental. Produz-se um gozo real, que representa uma transformação do gozo ligado ao sintoma. O gozo masoquista se transforma em gozo social. Desata-se a inibição que o mantinha ligado ao silêncio da biologia. Torna-se menor a gravidade do diagnóstico, que resultava infausto enquanto tinha o sujeito na posição de pessoa-objeto. Naturalmente, isso advém quando é o doente a fazer do próprio sintoma a ocasião de uma presença de espírito, transformando o real de domínio das neurociências em motivo de espírito.

Assim, se pode compreender como a clínica psicanalítica pode chegar a ser uma clínica irônica, cuja chave humorística poderia fazer bem a todo o campo da saúde, e com isso restituir à dimensão sanitária sua dimensão cômica, aquela que encontrou em Molière seu expoente máximo.

Também a tradição italiana é plena de representações do médico e da doença em chave cômica, não só em Veneza. Do início do melodrama à corte dos Borboni, os intervalos das óperas sérias eram ocupados por representações que derivavam do Teatro da Arte, como aquela redescoberta (e editada pela casa discográfica Cactus) de Giuseppe Sellito, Drusilla e Don Strabone, de 1735. O médico carrancudo e um pouco misógino é conquistado pela verve de uma jovem viúva, cujos incômodos se revelam não ser outro que o mal de amor. Mais próximo a nós, é o verdadeiro culto que os homens do Risorgimento1 nutriram por um autor como Heine, poeta alemão que foi um grande estudioso da figura literária do humorismo (então se dizia "do humor"). É muito fácil opor ao entusiasmo ressurgimental os profetas contemporâneos do humor flexível ou "bipolar".

Creio que o pressuposto deste tratamento por meio do cômico (deixo aberta a questão da relação entre comicidade e ironia) esteja no fato de que a dimensão do real não coincide integralmente com a realidade. De fato, o real - e foi Lacan que o demonstrou - é o registro do não-representável e também daquilo que faz o furo na ordem simbólica, constituindo-se, dessa forma, no ponto não-eliminável e não-deslocável (real, precisamente) da organização psíquica. A saúde, sendo assim, não se pode repartir entre corpo e mente, e nem ser definida como "psicossomática". É cômica porque suspende, interrompe, com efeito salubre, a tragicidade da vida humana. É interessante notar que há algum tempo começa a se defender também na Itália a "terapia do sorriso", que tem como objetivo fazer esquecer o medo e a dor das crianças hospitalizadas. Talvez seja um primeiro passo, porque fazer rir as crianças para curá-las poderá fazer delas adultos capazes de fazer rir os outros, ou seja, de auto-curar-se. Na mesma linha de pensamento, se poderá reaprender o termo "animação" como referência para as atividades reabilitativas. Ao reencontrar o sorriso, um sujeito poderá ser reabilitado, recolocado no mundo dos adultos, subtraído à condição de infans (sem palavra) que se torna puer (sem cidadania).

Sem querer estabelecer paralelismos impróprios, não posso deixar de recordar que a salvação é o fulcro da experiência religiosa, enquanto sua natureza é aquela do mistério, de fuga a toda redução em termo de saber. Ora, do ponto de vista estrutural, da estrutura subjetiva, o que é o mistério? O que ele está a indicar? Exatamente que a relação com o real é necessária, que o sujeito não o pode frustrar, que por isso deve encontrar uma via - exatamente o mistério - para vivê-lo. Diversamente, o encontro com o real não-representável e não-simbolizável (estranho, diferente, unheimlich), não é outro que a experiência da angústia.

Nesse ponto, não buscarei recurso na teologia da salvação para obter indicações sobre saúde mental, mas retorno ao campo mais familiar da experiência analítica. Esta nos permite distinguir dois níveis, estruturalmente bem diferenciados, do emprego comum do termo recuperação. Creio que a Antigüidade o diferenciasse, distinguindo a "cura" - termo latino para indicar todo "empenho" (pré-ocupar-se) - da terapia, expressão grega que envolve o registro do sacro (therapeuo indicava a atividade de sacerdotes que operavam em lugares particulares ligados às divindades).

1) Dar sentido a um acontecimento ou a uma presença "traumática" alivia a ansiedade, é desangustiante. Por isso toda representação, toda interpretação (até aquelas delirantes), é curativa. Falar faz bem, daí o desenvolvimento exponencial das psicoterapias, das terapias centradas sobre palavra e sobre sentido. Pode-se dizer que, numa escala contínua, também a medicina científica seja um tratamento mediante o sentido (o diagnóstico pode ser visto assim, além de seu valor técnico). O famoso empenho aponta ao sentido, ao programa, à solução do problema, à educação. São os tratamentos por intermédio do Uno, o significante como inteiro, sem falha, no qual se pode identificar um semblante que comanda um discurso e o faz girar. O resultado do discurso é produzir, no lugar do Ideal, um objeto fantasmático, causa selada do nosso desejo, este falso real. É a ilusão que leva o sujeito ao analista, que tem o dever de desmontar aquilo que o sintoma agia em contrário na recuperação.

2) Porém, existe um real que é particular para cada sujeito, que não vem produzido pelo discurso, ao contrário: surge do lugar ocupado pela verdade no discurso. Entre a verdade e o significante mestre (o que faz girar o discurso), existe um hiato não preenchível, uma fratura não padronizável senão por meio do compromisso sintomático. Aquela verdade que não se pode dizer, aquela mais íntima à vivência de cada um, que não encontra "as palavras para dizer-se", que não sairá nunca da condição de inconsciente, torna-se aquilo de que o sujeito sofre, mas que, ao mesmo tempo, o faz viver. Por isso, o sintoma pode ser a cifra, a marca, o caractere do sujeito, mas ele é também a patologia: tanto que a medicina fez dele um sinal de doença. Daí o outro tipo de recuperação: passar do sintoma-doença ao sintoma depurado dessa sobreestrutura semântica, sintoma subtraído à patologia. O sintoma sem pathos é aquele que se pode identificar ali como uma cifra de gozo, uma contingência elevada ao nível da pura diferença, de um universal não-unificante (não universitário), mas único. Esta é uma via para a recuperação do mental, um pouco genericamente alusiva a expressões como "conhecer-se", consciência, autonomia e maturidade. Na realidade, é um ato que advém na relação com o Outro, quando este se mostra em sua inexistência como pura convencionalidade que deixa o sujeito na solidão do saint-homme (que em francês soa como a palavra sintoma), do santo. Em outros termos, esse segundo nível da recuperação não é outro senão uma identificação do sintoma, naturalmente antes espoliado de suas ressonâncias patológicas.

É para notar que a autarquia que caracteriza as novas formas do sintoma, os distúrbios de personalidade, não é uma caricatura perversa dessa autonomia, produção de um falso adulto sustentado pela dependência por um objeto-rito que repreenche o vazio da Coisa, sem passar pelo discurso do Outro. Entretanto, essa passagem tem a estrutura do Witz (presença de espírito). A solução de identificá-lo com o sintoma sem antes transformá-lo (ver as epidemias histéricas) teria resultados deprimentes.

Para concluir sobre nosso tema da presença de espírito e sua terapeuticidade, gostaria de recordar apenas um traço estrutural: fazer rir implica necessariamente fazer um uso (sábio, criativo - real) do Outro. O cômico trabalha assim: cria um consenso geral em torno de qualquer lugar comum referente a um juízo sabido e tendencialmente conservador (racista, por exemplo), e depois dispara fora o jogo de palavras ou o neologismo sapiente, que ressalta toda a comicidade daquele sabido, que faz "ressurgir" uma subjetividade nivelada e amassada sob o "bom senso" (commom, para os anglo-saxões). Um não-senso que transmite um mais-de-senso, jóia de um saber que faz um feixe no lugar comumente assinalado à verdade.

Tudo isso somente para dizer que os loucos são bufões, que fazem rir? Sim e não. Sim, se os colocamos em condições de ser eles a nos fazer rir; não, se somos nós a rir deles, como um anteparo do muro que nos separa deles. Um louco que nos faz rir, que faz rir sem outro muro que o véu readquirido pelo pudor, não é um sujeito reencontrado. É a redescoberta da loucura que está em nós.

Endereço para correspondência
Carlo Viganò
E-mail: carlo.vigano@fastwebnet.it

Roseli Cordeiro Pereira
Fone:(32) 3331-1443
E-mail: barcia@barbacena.com.br

Recebido em 18/08/2004

*Psiquiatra e psicanalista radicado em Milão. Membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Causa Freudiana de Paris. Integrante da Comissão de Saúde Mental da Associação Mundial de Psicanálise
1 Longo processo de unificação dos sete Estados autônomos, a partir dos quais nasceu, em 1870, o Reino da Itália.

Tradução do resumo: Marina Passos

 

 

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