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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.2 n.3 Barbacena nov. 2004

 

ARTIGOS

 

Seria a toxicomania um sintoma social?

 

Is drug addiction a social symptom?

 

 

Angela Vorcaro I,*, **

IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto estabelece uma discussão sobre a toxicomania a partir da psicanálise, tomada como teoria da cultura. Nessa perspectiva, o qualificativo de "social" à resposta metafórica do sintoma seria a inscrição específica da articulação discursiva própria a tal sintoma no discurso social. Interroga-se o gozo na toxicomania, considerando algumas possibilidades relativas à relação entre a abstinência e a incorporação. A título de conclusão, discute-se a redução do laço social à dualidade em que o reencontro com o Grande Outro coincidiria com o objeto perdido, no qual a droga, o semelhante ou a autoridade seriam substituíveis, numa economia de gozo de trocas simples que faria reverberar os tempos do princípio do prazer.

Palavras-chave: Sintoma social, Toxicomania, Gozo


ABSTRACT

This paper discusses drug addiction in the light of psychoanalysis, seen as a theory of culture. From this perspective, the use of the adjective "social" to refer to the metaphorical response of the symptom that represents a specific inscription of the discursive articulation proper to this symptom into the social discourse. The jouissance of drug addiction is questioned on the basis of certain possibilities related to the relationship between abstinence and incorporation. In conclusion, the author discusses the reduction of social ties to a duality whereby a re-encounter with the Other coincides with the lost object, where the drug, another person or an authority are replaceable, in an economy of jouissance of simple exchanges that would seen to bring back the days of the pleasure principle.

Keywords: Social symptom, Drug addiction, Jouissance


 

 

Introdução

Antes de fazer avançar a discussão que vem acontecendo nos últimos anos, relativa à interrogação sobre a toxicomania como sintoma social, é necessário recuperar a junção feita entre o qualificativo social e o termo sintoma, junção que foi construída, inscrita e desdobrada por alguns psicanalistas, a partir das observações de Charles Melman1. É certo que a consideração da noção de sintoma social foi estabelecida há quase 15 anos, tendo ficado a serviço de um amplo movimento que ultrapassou a função clínica da psicanálise com seu revigoramento como teoria da cultura.

Teríamos algo, ainda, a dizer?

O resgate que farei a seguir visa demarcar, com maior precisão, o uso dessa noção, para concluirmos sobre seus desdobramentos e, especialmente, construirmos a possibilidade de um debate eventual.

Inicialmente, vamos à definição de sintoma em psicanálise. Retomo aqui uma definição cuja concisão atende ao propósito:

"Sintoma é a implicação inconsciente do sujeito e, portanto, é signo da operação de recalque pela qual o sujeito se constitui em sua unicidade. O sintoma é mensagem cifrada de gozo. Portanto, além de metáfora do conflito psíquico do sujeito, e por isso mesmo, o sintoma é modalidade singular pela qual o neurótico goza."2

E o social? A despeito de sua imprecisão, social é aquilo que dá universalidade aos sujeitos, ou seja, o mal-estar, a dor de existir que é comum a todos os que se constituem sujeitos. Nessa perspectiva, como são constatáveis os limites impostos pela civilização, que fazem do ser um sujeito. Ela, a civilização, é um mal-estar por forçar o sujeito à insatisfação fundamental.

Sintoma social situaria assim um campo do particular, entre o universal do mal-estar e o singular do sintoma subjetivo: metáfora partilhada por um grupo do mal-estar, por meio de uma modalidade de gozo inscrita, submetida e provocada pelo discurso dominante de uma época.

Outro modo de dizer o sintoma social3 é considerá-lo como tentativa de simbolizar o real que a linguagem não consegue recobrir na medida adequada. Nesse caso, qualquer construção discursiva que se fizer ao redor dessa imensidão da ignorância fundamental é contraditória, porque esses sintomas propõem um outro ordenamento lógico dos modos de desfrutar a vida e dos modos de gerar e sustentar a ilusão de um saber suficientemente abrangente para garantir este usufruto da vida. Cada novo sintoma social causa escândalo por consistir na invenção de uma nova borda, de uma nova proposta de saber e desfrute. A produção do sintoma individual se alimenta do imaginário social, e é a partir dele que faz a sua invenção.

A constatação de que há drogas capazes de induzir ultrapassagens da dor de existir provocaria a tentativa neurótica de remediar tal mal-estar. A toxicomania seria, portanto, um sintoma social, pois metaforizaria uma verdade da civilização.

Se este social que universaliza a insatisfação fundamental é feito do mesmo estofo do sintoma que singulariza o meio pelo qual o sujeito goza, as leis da linguagem e da língua fazem, a um só tempo, o mal-estar e o sintoma. A constatação que se impõe é a de que, depois do capitalismo globalizado, "todo sintoma é social."4

O sublinhamento do termo sintoma com o qualificativo de social viria então apenas considerar que se trata de um sintoma que se articula discursivamente, por estar inscrito no discurso dominante, perdendo, portanto, seu atributo de singularidade. Contudo, mais uma vez, mesmo que um sujeito se articule singularmente a seu sintoma, os sintomas não são estruturalmente singulares. Isso retiraria a necessidade de atribuir o qualificativo social ao sintoma.

 

O que teria motivado a noção de sintoma social?

Um sintoma social não se define por sua grande incidência estatística, nem pelos entraves causados ao funcionamento social. Não é por seu caráter endêmico ou perturbador que a toxicomania pode ser considerada sintoma social. O que define essa resposta metafórica (o sintoma como sintoma social) seria a inscrição específica da articulação discursiva própria a tal sintoma no discurso social. Assim, como disse Calligaris:

"O alcoolismo fala da reivindicação de um gozo que aparece ao sujeito como exclusivo de um Outro; a delinqüência responde a um declínio da função paterna que lança todos na procura de improváveis atos simbólicos; a toxicomania inventa um meio para continuar gozando de uma falta."5 (1992, p.10)

Constatar os efeitos do deslocamento que descarta o gozo fálico em função da preponderância do gozo do Outro visava problematizar a clínica e reinventá-la para que ela fosse própria à atualidade. Afinal, não é mais o respeito à dívida paterna ou a paixão pela afirmação fálica que permitem o usufruto da vida.

Trata-se, no sintoma social, da superação dos modos de gozo possíveis no campo da linguagem, substituindo-os por um gozo que prescinde do pacto social porque se quer pleno, infinito e sem borda - tal como o gozo suposto ao Outro, gozo do Outro.

Nessa perspectiva, em que se considerou a hipótese da toxicomania como sintoma social, seus proponentes foram claros quanto ao fato de tais idéias estarem em trabalho, não se oferecendo como arcabouços consistentes, bandeiras ou verdades definitivas, por isso mesmo sendo consideradas naquilo que apresentavam de precariedade, como precárias são as hipóteses que construímos a partir da clínica e que nos guiam na direção do tratamento. Tal precariedade era necessária e proposital; pretendia evitar o dogmatismo que, quando estabelecido, transforma o clínico num funcionário da teoria, surdo à clínica e incapaz de, com ela, interrogar a teoria.

A formulação dessas hipóteses teve, como conseqüência para seus autores, o ordenamento de uma série de questões: Afinal, como o sintoma social se conjuga ao que há de estrutural em cada um? Se o sintoma é social, o psicanalista teria a responsabilidade ética de seu entendimento? Entre o psicanalista e o político haveria, neste caso, uma intersecção?

 

O gozo do toxicômano é ilimitado?

Mas, bem antes de essas questões se colocarem como interrogantes também para nós, valeria a pena retornar à questão da promessa de gozo pleno oferecida, ou suposta, na toxicomania. Teríamos, com a toxicomania, a presença de um gozo pleno, ou apenas uma caricatura do gozo pleno?

Afinal, num gozo pleno tratar-se-ia de abdicar de gozos possíveis com os quais o campo da linguagem aparelhou os sujeitos, substituindo-os por um gozo que prescindiria de qualquer separação entre sujeito e objeto, de qualquer instância mediadora ou reguladora, sem a intervenção das leis de troca, passível de ser pleno, infinito, ilimitado. Para gozar assim, no Real do Outro, é preciso, paradoxalmente, delimitar o Outro, restringindo-o à circunscrição de um objeto - no caso, a droga.

Assim, sintoma social seria o nome da possibilidade - conferida pela droga, de uma ultrapassagem do gozo fálico, do usufruto da vida submetida às leis da linguagem, pela possibilidade de gozo ilimitado, sem bordas, fora da lei. Evidentemente, se a toxicomania pode ser assim definida, cabe, entretanto, perguntar: o gozo do toxicômano é um gozo ilimitado ou somos nós que o supomos dessa forma, a partir da inscrição da toxicomania no discurso social?

Caberia, portanto, interrogar se esse gozo suposto ao toxicômano não seria o estatuto dado por nós, neuróticos caretas, a partir da possibilidade que sugerimos para a plenitude do que estruturalmente imaginarizamos, por estarmos aparelhados com a linguagem e, com isso, limitados ao gozo fálico de nossos sintomas, já que não temos acesso ao que se passa com o toxicômano? Retomemos, agora, Lacan.

Numa referência à literatura bíblica, Lacan cita os lírios do campo, que podem ser imaginados como um corpo inteiramente entregue ao gozo: cada etapa de seu crescimento é idêntica a uma sensação sem forma - gozo de planta, que nada permite escapar. Realmente, no Evangelho de São Mateus, encontramos uma descrição do usufruto pleno da vida sem qualquer cálculo, considerando-a assegurada por Deus, tal como a natureza:

"Eis por que eu vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, com o que comereis, nem por vosso corpo, com o que vestireis [...] Aprendei dos lírios dos campos, como crescem, não se afadigam nem fiam; ora, eu vos digo, o próprio Salomão em toda sua glória, jamais se vestiu como um deles! Se Deus assim veste a erva dos campos, que hoje existe e amanhã será lançada ao fogo, não fará ele muito mais por vós, gente de pouca fé?"6 (Grifos meus)

Mas, diz Lacan7, como nada sabemos do "gozo dos lírios do campo", podemos até supor que, talvez, seja uma dor infinita ser planta. Lacan introduz os lírios do campo para distinguir nossa dificuldade em saber sobre o gozo dos organismos. Nada sabemos do gozo do organismo porque, diz ele, "faltando significante, não há distância entre o gozo e o corpo." Nós nos servimos da noção de instinto porque ela dissolve nossa dificuldade, pois traz a implicação de um "saber do qual não se é capaz de dizer o que isso quer, mas que se presume que tenha como resultado que a vida subsista." Como o instinto, o gozo é limitado por processos que chamamos de naturais por estarem fora do discurso, dos quais, portanto, nada sabemos.

Somos efeito de linguagem, ou seja, nada sabemos do gozo absoluto, e essa condição nos condena a visar outras modalidades de gozo. Talvez, como supomos o instinto, podemos, também, supor um gozo, Outro, não o que temos no sintoma, já aparelhado pela linguagem, mas aquele que pudemos um dia sugerir ter existido, no momento em que nos localizamos como privados. Trata-se, enfim, da recuperação da mesma suposição feita pelo bebê em seus primeiros apelos ao Outro: o retorno a um gozo que teria havido, por meio da recuperação de um objeto perdido que estaria em posse de um Outro tomado por onipotente.

No nó borromeano que situa a realidade psíquica como amarração de três registros distintos, tal como proposto por Lacan, o gozo do Outro é localizado na incidência do real sobre o imaginário. Refere-se à impossibilidade real, que extorque o gozo fálico, sendo suposta pelo sujeito como parasita que faz prevalecer o obstáculo irrompido no gozo fálico, no qual se distingue uma referência de gozo como pertencente ao Outro.

Assim, segundo Lacan:

"Não é isso - aí está o grito por onde se distingue o gozo obtido do gozo esperado. É onde se especifica o que se pode dizer na linguagem. A negação tem toda a aparência de vir daí. Nada mais, porém. A estrutura, para se engatar nisso, não demonstra nada, senão que ela é do mesmo texto que o gozo, na medida que, ao se marcar de que distância ele falta, aquele de que se trataria se fosse isso, ele não somente supõe aquele que seria isso, ele suporta supor, com isto, um Outro."8

Gozo que se situa alhures, sempre anômalo ao corpo. Como diz Lacan, "o Outro do Outro real, ou seja, impossível, é a idéia que temos do artifício, na medida que ele é um fazer [...] que nos escapa. Ou seja, um saber que transborda muito o gozo que podemos ter."9

Por isso, a amplificação do gozo suposto ao Outro produz angústia. Afinal, a incidência de um gozo indeterminado invade o sujeito, reduzindo-o a ser seu objeto.

 

Prazer, saber e gozo

A supressão transitória da existência, anestesia e amnésia que abolem o sujeito na toxicomania, são patentes. A resistência que restabelece inevitavelmente a ordem subjetiva, obriga ao aumento das doses para assegurar ao "toxicômano um estado de prazer, abaixando as tensões psíquicas" até um ponto ideal que culmina na morte.10 Esse fato, porém, não é suficiente para supor que o toxicômano goze de sua própria morte.

O princípio do prazer se refere ao princípio da tensão mínima a manter para que a vida subsista. Essa "economia" permite ao sujeito obter um mínimo de gozo. Mas a busca de um gozo a mais, gozo suposto e perdido, inscreve uma dialética que, por visar sua repetição, transborda o princípio do prazer. Essencial ao funcionamento da vida (o princípio do prazer), sofre assim imposição da pulsão de morte, produzindo mediação: saber que é detenção do gozo em um certo limite, para que a vida não se precipite imediatamente na morte.

Há, portanto, uma tensão a garantir o porquê de a repetição produzir inevitavelmente fracasso, perda, desperdício de gozo. A própria repetição obriga a um inevitável aumento na dose da droga, que não é senão uma produção de saber, pois o que se repete nunca é o mesmo, por estar articulado a uma rede de inscrições que demonstram que a repetição presentifica a eficácia da ordem da linguagem. Por outro lado, há que se construir um saber sobre a dose que evita uma overdose mortal.

O gozo, correlativo à marca para a morte, só toma sentido quando um jogo de inscrições o separa do corpo. Esse jogo de inscrições é feito da repetição, essa denotação precisa de um traço idêntico ao traço unário, que comemora uma irrupção do gozo. Aí, o prazer é violado em sua regra e em seu princípio, por ceder ao desprazer, ou seja, por ceder ao gozo.

O sujeito surge da repetição, representando uma certa perda. A linguagem só obterá gozo repetindo, insistindo até produzir perda, perda do objeto, o buraco aberto a partir do processo do saber escandido pelo significante. Afinal, o saber não é dito por ninguém, se desfia sozinho.11 É o que permite definir saber como "o gozo do Outro". É nessa relação primitiva entre saber e gozo que se insere o aparato significante. Esse saber mostra na repetição que é o meio do gozo, precisamente à medida em que ultrapassa os limites impostos, sob o termo prazer, às tensões usuais da vida. Desse formalismo, acontece a perda de gozo.

O ser vivo funciona normalmente no registro do prazer: menor tensão possível para que a vida subsista. O sujeito goza ao apreender a dimensão da perda desse não-sei-quê que fez gozo, e gozo a repetir, gozo a recuperar. E para gozar é necessário o trabalho do saber.

 

De que goza o toxicômano?

Sob a ótica de Melman,12 a incorporação da droga permitiria ao toxicômano o asseguramento do princípio do prazer. Nessa via, não seria a ingestão da droga que permitiria o gozo ao toxicômano. A droga só permitiria o prazer: a menor tensão possível. Para ele, o gozo seria o momento da falta, gozo atroz. Afinal, seria para gozar da falta que o toxicômano se exporia tanto a encontrar-se em estado de falta. Essa seria a resposta à pergunta do autor sobre o motivo de o toxicômano ter tanta dificuldade em estocar a droga para seu uso, ficando sempre em falta, expondo-se tanto à ausência da droga.

Mas o estado de carência da droga não significa necessariamente que é a falta o que permite o estado de gozo. Caberia investigar, primeiro, se o problema de manutenção do estoque está relacionado à delegação do saber ao Outro sobre o controle das doses possíveis: o que o toxicômano sabe não saber. Afinal, essa questão da dose esteve (ao menos no início da vida) sob o controle do Outro, que nos contemplaria desde então com a fantasia de supor o Outro todo em potência. Lacan nos lembra que a mulher, na condição de mãe desejante, autoriza o gozo do infans, dosando a repetição:13

"A mulher na condição de mãe, permite ao gozo ousar ? {ou dosar, d'oser} ? a máscara da repetição. Ela aqui se apresenta como o que é, como instituição da mascarada. Ela conduz ao mais-de-gozar porque mergulha suas raízes, ela, a mulher, como a flor, no gozo mesmo."14

Um comentário alarmado é sistemático entre toxicômanos: os riscos do efeito da droga perdurar por mais tempo do que se deseja. O perigo de se ficar impregnado por LSD durante alguns dias, como muitas histórias repetem, e o inferno subjetivo causado pela impossibilidade de livrar-se da droga. Esse comentário interessa porque permite pensar: o que faz gozo para o toxicômano é a alternância entre momento de abstinência e momento de incorporação da droga.

Essa virada de um estado ao outro traria, além da vertigem gozosa do entre dois estados, o fato adicional de aí, finalmente, o sujeito, no mesmo movimento de entregar-se a uma modalidade bruta de gozo, gozar do Outro, gozar da condição de não-toda da linguagem, gozar às custas da linguagem. O que se perverte nesta alternância circular e recíproca que articula abstinência e incorporação é que ela permite ao sujeito estabelecer, simultaneamente, equivalência e oposição entre elementos do sistema ao qual está aderido.

Aqui, abstinência e incorporação da droga são, como na linguagem, significantes que se opõem mas, ao mesmo tempo, a oposição é de tal monta que um termo anula plenamente o outro. Desse modo, a oposição que o toxicômano propõe ultrapassa o sistema da linguagem porque produz a convicção de ser possível dissolver a convocação pulsional que o compromete subjetivamente, ao perambular entre procura desesperada e viagem. Como um sujeito qualquer - por ser submetido à linguagem, por ter que se imiscuir na linguagem, no que nela falta - a matriz do toxicômano é simples: só dois termos; na oposição com a qual ele lida, um termo anula o outro: oposição e identidade convivem plenamente.

Enquanto a linguagem é um sistema que não conhece igualdades, a oposição feita pelo toxicômano é radical: é perfeita, pois o estado de tensão causado pela abstinência anula completamente o estado de apaziguamento causado pela incorporação da droga, e vice-versa. Há igualdade - aqui, o Outro é, final e novamente, onipotente. A diferença se coloca, portanto, como plenamente anulável, sem resto, já que os termos em jogo se equivalem e se anulam. Um retorno do laço social à dualidade, em que o gozo do Outro deixa supor que o reencontro com o Grande Outro coincida com o objeto pequeno a perdido, no qual a droga, o semelhante ou a autoridade são seus cúmplices, substituindo-se plenamente, numa economia de gozo de trocas simples que faz reverberar os tempos do princípio do prazer.

Talvez, a toxicomania seja o modo de tratar a sensação de desamparo por meio da dissolução do laço social, numa passagem ao ato15 que visa fazer coincidir Grande Outro e Objeto pequeno a.

 

Referências

BÍBLIA SAGRADA. Evangelho segundo São Mateus. São Paulo: Loyola, 1995.        [ Links ]

CALLIGARIS, Contardo (org.). Clínica do social. São Paulo: Escuta, 1991.        [ Links ]

JERUSALINSKY, Alfredo. O sujeito infantil e a infância do sujeito. Estilos da clínica, São Paulo, IPUSP, n.4, 1998.        [ Links ]

LACAN, Jacques. O Seminário _ Livro XVII: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.        [ Links ]

______.O Seminário _ Livro XX: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.        [ Links ]

______.O Seminário _ Livro XXIII: Le sinthome. Inédito.        [ Links ]

MELMAN, Charles. Alcoolismo, delinqüência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo: Escuta, 1992.        [ Links ]

______.Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC, 2003.        [ Links ]

QUINET, Antônio. Tristeza e posição do sujeito. In QUINET, A. (org.). Extravios do desejo: depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Marca d'Água, 1999.        [ Links ]

VORCARO, Ângela. Os dragões do tempo primordial: a repetição como primeira identificação. In LEITE, Nina (org.). Corpolinguagem, gestos e afetos. Campinas: Mercado das Letras, 2003.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Angela Vorcaro
Rua Sagarana, 77/602
30330-210 Belo Horizonte - MG

E-mail: angelavorcaro@uol.com.br

Recebido em 08/09/2004

 

 


* Psicanalista doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professora da PUC-MG
** Trabalho apresentado na Jornada do Programa de Atenção à Mulher Dependente Química (Promud), realizado no Hospital das Clínicas da USP, em novembro de 2003.
1 MELMAN, C. Alcoolismo, delinqüência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo: Escuta, 1992.
2 QUINET, A. Tristeza e posição do sujeito. In Extravios do desejo: depressão e melancolia. Rio de Janeiro, Marca d'Água, 1999, p.203.
3 Cf. JERUSALINSKY, A. O sujeito infantil e a infância do sujeito. In Estilos da clínica, São Paulo, IPUSP, n.4, p.152, 1998.
4 "Todo sintoma é social": assim C. Calligaris recentemente referiu-se ao sintoma social em comunicação pessoal. Essa afirmação repete a que ele mesmo faz na introdução ao livro Clínica do social (São Paulo: Escuta, 1991).
5 Prefácio do livro Alcoolismo, delinqüência, toxicomania: uma outra forma de gozar, de Charles Melman (São Paulo: Escuta, 1992, p.10).
6 EVANGELHO segundo São Mateus: As preocupações, versículos 25-31. In Bíblia Sagrada. São Paulo: Loyola, 1995, p.1199-1200.
7 LACAN, J. O Seminário _ Livro XVII: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p.168.
8 LACAN, J. O Seminário _ Livro XX: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982, p.152.
9 LACAN, J. O Seminário _ Livro XXIII: Le sinthome, lição de 13/11/76, texto inédito.
10 Cf. MELMAN, C. Op.cit., p.72.
11 "A referência de um discurso é aquilo que ele confessa querer dominar, querer amestrar. Nada é mais candente do que aquilo que, do discurso, faz referência ao gozo. O discurso toca nisso sem cessar, posto que é dali que ele se origina. E o agita de novo desde que tenta retornar a essa origem. É nisso que ele contesta todo apaziguamento. O sujeito do discurso não se sabe como sujeito que sustenta o discurso. Ele não sabe o que diz, mas Freud diz que ele não sabe quem o diz." Cf. LACAN, J. O Seminário _ Livro XVII: O avesso da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1992. Os grifos são meus.
12 Op. cit., p.74.
13 "A mulher, na condição de mãe, incita e franqueia o gozo na criança. Mas, já que sua condição de ser falante impede reproduzi-lo, ela convida a criança a simulá-lo, com a linguagem, na repetição que é, sempre, máscara do que teria havido. A mãe, nessas relações primárias, age sobre seu filho de modo a, num só tempo, inseri-lo na linguagem e permitir a máscara da repetição do gozo. Fazendo-se de órgão extra-corpóreo da criança, ela reconhece as urgências vitais e as compatibiliza com a decisão que toma quanto à significação destas. Assim, a mãe faz de si mesma o instrumento da vivência de satisfação do filho, à medida em que ela se prende ao que a própria natureza orgânica da criança oferece como suportes dispostos em oposição." Cf. VORCARO, Ângela. Os dragões do tempo primordial: a repetição como primeira identificação. In LEITE, Nina (org.). Corpolinguagem, gestos e afetos. Campinas: Mercado das Letras, 2003, p.215-231. Os grifos são meus.
14 LACAN, Jacques. O Seminário _ Livro XVII: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p.73-74. Cabe lembrar que, por ser um seminário oral, mantém-se insabido se Lacan disse "d'oser" (ousar) ou "doser" (dosar). Os dois usos são cabíveis, mesmo que a escolha do tradutor brasileiro não tenha sido "dosar".
15 Um franqueamento dessa afirmação foi apresentado recentemente por Melman, ao relembrar a necessária distinção conceitual entre Gozo Outro e o Gozo do Outro, proposto pelo toxicômano. O autor afirma que se trata de uma passagem ao ato, ou seja, algo de que não se pode falar. Produz-se, diz ele, uma passagem ao ato "quando o locutor tem o sentimento de ter sido abandonado pelo Outro, não recebe mais mensagens, e por razões neuróticas muito específicas, há a necessidade de ressuscitar, de fazer voltar essas mensagens vindas do Outro e que explicam sua volubilidade e sua hipomania." Textos transcritos do seminário realizado em Curitiba, em abril de 2002, publicado em MELMAN, C. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC, 2003, p.140.

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