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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.2 n.3 Barbacena nov. 2004

 

ARTIGOS

 

Epilepsia: concepção histórica, aspectos conceituais, diagnóstico e tratamento

 

Epilepsy: historical notion, conceptual aspects, diagnosis and treatment

 

 

Sebastião Rogério Góis Moreira I,II, *

I Universidade Presidente Antônio Carlos
IIInstituto Superior de Educação Anísio Teixeira / Fundação Helena Antipoff

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com o presente artigo, pretende-se demonstrar como a trajetória da epilepsia é inseparável da trajetória histórica e balizada por conceitos educacionais relevantes, tanto no que se refere ao diagnóstico quanto ao tratamento. É de fundamental importância considerar, também, as dimensões anatomofuncionais dessa doença, sem desconsiderar, no entanto, o conteúdo simbólico e as implicações místicas que sempre estiveram evidentes em torno de sua representação social. O artigo busca demonstrar que a falta de esclarecimento da população em relação à epilepsia causa atitudes discriminatórias a seu portador, comprometendo a melhoria deste, sua inclusão social, e, conseqüentemente, sua qualidade de vida.

Palavras-chave: História da epilepsia, Formação, Conceitos, Diagnóstico, Tratamento


ABSTRACT

This paper demonstrates how epilepsy trajectory is inseparable of its historical path, delimited by relevant educational concepts that are related not only to its diagnostic but also its treatment. Its also paramount to consider the anatomofunctional dimensions of the disease, without downgrading, however, the symbolic content and mystic implications that always surrounded its social representation. This paper demonstrates how the population's lack of knowledge regarding epilepsy motivates discriminatory behavior toward the patient, putting at risk his/her recovery, social inclusion and quality of life.

Keywords: Epilepsy history, Formation, Concepts, Diagnose, Treatment


 

 

Conceitos nunca estão dissociados da conjuntura social, cultural e política. No entanto, nota-se a evolução nos princípios que os definem, pois é a partir das mudanças ocorridas no sistema conjuntural que os conceitos tendem a se transformar. A evolução de um conceito está ligada a mudanças que ocorrem em dada sociedade, sendo variável a intensidade de sua transformação.

Quanto ao conceito específico de epilepsia, vários têm sido os apresentados pela literatura médica. É notável que, mesmo não se tendo definição complementar satisfatória sobre epilepsia, tanto na literatura médica nacional quanto internacional, podem-se encontrar semelhanças entre os diferentes conceitos, sendo importante ressaltar algumas definições já apresentadas pela literatura médica em seu percurso histórico.

Segundo Scliar (1987), as doenças não se traduzem apenas nas repercussões do comprometimento anatômico e funcional do organismo. Desde épocas remotas, verifica-se que as doenças têm um conteúdo simbólico importante. "Doenças são também metáforas [...] a epilepsia se constituía, na Antigüidade Clássica, em "doença sagrada (morbus sacer)".

O mais velho relato detalhado de epilepsia está contido em um manuscrito no Museu Britânico. É um capítulo de um livro-texto babilônico de medicina que resume 40 manuscritos, datados por volta de 2000 a.C. O manuscrito registra, detalhadamente, diferentes tipos de ataques de epilepsia que são reconhecidos hoje. Enfatiza a natureza sobrenatural da epilepsia com cada tipo de ataque, associado com o nome de um espírito ou deus, normalmente do mal. O tratamento era então um assunto espiritual (World Health Organization, 1997).

Mais tarde, conceitos sobre a epilepsia apareceram na Grécia antiga, embora Hipócrates, há 400 anos a.C., tenha sinalizado, por meio de monografia sobre o tema em texto médico, escrito para leigos, que a epilepsia não era nem sagrada nem divina, mas um distúrbio do cérebro, com suspeita de que sua origem fosse hereditária. Ainda se acreditava que a doença estava relacionada a aspectos místicos.

Trimble (1991) apontou que os progressos no pensamento médico até a Renascença foram poucos, identificando como causa a influência grega sobre os escolásticos romanos. O autor assinalou que o centro de aprendizagem se deslocou, no século IX, para o mundo árabe, sendo poucas as idéias novas acrescentadas ao diagnóstico da epilepsia, pois o ambiente social da época, sob égide religiosa, sucumbia o avanço dos estudos da epilepsia numa perspectiva médica.

Segundo Dreifuss (1996, p.21), em 175 d.C., "Galeno não somente reconheceu que se tratava de uma doença do cérebro, mas conseguiu inclusive separar as epilepsias em dois tipos: as de causas desconhecidas e as que eram resultado de outras doenças."

Na Idade Média, muitas foram as perseguições àqueles considerados hereges. Mais especificamente em 1484, no período da Santa Inquisição, essa perseguição atingiu também os loucos e os portadores de crises epilépticas, os quais passaram a ser candidatos às fogueiras pois, na ocasião, pregava-se que toda doença de origem desconhecida devia ser considerada como causada por feitiçaria. Entretanto, é de se considerar que a medicina, até aquela ocasião, não apresentava ainda respostas pertinentes para a doença no que se referia tanto a fatores causais como ao tratamento.

No século XVIII, surgiram conceitos opostos às explicações sobrenaturais e demoníacas para a epilepsia, que perseveraram no decorrer dos séculos, não sendo ainda suficientes para a mudança de concepções, dado o forte estigma ligado à possessão e à evidência da lua, que ainda influenciava corpos humanos com doenças por ela produzidas.

O século XIX foi marcado por muitos avanços nas ciências biológicas. Sob a marca do positivismo, estudos eminentes no campo da filosofia e, conseqüentemente, da neurofisiologia, foram consolidados, repercutindo nos estudos das patologias cerebrais, a epilepsia dentre elas.

Entre autores de relevância no século XIX, que enveredaram pelas investigações da epilepsia, é de se considerar a importância do autor inglês Hughlings Jackson (1835-1911). Segundo Trimble,

"Ele tinha muito a dizer sobre a relação entre epilepsia e desordens mentais, e sua filosofia de função cerebral e como ela era afetada na doença abrangia quatro dogmas principais. Eram eles: a evolução das funções nervosas, a hierarquia destas funções, os sintomas negativos e positivos de dissolução, e a distinção entre dissolução local e uniforme. O cérebro era visto como se desenvolvendo no espaço e no tempo e não era o órgão estático do laboratório patológico. E mais, ele era hierarquicamente organizado, não uma simples coleção de reflexos. Com qualquer lesão, havia dois efeitos: um devido à destruição de tecido, resultando em sintomas negativos; o outro devido à liberação de atividade subjacente de outras áreas sadias do cérebro, causando sintomas positivo." (1997, p.7)

As considerações feitas por Jackson a respeito da epilepsia são apresentadas em concomitância com a doença mental pois, no século XIX, o crescimento do sistema hospitalar psiquiátrico foi considerável. O estigma em relação ao epiléptico era tão intenso, que Griesinger (1857, apud Trimble, 1991) registrou que os asilos, ao considerarem negativos os prognósticos dos portadores de epilepsia, os excluíam, fechando-lhes suas portas.

Neste mesmo século, outros nomes foram expoentes no estudo médico da epilepsia e da doença mental (Pinel, 1745-1826; Esquiroll, 1772-1840; Morel, 1809-1879; Lombroso, 1836-1909, entre outros). Nesses estudos, atrelava-se a epilepsia à insanidade, sendo que, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da ciência médica era beneficiada pelos estudiosos citados, deixavam-se rastros que sedimentavam o estigma da loucura ao portador de epilepsia no seu ambiente social.

Das influências francesas e inglesas sobre o estudo da epilepsia no século XIX, a proeminência médica nos estudos da doença deslocou-se para a Alemanha. As perspectivas dos médicos alemães em relação à epilepsia não foram muito diferentes das dos ingleses e dos franceses, pois os trabalhos realizados então na Alemanha, apesar de acrescidos de estudos sobre o comportamento da pessoa epiléptica, continuaram atrelando a epilepsia à insanidade.

Trimble (1991) considerou que, entre os pesquisadores alemães que marcaram os estudos sobre a epilepsia no século XIX, podem-se reconhecer os nomes de Grisinger (1817-1868), Klapelin (1856-1925), Aschafferberg (1906), Samt (1875) e Savage (1892), entre outros.

Encontram-se, a seguir, algumas conceituações de epilepsia em cronologia histórica que expressam o desenvolvimento conceitual da área.

Gareiso & Escardó (1949, p.22) conceituaram a epilepsia da seguinte maneira:

"A epilepsia é um quadro clínico produzido por uma descarga elétrica súbita, anormal e desordenada dos neurônios. Essas descargas podem compreender uma, várias ou todas as categorias e níveis do sistema nervoso, assim fala de descargas psíquicas, descargas motoras, descargas sensitivas, descargas sensoriais e descargas neurovegetativas, todas as quais são expressão de epilepsia como conceito patogênico e constituem clinicamente as epilepsias."

Gastaut (1973) definiu epilepsia como:

"Uma desordem crônica do cérebro por várias etiologias, caracterizada por crises recorrentes devido à descarga de neurônios cerebrais [...]. Crises epilépticas isoladas ou ocasionais, ocorrendo em doenças agudas, não devem ser classificadas como epilepsia."

Outra definição importante a ser citada é a classificação internacional de síndromes epilépticas, aprovadas pela Liga Internacional Contra a Epilepsia, que foi criada em 1985 e revisada em 1989. Gram (1990, p.17) afirmou que:

"Uma síndrome epiléptica é definida como um distúrbio epiléptico caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas que ocorrem simultaneamente. Essas características incluem tipo(s) de crise(s), etiologia, anatomia, fatores precipitantes, idade de início, severidade, cronicidade, possível ciclismo diurno e circadiano das crises e prognóstico."

Dreifuss (1996) definiu a epilepsia como uma condição em que as recorrentes descargas elétricas no cérebro provocam distúrbios no funcionamento normal do sistema nervoso. O mesmo autor afirma que tais episódios de distúrbios são denominados convulsões, as quais podem ocasionar perda temporária de consciência ou mudanças de comportamento, sendo que as mudanças exatas dependem da área do cérebro que está sendo estimulada pela descarga elétrica.

A epilepsia tem sido, também, descrita por alguns autores mais como uma síndrome do que como uma doença, sendo esta posição muito usada na literatura médica atual para conceituar a epilepsia. Dentro desse conceito, pode-se citar autores de relevância como Guerreiro (1993), que diz ser a epilepsia uma condição crônica, ou um grupo de doenças que têm em comum crises epilépticas que recorrem na ausência de doença tóxico-metabólica ou febril.

Sob a mesma perspectiva conceitual, é notada a abordagem feita por Pupo (1971), ao descrever a epilepsia como uma síndrome, isto é, um conjunto de manifestações clínicas várias que se apresentam em conseqüências de processos mórbidos cerebrais também vários, inteiramente diversos, considerando-se os grupos etários dos pacientes.

Segundo Dumas & Giordano (1993, p.13):

"Uma crise epiléptica é um fenômeno ágil; em geral breve e transitório. É uma crise cerebral que resulta numa descarga excessiva (como uma descarga elétrica) de um grupo mais ou menos vasto de células nervosas chamadas neurônios. Esse fenômeno é resultante de descargas síncrona, anormal e excessiva de uma população de neurônios do sistema nervoso central (SNC)."

Gherpelli & Manreza (1995, p.681) afirmaram que:

"Essa atividade anormal determina uma disfunção de caráter transitório das atividades cerebrais comandadas pela população neuronal acometida, podendo ela se manifestar como um fenômeno positivo (abalos motores, posturas anormais, sensações anormais), negativo (perda da consciência, hipotonia muscular, afasia) ou uma combinação de ambos."

Devem, no entanto, ser considerados os diferentes tipos de crises apresentadas pelos portadores de epilepsia. As crises epilépticas podem ocorrer basicamente nas seguintes situações, de acordo com Gherpelli & Manreza (1995, p.681):

"1) como repercussão de doenças sistêmicas, como febre, distúrbios metabólicos ou intoxicação exógena;

2) associada a um distúrbio neurológico agudo, como infecção do sistema nervoso central, traumatismo craniencefálico, anoxia ou acidentes vasculares cerebrais;

3) espontaneamente, podendo ser sempre: a) única, quando ocorre isolada; e b) recorrente, epilepsia idiopática sintomática criptogenética."

Nos grupos 1 e 2, as crises costumam ser predominantemente do tipo convulsivo, enquanto no grupo 3 podem ocorrer crises de qualquer tipo.

Para Guerreiro (1993, p.11), "crises epilépticas são eventos clínicos que refletem disfunção temporária de uma pequena parte do cérebro (crises focais) ou de uma maneira mais extensa envolvendo os dois hemisférios cerebrais (crises generalizadas)."

Entretanto, observa-se a existência de numerosos tipos de epilepsia e acessos epilépticos, bem como doenças que se assemelham à epilepsia. Estas podem, como os acessos epilépticos, ser caracterizadas por sintomas episódicos e até mesmo paroxísticos. Quando um novo encaminhamento é admitido para exame, ou mesmo ao se rever um paciente que ainda tem acessos, apesar da medicação antiepiléptica, várias possibilidades diagnósticas têm que ser consideradas.

Segundo Bittencourt (1996), a neurocisticercose é identificada como uma das causas mais comuns de epilepsia nos países tropicais. O autor destaca que a epilepsia é a manifestação clínica mais comum da cisticercose, sendo ela ativa ou inativa, nesses países.

Como já foi relatado anteriormente, nem toda convulsão é sinônimo de epilepsia. No entanto, é observado que procedimentos para se chegar ao diagnóstico avançam cada vez mais, identificando-se os múltiplos fatores etiológicos das epilepsias. É de se considerar que, sempre que há suspeita de epilepsia, um dos primeiros exames ainda solicitados pelos médicos é o eletroencefalograma, essencial na grande maioria das vezes.

Muitos avanços no que se refere ao diagnóstico da epilepsia ocorreram no século XX. O descobrimento do eletroencefalograma (EGG), em 1933, por Hans Berger, certamente representou um marco significativo no conhecimento da fisiologia do encéfalo humano e do sistema nervoso. A técnica possibilitou enorme volume de pesquisas desde sua descoberta, algumas de valor inestimável para o diagnóstico das epilepsias (Organização Pan-Americana de Saúde, 1984).

O eletroencefalograma, como aponta Kirby (1996, p.60) é:

"[...] um gráfico que registra a atividade elétrica do cérebro. A atividade elétrica reflete o estado funcional em dado momento. [...] O EEG é uma ferramenta utilizada no diagnóstico de epilepsia e nos episódios de não epilepsia. [...] O EGG pode fornecer dados de comprovação, oferecendo pistas fundamentais quanto ao tipo de convulsão ou convulsões que a criança apresenta."

Apesar de se saber a importância do eletroencefalograma no diagnóstico da epilepsia, é observada uma freqüente demanda nas mais diversas situações. Tanto adultos como crianças, com sintomas de ordem emocional, intelectual e comportamental, têm sido muito freqüentemente encaminhados aos serviços médicos para utilização da técnica eletroencefalográfica.

A criança, por intermédio da escola, tem sido alvo principal desses encaminhamentos, pois, ao canalizar o problema para os aspectos físicos, a escola se isenta do compromisso de refletir sua prática, subtraindo seu desconforto em relação à sua impotência na resolução de problemas gerados na criança, muitas vezes, pelo próprio ambiente escolar.

Camargo (1993, p.124-125) chamou a atenção para outros dois novos recursos no auxílio do diagnóstico da epilepsia:

"Chamado SPECT cerebral (Single Photon Emission Computed Tomography) esse exame tem beneficiado bastante o diagnóstico da epilepsia. Nos pacientes epilépticos, o estudo pode ser feito na fase ictal, e o que se observa é um aumento focal ou regional da concentração do radiotraçador na área responsável pelas crises convulsivas. Na fase interectal esta mesma região mostrará hipoconcentração do material radioativo [...] para detecção dos focos causadores das crises convulsivas, variando com o tipo radioativo utilizado e com o tipo de equipamento."

Esse mesmo autor apresentou outro recurso no auxílio do diagnóstico da epilepsia, denominado PET (Positron Emission Tomography):

"Esse exame é mais complexo do ponto de vista técnico. Para se fazer esse tipo de estudo, é necessário que, além de uma câmera de cintilação PET mais complexa, exista um cicloton no laboratório ou nas suas vizinhanças para a produção e uso imediato de radioisótopos de meia vida física muito curta [...] Observa-se concentração de glicose na área, na fase interictal. Modalidades anatômicas, como a tomografia computadorizada e a ressonância nuclear magnética, geralmente mostram imagens normais nessas áreas."

Completando os avanços da neurociência no que diz respeito aos recursos diagnósticos, como as técnicas acima descritas, pode-se mencionar a Ressonância Magnética. Segundo Marie (1993, p.127):

"A introdução do método de Ressonância Magnética (RM) em nosso meio, desde 1986, tem permitido o estudo mais acurado das patologias do Sistema Nervoso Central. RM é uma nova técnica de obtenção de imagens digitalizadas, que permite estudar especialmente as partes moles com mais detalhes do que a tomografia computadorizada (TC) e não utilizando radiação, evitando, portanto, os artefatos por difração de raios-X nas estruturas próximas do osso."

Ao descrever as técnicas hoje existentes para diagnóstico da epilepsia, fica patente o avanço da neurociência nos últimos anos. O diagnóstico é um princípio importante para que se possa melhorar e até caminhar para a cura total da epilepsia. Mas é a partir da precisão dele que se pode nortear qual a melhor adequação na terapêutica medicamentosa a ser ministrada no tratamento. Entretanto, não se podem desconsiderar as ações preventivas. Como exemplo, destacam-se as ações relatadas pela Divisão de Saúde Mental da Organização Mundial da Saúde, que esclarecem quais cuidados com os epilépticos devem ser parte integrante da estratégia dos serviços que se ocupam da saúde primária. A Divisão de Saúde Mental afirma que os elementos fundamentais para um plano de ação centrado nos problemas causados pela epilepsia são:

a) formulação de uma política;

b) introdução de medidas de prevenção e de tratamentos da epilepsia e da readaptação de pacientes epilépticos;

c) educação sanitária junto à comunidade;

d) formação de profissionais de saúde em todos os níveis;

e) controle e avaliação do progresso do programa.

Segundo Dreyer (1971), a história das medicações anticonvulsivantes data do século passado. Em 1857, Locock reconheceu a ação anticonvulsiva do bromo e, em 1912, Hauptmann, a do fenobarbital. Mas foi somente em 1945 que Toman e Taylor chegaram à conclusão de que, por múltiplas razões biológicas de caráter teórico ou prático, não era possível desenvolver um antiepiléptico que controlasse todas as formas de crises e que fosse útil para todos os epilépticos.

As drogas anticonvulsivantes confiáveis são fundamentais no sucesso do tratamento das epilepsias, sendo porém importante a educação dos pacientes e da família no que diz respeito à participação dos mesmos na adequação do tratamento.

É de se considerar que o tratamento medicamentoso é o principal recurso terapêutico para a maioria dos casos de epilepsia. Segundo Gherpelli & Manreza (1995, p.684):

"Compreende que a eficácia terapêutica dependerá da utilização da droga adequada ao tipo de crise, da prescrição da dose para manter um nível adequado ao tipo de crise, da prescrição da dose para manter um nível adequado no seu sítio de ação no SNC, e na ingestão e retenção da mesma pelo paciente."

Não se pode desconsiderar que, mesmo as drogas antiepilépticas (DAE) tendo importância fundamental no tratamento das epilepsias e, mais especificamente, no controle das convulsões, são freqüentes seus efeitos colaterais. Segundo Bittencourt (1994, p.63), "drogas antiepilépticas têm vários efeitos terapêuticos e indesejados no paciente epiléptico."

Nesse sentido, Brodie (1990, p.59) ressalta que:

"Durante a década passada, houve crescimento das informações sobre a relação risco/benefício de cada um dos agentes antiepilépticos, influenciando, assim, as estratégias terapêuticas. A concepção de que a politerapia farmacológica não confere benefícios superiores aos da monoterapia em aproximadamente 90% dos pacientes epilépticos, deve ser considerada como uma conquista conceitual. Todas as drogas anticonvulsivantes podem afetar de forma adversa a função psicomotora e cognitiva, e há evidências crescentes de que a redução da politerapia pode, com freqüência, melhorar o bem-estar e a qualidade de vida, sem causar deterioração no controle das crises."

No que diz respeito à medicação anticonvulsivante, o fenobarbital é um dos medicamentos mais consumidos no controle das convulsões epilépticas até nossos dias, pelo seu baixo custo, alta disponibilidade e pela facilidade de uso. Vale lembrar que o primeiro dos anticonvulsivantes data de 1912. Como aponta Gram (1990), o principal obstáculo ao uso do fenobarbital são seus efeitos adversos sobre as funções cognitivas e o comportamento, como fadiga e desatenção, percebida mais freqüentemente em crianças com comportamentos hipercinéticos e agressivos. Gram cita ainda alterações do humor, memória e aprendizado, extensivos também aos pacientes idosos.

Segundo Jallon (1996, p.8):

"A evolução clínica da epilepsia, em países em via de desenvolvimento, é particularmente interessante do ponto de vista epidemiológico; diante da hipótese, em tais países, menos de 15% dos pacientes com epilepsia têm acesso à terapia antiepilética e, quando têm, a terapia medicamentosa é baseada no fenobarbital; outras medicações antiepilépticas (fenetoína, carbamazepina ou ácido valpróico) são muito pouco utilizadas nesses países por motivos econômicos."

O fato de se ater ao fenobarbital não significa a exclusão de tantas outras drogas antiepilépticas que circulam no mercado farmacêutico. Mas deve-se levar em conta que, em nosso meio, a presença do fenobarbital é prevalente na maioria da população epiléptica, tanto adulta como infantil.

Deve-se registrar também que, ao se resgatar os avanços dos estudos da epilepsia do ponto de vista médico, poucas são as considerações sobre a mudança dos preconceitos em relação à doença. Mesmo sendo crescentes os avanços atingidos pela neurociência, nota-se que a epilepsia - como uma doença bastante comum em nosso meio, que atinge pessoas de diferentes faixas etárias, raças ou classe social - ainda é marcada, infelizmente, por idéias controvertidas que acabam interferindo na compreensão da doença, levando o epiléptico a sofrer rejeição de vários segmentos da sociedade.

Aspectos sociais, culturais e históricos são de importância fundamental no surgimento e permanência de preconceitos. A epilepsia, mesmo cercada por tantos avanços no que se refere aos aspectos médicos, é ainda refém de preconceitos que de há muito vêm prejudicando a melhoria dos padrões de ajustamento da criança e do adulto em seu ambiente social.

É notável como os preconceitos em relação ao epiléptico foram delineados desde tempos remotos, não estando excluídos nos dias atuais. A falta de esclarecimento sobre a epilepsia é ainda hoje um dos fatores determinantes da permanência de preconceito na sociedade contemporânea, persistindo em determinadas regiões do mundo atitudes discriminatórias em relação ao epiléptico, tal qual existiam no passado.

Como aponta Dumas & Giordano (1993, p.10):

"Dentro de numerosas regiões da África, o epiléptico é ainda hoje muito malvisto, a epilepsia é considerada como uma doença contagiosa, e a pessoa não pode ser tocada particularmente até que termine a crise. Como um leproso, ele é obrigado a viver dentro de uma casa isolada, em uma cidade, permanentemente solteiro."

Esse exemplo não isenta outras sociedades do preconceito, em níveis e maneiras diferentes em relação à epilepsia, doença que ainda se liga a diferentes formas de rejeição, mesmo em sociedades mais evoluídas.

Em pesquisa realizada por Guerreiro (1994) a respeito da qualidade de vida do epiléptico na infância, descobriu-se que os aspectos sociais e escolares não se alteraram significativamente após a criança ter se tornado epiléptica. Isso se deu, segundo os pesquisadores, em conseqüência da natureza benigna da doença em muitos indivíduos, da presente casuística e do bom relacionamento médico-paciente estabelecido quando a atenção médica foi constante e as informações foram fornecidas detalhadamente a seus pacientes.

Esse exemplo vem reforçar a importância que deve ser dada ao aspecto informativo no tratamento da doença, tanto ao paciente como aos seus familiares e à sociedade em geral, contribuindo para que novas concepções desprovidas de preconceito se instalem, o que melhora a qualidade de vida do epiléptico e deixa para trás conceitos equivocados sobre a doença.

Román & Senanayake (1993), investigando aspectos da epilepsia como um importante problema de saúde pública da América Latina, identificam a falta de reabilitação vocacional para a reintegração do paciente na sociedade. Acreditam que o problema é gerado pelas atitudes da população pobre e pela ignorância. Afirmam também que, mesmo nas regiões mais desenvolvidas do continente, a epilepsia está associada ao preconceito, ao medo e ao estigma, sendo comum a prevalência, nas zonas rurais, dos meios sobrenaturais como forma de tratamento.

Quanto aos problemas de ordem social que o epiléptico enfrenta, considera-se que o início do preconceito se instala no próprio ambiente familiar, no qual são muitas as fantasias em relação à doença, desencadeadas pelos seus membros que, a partir de sentimentos emergentes de frustração, apreensão, vergonha, ansiedade e desesperança, desencadeiam comportamentos ambíguos que vão da rejeição explícita à superproteção.

Por outro lado, pelo próprio medo de ser discriminado, o epiléptico tende a negar sua doença até para pessoas mais próximas, numa tentativa de evitar ser questionado sobre sua condição. Cavalheiro (1988), porém, acredita que só a franqueza seria capaz de melhorar as condições dos que têm epilepsia. Afirma ainda que, se figuras conhecidas socialmente assumissem em público sua condição de portadores de epilepsia, demonstrariam que a epilepsia não as impediu de se tornar o que são: atores, esportistas, intelectuais, políticos. Estariam oferecendo precioso auxílio a todos os que sofrem discriminação.

 

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Endereço para correspondência
Sebastião Rogério Góis Moreira
Praça Presidente Antônio Carlos, 8 - São Sebastião
36202-336 Barbacena - MG
Tel: +55-32-3693-8923

E-mail: moreira@bhnet.com.br

Recebido em 17/09/2004

 

 


* Psicólogo, doutor em Psicologia pela PUC-Campinas. Coordenador do mestrado em Educação e Sociedade da UNIPAC, é também professor titular do Instituto Superior de Educação Anísio Teixeira / Fundação Helena Antipoff.

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