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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.2 n.3 Barbacena nov. 2004

 

RESENHAS

 

Nicandra Gonzalez I,*

I Universidade Presidente Antönio Carlos

 

 

ÁVILA, Lazslo Antonio. O eu e o corpo. São Paulo: Escuta, 2004. 208p. ISBN 85-7137-231-4.

Lazslo Antonio Ávila, psicólogo e psicanalista, pós-graduado pela USP, é professor adjunto da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto. Membro do Núcleo de Estudos da Saúde Mental, é autor de Doenças do corpo e da alma (São Paulo: Escuta, 1996) e Isso é Groddeck (São Paulo: EDUSP, 1998).

Comprometido com o processo de pesquisar, compreender, aprender e expressar, Lazslo Antonio Ávila viu-se na necessidade de encontrar um modelo conceitual e clínico que o permitisse ir além da descrição dos sintomas psicossomáticos e de sua abordagem terapêutica para buscar a compreensão da forma de construção desses sintomas.

O eu e o corpo relata os resultados dessa pesquisa, realizada na Universidade de Cambridge (Inglaterra), onde Lazslo trabalhou com German Berrios, participando do desenvolvimento de um novo modelo que auxiliasse o entendimento da gênese dos sintomas psicossomáticos e o tratamento dos mesmos via psicoterapia. É um livro que enaltece a importância da abordagem das questões emocionais, estimula outra postura do clínico nos casos abordados com mais freqüência nos ambulatórios, que são de origem somática, o que evita cronificações somatiformes e ou/psicossomáticas, consultas e exames desnecessários, pois leva em conta que as reações emocionais e psíquicas do paciente podem ser mitigadas por meio da "escuta" e da atenção às emoções que acompanham as doenças orgânicas como agravante ou conseqüência.

Descreve a realidade da medicina psicossomática e o processo de "naturalização" que remove a significação dos sintomas chamados de inexplicáveis pela recusa da subjetividade. O pressuposto:

"A convicção de que o corpo é matéria e a mente é substancialmente sem substância provocou como conseqüência o afastamento dos médicos da pessoa, separando corpo e mente. O corpo que a medicina trata é, em geral, apenas corpo-organismo, corpo biológico, des-subjetivado e considerado no ato médico apenas matéria. O sujeito se retira da cena médica, e permanece apenas um 'paciente'." (Clavreul, 1983)

As ciências naturais envidam todos os esforços à exclusão da subjetividade. Seu propósito tem se resumido apenas a explicar, prever e controlar, modalidades dominantes no saber científico. Tudo e todos podem ser objetos. A ciência que se desvincula, cada vez mais, dos problemas vitais do homem, de sua dimensão histórica e social, dicotomizando mundo interior x mundo exterior, sem considerar que a subjetividade permite níveis diferentes de objetividade, visto que o objetivo foi antes subjetivo. Interrogar e compreender a subjetividade de um paciente é sinônimo de transcendência.

O livro de Ávila é dividido em cinco capítulos. Na introdução, o autor narra os primórdios da psicossomática, a situação da medicina após Descartes e a situação do corpo, hoje vítima da somatização, cujos aspectos mentais e subjetivos são isolados e relegados às categorias psiquiátricas. Relata o caso do escritor tcheco Franz Kafka, a devastação de seu organismo pela tuberculose apontando para o subjetivismo, manifesto até nas situações mais extremas.

Para melhor compreensão, o livro traz um resumo dos transtornos somatoformes, somatizações e doenças psicossomáticas. De acordo com o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV), o transtorno somatoforme se constitui num grupo de enfermidades psiquiátricas cuja essência são os sintomas físicos sem base médica constatável e a persistência, nas queixas, para a sugestão de alguma doença orgânica ou física, associadas à busca de assistência médica.

O transtorno de somatização se expressa sobre a forma de queixas físicas e de sintomas múltiplos que envolvem diversos sistemas orgânicos. Pacientes queixam-se de dores, fadiga, dificuldades respiratórias e cardiovasculares, como palpitações, taquicardias e dores no peito. Todos esses sintomas se apresentam na ausência de patologias orgânicas constatáveis, embora não esteja garantida sua total ausência, já que as doenças físicas podem se apresentar em co-morbidade com a somatização. Quadros psiquiátricos de depressão e ansiedade estão freqüentemente associados à somatização. Dor e queixas hipocondríacas são comuns. Os sintomas são recorrentes, mutáveis e, na maioria das vezes, associados a rompimentos duradouros do comportamento social, interpessoal e familiar.

Nas doenças psicossomáticas, ao lado da queixa, surge alguma alteração orgânica como conseqüência dos processos psicológicos e mentais do indivíduo desajustado das funções somáticas viscerais e vice-versa. Os distúrbios emocionais desempenham papel importante nas doenças psicossomáticas, precipitando o início, recorrência, agravamento e transformação em doenças crônicas.

No primeiro capítulo, Ávila relata o atendimento a 12 pacientes no Ambulatório de Cardiologia do Hospital de Base da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto que apresentavam sintomatologia cardiovascular. Os pacientes foram examinados clínica e laboratorialmente, entrevistados e convidados a descrever seus sintomas. O material coletado nas entrevistas foi analisado e confrontado com o "modelo de Cambridge". O histórico de todos os pacientes apontou um elemento comum, desencadeador dos processos sintomatizadores na forma de patologia cardíaca: a questão da perda, tenha sido ela de caráter real ou simbólico.

Mudanças na vida pessoal, morte, rompimento de laços afetivos, do desempenho de um papel na família (que constituíam a base da auto-estima), fracasso profissional e nas funções sociais mostram o eu (self) afetado manifestando-se sintomaticamente.

As principais antropologias do self, que permitem abordar as interações do corpo e da mente, a emoção e o pensamento, concebidos de maneira não-dicotômica, são analisados no segundo capítulo. O autor discorre sobre pesquisas antropológicas realizadas em diferentes culturas, com destaque para as vivências "psíquicas" e as representações sociais, balizas importantes para o modelo de Cambridge.

A seguir, no capítulo três, a discussão filosófica da relação mente-corpo abre uma perspectiva psicanalítica sob o prisma da dualidade subjetivo versus objetivo. O debate centra-se na obra Sobre homens e morcegos, do filósofo contemporâneo Thomas Nagel. Ao especular como seria ser um morcego, Nagel interroga o paradoxo do acesso a uma diferente forma de consciência.

No quarto capítulo, a importante abordagem sobre o adoecer e os múltiplos enigmas que os sintomas psicossomáticos guardam, com três poemas embasando a discussão de Ávila: As contradições do corpo, de Carlos Drumond de Andrade, Pessoa (um, muitos), de Fernando Pessoa e Células cancerígenas, de Harold Pinter.

O homem-sem-corpo é um dos temas apresentados no quinto capítulo, no qual Ávila retoma o debate sobre somatização, trazendo dados de pesquisas empíricas atuais, que demonstram a prevalência de fatores psicossociais nas somatizações, transtornos somatoformes e diversas patologias psicossomáticas, o que contribui para ampliar o raio de análise do modelo de Cambridge nas aplicações médicas e de saúde mental.

O eu e o corpo é um convite ao leitor para o entendimento das doenças psicossomáticas, das somatizações, dos transtornos somatoformes e da relação corpo e mente. Abordagem importante e atual, que nos leva à reflexão sobre as dimensões da subjetividade.

 

 


* Aluna do 4o ano do curso de Psicologia da UNIPAC-Ubá.

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