SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.2 número3 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.2 n.3 Barbacena nov. 2004

 

RESENHAS

 

 

Thomyres Teixeira Costa I,*

I Universidade Presidente Antönio Carlos

 

 

QUEIROZ, Edilene Freire. A clínica da perversão. São Paulo: Escuta, 2004. 184p. ISBN 85-7137-234-9

Edilene Freire Queiroz é psicóloga, psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa de Estudos Pós-Graduados na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É docente da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), onde fundou e colabora com o Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise. Membro da Rede Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, editora do Latin American Journal of Fundamental Psychopathology on line, é autora de livros e artigos, publicados na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental e na Symposium, ambas da Unicap. Pela Escuta, publicou também Pesquisa em Psicologia Fundamental (2002).

Em A clínica da perversão, Queiroz nos apresenta o discurso perverso como marcado por características bastante peculiares, em que a palavra adquire mais a função de mostração do que de representação. Apoia-se em elementos que subsidiam a construção de uma clínica possível da perversão.

Para tanto, focaliza sua atenção nas características da clínica, o que identifica (caracteriza) o discurso perverso, dando-lhe conotação de realce quanto à sua produção pelo sujeito, sem, contudo, tomar como referência o discurso de sujeitos com traços de perversidade, visto ser a Verleugnung (o desmentido, a recusa) o referencial que aproxima o discurso perverso e o discurso do perverso.

Procurando verificar a relação da Verleugnung com a produção discursiva do analisante, e suas conseqüências na escuta, seja no discurso perverso ou no discurso do perverso, buscou fornecer elementos importantes para a compreensão do discurso perverso.

A análise dos fragmentos dos casos clínicos permitiu, além do estudo das formas de interferência da Verleugnung (o mecanismo de defesa do perverso), o uso da palavra e do corpo para expressar o ato de dizer e a busca, diante das peculiaridades encontradas, de novos dispositivos na escuta analítica. Conseqüentemente, encontrou-se a definição de uma estrutura clínica na diversidade estrutural do que foi apresentado. O perfil de cada um está caracterizado pela reunião de traços estruturais próprios.

Para Queiroz - que, ouvindo as histéricas, a exemplo de Freud, reuniu material para criar uma teoria sobre a neurose e um método para com ela trabalhar (e também como Lacan, que avançou nos estudos da clínica possível da psicose ouvindo psicóticos) - pesquisar a natureza do discurso perverso produzido na clínica é buscar um caminho para tornar possível o estudo da clínica da perversão.

A clínica da perversão é um trabalho elaborado em três etapas, distribuído em seis capítulos, que nos possibilita conhecer, além da pesquisa que lhe dá sustentação, um tipo de discurso no qual a palavra se torna limitada na função de representar.

O livro nos permite conhecer o pensamento e as contribuições de vários pesquisadores e profissionais da área. Para tal, Edilene Freire Queiroz - além de sua experiência, faz uso de farto e rico material bibliográfico - se fundamenta em conceitos freudianos e lacanianos, aproximando-nos da psicopatologia fundamental por meio de Pierre Fédida, Fleig, Francisco Martins, entre outros. Destaca as recentes contribuições de Contardo Calligaris e Carlos Augusto Peixoto Júnior, que retira a perversão do desvio sexual, situando-a no campo das relações sociais; relaciona os trabalhos de Piera Aulagnier, René Major e Francisco Duparc, direcionados a uma análise da fenomenologia do discurso. A mitologia e a literatura de Sade são também convocadas para o entendimento do comportamento humano.

Primeiramente, o texto de Queiroz contextualiza a pesquisa no referencial epistemológico da psicopatologia fundamental e sua natureza intercientífica, que permite a interação de diversos recursos no âmbito do patológico e realça a significação do termo pathos. A pesquisa é substanciada com análise de fragmentos de casos clínicos dos analisantes, destacando a forma discursiva, o modo de relatar, de vivenciar o dito nos fenômenos produzidos nessa discursiva. A análise vista como um trabalho, um processo de construção realizado e vivido não só pelo analisante, mas também pelo analista, que num papel mais ativo cria e fornece ferramentas e instrumentos de indagação, exploração e pesquisa do que inquieta, obceca, escapa no resgate do passado e na busca do analisante.

Nos outros capítulos, a autora introduz fundamentos da pesquisa e estabelece para o termo perversão delimitação diante dos seus significados. A isenção de preconceitos nesse conceito fundamenta-se em Freud, numa ampla literatura psicanalítica sobre o trabalho da análise e o pensamento de Lacan desenvolvido a partir de Freud. Um dos aspectos da organização perversa, a relação com o próprio corpo e o corpo do outro, é discutido fundamentando a representação do corpo no processo da análise. O corpo assujeitado do perverso, o lugar, o significado que ele ocupa no discurso, na relação sujeito-Outro do perverso. Não só o conceito metapsicológico, como os mecanismos básicos do aparelho psicológico, mas também o efeito da Verleugnung e sua negativa são trabalhadas. Numa ampla discussão, o discurso perverso aparece como prevalente ao representar, seja por meio da linguagem, da fala, do corpo. O discurso perverso é analisado e qualificado naquilo que o leva a adquirir essa natureza. O corpo que expressa o que só as palavras não conseguem exprimir. O papel do analista não só na escuta, diante da mostração, mas diante da escuta-olhar, um discurso em que o corpo fala tanto ou mais que as palavras e busca com este olhar o significado da mostração.

A Clínica da Perversão apresenta ao leitor a necessidade de uma clínica da perversão diante das peculiaridades da discursiva perversa. Acrescenta ao estudo da perversão significativa contribuição mediante a junção da limitação de obras neste assunto e das discussões recentemente realizadas em torno do tema, presente em vários casos clínicos. A implicação das mudanças advindas e na contemporaneidade, período no qual a ausência do limite, da repressão social e a transgressão diária embasam um discurso social com características de um discurso perverso, fazendo surgir novos comportamentos que se evidenciam na discursividade do perverso.

O pesquisador e o profissional que encontram no questionamento ao que está dado caminhos a percorrer, mudanças a realizar em busca de soluções, sem medo dos desafios, estão inseridos numa ampla discussão, que se pauta pela necessidade de novos dispositivos psicanalíticos, de outras posições diferentes daquelas mantidas pela análise clássica, estendendo esses limites para além do verbal. Como trabalhar simultaneamente com a representação do significante (a palavra) e do corpo, já que o perverso se serve daquela da mesma forma que se serve deste, pois considera ambos como recursos para se mostrar.

Ao propor mudanças no processo psicanalítico, em se tratando do perverso como analisante, a autora lança o desafio de se aceitar o aprendizado do escutar-olhando. O olhar do analista, como coadjuvante da palavra, indica os momentos em que o corpo entra no discurso como meio de mostrar algo significante. O corpo se mostra como discursiva a ser interpretada.

Na forma como se expressa, Edilene Freire Queiroz traz não só informações e comentários de suas pesquisas, experiências, pareceres e fundamentos. Ela vai mais além: envolve o leitor em sua dinâmica discursiva, tornando-o atuante nas discussões. Como pesquisadora que é, nos fornece material que, assim como informa e inquieta, desperta para a busca de novos caminhos e o decorrente envolvimento coma a pesquisa. Sua obra revaloriza o caráter pesquisador do analista e fundamenta o compromisso desse profissional não só com seu analisante, mas também com a ciência.

 

 

* Aluna do 4o ano do curso de Psicologia da UNIPAC-Ubá.

Creative Commons License