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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.3 n.4 Barbacena jun. 2005

 

SESSÃO CLÍNICA - ACOLHIMENTO E TRATAMENTO DA PSICOSE EM INSTITUIÇÕES

 

Discussão x construção do caso clínico

 

Discussion x clinical case construction

 

 

Renata Dinardi Rezende Andrade*

Fundação Mineira de Educação e Cultura - FUMEC

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Acerca de quatro anos é realizada, no Instituto Raul Soares, a Sessão Clínica - um espaço destinado à discussão dos casos clínicos. Esse espaço para discussões semanais é uma estratégia de intervenção na instituição e de construção dos casos clínicos. Os casos considerados mais difíceis, que apontam à instituição o seu limite de resposta, vão à sessão clínica, que tem como método de trabalho a entrevista com o paciente e ou a apresentação do caso pela equipe. Inspirada no trabalho de Lacan, a Sessão Clínica traz a marca da articulação entre psicanálise e instituição: a psicanálise é aplicada considerando a dimensão singular de cada caso, o que implica no favorecimento de sua construção e na atuação da equipe de acordo com a lógica da prática feita por muitos. Neste artigo será trabalhada, a partir desta experiência, a noção de discussão em contraposição à construção do caso clínico.

Palavras-chave: Construção do caso clínico, Discussão do caso clínico, Prática de muitos, Ato clínico, Caso social, Saber do paciente, Psicanálise, Instituição.


ABSTRACT

For four years, is has being executed at Raul Soares, the IRS Clinic Session: There is a place designed to discuss the clinical cases. This place of weekly discussions, is an strategy of intervention in the institution an in the Construction of the Clinic Case. The case, which are considered the most difficult and which requires from the institution an answer, attend the Clinic session, which has as approach an interview with the patients as well as a presentation of the case by the group responsible for the patient. Inspired by the work of Lacan, the clinical session brings the mark of the institution psychoanalysis articulation: Psychoanalysis, applied bringing a singular dimension of each case, trying to make it favorable to construct each case and making it possible for the group to act accordingly to the practical logic done by many. In this article will be worked, from this experience, the notion of the discussion in counter- balance to the construction of the clinical case.

Keywords: Clinical case construction, Clinical case discussion, Practices of many, Clinical act, Social's case, Patient's knowledge, Psychoanalysis, Institution.


 

 

Ao operar na lógica do discurso médico1, a instituição psiquiátrica se coloca em um lugar de saber sobre os seus pacientes. Objeto deste saber, os pacientes são inseridos na lógica das discussões clínicas e dos casos sociais. Caso social, termo proposto por Carlo Viganò (1999) para fazer oposição ao caso clínico, é a construção baseada num saber outro que não o do paciente, e que aponta para o manejo institucional. Caso clínico é o resultante da construção do próprio paciente, de seu trabalho subjetivo.

Como tentativa de romper a lógica das discussões clínicas e dos casos sociais inaugurou-se no IRS2, há quatro anos, um espaço de conversa, uma sessão clínica, onde o saber que se privilegia é o do paciente. Ao operar com a construção do caso clínico3 a sessão clínica do IRS aponta a construção do próprio sujeito a partir de sua singularidade.

Neste artigo pretende-se desenvolver a idéia de construção do caso clínico em contraposição à discussão do caso clínico, utilizando um breve relato de caso.

Trago o caso de Gustavo para pensarmos uma lógica de trabalho que foi apreendida através da singularidade do sujeito, tendo em vista a construção do caso clínico.

Gustavo é um sujeito psicótico, de 28 anos, solteiro, filho caçula de uma prole de três, pai falecido. Inseriu-se na rede de saúde mental aos seis anos. Desde a infância apresentava dificuldades de relacionamento; não se interessava por brincadeiras e se mantinha distante das pessoas. Criava constantemente personagens e estórias de super-heróis e mantinha um interesse fixo em contá-las e desenhá-las. Acreditava que seus desenhos um dia seriam publicados, quando, então, se tornaria rico e famoso. O tema dessas estórias referia-se à luta entre o bem e mal. Gustavo se colocava sempre ao lado do bem, do vencedor. Apropriava-se das estórias dos super-heróis e estabelecia uma justaposição entre a sua história de vida e as estórias deles.

Como uma forma de circular pela cidade, Gustavo entrava em estabelecimentos comerciais, onde oferecia seus desenhos para vender. Desta maneira, Gustavo se sustentou até os 28 anos sem nenhuma internação psiquiátrica.

Em 2003, Gustavo é encaminhado para a internação psiquiátrica por um serviço aberto da rede de saúde mental, ao qual estava inserido desde os dezoito anos, com indicação clínica para uso de eletroconvulsoterapia - ECT. A indicação do procedimento foi feita devido aos efeitos colaterais pelo uso de antipsicóticos típicos e atípicos4, assim como pelo grave quadro de ansiedade, exaltação do humor, acompanhado de freqüentes episódios de agitação psicomotora apresentados pelo paciente. Esse quadro aponta para o limite da conduta médica, na medida em que as indicações medicamentosas eram sempre insuficientes para a melhora do paciente. Dessa forma inaugura-se sua primeira internação psiquiátrica, ordenada pelo discurso médico. A internação durou cerca de oito meses. É importante demarcar que esse não foi o tempo do paciente, mas da equipe; tempo tencionado por uma resistência da equipe na desconstrução de um saber.

Não foi sem dificuldades que uma outra lógica pôde dar lugar àquela em que o tratamento de Gustavo era anteriormente conduzido. Não se trata de excluir o discurso médico ou de prescindir da prescrição medicamentosa, mas de levar em conta, como desenvolverei adiante, aquilo que o saber já constituído exclui: o que há de mais singular no paciente.

Para essa elaboração, será tomado como referência o seminário teórico realizado na Sessão Clínica do IRS em junho de 2002. Nesse seminário, Wellerson Alkimim propõe três pontos para pensarmos a diferença entre a discussão do caso clínico e a construção do caso clínico: o lugar do profissional na equipe, a posição investigativa e o ato clínico.

 

1- Lugar do profissional na equipe

Na discussão do caso clínico, o que impera é o discurso do saber já constituído, da investigação científica e da moral sobre o caso. Ostenta-se a lógica de "quem sabe mais pode mais". Prevalece o status do profissional, ora representado pela figura do coordenador, ora de um médico ou de qualquer outro técnico que se coloque nesse lugar de saber. A discussão caminha para a universalização; o enfoque dado é o saber sobre o paciente. Os técnicos atuam de acordo com a sua especificidade, com o seu entendimento sobre o caso e com um saber pronto. Não há uma lógica única para o caso.

Já a construção do caso clínico implica em compor a história do sujeito, partindo do princípio de que a equipe que o acompanha nada sabe a seu respeito. O lugar que cada técnico ocupa na relação com o paciente é interrogado pela própria equipe. A decisão de uma condução não é tomada pela maioria; não se trata de uma decisão democrática; a autoridade clínica5 passa a ser o saber do paciente - este é o saber focalizado na construção do caso clínico.

Antônio Di Ciaccia nos lembra que o paciente é o verdadeiro mestre de ensinamentos sobre o saber e sobre a estrutura do inconsciente.6 Trata-se de um trabalho de recolhimento das passagens subjetivas que possam apontar a relação do sujeito com o Outro, assim como pontos de desestabilização, desencadeamento, repetição, que permite a equipe que o acompanha operar em uma lógica de trabalho na qual o próprio paciente nos dirá qual é a direção de sua cura. Neste sentido, todos os técnicos passam a operar de forma articulada.

 

2- Posição investigativa

A discussão do caso clínico propõe a investigar as causas, as formas de apresentação e a intensidade dos sintomas, enfocando novamente o comportamento. O objetivo é eliminar a sintomatologia da doença, buscando aproximar o sujeito da normalidade.

Na construção do caso clínico as causas, as formas de apresentação e a intensidade dos sintomas também são importantes, mas não nos atemos somente a esses pontos. Segundo Carlo Viganò, construir o caso clínico é colocar o paciente em trabalho, registrar seus movimentos e recolher as passagens subjetivas que contam, para que a equipe esteja pronta para escutar a sua palavra, quando ela vier. É compor a história do sujeito e de sua doença, delimitando assim, os fatores que precipitaram a doença, buscando reconhecer os pontos mortíferos, os pontos de repetição, os tratamentos realizados, e as saídas que o próprio sujeito tem desenvolvido para lidar com seu sofrimento. A construção serve para operar o deslocamento do sujeito dentro do discurso. É necessário reativar a relação do sujeito com o Outro, de forma que essa relação possa se sustentar na realidade.

A partir da história do sujeito, apreendemos a sua relação com o Outro e como esse sujeito interpreta o mundo. O objetivo é intervir na relação do sujeito com o Outro e em seu modo de gozo, possibilitando alguma mudança subjetiva.

Desta forma, os efeitos colaterais causados pela medicação, reproduzidos por Gustavo, tomam outra dimensão quando são entendidos como uma forma de prender a atenção dos profissionais. Os tremores eram freqüentes e com eles vinham as agitações e a falta de implicação diante dos atos. Tais episódios demonstravam um contentamento em ocupar um lugar de destaque, sustentado em suas atuações e em frases repetidas: "O meu caso é grave, é muito grave". Do destaque ao ataque emergiam o sujeito e algumas perguntas para a equipe do IRS: O que faz este sujeito aparecer? O que motiva suas agitações? Do que ele sofre?

A partir das frases repetidas, Gustavo é incentivado a localizar o que antecede os seus atos. Neste contexto, cabe grifar a fala que escapa em uma das entrevistas realizadas com sua mãe, Dona Maria, que disse: "Deixei de ter um homem para ter Gustavo". Essa frase permitiu à equipe entender a lógica das respostas dadas pelo paciente frente ao desejo do Outro. Gustavo faz, a todo momento, um pedido de aproximação excessiva. Podemos verificar isso quando ele quer, a todo custo, colocar-se em destaque. Ao mesmo tempo, se o Outro responde colocando-o nesse lugar, isso se torna insuportável para ele e, no momento seguinte, desencadeia-se uma crise como uma tentativa desesperada de distanciamento.

Testemunhamos inúmeras tentativas de separação feitas por Gustavo em resposta ao Outro materno. Uma delas se deu após a liberação da equipe para passar um final de semana em casa. Gustavo deixa o hospital em companhia da mãe e retorna dois dias depois, conforme o acordo feito, porém desacompanhado. Chega contando que dormiu uma noite fora de casa, pois havia reencontrado uma antiga namorada. Gustavo não foi o primeiro a dar essa notícia à equipe. Sua mãe já havia se adiantado e, com base nessa antecipação, ele tem o pátio externo cortado e sua restrição à unidade indicada. A mãe se antecipa e a equipe também...

Num ato de punição, a equipe intervém a partir do discurso moral, (levando em consideração a fala do Outro sobre o paciente, nesse caso o Outro materno, objeto visado da sua tentativa de separação, ou melhor, de distanciamento mínimo) e não a partir do cálculo clínico, que nesse caso, seria sustentar com o paciente sua opção de afastar-se, o mínimo que fosse, da condição de "cola" com a mãe (não o colocando como objeto da fala do outro).

 

3- O ato clínico

Na discussão do caso clínico, o que prevalece no ato clínico é a história factual do sujeito: ele é esquizofrênico; logo necessita de medicação para redução dos sintomas, tem habilidade com o desenho, então vamos encaminhá-lo para algum lugar onde isso possa ser trabalhado, quem sabe uma exposição...

A construção do caso clínico valoriza, no ato clínico, a história subjetiva. O que irá orientar e estabelecer a condução da escuta é tudo aquilo que se pode extrair de sua história e, em menor grau, a sintomatologia, a conduta ou o comportamento do paciente.

Gustavo nos diz que aos seis anos via o incrível Hulk na parede, via os monstros que lutavam com o Ultraman, via o Ultraman desfigurado... "Quando eu desenhava as figuras eu as soltava para fora, para fora da mente". Soltava as alucinações para fora da mente. Gustavo conta-nos que conseguia dar um tratamento para aquele real que o invadia; passava-o para o papel como uma tentativa de simbolização.

Se trabalhássemos na lógica do caso social poderíamos incentivar Gustavo pela via da arte, já que possuía grande habilidade nessa área. Sendo assim, poderíamos ajudá-lo a promover uma exposição dos seus desenhos, como era, a princípio, um pedido seu. Entretanto, o que o sujeito nos aponta é o insuportável que aparece cada vez que seus desenhos são expostos. O lugar de objeto era logo assumido por Gustavo, e como resposta a esse lugar decorriam os episódios de "agitação psicomotora" seguidos de acusações: "Vocês me fazem de objeto, querem explorar os meus dons..."

Eliminar as alucinações da mente traz para Gustavo um certo apaziguamento diante do real que o invade. Percebemos que o desenho tem uma função importante em sua história, mas colocá-los em exposição é como fazer um convite ao real, à devastação, devido à relação transitivista que Gustavo tem com o que desenha. Transitivismo é um termo utilizado na psiquiatria que se refere à consciência do eu em oposição ao mundo externo. No transitivismo, o indivíduo sente algo do mundo exterior como parte de seu eu. Ele identifica-se com os objetos do mundo externo. Trata-se da impossibilidade de estabelecer a distinção entre o que é próprio do indivíduo e o que pertence ao mundo exterior.

Lacan, em seu seminário sobre as psicoses, irá dizer do transitivismo imaginário como um mecanismo de projeção. Traz o exemplo da criança que bate em semelhante e diz: "Ele me bateu". Isso ocorre, explica Lacan, porque para a criança, o seu semelhante e ela são a mesma coisa. Assim é a relação que Gustavo estabelece com o que desenha. Ele e o desenho são a mesma coisa.

A partir desse ponto a equipe cuida para que Gustavo não se exponha. Seus desenhos são trabalhados nas oficinas terapêuticas, com o cuidado de não serem colocados em um lugar de destaque.

"O que se tenta, com esse procedimento, é introduzir a dimensão do trabalho feito por muitos7, proposta pouco sustentada nas instituições, em função da dificuldade de se operar com sua lógica. A tendência institucional é responder com um saber pronto, um saber sobre o paciente, bastando enquadrar aquele caso em um dos diagnósticos já conhecidos, com a proposta terapêutica decidida a priori. Há um privilégio dos discursos em que a subjetividade se encontra excluída8."

Gustavo, atualmente, realiza seu tratamento em um serviço de saúde mental, em regime de permanência dia. Podemos dizer que a circulação pela cidade é feita por ele, não sem barulho, mas com uma intenção: a de seu tratamento!

"Crio personagens para amenizar a dor de não ter tido um pai. Quando a esquizofrenia vinha eu me vestia de Batman. Foi assim que eu cheguei aqui. A fraqueza da minha alma, nesta hora, era camuflada pela história do Batman e então, eu me sentia protegido. Mas aí vinham as pessoas me criticarem, me chamarem de doido, e eu respondia a elas com agressividade. Ou então se vinha uma injustiça, queria ser o justiceiro - aquele que defendia os fracos e oprimidos. Foi assim durante muitos anos de minha vida. Aqui eu criei o Capitão Alegria. O Capitão Alegria não tem que ser justiceiro como o Batman. Não tem que fazer justiça com as próprias mãos; ele é um vicentino como eu, não usa armas, não bate em ninguém, não dá chutes, não destrói prédios, não destrói nada! Agora consigo controlar mais a minha agressividade."

Podemos considerar essa passagem como efeito de um trabalho realizado à luz da construção do caso clínico, fragmento que aponta uma saída encontrada pelo sujeito para lidar com o seu gozo, de uma forma menos invasiva, menos mortífera.

 

A origem do termo "construção em psicanálise" e algumas considerações

Em Freud, encontramos a primeira formalização da noção de construção em psicanálise, no texto Construções em Análise (1937). Nele, Freud propõe três operações para pensarmos a construção: o trabalho do analista, o trabalho do analisante e o trabalho de elaboração teórica.

Na primeira operação - trabalho do analista, Freud utiliza-se do termo construção como uma palavra que designa a relação do analista com o que permanece recalcado, com aquilo que não se consegue extrair, restituir. Para Freud, os sintomas são conseqüências do recalcamento, das lembranças esquecidas. Sendo assim, pensamos que a matéria-prima do trabalho do analista se consiste nos fragmentos que surgem nos sonhos, nas associações livres, nas repetições que habitam o paciente. Por meio das manifestações do inconsciente, o recalcado surge sob forma de fragmentos. Cabe ao analista fazer uma certa ordenação, a partir da coleção desses fragmentos. Freud compara o trabalho de construção do analista ao trabalho de um arqueólogo.

"Mas assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a partir dos alicerces que permanecem de pé, determina o número e a posição das colunas pelas depressões no chão e reconstrói as decorações e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim também o analista procede quando extrai suas inferências a partir dos fragmentos das lembranças, das associações e do comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito indiscutido a reconstituir por meio da suplementação e da combinação dos restos que sobreviveram."(FREUD. 1975:293)

Apesar de fazer essa comparação, Freud aponta diferença entre estes trabalhos: o do analista e o do arqueólogo. Segundo ele, o trabalho do analista é infinito uma vez que se trata de um trabalho preliminar. O trabalho do arqueólogo pressupõe um fim, um encerramento.

Na segunda operação - trabalho do analisante, a construção feita pelo analista é comunicada ao paciente. Ao se referir a um trabalho preliminar, Freud envolve a primeira e a segunda operação.

À medida que apresenta a construção de um fragmento ao analisante, o analista possibilita o surgimento de novos elementos, de novas matérias- primas que convidam o analisante ao trabalho subjetivo. O analisante pode ou não concordar com a veracidade da construção feita pelo analista. Importa pouco ao analista a aceitação ou não dessa construção; o que interessa são as reações indiretas do sujeito - a produção de novas matérias-primas que emergem do inconsciente. Neste sentido, Freud localiza uma vantagem em relação ao trabalho do arqueólogo.

"Todos os elementos essenciais estão preservados: mesmo coisas que parecem completamente esquecidas estão presentes, de alguma maneira e em algum lugar, e simplesmente foram enterradas e tomadas inacessíveis ao indivíduo. Na verdade como sabemos, é possível duvidar de que alguma estrutura psíquica possa realmente ser vítima de destruição total. Depende exclusivamente do trabalho analítico obtermos sucesso em trazer à luz o que está completamente oculto". (FREUD, 1975:294)

Nesse mesmo texto, Freud coloca a diferença entre construção e interpretação. A interpretação para Freud é mais restrita, pois diz de um elemento isolado; já a construção, por propor a ordenação do material psíquico, é mais abrangente.

"O inconsciente recalcado se apresenta sob um aspecto fragmentário. A interpretação toca um destes elementos, enquanto que a construção liga diversos elementos. Então eu teria a tendência a dizer da preferência: a interpretação faz ressoar e a construção liga". (MILLER, 1996:100)

A terceira operação - o trabalho de elaboração teórica consiste na articulação da primeira e da segunda operação. Para Freud, o objetivo da psicanálise é recuperar as lembranças; caso elas não sejam recuperadas não há problema.

"O caminho que parte da construção do analista deveria terminar na recordação do paciente, mas nem sempre ele conduz tão longe. Com bastante freqüência, não conseguimos fazer o paciente recordar o que foi reprimido". (FREUD, 1975: 300)

Se não podemos recuperar integralmente as lembranças, como iremos trabalhar no sentido da cura? Freud responde a essa pergunta dizendo que "a convicção da verdade da construção tem o mesmo efeito que uma lembrança reencontrada". No texto Marginalia de Construções em Análise, Miller irá polemizar essa afirmação proposta por Freud, ao dizer que há um engano em acharmos que o efeito da substituição de uma lembrança pela construção do analista possa ser dado pela convicção da verdade, pois dessa forma poderíamos incorrer na sugestão do analista. Em Função e Campo da Palavra e da Linguagem, Lacan considera que as lembranças comportam uma construção interna, são elaborações significantes, e a construção é um trabalho do analisante.

"A construção está mais a cargo do analisante que do analista. O próprio curso da análise é uma construção da parte do analisante. A análise é como que a construção de uma narrativa, de uma epopéia, da parte do sujeito, fazendo das peças e dos pedaços uma narrativa. Se a construção fica ao lado do analista somos obrigados a falar da convicção do paciente e abrimos as portas para a sugestão." (MILLER:1995:97)

Cabe, então, ao analisante duas tarefas: a de rememorar e a de construir. Vimos com Lacan que é o analisante, e não o analista, que ficará a cargo de fazer a construção daquilo que não pode ser lembrado. O analista se encarregará de fazer falar o sujeito e sua função consiste em autorizar simbolicamente o trabalho do analisante - de construir um saber sobre si, sobre seus modos de gozo, sobre seu sintoma e sobre sua fantasia. A construção da fantasia fundamental corresponde, segundo Miller, ao recalque originário. O trabalho analítico norteia-se pela construção do fantasma, possibilitando que o sujeito saiba de si, de sua fantasia, intervindo, assim, na mudança da relação que tem com a mesma.

Ao constituir a terceira operação como uma clínica do retorno do recalcado, Miller, em Marginálias de Construção em Análise, nos dirá que o recalcado retorna na lembrança, mas poderá retornar também no delírio. Sugere, então, um novo título para a terceira operação: O delírio como construção do paciente.

Para Freud todo objetivo da psicanálise é recuperar a lembrança, sendo a alucinação e o delírio considerados como um retorno do recalcado. "Talvez a lembrança recalcada não possa surgir senão sob forma alucinatória ou delirante, ou seja, a verdade quando ela ressurge comporta sempre um coeficiente de delírio." (MILLER,1996:96) Ao dizer que a verdade tem estrutura de delírio, Freud aponta afinidades estreitas entre a verdade e o delírio, chegando a dizer que a verdade se manifesta sob forma de delírio.

Ainda em Construções em análise, Freud dará indicações acerca do tratamento da psicose, ao finalizar o texto indicando uma afinidade entre o delírio e a construção. A construção apresentada por ele como um método equivalente ao método científico da arqueologia se revela, segundo Miller, sobretudo parente do delírio psicótico. Ao considerar a alucinação e o delírio como o retorno do recalcado, Freud estende à psicose os mecanismos pertencentes à neurose.

"A alucinação é como um sonho, o delírio é como um sonho, isso corresponde ao retorno do recalcado, como um ângulo. O que é que isso quer dizer, que a alucinação e o delírio respondem a mesma estrutura que os mecanismos neuróticos? Isso quer dizer que no fundo da alucinação e do delírio, há uma verdade recalcada. É o essencial de sua demonstração clínica." ( MILLER, 1996:106).

Freud, em sua obra, irá utilizar-se dos casos clínicos9 como método de teorização. "Construir o caso era também construir a teoria." (VIGANÒ, 1999:56). Por meio dos casos, Freud nos apresentava e construía a sua teoria. "Desde a clínica da histeria, ele se valeu das histórias clínicas e, articulando teoria e prática, foi construindo as noções fundamentais da psicanálise." (BARROSO, 2003:19) A partir da construção dos casos clínicos, Freud identificava os pontos de embaraço colocados pelo tratamento.

"O analista lacaniano deve construir, não há dúvida. Aliás, se existe algo como a supervisão, ela é antes de tudo uma construção do analista. Não é recomendável dirigir um tratamento analítico sem fazer uma construção, sem estruturar o caso. Não é impossível conduzir uma análise sem fazer isso, é por esta razão que é muito recomendável fazê-lo, é muito recomendável porque isso não é absolutamente necessário. Muitos analistas deixam as coisas por conta do paciente e já é alguma coisa quando eles deixam, pois muitos o param. Mas o que é recomendável, é fazer uma construção e depois modificá-la segundo os elementos que surgem." (MILLER, 1996:98).

Com base nas premissas da reforma psiquiátrica, o Instituto Raul Soares colocou-se, durante algum tempo, em um lugar de exceção. Ao interrogar-se sobre a função das internações abria possibilidades para o surgimento da subjetividade e, assim, da singularidade do caso a caso.

O tempo de internação não era lido somente como um ato de reclusão, mas sim como uma entrada em tratamento. "Tratamento diz mais de um movimento analítico, no sentido de pôr o próprio caso a trabalhar, e pôr o sujeito em condições de produzir por si sua própria cura". (VIGANÒ, 2000:44)

É nesse contexto que nasce a Sessão Clínica como um espaço privilegiado, um dispositivo para buscar novas formas de lidar não só com as dificuldades do tratamento como também com as questões e os impasses institucionais. Nesse espaço a escuta clínica se faz sob orientadora de um trabalho, e não sob o olhar burocrático, permitindo, assim, existir o lugar de exceção!

Na medida em que o funcionamento institucional não é mais norteado pelas exigências dos especialistas ou técnicos, mas sob as exigências do sujeito na sua relação com o campo da fala e da linguagem, os técnicos se colocam num mesmo plano, em um lugar de ignorância em relação ao saber sobre o paciente, permitindo que a construção do caso clínico possa operar.

Além do efeito de transmissão, podemos dizer que a Sessão Clínica também opera como um espaço de formação, de supervisão institucional. Dar lugar ao subjetivo, ao particular, dentro do universal da instituição, permite que se extraia o que existe de mais crucial, de mais singular - a construção de uma equipe que trabalha na direção da construção dos casos clínicos.

 

Referências

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BARROSO, Suzana F. Sobre o caso clínico: uma contribuição à metodologia de pesquisa em Psicanálise. In: Almanaque: Psicanálise e Saúde Mental. EBP-MG, Belo Horizonte, 2003. Ano 6, no.9         [ Links ]

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MILLER, Jacques. A Marginália de Construções em Análise. In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira de internacional de psicanálise. São Paulo: Edições Eólia, 1996, n.17, p. 92-107         [ Links ]

PAIM, I. Curso de Psicopatologia - Alterações da consciência. São Paulo: Editora EPU, 1993.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Rua Araguari, 1214-304 - Santo Agostinho
30190-111 Belo Horizonte-MG
renatadinardi@bol.com.br

Recebida em 30/9/2004
Revisada para publicação em 28/3/2005

 

 

*Especialista em Fundamentos da Clínica Psicanalítica pela FUMEC, psicóloga do Instituto Raul Soares - FHEMIG, coordenadora da Sessão Clínica do Instituto Raul Soares - FHEMIG, pesquisadora do CNPq e técnica do programa Liberdade Assistida da Prefeitura de Belo Horizonte.
1A prática médica é sustentada por um saber prévio, por um saber já constituído. Segundo Clavel, por meio das diversas etapas pelas quais se efetua o ato médico, ou seja, as etapas do diagnóstico, do prognóstico e da terapêutica, o que se configura é um discurso totalitário que exclui a diferença, único modo pelo qual a subjetividade poderia se manifestar. Por intermédio da utilização de um vocabulário ao qual o doente não tem acesso, o discurso médico opera reduzindo o sentido dos diferentes ditos do sujeito àquilo que é passível de ser inscrito no discurso médico. Operação que visa portanto, o estabelecimento da identidade em detrimento da alteridade: o mesmo em detrimento do outro. A pluralidade de sentido, característica da língua, é abolida para dar lugar à univocidade de sentido, ideal do código. Desse modo, o discurso médico se apropria do discurso do sujeito, transformando os significantes de sua fala em signos, em sinais médicos. A fala do sujeito é ouvida apenas para ser descartada imediatamente, onde se depreende a função silenciadora do discurso médico. (CLAVEL, 1996: 18/19)
2Hospital psiquiátrico da rede pública do estado de Minas Gerais.
3Termo proposto por Carlo Viganò 1999, que, em síntese, diz da "forma de se dar uma ordenação lógica acerca da estrutura de funcionamento do sujeito de forma a possibilitar um cálculo da clínica".
4Com o uso de antipsicóticos típicos, Gustavo apresentou síndrome neuroléptica maligna. Em uso de Clozapina apresentou priaprismo. Com a Olanzapina apresentou níveis de CPK aumentados.
5"A tarefa de uma orientação psicanalítica, eu proporia centrá-la na construção de uma autoridade clínica, isto é, fazer uso do discurso do psicanalista que é um discurso capaz de restaurar uma autoridade clínica, não
mais o da médica antiga, mas a partir da experiência freudiana, ou seja, a partir da autoridade clínica do próprio paciente, enquanto inventor de seu próprio sintoma."(VIGANÒ, 2000:44)
6DI CIACCIA, A. Da função do Um à prática feita por muitos. Curinga - Psicanálise e Saúde Mental. Belo Horizonte: EBP-MG, no.13, set,1999 p.65.
7Termo utilizado pela psicanálise como referência clínica realizada por profissionais de formações diversas, mas que levam em conta, como princípio ordenador, a relação do sujeito com o grande outro.
8ALLKMIM,W. Construir o caso clínico, a instituição enquanto excessão. Almanaque- Psicanálise e Saúde Mental. Belo Horizonte: EBP-MG, Ano 6, no.9 nov. 2003 p.45
9"A noção de caso clínico surgiu no percurso de constituição da clínica, situando-se na passagem da, assim denominada, medicina das espécies à medicina hospitalar. Conforme Foucault, em O Nascimento da Clínica, antes de ter emergido na clínica médica o momento em que se supõe um sujeito da doença, não podemos falar de caso clínico e, sim, dos quadros da doença ou mesmo de exemplos da doença. A noção de quadro implica o modelo clínico naturalista e o pensamento classificatório que instituiu a doença é natural, uma vez que ela enuncia, em si mesma, sua verdade essencial; ela é ideal porque nunca se dá na experiência, sem alteração, sem distúrbio. A clínica médica buscava ordenar uma ciência pelo exercício e decisões do olhar por meio das ações de ver, isolar traços, reconhecer os que são idênticos e os que são diferentes, reagrupá-los, classificá-los por espécies ou família. O olhar mais o raciocínio devem conduzir ao conhecimento científico.... Do encontro de Freud com Charcot resultou, para a psicanálise, a passagem do quadro ao caso clínico, o qual corresponde a substituição da operação de apresentação e descrição do caso à sua construção. Ali onde se buscava um saber geral, precisamente, um saber do quadro da histeria reproduzido na apresentação, busca-se com a psicanálise, um saber do particular do sujeito." (BARROSO, 2003: 20-22)

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