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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.3 n.4 Barbacena jun. 2005

 

SESSÃO CLÍNICA - ACOLHIMENTO E TRATAMENTO DA PSICOSE EM INSTITUIÇÕES

 

A sessão clínica como princípio de articulação do diverso

 

The clinic session as the articulation of the knowledge diversity

 

 

Anamáris Pinto*

Prefeitura Municipal de Belo Horizonte - MG. Programa Liberdade Assistida.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em uma equipe multidisciplinar tem-se uma diversidade de discursos e teorias que, muitas vezes, por se pautarem em diferentes concepções da doença, imprimem diferentes rumos para um tratamento, e acabam por produzir efeitos clínicos desfavoráveis, desde a não resposta ao tratamento, desestabilização, reagudização do quadro e, até mesmo, a passagens ao ato. A sessão Clínica do IRS, ao tomar a construção do caso clínico como método de investigação e intervenção, funciona como um articulador dessa diversidade de saberes, ao reunir elementos dos diferentes discursos para encontrar a posição singular do sujeito em relação ao gozo. Neste artigo, essa função de articulação será demonstrada a partir do relato da construção de um caso, ao apresentar seus impasses, divergências, e as elaborações que possibilitaram redimensionar o tratamento.

Palavras-chave: Psicanálise, Multidisciplinar, Clínica.


ABSTRACT

In a group of multi-disciplines there is a variety of speeches ans theories that, many times, act in diferent concepts of the disease, leading to diferent ways of a treatment, producing clinical effects unfavorable, since a non answer from the treatmen, an instability, an acute reaction in the process. The IRS Clinic Session, considering the Clinic Case Construction as a method of investigation and intervention, it work as an articulator within this diversity of knowledge, gathering elements of different discourses, to meet te singular position of the subject concerning the satisfaction. In this article, this articulation function will be shown by the report of the construction of a case, presenting its impasses, divergences, and the elaboration which permitted the redirection of the treatment.

Keywords: Psychoanalyses, Multi-disciplines, Clinic.


 

 

"É possível prever que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente, quanto o tem, agora, à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos que a tuberculose, de que, como esta, também não podem ser deixadas aos cuidados impotentes de membros individuais da comunidade. Quando isto acontecer, haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais serão designados médicos analiticamente preparados, de modo que homens que de outra forma cederiam à bebida, mulheres que praticamente sucumbiriam ao seu fardo de privações, crianças para as quais não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose, possam tornar-se capazes, pela análise, de resistência e trabalho eficiente. Tais tratamentos serão gratuitos. Pode ser que passe um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como são urgentes esses deveres".
(FREUD, S. [1918] - Linhas de progresso na terapia psicanalítica).

Propõe-se, com este artigo, tentar demonstrar, a partir do viés clínico da prática psicanalítica, os efeitos da presença de psicanalistas em instituições de saúde pública. Com esta finalidade, será feita uma breve contextualização das formas de inserção da psicanálise, desde os seus primórdios até os dias atuais, para, em um segundo momento, extrair as conseqüências clínicas que aqui nos interessam.

 

Contextualização

Há oitenta e sete anos, Freud antecipava a inserção da psicanálise no âmbito da saúde pública. O escrito de 1918 é notável no que tange a este ponto tanto pela precisão descritiva do cenário em que hoje nos situamos quanto pelo rigor ético que orienta os psicanalistas dessa época futura, que ora constatamos nos tempos atuais. Ele vislumbrou o fato de que os psicanalistas estariam diante da tarefa de adaptar a técnica às novas condições sociais, e concluiu que "qualquer que seja a forma que essa psicoterapia possa assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, os seus elementos mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa"1.

Por sua vez veio Lacan que, ao se ocupar da formalização teórica e prática dessa experiência, deu ênfase à formação do analista, a partir, sobretudo, dos dispositivos de análise e supervisão. Mas ao passo que Freud podia se contentar em estabelecer, como princípio da prática psicanalítica, uma associação constante entre a formação do analista e sua própria análise, para Lacan era preciso ir mais além. Em seu momento já se fazia urgente restaurar, "no campo aberto por Freud [...], a sega cortante de sua verdade", denunciando "os desvios e concessões que amortecem seu progresso, degradando seu emprego"2. Pois Lacan, como se sabe, não acreditava tanto assim nessa aposta de Freud; ele não pensava que o Estado pudesse incorporar, na forma regulamentar de seus dispositivos, a singularidade a que a psicanálise visa em sua prática com o paciente. Lacan não consentia, tampouco, em abrir mão dos princípios que orientam essa prática em nome de seu reconhecimento pelo Estado contemporâneo.

Ao se ocupar com a formação dos analistas, Lacan estava ciente do antagonismo entre o que se pode esperar do ensino dessa prática e os efeitos que o Estado espera das práticas psicoterapêuticas. Mas embora saibamos que a psicanálise não deva compactuar com os propósitos que o Estado atribui aos serviços de saúde mental, em seu objetivo de assimilar a sanidade psíquica à capacidade operatória (entenda-se: de produzir e consumir) do sujeito, nem por isso ela deixa de ocupar, nos serviços instituídos pelo Estado, um lugar, por assim dizer, de inclusão externa, condizente com os princípios que orientam sua práxis. E uma vez que desse lugar onde ela opera, não raro se produzem consideráveis efeitos terapêuticos. E não causa surpresa que, hoje, ela venha a sofrer a interferência do Estado, em seu esforço de otimizar, em nome da assim chamada saúde mental, a aplicação de seus dispositivos de intervenção sobre a existência dos sujeitos, pois como bem denuncia M. Tarrab:

"Na atualidade, a velha ordem pública, que se preocupa com o 'cidadão', mostra sua verdade e seu amo: o mercado. Preocupa com a medida, quer opor à nossa clínica a evidência das cifras que otimizem recursos e meios, mostrando que, por trás da preocupação pelo cidadão, está a preservação do consumidor contemporâneo. Nessa encruzilhada, um novo ideal quer se impor à eficácia terapêutica: o funcionamento. A ´Saúde Mental`, conceito de duvidosa procedência, é supostamente tutelada pelo Estado em função do bem comum".

Não há espaço para discorrer, aqui, sobre os impasses atualmente gerados pelas medidas de avaliação e de regulamentação que se tenta impor a psicanálise, os quais chegam a colocar em risco a própria continuidade da prática psicanalítica no mundo. Para tal finalidade, recomendo a leitura de Évaluation - Entretiens sur une machine d`importure, de Jaques-Alain Miller e Jean-Claude Milner, em que o tema se encontra minuciosamente abordado. Arriscar-me-ia, entretanto, a afirmar que esse momento em que pesa essa dificuldade com a qual se defronta a psicanálise pode também se revelar paradoxalmente fecundo para a nossa clínica. É possível constatar, também, na reação que esse contexto produziu, uma restauração da lâmina cortante de que falava Lacan (no Ato de fundação, de 1971), em referência a Freud, como bem atesta a resposta dada por Jaques-Alain Miller (outubro de 2003) à proposta política embutida nas atuais medidas de avaliação:

"Rompam por decreto o casulo de escuta que envelopa a sociedade, perfurem a almofada de compaixão sobre a qual ela se assenta, o tímpano de todos estes ouvidos, erradiquem a psicanálise, façam a vida impossível para os psicoterapeutas, dêem livre curso ao mestre/senhor moderno que avança no alarido de seus protocolos e de suas credenciais, todo recoberto por cenouras e bastões, e vocês verão como por milagre reaparecerem as patologias desaparecidas, tais como as grandes epidemias histéricas, verão crescerem e multiplicarem-se as seitas e os feiticeiros, que se enfiarão nas profundezas da sociedade e escaparão, assim, melhor ainda da censura de vocês".

Mas os efeitos, que ouso dizer benéficos, dessa situação hostil não se restringem somente à essa exortação política que testemunhamos. Verifica-se, igualmente, para além dessa reação, um esforço mais concentrado da parte dos psicanalistas em fundamentar, sem se curvar diante dos atuais critérios de avaliação, os princípios que orientam sua atuação clínica. É nesse sentido que pretendo demonstrar, sem incorrer numa vã retórica, que também nas instituições públicas os analistas estão pagando, conforme queria Lacan em 1958, "com palavras, [...] com sua pessoa, [...] com o que há de essencial em seu juízo mais íntimo, para intervir numa ação que vai ao cerne do ser"3.

Esse esforço em fundamentar a prática clínica para assegurar, nas instituições públicas, a "disponibilidade do analista", tal como Sérgio Mattos a nomeia, requer justamente que nos posicionemos quanto à "uma certa presença que permite que a operação analítica aconteça, de maneira pura e/ou aplicada"4. Para esse fim, é necessário que os psicanalistas se desloquem de seus consultórios para "a cidade", como vem acontecendo, e que eles ali ofereçam sua escuta, sua palavra e seu ato, orientados por seu fundamento.

 

Demonstração clínica

O segundo momento deste texto faz parte de uma série de trabalhos resultantes de experiências e demonstrações clínicas que tanto ilustram como verificam a aplicação possível da psicanálise em instituições onde analistas estão inseridos. Nesse contexto, tenho a intenção de apresentar a lógica que opera no tratamento de pacientes no Instituto Raul Soares (IRS), segundo princípios da psicanálise que orientam esta clínica, assim como os efeitos que derivam dessa orientação. Para tal fim, lançarei mão de conceitos extraídos do discurso analítico que permeiam a Sessão Clínica e a Construção do Caso Clínico, conforme será verificado adiante.

Em primeiro lugar, pretendo descrever sucintamente o funcionamento deste hospital, enquanto cenário de nossa prática clínica e de nossa pesquisa. O Instituto Raul Soares5, que presta serviços ao SUS, é referência em saúde mental no Estado de Minas e atende adultos de ambos os sexos portadores de transtornos mentais graves. O instituto recebe 600 pacientes por mês no serviço de urgência, e conta com uma estrutura de 120 leitos operacionais, distribuídos em 4 enfermarias (duas femininas e duas masculinas), além dos serviços de ambulatório e permanência-dia.

Este estudo foi produzido como resultado de uma experiência vivida nesta instituição. Nos reunimos em torno de questões suscitadas pelo manejo clínico de pacientes atendidos no IRS. Os problemas que ali enfrentamos, contudo, longe de se restringirem à complexidade e à gravidade dos quadros clínicos estendem-se freqüentemente às dificuldades relativas ao manejo do próprio corpo clínico que lida com os pacientes. Gostaria de esclarecer em que sentido foi possível encontrar, a partir do discurso da psicanálise, um meio de abordar essa dificuldade para a qual convergem tanto o tratamento dos pacientes quanto o manejo do corpo clínico que os atende. Foi da necessidade de encontrar uma sustentação no discurso psicanalítico para abordar tal dificuldade que a criação institucional da Sessão Clínica surgiu para nós como um ato político.6

A Sessão Clínica do IRS é um dispositivo em que as estratégias de conduta do tratamento são elaboradas a partir de discussões e construções clínicas. Dela participam técnicos relacionados ao caso em questão, profissionais que recebem pacientes na urgência, auxiliares de enfermagem, assistentes sociais, médicos, terapeuta ocupacional e outros profissionais do Raul Soares ou de outras instituições de referência do paciente na rede assistencial.

Para a construção do caso clínico trabalhamos com duas modalidades. A primeira é a apresentação do caso, em que os técnicos apresentam dados da história do paciente relatados por ele, por familiares e terceiros. A segunda modalidade é a apresentação do paciente, na qual o próprio sujeito vai a uma a entrevista em que é escutado pelos diversos profissionais, a partir das perguntas de um único entrevistador. A discussão do caso é aberta no momento seguinte a entrevista. Tanto em uma modalidade quanto na outra, objetivamos a Construção do Caso Clínico de forma a orientar o tratamento. Ocorrem ainda, na própria apresentação de paciente, intervenções clínicas pontuais que incidem sobre a fala do sujeito entrevistado e que são norteadas por aquilo que o entrevistador escuta no seu relato.

Tentarei explicitar de que modo, a partir desse dispositivo, podemos formular a estratégia do tratamento, considerando que uma instituição traz consigo, em seu corpo clínico, um leque eclético de orientações teóricas, não raro divergentes, que se quer aplicar na condução clínica. Ali se reúne uma equipe que comporta desde os mais ferrenhos defensores da primazia do "ato médico" aos que colocam, em primeiro plano, o princípio do trabalho em equipe, numa diversidade que inclui tanto terapeutas biologicistas quanto aqueles que se valem da orientação psicanalítica, entre outros. Ora, se o espaço em que os vários saberes disputam entre si é o lugar da prescrição7 da melhor conduta, o que se constatou é que a Sessão Clínica veio funcionar, muitas vezes, como um articulador desses saberes ao esvaziar justamente o lugar visado pela prescrição. Isso só foi possível ao se tomar como guia o saber dos próprios sujeitos em tratamento no lugar esvaziado dos saberes prescritivos.

Nesse lugar vazio, ao qual Antônio Di Ciaccia dá o nome de Um-fundador, é possível assistir a emergência da singularidade do sujeito em tratamento. Para explicar o que vem a ser esse um que funda o tratamento na prática de muitos, Di Ciaccia se serve de uma experiência pessoal relatada numa jornada8 sobre "A prática feita por muitos", que pretendo reproduzir aqui, a fim de que possamos articulá-la com a nossa experiência.

Quando Di Ciaccia fundou a instituição Antenne9, duas pessoas representaram para ele um papel importante: Françoise Dolto e Jacques Lacan. Ao passo que Dolto se interessou e apoiou o projeto de Di Ciaccia, Lacan não demonstrou nenhum interesse. Apesar disso, a resposta de Lacan foi mais essencial para a fundação de Antenne do que o desejo de Dolto.

Conforme Di Ciaccia argumenta, a intervenção de Lacan não se orientava, em seu entendimento, por algo a ser feito ou não, mas por uma operação que concernia ao seu ser de sujeito. "Lacan, ele afirma, colocou-me contra a parede numa posição que eu achava impossível de adotar. De um golpe malicioso ele me desequilibrou dizendo: É preciso escolher, meu caro".

Embora esta frase de Lacan pareça não ter, por si só, nenhum interesse significativo, é curioso constatar que para Di Ciaccia ela produziu, segundo suas próprias palavras, o efeito de um ato fundador que o obrigou a autorizar-se, a si mesmo, a instaurar um lugar vazio no espaço onde era esperada uma prescrição. Di Ciaccia nos aponta que somente lhe restava, naquele momento, render-se à evidência de que a escolha já havia sido feita. Para ele, o golpe malicioso de Lacan teria tido o efeito daquilo que ele nomeia como Um-fundador, a ser entendido, eu acrescentaria, como marca de esvaziamento do lugar prescritivo, deixada pelo golpe malicioso de Lacan.

Di Ciaccia enfatiza que a fundação de Antenne se deu através do desejo do Outro, não pela via do ideal ou da identificação, mas do ato. Ele conclui com a afirmação de que isso seria a mola do desejo do analista, da qual decorrem múltiplas conseqüências. Ele acrescenta que, se de início, qualquer coisa que estivesse inscrita não fosse mais apagável, nada poderia tampouco vir, de direito, colmatar essa brecha, uma vez que a perda dos ideais não mais poderia ser apaziguada por outros ideais, mesmo os analíticos.

Ao trazer o fragmento dessa história pessoal de Di Ciaccia, tenho o intuito de dizer do esvaziamento do lugar prescritivo que, para mim, concerne justamente a este Um-fundador - este vazio que opera ao fazer emergir o que há de singular e essencial de cada caso, na condução de cada tratamento. Durante esse período, fizemos o esforço de operar de acordo com essa lógica, uma vez que é exatamente por ela que a instituição pode fazer-se exceção para aqueles pacientes que nos chegam.

Da experiência deste trabalho, muitos são os casos acompanhados na Sessão Clínica do IRS cuja evolução nos parece verificar, nitidamente, os efeitos que resultam da operação desse Um-fundador. Se optei por relatar um fragmento que se segue é porque penso que sua evolução vem atestar, exemplarmente, o que pretendo argumentar aqui.

Refiro-me a Gal, uma mulher cuja psicose se desencadeou na adolescência, logo após seu casamento. Em sua certeza delirante, ora Gal se vê conduzida pelo diabo, ora se vê dotada de poderes divinos por meio dos quais recebe poderes de revelação e de cura. Ela os recebe em suas mãos e em seu pensamento e por meio de vozes de comando. Segundo a paciente, tais experiências alucinatórias vêm acompanhadas de grande sofrimento porque são vistas com enorme "incompreensão" pelas pessoas, levando-as a chamá-la de louca.

No primeiro surto a irmã leva Gal a uma Igreja, onde o discurso religioso, ao dotar de sentido suas vivências delirantes e alucinatórias, as torna mais suportáveis para esse sujeito. Por outro lado, esse discurso interfere em sua vida, pois contém imposições morais que lhe proibi a prática de muitas atividades que ela julga prazerosa, como por exemplo, a dança.

Já nos períodos de melhora, em que as alucinações cedem, Gal se afasta da Igreja. Para quem se diz "sambista como poucas", a proibição da Igreja torna-se um fardo que ela passa a rejeitar. Mas tão logo as vivências delirantes e alucinatórias retornam e põem a perder o sentido prescrito pela Igreja, Gal as remete à "incompreensão" da loucura, apontada pelos outros naquilo que ela diz. É em tais circunstancias que Gal chega ao IRS, em sua primeira internação, e nos fala da dificuldade de suportar este lugar em que é tida como louca. Ela afirma não ser louca, mas incompreendida e sofre por isto. No momento em que sua construção delirante, na qual se posiciona como mensageira de Deus, é colocada em cheque gera-se uma ausência de sentido que causa os efeitos devastadores e os episódios de agitação e revolta em que a "presença do diabo" se instala.

No que tange a essa catástrofe subjetiva gerada pela ausência de sentido, Elisa Alvarenga nos lembra que "se a devastação começa onde o semblante fracassa, trata-se de criar, através do tratamento, alguns semblantes que possam se sustentar. Diferentemente do ato analítico na clínica da neurose - que vai no sentido de colocar a nu o semblante - no tratamento da psicose será preciso sustentá-lo: sustentar alguns semblantes contra a devastação10."

Em uma apresentação de paciente na Sessão Clínica do IRS, o que vem sendo trabalhado em suas sessões individuais ganha peso após uma intervenção do entrevistador Wellerson Alkimin, orientador desta Sessão Clínica. Gal interpela o entrevistador, verifica a Instituição e constrói, a partir daí, seu ponto de ancoragem no tratamento. Ela pergunta a ele se é louca, ao que Wellerson responde "não", para em seguida dizer, servindo-se das palavras da própria paciente, que era incompreendida. Sem deixar de acrescentar (e esse é, para nós, o ponto essencial) que havia, também, uma incompreensão naquilo que ela mesma vivia, o que a remete a um processo, até então inédito, de elaboração de suas vivências. Vale lembrar que ao resgatar o semblante que dá forma discursiva à sua queixa, a saber, "sou incompreendida", o entrevistador gera um lastro significante.

Foi exatamente por ter escutado esse significante de substituição empregado por Gal - não louca, mas incompreendida - que Wellerson pôde intervir em ato para instaurar o Um-fundador. Não se tratou de prescrever um sentido à vivencia delirante de Gal, mas de oferecer a ela esse lugar vazio sobre o qual viria a construir, pouco a pouco, as soluções necessárias a sua sustentação, o que aliás pôde ser verificado, a posteriori, na continuidade do tratamento.

Em suma, acredito que este fragmento seja suficiente para levantar pontos que aqui nos interessam. No que tange ao tratamento da paciente, a Sessão Clínica teve uma função organizadora fundamental ao estabelecer uma marca que mudou o "destino" de Gal. Se para a paciente, a suspensão das significações ofereceu um lugar vazio em que ela pudesse estabelecer suas próprias soluções, para a equipe, esse efeito de esvaziamento prescritivo se observou pelo fato de que, ao levar o discurso analítico à Sessão Clínica, o que estava em questão, para nós, não era prescrever a teoria psicanalítica como uma forma de saber privilegiado para a condução dos casos ali discutidos. Antes foi possível deixar esse saber em posição de verdade, mas fora da posição prescritiva de comando, conforme o próprio matema do discurso analítico nos indica.

Assim, a construção do caso clínico, ao se deixar orientar pela lógica exibida nesse matema, conduz o próprio sujeito em questão a decantar, ele mesmo, os significantes mestres (ou os significantes prescritivos) no qual esteve alienado ao longo de sua existência. Não cabe aqui impor o sentido sobre o qual se fundaria uma prescrição, já que não estamos a serviço do discurso do mestre. É importante distinguir a condução que pressupõe o saber prescritivo no lugar do agente, daquela que pressupõe esse mesmo lugar esvaziado. O analista, "ao suportar a função do objeto causa de desejo na posição de agente, opera do lugar do mestre sem, no entanto, identificar-se com este. Ele está aí rigorosamente sem sê-lo"11.

Faço notar, com este relato, que, se por um lado, como nos aponta Sérgio Laia, "não temos no Brasil instituições de atendimento e acolhimento cujas práticas sejam norteadas eminentemente pelo ensino de Lacan. É bastante significativo, por outro lado, o número de psicanalistas de orientação lacaniana que trabalham ativamente nessas instituições como também, muitas vezes, é decisivo o impacto que a prática desses analistas tem sobre o cotidiano dessas instituições e o diferencial que ela imprime no prognóstico dos casos atendidos".

No meu entender, isso pode acontecer na medida em que o discurso analítico esvazia, por motivos que são de sua própria origem, o lugar em que as diversas práticas terapêuticas concorrem para definir a quem cabe o direito da prescrição. Por isso acreditamos poder encontrar, no discurso psicanalítico, a possibilidade de ofertar um campo de articulação entre esses vários saberes, a partir do esvaziamento do lugar prescritivo em que se vê emergir a função definida por Di Ciaccia como Um-fundador, que faz valer o significante, trazido pelo próprio sujeito em atendimento, como um princípio a orientar as estratégias terapêuticas.

 

Referências

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LACAN, Jacques. Carta de dissolução. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. cap. V, p. 319- 320.        [ Links ]

LAIA, Sérgio. A prática lacaniana nas instituições. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, nº 42, p.27-29, abril 2003.        [ Links ]

MATTOS, Sérgio. A disponibilidade do analista. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, nº 42, p.27-29, abril 2003.        [ Links ]

MILLER, Jaques-Alain. Da utilidade social da escuta. In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, Prática Lacaniana - Nota sobre a honra e a vergonha, n.38, p.19-22, dezembro 2003.        [ Links ]

TARRAB, Maurício. Clínica e política. In: Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, nº 46, p. 6-9, março 2004.        [ Links ]

TEIXEIRA, Antônio Márcio Ribeiro. O topos ético da psicanálise como hiância da determinação discursiva de seu sujeito. In: O topos ético da psicanálise. Edippucrs, 1999. Cap. V, p.194. (Coleção filosofia, n° 98)        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
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30210-410 Belo Horizonte - MG
Tel: +55-31-3241-1994. Cel: +55-31-9956-1994

Recebido em 30/09/2004
Revisado para publicação em 28/03/2005

 

 

*Psicanalista e técnica do Programa Liberdade Assistida da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte - MG
1Texto de Sigmund Freud Linhas de progresso na terapia psicanalítica. Volume XVII das Obras Completas, p. 211.
2Ver em Jacques Lacan, no texto "Ato de fundação" de 1971, em: Escritos, p. 229
3"A direção do tratamento e os princípios de seu poder" de 1958 - em Escritos de Jacques Lacan.
4"A disponibilidade do analista" de Sérgio Mattos em Correio - revista da Escola Brasileira de Psicanálise n. 42, p. 19-26
5O dados quantitativos relativos ao IRS foram gentilmente cedidos por Hilda Maria S. M. Zschaber e Telma de Ávila R. Nunes. Eles se encontram disponíveis no anteprojeto para o curso de especialização em Gestão Hospitalar da Escola de Saúde Pública de Minas Gerais.
6A propósito dos princípios que reúnem uma equipe de trabalho em torno de uma causa, consultar J. Lacan: "Ato de Fundação", "A Proposição de 9 de outubro" e "Carta de Dissolução", em Outros Escritos, RJ, Jorge Zahar, 2003.
7Conforme indica o dicionário etimológico de O. Bloch e W. Von Wartburg, o léxico prescrição, que data de 1544, era um termo de uso originalmente restrito à doutrina do Direito, onde servia apenas para denotar uma ordem jurídica. Ele só receberá uma acepção médica no século XVIII, mais precisamente, a partir de 1788, ano em que será empregado o sintagma "prescrição médica". Já no Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Caldas Aulete, "prescrever" aparece como ordenar, regular de antemão e explicitamente... estabelecer, determinar; preceituar, fixar, limitar, marcar. Se a idéia de prescrição se orienta, como se pode ver, por uma lógica impositiva que envolve, em sua origem jurídica, a forma de um ditame ou de um preceito, a lógica de Construção de um Caso Clínico visaria, como tentarei demonstrar, a relativizar essa dimensão impositiva. Busca-se, assim, deslocar aqueles que conduzem um tratamento do lugar desse saber prescritivo, em que cada sinal corresponderia a uma solução determinada a priori, para dar lugar a uma estratégia em que o saber do paciente, assim como as soluções que ele próprio inventa para dar conta do seu sofrimento, venha orientar os técnicos envolvidos na condução do caso.
8III Jornada da RI3 - Rede Internacional de Instituições Infantis.
9"Antena 110" é uma das instituições da RI3, localizada em Bruxelas, que acolhe crianças psicóticas ou com graves perturbações de personalidade.
10Verificar em Elisa Alvarenga no texto "Devastação na psicose", na revista Clique n° 2 .pg 46.
11Ver em "O topos ético da psicanálise" de Antônio M. R. Teixeira, p. 194 e 195.

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