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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.3 no.4 Barbacena June 2005

 

ARTIGOS

 

A avaliação e seus destinos

 

The evaluation and its destinations

 

 

Carlo Viganò I, II,*; Roseli Cordeiro Pereira (tradução)**; Ângela Buciano do Rosário (Revisão)***

IAssociação Mundial de Psicanálise. Comissão de Saúde Mental
IICausa Freudiana de Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com esse artigo contrapõe-se historicamente a avaliação praticada pela psiquiatria em sua relutância em considerar as terapias hermenêuticas. Com o advento de maio de 68 ocorrem mudanças na ideologia institucional, fato que permite a entrada dos psicólogos no tratamento do sofrimento mental. Atualmente, a avaliação na Itália é marcada pelo deslocamento do sintoma particular para o sintoma social (epidemia). Torna-se possível para o psicanalista a tarefa de envolver outros em sua causa, autorizando a função pública do discurso do analista.

Palavras-chave: Psicanálise, Psiquiatria, Avaliação, Saúde mental, Instituição.


ABSTRACT

With this article the evaluation practiced by psychiatry in its relutance in considering the hermeneutic therapies is opposed. With the advent of may of 68 there are some changes in the institucional ideology, fact that allows the entrance of the psychologists in the treatment of the mental suffering. The current evaluation in Italy is marked by the displacement from the particular symptom to the social symptom. To envolve others in its cause is possible to the psychoanalytic, that authorizes the speech´s analyst public function.

Keywords: Psychoanalysis, Psychiatry, Evaluation, Mental health.


 

 

Premissa histórica

O trabalho inicia-se com a Revolução Francesa, com o estado de direito, quando a prática terapêutica pertencia à instituição pública e, portanto, a uma lógica secular. O "nascimento da clínica" foucaultiana deve-se ao estabelecimento de um olhar positivista da doença (passagem da anatomia patológica para o laboratório), devido à inserção da Medicina nas regras institucionais.

A psiquiatria clássica se adaptou à ideologia positivista, ao tratar o real da doença como o real da natureza. A psicose e seus fenômenos têm um mecanismo subjetivo que reporta a uma raiz natural comum (automatismo mental sobre uma base neuro-genética).

Paradoxalmente, a teoria da forclusão do Nome do Pai, agregada à monolítica clínica clássica dos anos 50, levou à elaboração de que o ponto de estofo não é um estádio de integração do sistema nervoso central. Eis a oposição entre psicose com raiz biológica e sintomas decifráveis na raiz hermenêutica (neurose de transferência). Tal oposição resguardava uma cientificidade e, por isso, pertencia ao campo médico. O que não fosse médico, não era, sequer, avaliado.

A instituição médica sempre se protegeu e garantiu, com seu poder, a avaliação da terapia (deixando ao psicanalista a terapia hermenêutica, com prévio diagnóstico médico). Já a instituição psiquiátrica expulsou a psicanálise de modo que a análise deixou de ser praticada nela.

 

A mudança social (o Outro que não existe e o sintoma que se torna social):

A partir de uma outra revolução, a de "68", a ideologia institucional se altera, isto é, o S1 do discurso que a regula. Este não é mais o indicador de natureza positiva, mas de exigências individuais (da sociedade disciplinar e do direito à satisfação).

O cenário da instituição terapêutica se transforma com o advento da figura do psicólogo: esses profissionais levaram uma atividade terapêutica não médica nas instituições psiquiátricas (e na sociedade).

Na mesma época, alguns psicanalistas universitários iniciaram a investigação de uma metodologia de avaliação da psicoterapia para adaptar os métodos da investigação clínica (farmacológica) centrada no instrumento da estatística, aos tratamentos dos sintomas decifráveis. Tal investigação é centrada em dois eixos: a investigação empírica e a avaliação dos resultados.

Com isso, manteve-se um ponto de vista quantitativo, ao se retirar do juízo de realidade (cientificidade) um juízo de existência (valor social). Para este último, a causalidade não tem mais importância e é substituída pela incidência estatística mais homogênea: a lei do mercado. Nascem as escalas de avaliação de personalidade.

Ao mesmo tempo, a internação psiquiátrica passa por alterações: as psicoses são constantes, mas representam somente 18% das internações, o que aumenta exponencialmente a partir dos anos 60. Acrescenta-se a esse fato a epidemia da depressão e das síndromes bipolares, seguidas dos distúrbios de personalidade e do controle das emoções (crises).

Esta mudança se insere sobre a falência da psiquiatria social (que já havia esgotado a possibilidade de estabelecer qualquer aliança com o cuidado "hermenêutico"), que seria responsável por propiciar a condição de cidadania ao doente mental e torná-lo operador de mudança social.

Hoje, a velha aliança entre ciência da natureza e instituição (Medicina) foi substituída pela pseudociência estatística e instituição (Psicologia cognitivista) que produziu o DSM. Como veremos, o custo humano é altíssimo, visto que se passa de uma aliança simbólica para uma imaginária.

Devemos ressaltar que a neurociência e a genética estão abrindo novos cenários, não mais centrados sobre a idéia de causa natural, mas sobre a do caso particular (contingência e plasticidade subjetiva). Isto constitui uma voz discordante no que diz respeito à nova aliança de avaliação. É mais uma prova de que nesta nova forma do discurso do Mestre o saber que se liga ao S1 não é o da ciência, mas o da burocracia universitária.

 

A avaliação hoje na Itália

Sabe-se que, hoje, o discurso do Mestre tem uma nova questão em jogo: tratar o real do cuidado (poder terapêutico - bem-estar), separado, agora, do real da doença (causa - cura).

Os modos de investigação clínica fornecem o álibi para evitar o real da doença e propõem, como núcleo o real que se opõe à saúde, o sintoma social.

De fato, o sintoma social é tratável e mensurável (quantidade de alimento, tipos de drogas etc). Trata-se o incurável do sintoma subjetivo, massificando-o. Em outros termos, desloca-se o foco da atenção do sintoma particular (a doença) para os novos sintomas (a epidemia). Isto produz um deslocamento correlato: do incomensurável da relação subjetiva com o gozo sexual ao cálculo do tratamento dos distúrbios. Como disse Miller: "da piedade pelo sujeito que sofre com o higienismo da saúde da massa (dita mental)".

A propósito, uma informação televisiva: a população de uma cidade do norte da Itália se revolta com o decreto sobre a isenção de atestado médico para crianças acometidas de doenças com menos de cinco dias de duração. As pessoas querem avaliação.

Deste modo, perde-se a saúde como um bem (direito) e esta se torna um semblante necessário para a predisposição de uma política sanitária ocupada em gerir um bem - cuidado. Esta política (do mercado do tratamento) leva a instituição pública, por um lado, a renunciar cada vez mais à gestão direta do cuidado e colocar-se como endossante das regras impostas a quem está gerindo o tratamento (privado lucrativo, privado social). Por outro lado, preza pela formação daqueles que cuidam.

Temos, portanto, duas estratégias de avaliação:

- o credenciamento de agências de cuidado (com as regras dos que não pertencem à clínica);

- uma listagem dos profissionais formados (para combater a invasão de saberes - poderes esotéricos e sectários).

Frente ao percurso histórico que leva a instituição a reduzir gradativamente sua tarefa na avaliação, deixando de usar como suplência anacrônica a gestão direta do cuidado, o problema da ideologia se torna mais grave. Onde encontrar inspiração política em um estado de regras e de normas? E vice-versa: como orientar politicamente a prática psicanalítica frente a um Estado que supre a ausência política (jurídica) com leis do mercado?

Deve-se notar que o aumento da internação psiquiátrica, devido à pulverização da noção de doença, produziu uma nova dificuldade, que na Itália está bloqueando toda tentativa de reforma da lei 180.

O real pode ser colocado a serviço da biologia enquanto houver fronteira entre psicose e outros "distúrbios". Hoje, pelo contrário, tenta-se distinguir entre as doenças que possuem um "tratamento cientificamente correto" dos problemas "existenciais". Para os primeiros, isto seria um tratamento universalmente permitido. Para os segundos, seria somente opiniões de quem está em conflito. Para um diagnóstico diferencial entre esses dois campos, que em seu conjunto envolveria cerca de 5 milhões de italianos (Burani Procaccini), não resta outra saída senão recorrer novamente à Medicina.

 

A possível tarefa da psicanálise

Pode-se com a experiência psicanalítica renovar o S1 da instituição e, conseqüentemente, seus critérios de avaliação? Uma vez que, de causa natural se passa à causa social, de que forma pode-se obter a causa freudiana?

Na essência, a tarefa se trata de envolver outros na causa da psicanálise. Autorizar-se à função pública do discurso do analista, o único discurso que promove no outro a subjetividade.

Envolver os colegas no real do matema , sem recorrer a algum significante, isto é, fora da transferência analítica, qualquer que seja o S1 da instituição deve se tornar um resto à prática, por isso, deve vir separado de qualquer S2 preliminar.

O destino da avaliação vem da permissão ou do direito de tratar (lista de profissionais, garantia do dinheiro público) a discussão sobre a natureza dos aspectos do mal-estar social real e a avaliação do projeto clínico que se segue:

1. criar agências de cuidado orientadas pela psicanálise e solicitar um crédito encontrado na irredutibilidade do mais valor terapêutico ao mais gozar do sujeito. Deve-se modificar os critérios do crédito;

2. a formação dos profissionais:

- a solução italiana tem a vantagem de acreditar em cada agência de formação e a desvantagem da educação universitária (formação generalista em Psicologia, o controle do Ministério da Educação e a exclusão dos altos cargos aos diplomados em escolas privadas);

- as resoluções sociais recompensaram algumas escolas e associações que, após abandonarem o confronto clínico, modelaram-se às determinações recebidas pelo Estado.

Em todo caso, o espaço político aberto pelo debate continua como o lugar da pesquisa (construção de caso, apresentação de doentes). Trata o real do cuidado (relação terapêutica) com um "pluralismo das línguas", mas com a disciplina lógica indispensável para contornar, de modo sempre novo, o real.

Sem isto, a idéia de saúde mental se torna uma apresentação ideológica de um ideal performático que prescinde das recaídas clínicas. Isto é, premia o narcisismo da posição perversa e agrava o mal estar social (supereu feroz).

 

 

Endereço para correspondência
carlo.viganofastwebnet.it

Recebido em 3/5/2005

 

 

*Psiquiatra e psicanalista radicado em Milão. Membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Casa Freudiana de Paris. Integrante da comissão de saúde mental da Associação Mundial de Psicanálise.
**Tradução: Roseli Cordeiro Pereira
barcia@barbacena.com.br

***Revisão: Ângela Buciano do Rosário
angelabr@ig.com.br

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