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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.3 n.4 Barbacena jun. 2005

 

ARTIGOS

 

A formação do analista e o sonho eterno da regulamentação

 

The psychoanalyst formation and the eternal dream of his regulation

 

 

Jeferson Machado Pinto*

Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nesse artigo discute-se a formação do analista a partir do conceito de real para a ciência e para a Psicanálise, e das categorias do necessário e do contingente. Com o texto, tenta-se demonstrar que o singular pretendido pela psicanálise estabelece a impossibilidade de uma regulamentação baseada em um saber de referência universal.

Palavras-chave: Real, Estrutura, Necessário, Contingente, Singular.


ABSTRACT

The article discusses the analyst formation from the point of view of the scientific concept of real, the logical categories of the necessary and the contingent, and their specific use in psychoanalysis. The text argues that the particular sense intended by psychoanalysis imposes the impossibility of any regulation based in a universal referent knowledge.

Keywords: Real, Structure, Necessary, Contingent, Particular.


 

 

"A descoberta da gramática de uma estrutura singular é o que permitirá inventar o paradoxo de um saber, sempre já escrito e, ao mesmo tempo, novo, que opera no tratamento e na vida."1

Os efeitos atuais do discurso do mestre sobre a formação do médico são um importante alerta para refletirmos sobre a formação do psicanalista diante das pressões para a regulamentação da profissão. O avanço das técnicas de exame por imagem, a massificação e as medidas de produtividade dos atendimentos, a premiação oferecida pelas empresas de saúde se o médico evitar o pedido de exames, a padronização dos procedimentos de acordo com protocolos rígidos e todo um arsenal de quantificação e avaliação que garantam um produto que satisfaça tanto os direitos do consumidor quanto os lucros impõem um verdadeiro tiro no pé no exercício da clínica médica.

O mundo atual sustentado pelo discurso da ciência e pelo capitalismo - um mundo de controle e regulação - impôs um critério de eficácia (definida por uma resolutividade quantificável) que impede o próprio exercício clínico da medicina. O médico é, hoje, um técnico em procedimentos específicos. Se antes as restrições inerentes à estrutura do discurso médico já dificultavam um atendimento personalizado, hoje ele é impossível. Todo procedimento está previamente determinado pelos protocolos. O erro médico torna-se facilmente definido pelas conseqüências do desvio dos termos dos protocolos. Médico e paciente estariam, assim, protegidos do acaso e da invenção.

E o psicanalista, dentro dessa política de marcos regulatórios? Essa política nos coloca diante da exigência de demonstrar, cada vez mais rigorosamente, uma ética da singularidade. Se o inconsciente é a política - a do discurso do mestre - como instituir a política da falta-a-ser? Como sustentar a Psicanálise como o avesso dessa política universalizante e padronizadora? O diálogo com a política e a ciência se torna, ao mesmo tempo, mais sutil, exigente e pesado. Mas, e o analista? Também ele não ficaria fascinado por um saber universal que lhe garantisse uma identidade?

É impossível prescindir dos conceitos universais, dos matemas e aforismos que valem para todos, das regras de funcionamento das estruturas etc. Caso contrário, poderíamos trabalhar apenas como literatos preocupados com a estilística e a poética; com os efeitos estéticos, enfim. Porém, é imprescindível também, em nosso caso, uma enunciação que facilite a recepção da interpretação pelo analisante de modo a propiciar a subjetivação do real. Ou seja, não podemos nos apoiar estritamente na vertente científica da psicanálise, aquela que nos permite localizar o significante e seus efeitos de mestria. A subjetivação do real depende, também, da forma como a interpretação é veiculada para cada analisante em particular.

A formação do analista é, assim, complexa, senão impossível. Pode ser que se torne especialmente complicada nesses tempos pragmáticos e de preocupação exagerada com o valor agregado e a capacidade resolutiva das práticas profissionais. Mas, independentemente do contexto atual, estamos sempre nos recolocando a questão da formação do analista entre o universal e o singular: como garantir uma formação que se apóia no pulsional para a definição do estilo e da singularidade sem desconsiderar a vocação científica da psicanálise? No nosso caso, o sujeito não se encontra entre o necessário e o contingente? Entre um impossível decorrente da repetição imposta pelo necessário e uma contingência que faz cessar o que não cessa de não se escrever? Entre o universal da função fálica e a constatação exibida pela contingência de que o falo não funciona todo? A formação do analista está, como sempre esteve, na via da castração, isto é, no avesso do que o discurso do mestre nos exige explicitamente.

O mundo regulatório de hoje faz com que as resistências antigas à psicanálise leiga pareçam banalidades. Porém, atualmente, após um século de prática clínica, os analistas são em maior número, mais organizados, dialogam mais e têm mais argumentos. E, principalmente, como disse Lacan em Televisão, o discurso do analista ainda não começou. Trata-se, para mim, de uma exortação a não recuar diante dos obstáculos, pois é nos obstáculos que o real a ser tratado se revela, seja em uma análise, nas instituições ou na própria cultura. A batalha de Lacan pela singularidade é inovadora e penso que ainda temos muito a descobrir em seus ensinamentos.

Em seu texto Talvez em Vincennes, por exemplo, Lacan diz que Freud formulou que o analista deveria se apoiar nos ensinamentos que extrai de sua própria análise, "isto é, saber não tanto para que ela serviu, mas de que se serviu" (LACAN, 1975/2003, p. 316). Não se trata somente de ajudar o analista com ciências propagadas à moda universitária, mas de fazer com que essas ciências possam se renovar a partir da experiência da psicanálise.

Há aqui uma inflexão vigorosa: o discurso instituído a partir da episteme garante que todos poderão se beneficiar do saber, ao passo que Lacan convoca a renovação do saber a partir do que o sujeito se serve para fazer análise. Como o sujeito utiliza a língua e o significante para tratar o real? Como as proposições não dotadas de significação, como algumas proposições psicóticas, por exemplo, podem contribuir para o avanço da lingüística? Como o sujeito decide, a partir do que não se pode decidir, os destinos do gozo? Como pode fazer um bom uso do saldo de gozo da análise? De que modo o sujeito se serve do significante e do sintoma para ser feliz na vida? Essas são algumas das questões com as quais a epistemologia e a ética poderiam se enriquecer a partir da experiência do sujeito com a análise.

Lacan conclui aquele artigo dizendo que só há despertar particular, quando se desdenha da possibilidade de um discurso agenciado pelo saber despertar de seu sonho eterno. Temos de pensar se isso não é válido para qualquer transmissão que enfatize as relações necessárias como, por exemplo, a vertente do "Freud explica" e da paixão pela decifração, no caso da psicanálise. Ou mesmo, despertar do sonho eterno da identidade de médico, filósofo ou psicanalista, aqueles sujeitos que são o produto de uma estrutura agenciada por um saber que se sustenta pela relação com um dado objeto, seja ele uma droga, um equipamento ou um analisante convertido em astudante. Como sustentar o efeito do singular, qual seja, o de nos acordar do comodismo da interpretação? Como não subjugar o inesperado mediante o estabelecimento de relações de sentido que eliminam seu impacto inovador? Como não cair na armadilha do gozo do sentido que apenas sustenta a repetição e impede a invenção?

Há uma paixão disseminada pela decifração baseada na idéia de que tudo está recalcado. Supõe-se que a interpretação ligaria eventos determinantes e esclareceria o nexo causal entre componentes simbólicos. Essa atitude pressupõe o raciocínio circular de que há um enunciado inconsciente que funciona como causa de outro enunciado e esquece que o sujeito não pode ser causa de si mesmo. O fato de que o enunciado seja inconsciente não lhe garante o estatuto de causa. A análise, assim conduzida, seria baseada na rememoração e no desvelamento do que já estaria lá, pronto para ser explicitado. O saber do analista seria da ordem do esclarecimento e seu retorno como interpretação teria, como conseqüência, o efeito de eliminar o particular. Como afirma Lacan, os efeitos de uma interpretação são incalculáveis. Por isso, cabe mais ao analista a sustentação do enigma pulsional que funciona como causa do que se estrutura como uma linguagem.

Esse problema afeta também a transmissão e o ensino já que se trata de uma relação particular com o saber. Como sustentar a política da falta-a-ser de modo que a transmissão se dê pelos restos da operação analítica que funcionam como letra? Em suma, como transmitir pela letra de Freud e de Lacan, isto é, ancorado mais pelo movimento de suas elaborações do que por meio do saber explicitado em seus enunciados? Esses enunciados constituem nosso campo epistêmico e não garantem a transmissão da letra, do que é ser analista. Ou seja, o que fazer para também não cairmos em sonho eterno e ficarmos a repetir os aforismos universais? Cabe a cada instituição decidir, de acordo com sua particularidade, a maneira de sustentar seus dispositivos, visando não apenas diminuir os efeitos obscenos de grupo como também permitir a cada um colocar seu modo de apreender o movimento do texto analítico.

Um pouco antes de Talvez em Vincennes, em 1973, na Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos, Lacan se referiu à futilidade da ciência, "que manifestamente só progride pela via do tapar buracos", (LACAN, 1973/2003, p. 551) e que é exatamente por conseguir tal façanha que ela se torna segura. Por isso mesmo a ciência garante que sua certeza é transmissível. O real dado pelas letras das fórmulas responde ao modo do que não cessa de se escrever. Basta isso para que o cientista opere, não sem uma dose de torcida para que o acaso não interfira.

Mas, se existe somente o despertar particular, como garantir uma certeza a partir do singular? Como demonstrar que a cifra de gozo de um sujeito particular se constituiu devido a outro modo de conceber o real, aquele introduzido no campo científico pela psicanálise? A psicanálise não mostra que o real de que se trata não é aquele reduzido à escrita das fórmulas científicas, mas, precisamente, o da impossibilidade de se escrever a relação sexual?

Parece que temos uma tarefa impossível: a de demonstrar o real pela contingência, pelo cessamento do que não se escreve. Quanto a isso, contudo, Lacan é taxativo:

"Como não considerar que a contingência, ou o que cessa de não se escrever, não seja o lugar por onde se demonstra a impossibilidade, ou o que não cessa de não se escrever? E que por aí se ateste um real que, apesar de não ser mais bem fundado, seja transmissível pela escapada a que corresponde todo discurso" (LACAN, 1973/2003, p.556).

Ou seja, de que aquele sujeito particular se serviu para tratar esse real? Como essa escapada a que corresponde todo discurso foi subjetivada? Ou ainda, como ela se tornou letra a ser transmitida? Pode ser que o real não possa ser mais bem fundado, pois o que temos como referente é apenas a escapada a que corresponde todo discurso. Trata-se agora de uma "desaparecência, uma desapareciência", como cunhou Branco (2003). Entretanto, é com essa impossibilidade que temos que lidar.

Assim, por mais que a ciência progrida, e talvez exatamente por isso mesmo, mais se evidencia que o real sobre o qual ela adquire algum controle e alguma certeza não se confunde com o real que nos interessa. A ciência e seus protocolos se satisfazem com o que a literalização lhes indica como real. Já a psicanálise lida com um sujeito que suporta o real como trauma. O que se escreve com o falo a partir do encontro com o real não recobre tudo. Como já dissemos, o falo não funciona todo e há sempre um resto de gozo a parasitar o que foi escrito. Desse modo, o discurso da ciência e sua episteme não alcançam o particular dos seres cujo discurso, em análise, institui o real que nos interessa. Esse discurso, na contramão da ciência, pode esclarecer não apenas como ela funciona, mas também seus limites.

Podemos, então, afirmar que o fato de que haja sintoma implica que haja real. Se não houvesse esse modo de real trazido pela psicanálise poderíamos escrever a relação de um sexo ao outro e construir um saber que nos trouxesse a capacidade de prever, como no funcionamento instintual. Nesse caso, não haveria sintomas a serem tratados, somente transtornos. Talvez pudéssemos até escrever protocolos à moda científica. Porém, em nossa clínica, somos continuamente confrontados com o que não cessa de não se escrever. Contudo, isso só é constatado porque algo necessariamente se repete, algo pôde se escrever a partir daí. Isto é, algo se tornou cifrado a partir do real. Há uma estrutura que se organiza diante do real de modo contingente e dela podemos até deduzir alguns tipos clínicos.

Esse fato pode ser escrito e, às vezes, acredita-se nisso a tal ponto que a estrutura passa a ser identificada com a escrita do real, de modo semelhante à ciência. Esquecemo-nos, freqüentemente, de que a estrutura é a do semblant e, como tal, caracteriza-se por não ter referente. Assim, saber do modo de funcionamento universal do falo, que vale para todos, não nos habilita, necessariamente, a conduzir uma análise em direção à causa do desejo. Cito Lacan: "O que decorre da mesma estrutura não tem forçosamente o mesmo sentido. É por isso que só existe análise do particular: não é de um sentido único, em absoluto, que provém uma mesma estrutura..." (LACAN, 1973/2003, p.554).

Logo, o diagnóstico estrutural que garante nossa posição científica e o saber que dispõe sobre o funcionamento de todos os histéricos, por exemplo, não pode servir de referente para o sentido textual produzido em uma análise. O sentido do semblant é particular e se manifesta de modo contingente, pelas brechas do não-todo, como nos ensina a teoria lacaniana da feminilidade. Temos que desvendar, no caso a caso, como o singular se constituiu a partir de elementos universais. Esse, certamente, é um dos motivos pelos quais devemos estar alertas para a crítica de Lacan ao tratamento padrão. Não é possível fazer o conjunto das mulheres. Elas devem ser consideradas individualmente.

É por isso que a decifração do sentido em um caso não tem serventia para outro. Aliás, a experiência do analista pode ser contrária à sua formação e se tornar um obstáculo na condução do tratamento. Aquele que está ocupando o lugar de analista pode se ver tentado a repetir algumas manobras que foram eficazes em outras análises. Nesse caso, ele não lê o que se passa naquela situação particular e perde sua capacidade de invenção. Assim, acho que a psicanálise, talvez, seja uma das poucas profissões em que a experiência pode contar contra a prática do ofício.

A psicanálise deve manter, então, uma relação feminina com o saber, dada sua finalidade de fazer com que o sujeito se verifique diante de um gozo Outro que não o previsto pela literalização fálica. Assim, a formação do analista - ao se dirigir ao mais além da ciência - parece se escrever pela mesma relação lógica que o gozo da mulher mantém com a função fálica: contingência e singularidade.

Se uma análise pudesse ser previamente ordenada e garantida pelo saber ou pelo regime do necessário, desconsiderando-se o acidental que revela o impossível da relação sexual, seria fácil formar analistas e estabelecer os protocolos que regularizassem seu exercício profissional. As instituições poderiam se organizar e excluir a dimensão do não-todo, impedindo, fantasmaticamente, a particularização de seus membros. O outro ponto do tripé freudiano, a supervisão, seria, conseqüentemente, regida pela mestria do saber e aí, muito provavelmente, jamais acordaríamos do sonho eterno da mesmice.

 

Referências

BRANCO, L.C. Como nada mais passa na vida, exceto ela - notas sobre a experiência do passe. In: A escrita do analista. (Orgs. GONTIJO, T.; RODRIGUES, G.; FURTADO, A. M. F. e SALIBA, A.M.P.M.). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2003.        [ Links ]

LACAN, J. Talvez em Vincennes. In: J. Lacan, Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1975-2003        [ Links ]

LACAN, J. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: J. Lacan. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1973-2003.        [ Links ]

LACAN, J. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1974-1993.        [ Links ]

VIEIRA, M. A. A Ética da Paixão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Levindo Lopes 333, sala 410 - Savassi
30140-911 Belo Horizonte-MG
jefpinto@uai.com.br

Recebido em 10/02/2005

 

 

*Psicanalista, professor adjunto do Departamento de Psicologia da UFMG.
1VIEIRA, Marcus André. A ética da paixão, p. 17.

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