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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.3 no.4 Barbacena June 2005

 

RESENHAS

 

 

Ana Mary Baeta Pereira*

UNIPAC/FASAB - Barbacena

 

 

SANDLER, Paulo César (Org.). Leituras psicanalíticas da violência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004 (Coleção Psicanálise clínica, sociedade). 173 p.

 

Paulo César Sandler é membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; presidente da Associação Brasileira de Psicanálise de São Paulo; presidente da Associação Brasileira de Psicanálise (1991-1993); editor da Revista Internacional de Psicanálise (1995-1997) e da revista da Federação Psicanalítica da América Latina (2000-2002); organizador das exposições Freud: Conflito e Cultura/Brasil: Psicanálise & Modernismo (2000) e Freud e o Judaísmo (2000); membro do board e do Grupo de Trabalho sobre Terror e Violência Política da Internacional Psychoanalytical Association (IPA).

 

 

Leituras psicanalíticas da violência

A obra é uma coletânea de textos organizada por Paulo César Sandler, com a colaboração do Departamento de Publicações da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, e fruto de um trabalho de equipe formado por Magda Guimarães Khouri, Jassanan Amoroso D. Pastore, Inês Zulema Sucar, Raquel Ajzenberg e Reinaldo Morano Filho. Ela oferece ao leitor horizontes para a reflexão crítica sobre a implicação da Psicanálise no assunto da violência, um tema de interesse atual por entranhar-se na própria condição humana.

O pensamento dos autores privilegia reflexões na interface com a cultura; alguns artigos apresentam questões sobre a criação da linguagem, a construção civilizatória e os desdobramentos do terror na cultura.

No primeiro capítulo do livro, Deodato Curvo de Azambuja, faz uma introdução ao tema "violência", referindo-se a ela como "um toque no corpo, uma invasão dos limites". O autor procura defini-la como uma ruptura, uma paranóia, um desequilíbrio e faz uma reflexão sobre a necessidade da percepção da violência, da maldade, da agressividade, do desprezo, da realidade que assedia para retomar o espaço de sonho e de pensamento. De acordo com a reflexão do autor, nas situações de violência gratuita, o criminoso que invade o corpo do outro e lhe tira a vida está, ele mesmo, sem espaço, como se não tivesse sido desenvolvida uma interface entre as realidades interna e externa, como se não existisse ego, mas somente id - pulsão e nenhuma simbolização.

No texto O medo, a violência e as palavras, a psicanalista Cíntia Buschinelli parte do poema O medo, de Carlos Drummond de Andrade, referindo-se a ele como uma experiência comum a todos. Refere-se ao medo despertado quando a vida se inicia que, nas palavras do poeta, exprime-se como ausência de luz - o escuro. Drummond sugere três possibilidades para a existência: carteiro (que caminha pela rua levando palavras), ditador ou soldado, (uma dupla inseparável: aquele que manda e outro que obedece. Aquele que é o líder e fascina e o outro que é fascinado. Aquele que sabe e o outro que ignora, que está uniformizado, portanto roubado de sua singularidade e que vai à guerra. Que mata e morre).

Buschinelli tece relações dessas três identidades com o texto de Freud: Por que a Guerra? (1933) e cria encontros possíveis no campo da metáfora, em que também se situam os textos do médico Junqueira Filho e do artista e filósofo Ricardo Barreto. Estes dois últimos analisam o Filme de Peter Grenaway, O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e seu amante e o descrevem como um pesadelo povoado por perversões da libido, que retrata a luta entre amor e desamor e percorre "o mundo material e o mundo espiritual, a usurpação e a revolução, o obscurantismo e o iluminismo, a esterilidade e a criação, a queda e a purificação, o canibalismo e o aprendizado, a tolerância e o preconceito, enfim... Eros e Tânatos". O enredo do filme é descrito como um melodrama contemporâneo, centrado em um dos tabus de mais difícil digestão para a mente humana - o canibalismo. Ao final do texto, os autores lançam um olhar retrospectivo para o filme e percebem que ele comporta vários enfoques interpretativos, em termos psicanalíticos. Fazem um exercício de interpretações baseado nas idéias de Melanie Klein sobre as situações iniciais da ansiedade e seus efeitos no desenvolvimento emocional das crianças, focalizando as formulações Kleinianas em um dos personagens do filme.

Leopold Nosek, membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, conceitua o termo "terror" em contraponto ao "terrorismo". Nosek mostra que no vazio do mundo surge a necessidade da arte e da construção do humano. No decorrer de sua reflexão, faz associações da violência com textos clássicos como Édipo de Sófocles e Eurípides, destacando o drama de Medéia, caracterizado pelo ódio sobre-humano que se segue à profunda humilhação a que é submetida em função de sua ligação e seu amor por Jasão.

Sob uma outra perspectiva, o psicanalista Ignácio Gerber traça relações entre amor, medo e ódio, por meio dos quais se reflete que "do medo surge o ódio e a violência", considerando o medo como a primeira causa da violência, que se torna causa imediata do medo. O autor leva em consideração o amor e o medo presentes na origem do ódio e da violência.

Na relação do campo psicanalítico com o campo social, o psiquiatra Otávio Fagundes procura definir a violência como situação traumática, expressão da destrutividade do sujeito contra o outro e contra si mesmo, com uma representação psíquica e social. Destaca consagrados pensadores da Psicanálise como Freud, Bion, Klein, Winnicott, relacionando-os com autores contemporâneos.

Nessa abordagem, a psicóloga Raquel Pires faz uma relação entre a violência social e a violência interna do sujeito e reflete sobre a dificuldade do ser humano em perceber sua própria destrutividade. Ela destaca aspectos do funcionamento mental que, em menor ou maior grau, conduzem ao afastamento da realidade e, portanto, constitui a expressão de violência. Faz, também, considerações sobre a evasão da dor mental, tendência marcante da sociedade atual. Na reflexão da autora, uma vez que a aquisição de conhecimento implica na perda da onipotência e da fantasia de completude, ela só vai ocorrer se houver capacidade de tolerância à frustração e à dor mental. Assim, nos estados de evasão da dor, é comum a substituição do conhecer pelo saber e da segurança pela certeza. O pensamento e o processo de aquisição do conhecimento são substituídos por onipotência, arrogância, conduzindo o sujeito ao distanciamento dos mundos externo e interno.

Plínio Montagna apresenta uma visão multidisciplinar do tema e faz uma análise da história da humanidade através dos séculos. Traz estudos sobre a relação indivíduo-grupo e oferece ao leitor autores que trabalham a concepção da mentalidade de grupo e de seu papel na interação do psiquismo individual e grupal, tornando compreensíveis os comportamentos, de outro modo quase inexplicáveis, de indivíduos no grupo. Descreve estudos atuais sobre a violência humana na guerra e suas possíveis conexões psicológicas e comenta sobre como a cultura contemporânea banaliza a violência.

A psicanalista Isabel Khan Marin faz uma reflexão sobre o dilema que se impõe ao indivíduo contemporâneo de buscar formas criativas de se inserir na cultura por meio da tentativa incessante de se fazer único e singular. Tal processo implica num confronto contínuo com as exigências da civilização, que faz com que o sujeito enfrente o sofrimento da renúncia pulsional, buscando encontrar formas prazerosas de viver, sem aniquilar o outro que põe obstáculos à sua satisfação. A partir desse tema, a autora procura explicar o aumento das manifestações da violência na sociedade, relacionando-o com a tendência de negar a própria violência.

O psiquiatra e psicanalista Luiz Tenório de Oliveira Lima apresenta as relações entre a teoria psicanalítica e a Antropologia a partir de A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900) e Estudos sobre a histeria (FREUD, 1895), referindo-se às idéias de Freud sobre os destinos da identificação no processo civilizatório. Oliveira Lima desenvolve suas idéias ao utilizar, como modelo, a resposta de Freud à carta de Einstein, de 1932, Por que a Guerra? que trata da tentativa de um olhar, no âmbito e nos limites da disciplina e práticas psicanalíticas, sobre um tema momentoso, não apenas em planos microscópicos, como nos grupos, mas também na coletividade mais extensa, como na comunidade das nações.

Paulo Sandler desenvolve um texto de associações livres, com leituras pessoais em torno do ciclo autobiográfico de W. R. Bion, dando ênfase a War Memoirs. A obra demonstra que para melhor compreensão da cultura contemporânea é preciso levar em conta a grande influência que a Psicanálise, desde sua implantação, exerceu, sendo o contrário também verdadeiro. Ao ter em vista a turbulência da sociedade atual, torna-se necessário que a singularidade, a escuta da subjetividade e a busca de sentido sejam resgatadas.

Um olhar psicanalítico da violência, sintoma marcante da atualidade, é a proposta deste livro que foi cuidadosamente elaborado e traz, em cada texto, a sua própria singularidade, oferecendo ao leitor diferentes visões de autores que abordam a representação e o impacto da violência cotidiana na vida psíquica do sujeito.

 

 

*Aluna do 5º período de Psicologia - UNIPAC/FASAB - Barbacena

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