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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.3 n.5 Barbacena nov. 2005

 

ARTIGOS

 

A avaliação e seus destinos: outras considerações1

 

The evaluation and its destinations: other considerations

 

 

Carlo Viganò I, II*; Roseli Cordeiro Pereira (tradução); Ângela Buciano do Rosário (revisão)

I Associação Mundial de Psicanálise
II Causa Freudiana de Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No artigo aborda-se a preocupação social com o custo econômico das práticas terapêuticas. São propostos três tempos lógicos para o cálculo da clínica: instante de olhar, tempo para compreender, momento de concluir. Nesses tempos fica ressaltado que o sujeito é o objeto que se deve calcular. Ao destacar a orientação analítica para a avaliação, afirma-se que o primeiro dever para a psicanálise é o de escutar aquilo que trabalha contra o ideal enunciado, a exigência unívoca da medida que levou ao silêncio.

Palavras-chave: Psicanálise, Avaliação, Tempo lógico, Sintoma, Clínica.


ABSTRACT

The article approaches the social concern with the economic cost of practical the therapeutical ones. Three logical times for the calculation of the clinic are considered, which are: instant of looking at, time to understand, moment to conclude. In these times he is salient that the subject is the object that if must calculate. When detaching the analytical orientation for the evaluation affirms that the first one to have for the psychoanalysis is to listen what it works against the enunciated ideal, the univocal requirement of the measure, that led to silence.

Keywords: Psychoanalysis, Evaluation, Logical time, Symptom, Clinic.


 

 

A evidência clínica

Hoje o analista tornou-se sensível ao tema da avaliação, porque a exigência social de se calcular o custo econômico das terapias começa a tocar sua prática. O motivo é simples: as instituições que planejam as intervenções têm autonomia para operar seu cálculo, podendo renunciar à avaliação da qualidade clínica das intervenções que programam e regulamentam.

Ao omitir um tempo lógico, determinante para a coleta de dados, o cálculo perde sua ancoragem real e vem pré-determinado pelos resultados que se que alcançar. Para clarear, agrupamos em três tempos lógicos os componentes do processo. Elucidamos que se trata de três grupos de operações, não necessariamente ordenadas em uma seqüência temporal, mas como um algoritmo semelhante ao elaborado por Lacan em O tempo lógico.

1- Um instante para olhar é o olhar clínico, a operação que isola as formas clínicas. É uma seta que estabelece as "evidências" e coincide menos com o diagnóstico clássico das categorias. Esse último vem aumentando significativamente, pois prefere a categoria sociológica de "distúrbio" e, portanto, difere-se da evidência clínica que inclui o tratamento, a contingência clínica. A quantificação epidemiológica, na lógica da avaliação, deveria considerar aquilo que, em uma dada população e em uma dada cultura, resulta na "evidência". No caso das terapias obrigatórias, devem conservar seu valor de exceção.
Um indicador da necessidade de inverter essa tendência é dado propriamente pela comissão que redige o DSM. Tal comissão vem estudando, há mais de dois anos (com o objetivo de publicá-lo em 2007), um novo manual do tipo "dimensional". Devemos acrescentar que o recurso à dimensão psicopatológica não é ainda suficiente para introduzir a evidência, que fica ancorada ao "caso". Este não é, portanto, um tempo de mensuração, mas de avaliação. Tem o propósito de avaliar quais os dados corretos para as mensurações serem submetidas ao tempo lógico sucessivo.

2- Um tempo para compreender é aquele que hoje vem mais pressionado, tragado pelo tempo lógico sucessivo. O argumento que cala todo debate possível é o de que "não existe dinheiro, devemos cortar despesas" e segue até o absurdo de cortar aquilo que não custa nada, como o voluntariado, a experiência clínica, o que o sujeito está disposto a pagar em pessoa, além de outros absurdos, endossando, assim, a idéia de que todo distúrbio corresponda a um item da despesa, tirando todo valor da política como circulação do discurso. Nesses termos, a mensuração joga um catálogo seu, com a advertência de que se trata de mensuração financeira e não de eficácia terapêutica, que só pode vir se avaliada.

3- O momento de concluir é aquele que hoje tende a agir ao contrário: ao invés de ser um ato político capaz de criar o espaço para o analítico ou o terapêutico, torna-se manobra eleitoral, teatro que enlaça votos no teatro da política. Sua medida não é o amadurecimento de um juízo no tempo precedente, e sim a utilidade de uma decisão imediata. É esse o tempo lógico que pode ser mais explicitamente antianalítico e que não pode contrariar o ato analítico, que se encontraria, sem bases reais, em uma contraposição ideológica.

 

O mensurável e o não mensurável2

Em toda escolha humana existe um cálculo e é por isto que cálculo e sujeito devem andar juntos. Não somente o cálculo tem algo mensurável e algo não mensurável, mas a escolha não existe sem o sujeito. Mais do que empirismo, deve-se falar de pragmática, em que existem os dados do cálculo, a contingência ligada ao fato de que é o sujeito o objeto que se deve calcular e, enfim, o desejo de quem o calcula.

Freud era um entusiasta da ciência, quando essa era ainda ligada a uma forte idéia de causa, como causa natural e, portanto, calculável em termos matemáticos. Lacan, todavia, ao não renunciar à procura de uma fórmula (matema) para a subjetividade, a qual obedece a transmissibilidade no passe, vive no sulco da ciência relativista. Nem tudo do real é matemático, mensurável; a ciência persegue os confins do real, o que fica além do simbólico e do mensurável.

A ciência contemporânea constrói as evidências que têm valor de certeza, no interior do quadro axiomático que as produzem. Dentro dessa perspectiva se move Lacan, com uma diferença: ele não tem necessidade de encobrir com valor universal as certezas que colhe. Para ele, é suficiente dar um estatuto rigoroso, transmissível, à estrutura subjetiva e à operação analítica.

O fim de uma análise não é outro senão a fórmula que contém os significantes fundamentais da história do sujeito e essa pode ser material de um cálculo. É um cálculo útil, ainda que careça de valor universal. No momento que descuida de um elemento de outra ordem, o objeto particular de um sujeito condensa em si a marca incomensurável do gozo de sua existência.

O mesmo argumento vale para a Ciência Biológica3, e ainda mais para a Psicologia e a Sociologia, nas quais a certeza pode resguardar a avaliação de um fenômeno e o cálculo de suas transformações. Porém, não chega a ter um valor predito no que diz respeito às variáveis subjetivas (gozo) que modelam o próprio fenômeno.

 

A avaliação

Com a avaliação é possível passar da ordem da ciência ao empirismo da perícia, constituindo um parecer que utiliza a competência científica. Recolhem-se os dados e, com a dificuldade de agregá-los, surgem as hipóteses e as teorias. Essas não são internas às disciplinas "científicas", Psicologia, Sociologia, Biologia ou psicanálise. A própria avaliação produz o quadro axiomático.

Deve-se realizar uma operação inversa a da ciência: recolher as evidências que as várias disciplinas têm condição de produzir e dar um quadro axiomático próprio, que sirva de cálculo avaliativo. É sobre este ponto que as práticas de avaliação são discutidas.

Em linhas gerais, pode-se dizer que essas práticas foram importadas de algumas disciplinas particulares e foi dado a elas um valor universal, qualificando-as impropriamente como científicas. Aplicam-se, assim, modelos de farmacologia clínica (estudo do efeito placebo) e, em geral, o processo dedutivo que, ao presidir o axioma de avaliação é substituído pelo cálculo estatístico.

Elementos que são heterogêneos, e por isso incomensuráveis, como o emprego de fármacos psicotrópicos, as terapias cognitivo-comportamentais, a psicanálise, o psicodrama etc, recebem arbitrariamente a atribuição de um número para tornar possível um cálculo. Um cálculo que elimina toda referência ao real, fazendo disso uma anticiência.

Seguir o caminho inverso ao da ciência, como Freud mostrou, não significa tornar tudo possível, como gostaria a atribuição imaginária dos números, mas circunscrever o real, o impossível de mensurar, seguindo uma outra via. A "falsa ciência" da estatística, de fato, acaba conferindo o peso da decisão ao fator científico, ao desejo. Pode-se dizer que exista aí uma relação direta entre a imodéstia científica da disciplina de base e seu influxo sobre o momento da avaliação.

Provavelmente, na base dessa aliança perversa está aquela que M. Foucault chamava "biopolítico"; vale dizer "o que faz entrar a vida e os seus mecanismos no campo dos cálculos difíceis e que faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana".

Com isto, porém, saímos do tema da avaliação e entramos em um outro gênero de cálculo, tipicamente contemporâneo: o da felicidade como direito social e valor absoluto. No entanto se decidirmos que tudo deva ser possível, sabemos que está se fazendo um uso cínico do cálculo, que é o da forclusão do sujeito.

 

Uma orientação analítica

Podemos, agora, chegar ao tempo lógico: somente enquanto sujeito pode-se perceber o desconhecido no tema da avaliação. Os objetos ofertados pelo mercado substituem um objeto que é incomensurável, e o desconhecimento resguarda este objeto, não mensurável e não reduzível, a um bom funcionamento. Conseqüentemente, torna-se inalienável um resíduo do incurável, interrogando a economia de qualquer cálculo no âmbito da saúde mental, a qual a sociedade não parece estar preparada.

Para a psicanálise esse elemento incomensurável é, porém, algo dizível. Entretanto, o não falar reduz o sintoma ao puro não funcionamento ou distúrbio. A palavra, e neste sentido coloca-se o problema da avaliação, pode restar somente enquanto consolação, como entretenimento. O primeiro dever para a psicanálise é o de escutar aquilo que trabalha contra o ideal enunciado, a exigência unívoca da medida que levou ao silêncio. É manter legível aquilo que não é mensurável. De fato, algo do ideal que vem do externo responde à natureza do sujeito que dá lugar ao significante mestre S1, que lhe oferece uma organização e, ao mesmo tempo, um obstáculo.

Com a análise, esse algo é extraído do sintoma. Via a ressonância da palavra, encontramos no mensurável o não mensurável. Isso torna completamente diferente a operação do cálculo, porque torna o incurável fecundo. A prática lacaniana não visa o sucesso de todos os casos. Assume a falência em seu centro e transforma a noção de êxito. É um modo de estabelecer uma relação com o real, com a insistência do impossível, pelo qual o fracasso torna-se somente um modo não subjetivado do êxito.

A presença do analista coloca-se no equívoco da palavra para impedir que venha a ser substituído pelo ideal da utilidade imediata (sob o direito à saúde). Trata-se de salvaguardar as oscilações subjetivas do ideal "privado", criado pelo espelho do Outro, entre ideal e desejo, a fim de que um ideal público não venha a expulsá-lo. Dito de outro modo, "a psicanálise... não aponta, ao eliminar sintomas, se não estiver estabelecida a sua função"4.

Esses princípios da prática psicanalítica não podem ser reduzidos a questões técnicas internas ao tratamento. Tais princípios resguardam a estrutura do sujeito e, portanto, deve-se considerar na axiomática da avaliação. Existem os "dados" que podem tornar-se patrimônio comum da saúde mental, se a idéia da utilidade junto ao real da experiência se mantiver. Apesar de correlatas, podemos indicar sinteticamente três delas:

1- A normalidade não é outra senão o sintoma, uma vez elaborado pelo sujeito como medida de sua saúde;

2- O tratamento é a transformação do sintoma que o reduz a agente do desejo (é o sujeito que se trata);

3- Dessa "desconstrução" é possível fazer uma construção transmissível.

 

 

Endereço para correspondência
Carlo Viganò
E-mail: carlo.vigano@fastwebnet.it

Roseli Cordeiro Pereira
E-mail: barcia@barbacena.com.br

Ângela Buciano do Rosário
E-mail: angelabr@ig.com.br

Artigo recebido em: 4/10/2005
Aprovado para publicação em: 17/10/2005

 

 

* Psiquiatra e psicanalista radicado em Milão. Membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Causa Freudiana de Paris, integrante da Comissão de Saúde Mental da Associação Mundial de Psicanálise.
1 Nota da tradutora: este artigo constitui-se em um desdobramento do artigo A avaliação e seus destinos, publicado na Revista Mental nº 4.
2 Os argumentos deste subitem foram retirados de uma relação feita por L. Brusa na Sessão Clínica de Milão, em junho de 2004.
3 Ver o tema da "plasticidade genética" em F. Ansermet e P. Magistretti, inconsciente e plasticidade genética.
4 E. Laurent, Mental número 13 (França).

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