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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.3 no.5 Barbacena Nov. 2005

 

ARTIGOS

 

Uma proposta da psicanálise para o trabalho em equipe na atenção psicossocial

 

A proposal of the psychoanalysis for the work in team in the psychosocial attention

 

 

Ana Cristina Figueiredo*

UFRJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No texto são enfocadas algumas indicações da psicanálise para o trabalho em equipe na atenção psicossocial centrada nos CAPS, destacando a concepção psicanalítica do coletivo não-todo e da transferência de trabalho. Propõe-se uma concepção de sujeito que inclua as dimensões de gozo, ato e palavra como modos de localizar o sujeito e possibilitar a intervenção. No artigo, discute-se brevemente os diferentes dispositivos coletivos da atenção psicossocial a partir do referencial da psicanálise. Destaca-se, ao final, a importância da supervisão continuada como garantia para o trabalho.

Palavras-chave: Psicanálise, Atenção psicossocial, Trabalho em equipe, Atendimentos coletivos, Supervisão.


ABSTRACT

This paper focuses on some indications from psychoanalysis towards a collective team work in psychosocial attention CAPS centered, pointing out the psychoanalytical concept of the non-whole collectivity and the work transference. It proposes a concept of the subject that includes the dimensions of 'juissance', act and parole as ways of detecting the subject in order to make way to clinical intervention and discusses briefly the different collective devices of psychosocial attention under the light of psychoanalysis. Finally it points out the importance of continued supervision as a backup to the team work.

Keywords: Psychoanalysis, Psychosocial attention, Team work, Collective attendance, Supervision.


 

 

O trabalho em equipe é central na concepção dos novos serviços de saúde mental, em especial nos CAPS - Centros de Atenção Psicossocial. Apesar de não estarem tão presente nos ambulatórios, a equipe passa a ser, cada vez mais, o suporte das ações clínicas inovadoras que pretendem ir além do modelo de consultas médico-psicoterápicas. Fala-se em 'equipe' já de um modo naturalizado, mesmo que se saiba que não basta contratar diferentes profissionais e colocá-los em determinado serviço para que se tenha um trabalho 'em equipe'.

A formação das equipes não se dá de modo automático; é preciso construir esse trabalho. Além disso, se já está comprovado que os serviços não podem funcionar isoladamente e devem se constituir em rede no território e, ainda, que essa rede não se reduz exclusivamente aos serviços de saúde, mas abrange outros dispositivos, o trabalho 'em equipe' se torna mais complexo e plural. Há equipes de todo tipo, nos mais variados setores, com as mais diversas funções. Neste trabalho, o foco é sobre as equipes dos CAPS, uma vez que esses serviços, mais do que outros, constituem-se fundamentalmente a partir do trabalho 'em equipe', um trabalho marcadamente coletivo, a partir da convivência tanto entre pares quanto entre técnicos e usuários (pacientes, familiares e outros agentes).

Como se afirmou1, as equipes se organizam e se consolidam de diferentes modos e podem se apresentar com variações e nuances no cotidiano do trabalho clínico nas instituições. Nesse contexto, destaca-se dois modos mais típicos: equipe hierárquica e equipe igualitária.

A equipe hierárquica preserva, como o nome já diz, a hierarquia das profissões, numa distribuição mais verticalizada do poder de intervenção. Logo, nas instituições médicas, prevalece a autoridade do médico, seguida da do enfermeiro ou do psicólogo. O efeito imediato dessa forma de proceder é que a primeira e a última palavra estarão dadas de antemão, seja pelo olhar médico ou pela especialidade que, em determinada situação, se autorize exclusivamente. Esse é o reino natural das especialidades em que a autorização tende a ser mais restrita, numa espécie de manutenção da atribuição de poder em que outras opiniões devem contar o menos possível, pois, caso contrário, a hierarquia estaria ameaçada em sua base. Ou seja, quanto mais hierárquica for a organização da equipe, mais hierarquia ela produzirá. Esse modelo pode ser mais pregnante nos hospitais gerais ou nos hospitais psiquiátricos e nos ambulatórios, mas está presente, ainda que de forma velada, no interior das equipes dos CAPS, podendo predominar em diferentes situações, principalmente em relação ao trabalho dos médicos. Nesse caso, a questão da autorização se confunde com a de uma autoridade vertical, inquestionável.

A equipe igualitária se apresenta no extremo oposto: as especialidades sofrem uma 'implosão', devendo todos os participantes ter a palavra, seja em que momento for. A hierarquia dá lugar a uma autorização difusa e sempre questionável de um profissional por outro. Ao contrário da anterior, as discussões são infindáveis e a cada argumento novo, surge uma nova situação ou uma nova dúvida. Tudo pode ser discutido, e o que prevalece é o confronto de 'igualdades', em que cada diferença pode ser tomada como desavença ou ameaça ao equilíbrio harmonioso do todo, no qual se sustenta a equipe. Aqui, a equipe se sustenta na lógica do 'todo'. O igualitarismo corre o risco permanente de desconsiderar a especificidade de certas ações no trabalho clínico em nome de abolir as especialidades profissionais ou de confrontá-las.

Como, então, resolver o impasse entre esses opostos que trazem a marca de sua própria falibilidade? Nem hierarquia como sinônimo de rigidez ou inflexibilidade, nem igualitarismo como sinônimo de indefinição ou confronto de especialidades. Na prática, o que observamos é uma mistura, uma composição híbrida dos dois modos de funcionamento, de acordo com as situações que emergem. O que poderia ser feito para modificar esse quadro e avançar no trabalho coletivo para além das armadilhas já conhecidas? Qual a participação da psicanálise nisso?

 

Algumas indicações da psicanálise para o coletivo

A primeira indicação que temos da psicanálise é que o coletivo não se sustenta no todo. Numa direção diferente da máxima da Gestalt, que afirma que 'o todo é mais do que a soma das partes', afirmamos que não há todo na soma das partes. É justo essa abertura, essa fenda, que permite que no interior da equipe o próprio paciente, como o que vem do real, faça furo. O susto do primeiro atendimento pode vir de uma demanda enigmática - seja do paciente, de familiares (mais comum), da escola, da clínica médica ou de quem quer que seja -, de uma fala delirante ou de um comportamento disruptivo que fura o suposto 'todo' da equipe.

O coletivo que não fecha difere do coletivismo 'igualitário' que muitas vezes se impõe como garantia da equipe. Não há garantia na clínica, mas há uma direção para o trabalho, um risco calculável. Esse cálculo, no entanto, só pode ser feito a partir do primeiro ato da intervenção. O automatismo dos protocolos de intervenção que ditam o que fazer a priori como, por exemplo, encaminhar para o psiquiatra para medicar ou desenhar o projeto terapêutico com determinadas atividades e freqüência, funciona como uma espécie de anteparo ao real da clínica e oferece suporte para as ações, mas não é suficiente para o enfrentamento das situações cotidianas e para uma abordagem continuada de cada caso.

Se temos protocolos, fichas ou prontuários a preencher, necessários para a organização dos serviços, esses não garantem nossa intervenção, mas podem ser ferramentas para circunscrevê-la, recobrir o real do susto, fazer o profissional ganhar tempo para se situar diante do que se apresenta e, então, intervir, fazer suas perguntas, manobrar esse tempo. Mas como intervir 'em equipe'?

Chegamos a uma outra indicação importante da psicanálise para esse trabalho: não se pode trabalhar sozinho, isoladamente, mas a responsabilidade do ato se situa no um a um. O ato é solitário, mas nem por isso intransmissível. Pode-se produzir um saber a partir do que deve ser partilhado. A responsabilidade do ato de cada um também é partilhável e deve ser retomada em determinado momento do trabalho coletivo. Se isso não for feito, pode se suceder um emaranhado de acusações a cada dificuldade, a cada obstáculo, retornando ao confronto já mencionado.

O que se deve partilhar, afinal? Como partilhar a responsabilidade se é de cada um? Partilha-se a experiência? Sim e não. Sim, porque cada um deve prestar contas do que fez, porque e como o fez. Não, porque não se trata de apresentar sua experiência como um bem ou como algo que foi vivido em seu trabalho como um sentimento ou conflito a ser elaborado. Não se trata também de inquirir sua intervenção para julgar se fez certo ou errado, se cumpriu o que devia etc.

O que se partilha é o que se recolhe de cada caso, a cada intervenção, para se tecer um saber. Como mais uma indicação da psicanálise, o que se recolhe são os elementos fornecidos pelo sujeito, como pistas para a direção do tratamento, para o chamado 'projeto terapêutico'. Essa tessitura é que aponta o caminho a seguir a cada caso, a cada tempo, pois há retificações a fazer freqüentemente, dependendo do rumo do caso, a partir de novas indicações do sujeito.

A direção do tratamento no CAPS é produzida coletivamente; no coletivo não-todo significa que é feita de elementos parciais, contingentes, trazidos para a construção do caso, no sentido que Viganò apontou2. Trata-se de cernir os significantes do sujeito recolhidos no um a um, de reduzir as narrativas e as situações a um denominador comum a esses significantes que insistem, fazendo função de ♦, significantes que representam o sujeito para avançar na oferta de algo que possa afetá-los e produzir algum efeito, seja como suplência ou elemento estabilizador3. É aí que se pode definir o 'projeto terapêutico', e fazer, então, um convite para engajar o sujeito em determinada tarefa ou atividade.

Entretanto, o tempo de compreender não deve se estender indefinidamente. Como mais uma indicação da psicanálise, o manejo do tempo, a partir do tempo lógico4, faz rebater o momento de concluir sobre o instante de ver - o susto do primeiro atendimento - reduzindo o tempo de compreender ao ponto em que os significantes do sujeito que insistem, se fazem valer como operadores no tratamento.

Uma última indicação da psicanálise para esse trabalho coletivo 'em equipe', é a referência à transferência de trabalho proposta por Lacan5 como uma solução para os efeitos nefastos de grupo, que ele habilmente chamou de 'cola imaginária'. Isto é, as rivalidades narcísicas provocadas pelas 'pequenas diferenças' entre iguais que levam à exclusão e à segregação. A transferência de trabalho, não é, como o nome pode indicar, transferir o trabalho para o outro. Ao contrário, a transferência de trabalho é concebida a partir do próprio conceito de transferência, central no tratamento psicanalítico, mas dessa vez como um instrumento do trabalho entre pares. Seria a condição do estabelecimento de um laço produtivo entre pares visando, por um lado, o fazer clínico e, por outro, a produção de saber que lhe é conseqüente. A transferência que deve operar no trabalho em equipe deve ser norteada pelo fato de que há um objetivo comum às diferentes profissões, que é uma determinada concepção da clínica pautada no sujeito.

É importante destacar que quando falamos de transferência de trabalho estamos deixando de lado toda a concepção de transferência que remete à resistência (isto seria realmente o contrário do que se visa) e aos sentimentos amorosos e/ou hostis que lhe são correlatos. Essa é a vertente imaginária da transferência e equivale à inevitável, mas também indesejável, 'cola' apontada por Lacan. Estamos aqui tomando o conceito em sua acepção simbólica, de demanda ao saber, de suposição de saber. Se no tratamento essa suposição passa pelo analista e se dirige ao sujeito do inconsciente, analogamente no trabalho em equipe ela circula entre os pares na mesma direção. O saber é sempre suposto ao sujeito. Se a transferência tal como concebida por Freud e reafirmada por Lacan, com todas as suas conseqüências, é condição para o trabalho analítico, em nosso caso a transferência seria condição para o trabalho 'em equipe'. Como seria isso?

Lacan fala da importância da escolha entre pares, visando ao trabalho. Se no serviço público muitas vezes não escolhemos nossos pares, uma escolha deve ser feita pelo trabalho. Isto significa que essa escolha seja pautada na tolerância das diferenças até o limite da incompatibilidade no trabalho e não apenas em gostos ou preferências pessoais. Isso também é verdadeiro no que diz respeito ao atendimento dos pacientes. Podemos gostar mais de determinada pessoa do que de outra, mas nosso trabalho não pode se limitar a isso, ou seja, não cabe a nós escolher de quem tratar (a não ser no limite da incompatibilidade) e sim, sermos escolhidos pelo sujeito. Se o movimento de transferência (de escolha) é do sujeito, na transferência de trabalho, o movimento é de cada um da equipe em direção ao trabalho, tomando seus pares como parceiros da clínica. A clínica em questão é o que se apresenta do sujeito em algum endereçamento a nós. Um campo comum aí se forma, cujo referencial, grosso modo, é dado a partir do sujeito.

 

O sujeito em questão: do que se trata?

Quando empregamos esse termo 'sujeito', é importante destacar que o diferenciamos de 'indivíduo', 'pessoa', 'personalidade' ou qualquer outro termo que signifique unidade ou todo. O sujeito não é todo; ele é, antes de tudo, um efeito. Um efeito da intervenção do Outro. Podemos dizer que o sujeito porta o Outro na sua própria constituição, nele se aliena e dele se separa pontualmente, parcialmente, e nunca se faz um com o outro. O sujeito não faz Um, nem com o outro, nem com seu objeto. Nada o complementa. Pelo contrário, se às vezes temos a impressão de estar diante de um sujeito completo, a quem não parece faltar nada porque nada demanda, esse deve estar suspenso em seu próprio isolamento, seu autismo particular, sua recusa ao Outro, como o ápice de sua patologia. Cabe a nós provocá-lo para sair disso. O sujeito é uma abertura, é sobredeterminado, como nos ensinou Freud, em sua abertura ao Outro.

Para tratarmos dessa sobredeterminação, considerando a complexa e variada concepção do termo 'sujeito', propõe-se, a partir da psicanálise, pelo menos três referências do termo que subsumem o sujeito do inconsciente: 1- sujeito do gozo; 2- sujeito em ato e 3- sujeito da palavra. Certamente não se trata de três sujeitos, muito menos de três tipos de sujeito. Antes, são três possíveis modos de localizar o sujeito para orientar a intervenção, ciente de que essas apresentações do sujeito estão interligadas e se atravessam, o que torna impossível traçar o limite entre uma e outra ou atribuir uma prevalência de uma sobre a outra.

A referência ao gozo localiza a dimensão pulsional como o modo de relação do sujeito ao objeto. Ou seja, de que modo o objeto, que Lacan nomeia de 'objeto a', incide sobre o sujeito como significante no corpo, circunscrevendo modos de gozo. Estamos no campo da satisfação (pulsional) que não se resume ao prazer e, portanto, inclui a forma mais radical de gozo que é a angústia. O sujeito é tomado pelo gozo que pode ser avassalador (nas psicoses, por exemplo), a ponto de reduzi-lo à posição de objeto. Mas também temos a indicação de formas de gozo do sujeito em seu modo de enlaçamento social, pois o gozo não está necessariamente fora do social.

A referência ao ato aponta a afirmação do sujeito, que Lacan precisou no último tempo dos três que compõem o tempo lógico: o momento de concluir como uma 'certeza antecipada'. É o momento em que o sujeito se afirma em ato, sem mesmo saber muito bem disso. Ele conclui numa precipitação. Essa precipitação pode, no limite, tomar a forma de uma passagem ao ato, ou seja, um ato radical de rompimento com o simbólico, com a demanda ao Outro, com o laço social, puro corte. Nas psicoses, novamente, podemos encontrar essa passagem como solução para a invasão de gozo mencionada acima. Mas o ato também é a possibilidade do sujeito se afirmar numa recusa, no 'não' que ele pode dizer ao Outro, num movimento fundamental de separação.

Por fim, a referência à palavra, no sentido da fala que trabalha na via da elaboração, que Freud denominou, brilhantemente, Durcharbeitung (trabalho através)6. Não é um falar qualquer, mas uma possibilidade dessa afirmação em ato ser conseqüente a um trabalho psíquico que se daria 'através' de uma análise, através de um tempo (tempo de compreender), como um atravessamento. Em nosso caso, é através de nossa oferta de acolher, escutar e acompanhar esse 'trabalho' até onde cada um pode chegar. Isto é, de sustentarmos a transferência que nos é dirigida, muitas vezes de modo plural e disperso, numa demanda de fala.

Esses três modos de apresentação do sujeito servem como bússola para nossa intervenção e fornecem os elementos significantes que recolhemos na construção de cada caso.

Convém mais uma observação sobre o termo 'sujeito', que se refere ao que costumamos chamar de 'singularidade do sujeito'. O que vem a ser esse 'singular'?

A primeira acepção do termo, mais corrente, é a de único, peculiar e exclusivo. Podemos pensá-lo também como um conjunto de fatores num arranjo único, isto é, o que dá a singularidade não é a unidade e sim um composto de fatores estruturais e acidentais que constituem um momento e mesmo uma trajetória do sujeito. O singular pode ainda remeter-se à situação mais do que ao sujeito. As situações que se apresentam são singulares porque, previsíveis ou não, lançam todos e cada um ao trabalho de dar novo sentido, modificar ou simplesmente suportar seus efeitos. Essas duas últimas acepções do termo nos interessam especialmente porque nos serviços como os CAPS o que mais acontece, principalmente a partir da convivência, mas também nos primeiros atendimentos, são situações 'singulares' imprevistas, inusitadas, que nos desafiam para um manejo, digamos eficiente, que leve adiante nosso trabalho a partir do sujeito.

 

Dos atendimentos coletivos

Usamos o termo 'singular' nas situações em que, curiosamente, predomina a experiência do coletivo. A clínica no CAPS se faz no coletivo. E, ainda, o trabalho 'em equipe' não se reduz a um determinado serviço, uma vez que há trocas entre equipes e serviços dos mais variados, na medida em que acompanhamos nossos pacientes em sua trajetória. Essa trajetória envolve, muitas vezes, uma certa peregrinação por diferentes instituições: ambulatórios com diferentes especialidades médicas, internações psiquiátricas e outras, instituições de assistência social, educacional etc. Além disso, a afluência aos serviços é grande e as demandas são diversificadas e nem sempre explicitadas.

O recurso ao coletivo se dá na própria convivência, que é uma característica privilegiada dos CAPS, por meio das diversas propostas de tratamento como oficinas terapêuticas; trabalho protegido; grupos de medicação; grupos e assembléias de pacientes e familiares; atividades conjuntas de lazer e esporte, enfim, o coletivo é a marca dessa clínica já definida como 'ampliada'.

Novamente, tomamos a referência ao coletivo não-todo para pensar esses dispositivos e suas possibilidades. Nesse sentido, é importante chamar a atenção para o inevitável efeito de 'cola imaginária' nos atendimentos de grupo ou nas experiências coletivas das oficinas. Aqui, a transferência de trabalho também pode operar e tomar o lugar dos efeitos imaginários para convocar seus participantes ao trabalho que interessa. O manejo é do profissional que se põe a serviço do sujeito. Cada grupo se reúne com a determinada finalidade que o caracteriza. Vejamos os principais:

 

Grupos de usuários

Os grupos ou reuniões de usuários, também chamados de assembléias, propõem-se a incentivar a participação dos usuários para que se conheçam mutuamente, convivam, tomem decisões sobre sua participação no CAPS e sobre as atividades que envolvem seu tratamento em geral. Em princípio, não se trata de grupos 'terapêuticos', embora possam obter efeitos desse tipo. O eixo central do grupo se sustenta nas premissas da reforma psiquiátrica de autonomia, ressocialização e cidadania. A matéria prima do trabalho é o sujeito da palavra. O grupo opera como um lugar de circulação de fala e deve tirar conseqüências desse coletivo, de modo a convocar todos e cada um em sua responsabilidade no laço social. Aqui, o enlaçamento do sujeito ao Outro se reitera e se reafirma das mais variadas maneiras, bem como suas modalidades de gozo no laço social.

 

Grupos de medicação

O grupo de medicação deve trabalhar diretamente a questão do uso e da função da medicação no tratamento, sem dispersar a discussão para outros temas que podem (e devem) ser tratados em outros espaços; não deve se sobrepor à reunião de usuários, por exemplo. A medicação é um que provoca a elaboração.

O grupo de medicação se propõe a agilizar o trabalho dos psiquiatras, enxugar suas agendas e deixar espaço para o atendimento individual, que tem um caráter de avaliação diagnóstica do paciente e definição de uma nova prescrição. O grupo tem por objetivo fazer os usuários tematizarem e se posicionarem quanto ao uso de medicamentos em seu tratamento, de modo que relativizem sua importância para servir-se deles com mais autonomia, interroguem seus efeitos e proponham alternativas para seu uso. Isso que significa que o medicamento não é, e nem pode ser, a única forma de tratar o sofrimento. Daí a importância da discussão entre os participantes. É fundamental que esses grupos tenham a participação de um médico, que pode estar acompanhado de outro profissional não médico como contraponto. Assim, a autoridade médica pode tanto se sustentar na responsabilidade de medicar quanto na de questionar o uso indevido, abusivo ou iatrogênico dos medicamentos, a partir das indicações dos participantes em que cada sujeito apresenta sua posição. Estar atento ao sujeito da palavra, aos significantes produzidos nesse coletivo a partir do da medicação e situar seus efeitos para cada um, até onde for possível, é uma boa proposta para tratar desse assunto tão relevante e controverso.

 

Grupos de familiares

Os grupos de familiares, em geral, ocupam-se de questões relativas às suas experiências de tratamento de seus parentes e às suas principais dificuldades, o que pode se estender para suas próprias questões frente ao adoecimento, à loucura e suas possíveis soluções. A mobilização dos familiares se dá em torno de questões sobre o que é um CAPS, visando a uma mudança de mentalidade sobre a concepção de 'doença mental' e seu tratamento e ampliando a participação dos familiares nos eventos e demais atividades oferecidas pelos serviços. A importância de sua participação se dá tanto para cada caso quanto para as relações que estabelecem entre si e com o CAPS. Temos aí a possibilidade de um laço social novo, sem dúvida, que deve provocar novas questões e propostas, além de novas experiências que vão além da referência restrita ao tratamento. Aqui, o sujeito da palavra se desloca para os familiares e opera do mesmo modo. Recolhemos suas produções que podem, em muito, ajudar na construção do caso. Se os familiares, de certo modo, são o Outro do sujeito, nesse momento eles estão na posição de sujeito e, como tal, passa a nos interessar. A construção do caso inclui suas produções nessa perspectiva. É comum colhermos informações contraditórias e mesmo opostas às fornecidas por determinado paciente. Tudo isso é material para a construção do caso. Além disso, o laço social novo que se produz é de extrema importância para o avanço da própria concepção de tratamento dos CAPS, que pretende atingir a comunidade em geral, trabalhar extramuros e constituir o território.

 

Oficinas e trabalho protegido

As oficinas terapêuticas e as iniciativas de trabalho protegido são bastante diversificadas em sua oferta e estratégicas no processo de ressocialização dos pacientes7. Distribuem-se entre atividades produtivas, estéticas, laborais, esportivas, de estudo e de lazer. Pode-se obter ou não um produto definido, que pode ser consumido entre seus produtores e/ou exposto e vendido. Da atividade ocupacional para fugir da inércia até a produção, em série, de determinado produto que visa à geração de renda, a oficina terapêutica e o trabalho protegido provocam e põem em causa o sujeito em ato. O trabalho pode ser automático, repetitivo, sem sentido, mas o sujeito pode fazer disso um ato, principalmente se houver um produto como resultado, seja de que tipo for. Temos exemplos freqüentes de produtos estéticos (do campo da arte) ou artesanais, de todo tipo, que resultam do trabalho do sujeito e podem operar uma suplência ou simplesmente uma estabilização. Reconhecer essa afirmação do sujeito é o nosso primeiro passo. Dar um bom destino a seu produto, a partir de suas próprias indicações, pode ser um segundo passo, não menos importante que o primeiro. Recolher esses elementos nas diferentes manifestações do sujeito para a construção do caso e produzir um saber como síntese e como indicador de nossas intervenções seria nosso trabalho final.

 

Para concluir: a função da supervisão

Uma vez definido o trabalho em equipe como trabalho do coletivo não-todo, que opera na transferência de trabalho e é pautado na construção do caso a partir dos elementos dados pelo sujeito em sua dimensão contingente e pontual, resta indagar o que garante sua consecução. Como recolher no coletivo esses elementos que constroem o caso? Como produzir um saber que é ao mesmo tempo efeito e norteador da clínica? Como manter operando a transferência de trabalho?

Em primeiro lugar, a equipe deve se reunir com freqüência e se dedicar à discussão de seu trabalho na direção apontada. Em segundo lugar, a presença de um supervisor torna-se necessária para levar adiante essa tarefa. O supervisor cumpre a função do êxtimo, isto é, de alguém que é ao mesmo tempo externo e interno à equipe. Esse termo foi usado por Lacan para designar um lugar para o inconsciente como o que há de mais externo e íntimo ao sujeito. O supervisor faz as vezes de êxtimo porque por não ser membro da equipe, ser alguém de fora, ele se interage do trabalho por meio de sua constante presença e faz funcionar a transferência entre pares, esvaziando a 'cola imaginária' inerente à convivência. Desse lugar, ele opera como garantia do trabalho, da produção da equipe.

A garantia que está em jogo é a do próprio trabalho, e não uma garantia contra o real inevitável da clínica. Não se trata de proteger a equipe, e sim de sustentar seu cotidiano e conduzir a uma produção permanente. Nesse sentido, a função do supervisor se aproxima do mais um que opera no cartel proposto por Lacan para garantir a transferência de trabalho entre pares em sua Escola. O supervisor como mais um não é um a mais, é o diferencial que permite que o trabalho tenha desdobramentos e seu produto tenha um registro. Eis a diferença que ele pode fazer.

 

 

Endereço para correspondência
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22241-160 Rio de Janeiro - RJ
Tel.: 55-21 2205-7663 / Cel.: 55-21 9324-4552
E-mail: ana.cfigueiredo@terra.com.br

Artigo recebido em: 24/10/2005
Aprovado para publicação em: 7/11/2005

 

 

* Psicanalista, Doutora em Saúde Coletiva IMS/UERJ, professora do IPUB/UFRJ e supervisora de CAPS SMS-RJ.
1 Para avançar a discussão sobre o trabalho em equipe, remeto o leitor ao capítulo II em Figueiredo, A. C. Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicanalítica no ambulatório público. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 4. ed., 2004.
2 Sobre a construção do caso, Carlo Viganò nos dá indicações preciosas em: A construção do caso clínico em saúde mental, Curinga - Psicanálise e Saúde Mental, Belo Horizonte, EBP-MG, nº 13, p.50-59, set. 1999.
3 A questão sobre as diferentes soluções na psicose é controversa. Hoje se discute a suplência ao Nome-do-Pai foracluído ou a estabilização como dois modos distintos de saída para a psicose. Sobre isso ver Curinga - Há algo de novo nas psicoses, Belo Horizonte, EBP-MG, nº 14, abr. 2000.
4 Sobre o tempo lógico, ver Lacan em seu famoso texto "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada", de 1945, que apresenta os três tempos lógicos: o instante de ver; o tempo de compreender e o momento de concluir, marcado pela certeza antecipada que caracteriza o ato. Ver também o livro de Erik Porge Psicanálise e tempo: o tempo lógico de Lacan. Rio de Janeiro: Ed. Campo Matêmico, 1994.
5 A transferência do trabalho é uma expressão cunhada por Lacan para definir as relações entre pares que se escolhem para formar o cartel que seria o tipo de grupo desejável para o estudo da psicanálise e a formação do psicanalista na Escola. Para isso ver LACAN, J. "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola" e "Carta de dissolução" de 1980 em Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Ver também JIMENEZ, S. & QUINET, A. (Orgs.) O Cartel, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1995.
6 Sobre esse importante termo Durcharbeitung recomendo uma pesquisa detalhada em Freud e também a referência de BERNARDES, A. A elaborações de saber na análise: um tratamento do impossível. Tese (doutorado) - Programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica, UFRJ, Rio de Janeiro, 2000.
7 As oficinas terapêuticas são muito diversificadas em sua estrutura e funcionamento. Há diferentes conceituações desse dispositivo que é central no trabalho dos CAPS. Sobre isso ver MOURA COSTA, C. & FIGUEIREDO, A. C. (Orgs.) Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania. Rio de Janeiro: Editora Contra Capa, 2004.

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