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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.3 n.5 Barbacena nov. 2005

 

ARTIGOS

 

A loucura histérica e a psicose

 

Hysterical madness and the psychosis

 

 

Christian Ingo Lenz Dunker*

IPUSP
Unimarco
Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo analisa-se as relações entre o quadro clínico da "loucura histérica", surgido no século XIX, em contraste e comparação com a concepção psicanalítica da psicose. O objetivo é mostrar que se trata de uma variante pouco tematizada da estrutura histérica, tal qual foi investigada por Lacan. Para mostrar a utilidade clínica e diagnóstica representada por esse quadro, recupera-se a especificidade da noção de loucura em Lacan. Os resultados sugerem que a indistinção entre a apresentação clínica da "loucura histérica" e a psicose pode induzir a uma trajetória de internamento e a cronificação psiquiátrica indesejável e desnecessária.

Palavras-chave: Histeria, Psicose, Loucura, Psicanálise, Estrutura.


ABSTRACT

This article compares and analyses relations between the clinical presentation of the "hysterical madness", appearded in the XIX century, and the psychoanalitical conception about psychoses as studied by psychoanalisis. We try to demonstrate that "hysterical madness" is a sort of variant of the structural hysteria as it was described by Lacan. To undercover the clinical and diagnostical utility of this structure we take back the notion os madness in Lacan. Rsults sugest the non diferentiation betwen "hysterical madness" ans psychosis is major factor of risk to cronification and medicalization unwishfull and unnecessary.

Keywords: Hysteria, Psychosis, Madness, Psychoanalisis.


 

 

1- Introdução

Em 1889, o psiquiatra espanhol José María Esquerdo publicou um texto intitulado "Sobre a Loucura Histérica". Trata-se de uma jovem aristocrata, de 17 anos, que não podia ser incluída perfeitamente no quadro clínico de histeria, apesar de sua proximidade com ele. Não havia ataques, nem conversões, muito menos crises de ausência. F. G. (iniciais do nome da dama) simplesmente não apresentava as inibições e as restrições próprias da histeria. Também não se apresentava em estado de "bela indiferença". Ao contrário, seu principal problema era a insubmissão, a "personalidade rebelde que testava a paciência de sua mãe".

Durante períodos bastante prolongados, F. G. agia ao modo de uma excitação maníaca intolerável, que se fazia acompanhar de crises de insônia1. Após passar por um tratamento em um manicômio onde foi medicada com cânfora, soda cáustica, arsênico e ferro fosfatoso, ela se casa e tem seis filhos. No entanto, seu comportamento inconveniente e inadequado persistiu, de forma que acabou sendo assassinada por seu marido em função dos sucessivos atos públicos de adultério. A observação crucial de Esquerdo refere-se à advertência aos que se dedicam à clínica da loucura histérica, um quadro sobretudo perigoso, pois "contamina e infecta o subconsciente do homem médico que trata dela, especialmente quando o jovem médico é dado à neotecnicalidades".2

Deste caso destacam-se dois aspectos da loucura histérica:

(a) a presença de atitude renitente, marcada por atos disruptivos do ponto de vista do laço social;

(b) o impacto subjetivo que esta atitude causa no médico.

A melhor ilustração clínica para a loucura histérica vem do célebre caso de Janet, Madeleine Lebouc, uma paciente que entrava constantemente em impressionantes êxtases místicos3. De fato, vários elementos colaboram para a associação entre loucura histérica e seu caráter anti-social. Ela foi descrita inicialmente pelos alienistas alemães do princípio do século XXI, no contexto da psiquiatria da guerra. Essa situação de ruptura e acirramento do liame social parecia desencadear ataques epidêmicos de loucura histérica. A criminologia foi também solo rico para o desenvolvimento da loucura histérica. Muitos crimes abruptos, inexplicáveis e aparentemente incompatíveis com o personagem social de seu autor, foram discutidos à luz da loucura histérica, particularmente na psiquiatria brasileira do início do século XX. A loucura histérica foi chamada também de "loucura moral" por Falret (1866) e Saule (1883) e de "loucura neuropática" por Moreau (1869). Laruele (1908) destacou seus traços clínicos mais marcantes, em clara oposição entre os fenômenos da linha hipnóide e os fenômenos da linha do ato:

[...] início repentino, freqüentemente após um choque emotivo. Revivescência onírica do traumatismo. O delírio, com carga emocional, acompanha-se de uma dramatização excessiva de caráter espetacular. [...] Os temas delirantes são freqüentemente místico-sexuais, mas estes temas podem ser facilmente sugeridos. O delírio pode durar de algumas horas a alguns dias.4

O crime, o desvio, o êxtase; a loucura histérica parece ser uma forma clínica que não se absorve ao laço social dominante. Ao contrário das histerias convencionais como a histeria de retenção, a histeria de defesa e a histeria de angústia, parece ser o próprio corolário complementar deste laço social. O caráter manifestamente anti-social da loucura histérica contribuiu e continua a contribuir para que sua trajetória se associe à internação, à medicalização e à psiquiatrização, às vezes legitimado pelo diagnóstico "informal" de psicose histérica.

Um dos traços mais perturbadores da loucura histérica contemporânea é, às vezes, o seu próprio apelo ao internamento. São sujeitos que, muitas vezes, insistem para que sejam retirados do local onde vivem ou do convívio familiar. A sociabilidade típica de instituições asilares ou de confinamento parece particularmente ajustada a essa demanda de ruptura do laço social.

O objetivo deste trabalho é distinguir, clinicamente, a loucura histérica da psicose e também das outras formas de histeria, de modo a contribuir para um melhor diagnóstico.

 

2- A loucura histérica e o laço social

A ligação entre a loucura histérica e sua implantação social decorre da vasta tradição do moralismo psiquiátrico francês. Falret (1866) descreveu a loucura histérica pela sua versatilidade emotiva, ciclotimia, espírito de contradição, tendência à mitomania e à mentira, impulsividade, gosto pelo devaneio, propensões eróticas e ciumentas, tirania familiar e excentricidades5. Morel (1860) também havia reservado um lugar para a loucura histérica, separada da loucura epilética e da loucura hipocondríaca. Ou seja, nitidamente se excluíam desse quadro as grandes formações conversivas (hipocondria) e também as os grandes ataques (epilepsia). Para Morel, a loucura histérica se caracterizava:

[...] pela extrema mobilidade dos fenômenos patológicos (sucessão de períodos de exaltação, de prostração e remissão completa), pela presença de alucinações e delírios "extravagantes", pelas propensões impulsivas (homicídio, suicídio, incêndio e outros "atos de natureza ruim", e pela tendência a términos deploráveis na hebetude [...].6

Confirma-se assim, historicamente, uma forma de histeria que não foi, em absoluto, o foco dos estudos psicanalíticos, ou seja, não é uma patologia centrada nos afetos nem no corpo, mas nos atos. Se Madame Bovary, de Flaubert, continua a ser um protótipo literário indiscutível para a histeria de defesa, Carmem, de Prosper Merimé, a cigana devastadora e inconseqüente, seria seu homólogo nos termos da loucura histérica. Por isso, poder-se-ia incluir a loucura histérica no que os ingleses chamam de patologias baseadas no enactement. Talvez o caso da jovem homossexual7 seja o relato clínico que mais se aproxime desta condição clínica. Curiosamente, a discussão diagnóstica feita por Freud se interessa mais pela disposição à homossexualidade do que pelo caráter nitidamente histérico do quadro. Isso provavelmente ocorre porque os pontos nodais do caso são todos relativos ao ato:

(a) o ato continuado de interessar-se pela dama de reputação duvidosa;

(b) o ato de jogar-se da ponte sobre os trilhos (niederkommen).

Além disso, Freud enfrenta na transferência a mesma dificuldade levantada pelo sombrio psiquiatra espanhol, a tendência a infectar o inconsciente do analista. Maior exemplo disso é que quando a jovem homossexual traz um sonho heterossexual, Freud interpreta tratar-se de apenas uma tentativa de responder ao que ele esperava dela. Ele literalmente evade-se do caso, sugerindo dificuldades incontornáveis no plano da transferência.

É, portanto, no nível moral da mentira e da falsificação que também Freud parece absorver a loucura histérica. Note-se como esta antiga categoria psiquiátrica reaparece no DSM-IV ligada a um dos quadros mais morais de toda a Psiquiatria contemporânea: a Síndrome de Ganser.

A Síndrome de Ganser pode ser considerada a apoteose das histerias. Nesse caso, se fosse nominalmente possível, o termo mais correto seria Loucura Histérica. Trata-se de um Transtorno Dissociativo que se manifesta por uma produção voluntária de sintomatologia psiquiátrica muito severa, exuberante e inusitada. No exame desses pacientes podemos perceber respostas incoerentes e discurso despropositado, cujo objetivo é convencer solidamente o observador de que o paciente, de fato, está louco.8

Ora, a representação não especialista da loucura nos aponta para o indivíduo que recusa as formas morais, normativas e convencionais do laço social. Por outro lado, vários autores têm mostrado como os esquemas de representação popular da loucura, como depositária da marginalidade antropológica e do indivíduo desviante, atuam operativamente na prática diagnóstica psiquiátrica. Por exemplo, a recusa à entrada no universo do trabalho ou à forma monogâmica, familiar e heterossexual, compulsória em nossa cultura, age como uma espécie de segundo plano, ressignificando os critérios diagnósticos formais e o tipo de tratamento dispensado aos pacientes em contexto institucional9.

A importância do laço social como referência para o diagnóstico da histeria se confirma em Lacan, principalmente na chamada Teoria dos Quatro Discursos10. Para Lacan, o discurso faz laço social na medida em que determina um regime de relações de poder e de desejo. Os lugares discursivos do agente e do outro (o destinatário prescrito pelo discurso) são deduzidos da relação entre o senhor e o escravo. O discurso se define também pela forma de gozo que ele contém e produz. Aqui, a analogia se dá entre essa forma de gozo e o que Marx chamou de mais-valia. A terceira característica de um discurso é que ele mantém em isolamento o lugar da verdade. Assim, um discurso mantém-se e reproduz-se à condição do encobrimento do elemento que nele vem a ocupar o lugar da verdade. Por conseqüência, um discurso não pode, em si mesmo, revelar sua própria verdade, que só se mostra quando o interpretamos desde outro discurso. Nesses termos, a histeria é um discurso que se caracteriza por:

(a) apresentação de um sujeito dividido no lugar de agente, o que se pode associar, historicamente, ao tema da divisão (Spaltung) da consciência, a propensão histérica à dissociação (identificação múltipla), aos estados hipnóides (absence, ausências) e à sugestionabilidade;

(b) localização do outro em posição de mestria em que se alternam a submissão e o desafio, o que foi percebido pela tradição psiquiátrica que se deteve sobre o tema da histeria sob a égide da compulsão à mentira, ao teatro e ao "dar-se a ver";

(c) instalação de um saber sobre a sexualidade, posto em questão na posição de recalcamento, que foi objeto da pesquisa freudiana que, em torno da histeria, acabou por postular a hipótese do inconsciente;

(d) localização de um objeto no lugar da verdade, tema que se associa à virada freudiana que acaba por substituir a hipótese da sedução traumática real pela hipótese da fantasia. Ou seja, a verdade do laço social histérico é a sua localização como objeto para o outro;

(e) a relação entre o sujeito e o outro está marcada pela impotência, o que traduz o tema da insatisfação estrutural do desejo na histeria.

Assim se pode representar os traços da histeria, na forma discursiva proposta por Lacan:

 

 

Freud admitiu a existência de outras formas de histeria, para além da histeria de defesa. Por exemplo, contra Breuer, Freud afirmou o valor paradigmático da histeria de defesa e não da histeria de retenção. A histeria de retenção seria uma forma de histeria ligada à supressão dos afetos em função de uma situação social coercitiva, na qual esses não poderiam ser adequadamente expressos ou tramitados. Por exemplo, a pessoa que diante de uma ofensa recebida em uma situação pública não se autoriza a respondê-la como gostaria, o afeto retido seria deslocado para a formação de um sintoma. Para Breuer, a histeria de retenção, assim como a da histeria hipnóide para a escola Francesa de Charcot a Janet, representa um paradigma da histeria que postula uma etiologia não sexual. É o contexto social, para Breuer, e a forma de apreensão do real, para Janet, que determinariam o quadro histérico.

Outro caso é a histeria de angústia, quadro proposto por Freud para entender a fobia de cavalos no pequeno Hans11 e a fobia de lobos no caso do Homem dos Lobos12. A histeria de angústia seria uma forma prototípica da histeria, comumente presente na infância. Ela é uma espécie de embrião ou de miniatura da histeria. O que a distingue é o movimento preliminar ao deslocamento na esfera do corpo (conversão), ou seja, o deslocamento para um objeto. Isso acusaria um trabalho fracassado, porque incipiente, do recalcamento, vindo o objeto fóbico ocupar o lugar precário do agente de uma interdição. A histeria de angústia se caracteriza pela produção de um significante mestre na posição de agente, assim como a histeria de retenção se distinguiria pela aparição de um saber (o saber socialmente compartilhado) neste lugar de dominante.

O que essas considerações nos permitem sugerir é que há no laço social que caracteriza a histeria alguns dialetos possíveis. Nem toda estrutura histérica apresenta-se com o discurso histérico; podem ocorrer variações, o que a presença histórica da histeria de retenção e da histeria de angústia nos comprovam. Dessa maneira, podemos dizer que na histeria de retenção vigora uma forma histérica do discurso universitário e na histeria de angústia se presentifica uma forma histérica do discurso de mestre.

(1) Histeria de Angústia - Discurso do Mestre


 

(2) Histeria de Retenção - Discurso Universitário


 

O único propósito dessa aproximação é mostrar que, tanto pela sua sintomatologia quanto por sua inscrição peculiar no laço social, a loucura histérica não pode ser aproximada de nenhum desses três modos de discurso. A loucura histérica é uma forma de histeria que se coloca contra o laço social, daí sua aproximação com a psicopatologia do comportamento anti-social e também sua confusão com a psicose. Na psicose não há recusa do laço social, mas impossibilidade de mantê-lo. Como argumentou Quinet,13 a psicose tenta fazer laço social de inúmeras maneiras; coloca-se muitas vezes no lugar deste impossível de governar, de educar e de desejar. Mas isso não quer dizer que o psicótico recuse o laço social. Isso nos leva a pensar na relação entre a loucura e o laço social, distinguindo essa questão da relação entre a psicose e o laço social. Mas, antes, vejamos porque a loucura histérica não é, afinal, um caso particular da psicose.

 

3- A Loucura histérica não é a psicose

A tradição psiquiátrica moralista, na qual se descreveu primariamente a loucura histérica, alerta-nos para um ponto importante do ponto de vista do diagnóstico diferencial com a psicose: a mobilidade e a extravagância dos sintomas. Essa variação poderia ser pensada como uma espécie de solução em ato para o enigma que define a histeria e a separa da psicose, ou seja, a posição assumida pela feminilidade e o destino de gozo que lhe é correlativo. Faz-se, aqui, uma pequena simplificação desta distinção referida por Lacan em L´Etourdit14. Em regra geral, a histeria se define ali:

(a) pela tentativa de responder ao caráter não-todo do gozo feminino pela sua redução ao gozo fálico (o sintoma conversivo, o protesto masculino e a identificação com a excepcionalidade). A falicização do objeto;

(b) pela transformação da castração em uma demanda do Outro (a identificação com o desejo do Outro, a transferência ao significante mestre, a obsedante inflação da questão "Qual é meu lugar para o Outro?" ou "O que sou para o Outro afinal ?"). A objetificação do falo.

Na psicose, esses dois movimentos são bem conhecidos: o empuxo à mulher e a inflação do Outro. Na psicose, esse movimento serve a fins distintos; trata-se, aqui, de construir a fantasia e não de praticá-la. Na psicose, a relação com a fantasia está marcada pela relação de descrença (Unglauben). Em que pese a afirmação corrente de que o que define a psicose é uma espécie de certeza, uma convicção delirante inabalável, a função da certeza aqui parece inteiramente distinta e, aliás, não confirma a experiência clínica.

Maleval,15 em um estudo clássico sobre a loucura histérica na psicanálise, assinalou exatamente essa diferença de função do delírio da psicose para a histeria. Na histeria, o delírio é um sintoma que visa tornar habitável o corpo sexuado. Na psicose, o corpo sexuado não se inscreve no simbólico. Disso se poderia depreender uma incidência diferencial entre o delírio como certeza-dúvida (psicose), para o delírio como crença-dúvida (histeria). Conta como apoio para essa hipótese o fato de Lacan ter iniciado sua teorização sobre o ato, justamente como solução que incorpora a dúvida (tempo para compreender) e a certeza (instante de ver) em ato que ultrapassa e resolve simbolicamente ambos16.

O psicótico vive em dúvida perene - uma dúvida que aparece claramente como uma espécie de desmembramento de seu ser, dúvida que põe em risco a própria subjetivação de sua existência. Uma dúvida que não se resolve, senão fantasmaticamente em um momento de concluir. É por isso que Lacan fala do delírio do presidente Schreber como uma curva assintótica, ou seja, as pontas do delírio não se juntam, e é nesta região de dúvida que podemos entender porque ele se dirige a nós em um apelo para que seja compreendido em sua situação única e lhe seja restituído o direito de exercer sua função no sistema judiciário alemão. É também nessa região de não fechamento delirante que o presidente Schreber pode manter-se amando sua mulher. A condição de criatura deixada cair pelo criador (posição de objeto), o gozo transexualista pelo qual ele se transforma em objeto da volúpia de Deus (fenda imaginária), o futuro da criatura depois de ter dado à luz uma nova raça de homens (posição do eu) e a afirmação da burrice e a insustentabilidade da própria posição do Criador (posição do ideal) são as quatro pontas em aberto no delírio de Schreber17. A manutenção desta abertura, na qual remanescem pontos de incerteza, é crucial para a forma mais ou menos organizada do delírio.

A dúvida da loucura histérica é diferente; trata-se de uma espécie de conclusão permanente, verificada no nível da crença. Não se trata de uma incerteza no nível do saber sobre a castração, mas da crença no que se sabe. É justamente por isso que a loucura histérica poderia ser analisada do ponto de vista da Verleugnung, a renegação, o desmentido ou a desautorização da castração. Mas aqui temos algo distinto da perversão, no seu sentido banal, ou seja, não se trata do "eu sei, mas continuo a agir como se não soubesse", mas do "preciso agir como se não soubesse para continuar a saber". Porém, resgatar o sentido da loucura, contido na expressão loucura histérica, é suficiente para distinguir o quadro da psicose e não para elucidá-lo. A loucura, ao contrário da psicose, não é uma condição estrutural, mas uma possibilidade do ser. Neste sentido, qualquer estrutura pode se apresentar em estado de loucura. Vejamos, então, qual poderia ser o sentido teórico dessa noção.

 

4- O Tema da loucura em Lacan

Chama-se a atenção para o fato de que Lacan não descartou a noção de loucura. Apesar desta ser irredutível à psicose, há muitas e consistentes referências à loucura em seus escritos, a começar pelo texto Formulações sobre a causalidade psíquica,18 que é um debate com Henry Ey sobre a loucura. O texto traz a afirmação de que "O ser do homem não só não pode ser compreendido sem a loucura, senão que não seria o ser do homem se não se levasse em si a loucura como o limite de sua liberdade."

A idéia de que esse seria um tema de juventude em Lacan é descartada pelo fato de que é com esta mesma frase que encerra seu texto mais importante sobre as psicoses, Questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses19. Além disso, é em relação à loucura que Lacan emprega a conhecida expressão "a mais insondável decisão do ser".

Um breve levantamento sobre o tema da loucura em Lacan resultaria nas seguintes proposições:

(1) a loucura pertence à ordem das crenças e da liberdade: "Que o sujeito acabe por acreditar no eu, é como tal uma loucura." (Seminário II). A crença que define o delírio moderno é a crença na liberdade (Seminário VII). A loucura religiosa nos falta (Seminário VIII).

[...] quando lhes falta um destes fios, vocês devem ficar loucos. E é nisso que é o bom caso, o caso que é chamado de "liberdade". E é neste bom caso que consiste em saber se há algo normal. É que quando uma destas dimensões se arrebenta, por uma razão qualquer, vocês devem se tornar verdadeiramente loucos (Seminário XXI);

(2) a loucura decorre da autenticação do imaginário (Seminário II);

(3) a crença no amor realiza esta autentificação do imaginário (Seminário III).

Alguém crê no que ela diz: é o que se chama amor. E é por isso que ele é um sentimento que qualifiquei, na ocasião, de cômico: é o cômico bem conhecido, o cômico da psicose. E é por isso que, correntemente, se diz que o amor é uma loucura. A diferença é sem embargo manifesta entre crer ali, no sintoma, ou crer-lo (lê croire). É o que constitui a diferença entre neurose e psicose. Na psicose as vozes, tudo está ali, não somente crêem ali, senão que as crêem." (Seminário XXII);

(4) a loucura é a expressão individual do estado de entropia e degradação que existe entre a sociedade e a cultura, ou seja, entre o tipo de laço social atual e o tipo de crença culturalmente compartilhada. A loucura é esta não conformação entre um e outro (Seminário VI);

(5) o psicótico não crê no Outro.

Cada um sabe o que isso quer dizer, crer ali, isso pode querer dizer, isso quer dizer sempre: as pessoas crêem no que afirmam. É a teoria fideísta, não se pode acreditar naquilo em que se está seguro. Aqueles que estão seguros não crêem nisso. Não acreditam no Outro, estão seguros da coisa. São os psicóticos. (Seminário XII)

Vê-se, por estes excertos, como a loucura histérica reponde bem à temática lacaniana da loucura. Sua ligação à ordem da crença e da liberdade aponta para essa afirmatividade do desejo, que vemos tão bem nos exemplos históricos. Sua ligação com a autenticação do imaginário, particularmente a do imaginário amoroso, é congruente com as narrativas literárias sobre a loucura histérica, que constantemente relatam personagens decididos à levar o amor até as últimas conseqüências, como Camille Claudel, por exemplo. Sua localização no lugar de descompasso entre cultura e sociedade corrobora nossa hipótese de que se trata de uma espécie de recusa do laço social, como se observaria, por exemplo, na personagem central de História de O. Finalmente, é pela crença no Outro, depurado de qualquer laço social, que se poderia distinguir a loucura histérica da psicose, sendo Antígona o caso mais chamativo
para esta circunstância.

 

5- Um caso clínico conclusivo

Vejamos como a loucura histérica pode se diferenciar da psicose a partir de um caso clínico que provém de uma cultura distante da nossa, onde se pode perceber como a relação com a crença e com a liberdade se exprime com maior visibilidade.

Trata-se de Saly, uma muçulmana de 36 anos, divorciada e mãe de quatro filhos, que foi internada duas vezes em um hospital psiquiátrico em Bamaku, capital da República do Mali, na África Central. Ela se apresenta como vítima do marido, de sua família e de outros doentes. Ela relata o motivo da internação:

"Minha madrasta morreu e eu não chorei. Fiquei tentando consolar as pessoas. Aí as pessoas pensaram que eu não tinha me importado com a morte dela. O filho da madrasta começou a falar que eu era culpada desta morte (feitiçaria). Todos ficaram contra mim e eu fugi."20

Saly foi uma estudante notável e exercia a profissão de professora. Casou-se por amor e sem consentimento da família, que fora deixada para traz - uma afronta aos costumes tradicionais do Mali e outro indício da assimilação dos valores ocidentais e modernos ligados à autonomia e autodeterminação. O delírio de liberdade não deve, como qualquer delírio, ser avaliado pela sua relação com a realidade, mas pela relação com a certeza ou com a crença e, principalmente, pela sua capacidade de efetuar laço social. É justamente porque ela parece crer, mas sem certeza, nos motivos de seus atos (o que explica as rupturas e reconciliação com o marido) que estabelece um delírio histérico e não psicótico.

A relação com o marido, tensa, cheia de idas e voltas, culmina em briga quando ela, grávida, decide, uma certa vez, voltar sozinha e a pé para casa durante o crepúsculo. O marido toma o fato como afronta, pois os costumes nativos assinalam que isso é muito perigoso para uma mulher grávida. Vemos, aqui, Saly às voltas com a conciliação com o caráter sexuado de seu corpo fora dos limites de seu próprio reconhecimento, mas nos limites prescritos pelo Outro.

Na hora do parto ela tem complicações e perde a criança. Surge a crença delirante de que "todos queriam me matar e não podia mais dormir".

As autoras que relatam o caso chamam a atenção para o fato de que Saly, em nenhum momento respondeu depressivamente à situação. A perseguição encontra uma autenticação cultural explícita. A feitiçaria não é apenas projeção que retorna das sucessivas recusas de Saly às exigências de sua época e à disparidade que enfrenta entre a forma de laço social (moderno) e a cultura (tradicional) na qual esse se insere. A feitiçaria é uma crença culturalmente partilhada. Saly não crê no Outro, o que a levaria à auto-acusação; ela não está segura de que o Outro que se apresenta é suficiente para sustentar seu desejo. Daí a seqüência de atos de ruptura que dão contorno à história.

Note-se que a posição subjetiva que se poderia hipotetizar aqui não é semelhante à do Border-line; não há oscilação entre o antigo e o novo, nem se trata de uma sucessão de acting-out, que poderia acusar uma queda do laço social. Trata-se, simplesmente, de um novo tipo de laço social, claramente confrontado com o laço ora dominante. A trajetória de Saly não é a do desespero para ligar-se, mas a do apelo por desligar-se.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Abílio Soares, 932 - Paraíso
04005-003 São Paulo - SP
E-mail: chrisdunker@uol.com.br

Artigo recebido em: 2/10/2005
Aprovado para publicação em: 13/10/2005

 

 

* Psicanalista, Doutor em Psicologia, professor do Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP e do Mestrado em Psicologia da Unimarco. Membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano e autor dos livros Lacan e a Clínica da Interpretação (Hacker, 1996) e O Cálculo Neurótico do Gozo (Escuta, 2002).
1 Leslie Anne Merced - The Treatment of Female Hysteria in Fin-de-Siècle Spain: The Discipline of Medical Control; University of Illinois, Urbana-Champaign
2 Esquerdo, José María. De la locura histérica. Revista Clínica de los Hospitales. 1889: 2-6, 277-81, 337-40.
3 PIRO María Cristina; MUNICOY María Fabiana; FANJUL Adriana Mariela - La histeria: entre la mística y la locura. Madeleine Lebouc
4 Apud Trillat, E. História da Histeria; Escuta, São Paulo, 1991: 272.
5 apud Bercherie, P. Os Fundamentos da Clínica; Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1989:102.
6 apud Bercherie, P. Os Fundamentos da Clínica; Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1989:118.
7 Freud, S. Sobre a psicogênesis de um caso de homosexualidade feminina (1920); In Sigmund Freud; Obras Completas; Amorrortu, Buenos Aires, 1988.
8 http://www.psiqweb.med.br/conversi5.html
9 PARKER, I; Georgaca, et al. Desconstructing Psychopatogy; Sage, Londres, 1999.
10 LACAN, J O Seminário livro XVII O Avesso da Psicanálise; Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1999.
11 FREUD, S. - Análise da fobia de um menino de cinco anos (1909), In Sigmund Freud Obras Completas. Amorrortu, Buenos Aires, 1988.
12 FREUD, S. Sobre a história de uma neurose infantil (1918); Sigmund Freud; Obras Completas. Amorrortu, Buenos Aires, 1988.
13 QUINET, A. Comunicação oral na Jornada sobre psicoses do Fórum do Campo Lacaniano, maio de 2005.
14 LACAN, J. L 'Etourdit (1972); In: Outros Escritos. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2004.
15 MALEVAL J.C.; Champanier, J.P. - In favor of rehabilitation of the entity of "folie hysterique"
16 LACAN, J. Tempo lógico e a asserção da certeza antecipada (1948); In Escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2000.
17 LACAN, J. - Questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses (1957), Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2000:578.
18 Lacan, J. - Sobre a Causalidade Psíquica (1946), in Escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2000.
19 Lacan, J. - Questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses (1957), Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2000.
20 UCHOA, E. & CORIN, E. Evidência científica e experiência clínica: aspectos transculturais; In: Revista Lationoamericana de Psicopatologia Fundamental, Vol V, n 4, dezembro de 2002.

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