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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.4 n.6 Barbacena jun. 2006

 

SEÇÃO CLÍNICA: PSICANÁLISE E INSTITUIÇÕES

 

Basaglia com Lacan

 

Basaglia with Lacan

 

 

Carlo ViganòI* ; Roseli Cordeiro Pereira (Tradução); Helder Rodrigues Pereira (Revisão)

I Associação Mundial de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No artigo propõe-se uma conjunção entre a experiência de Basaglia e o ensinamento de Lacan. Enfatiza-se a posição que a dimensão ética desses pensadores souberam dar à loucura, imprimindo uma direção comum capaz de potencializar ambas as teorias.

Palavras-chave: Lacan, Basaglia, Psicose, Reforma psiquiátrica, Psicanálise.


ABSTRACT

The article proposes a conjunction between the Basaglia's experience and the Lacan's teaching. The text emphasizes the ethical dimension that these thinkers gave to the madness question and shows a common direction that potentizes the both theories.

Keywords: Lacan, Basaglia, Psychosis, Psychiatric reform, Psychoanalysis.


 

 

A reflexão que proponho é a da conjunção entre a experiência de Basaglia e o ensinamento de Lacan. Apesar de a mim não parecer que esses nunca tenham se encontrado e que, também, na obra escrita seria muito mais árduo encontrar convergências, todavia me parece que, quanto ao que transmitiram, a dimensão ética que souberam dar à loucura, há uma marca, uma direção comum e capaz de potencializar-se reciprocamente. Pelo menos esta é a minha experiência na qual gostaria de encontrar as razões.

A ligação entre as duas obras nos é confiada. A quem puder extrair da experiência basagliana um ensinamento, proponho fixá-lo em um aforisma que parafraseia aquilo com o que Lacan ligou a obra de Freud com a de Saussure: se Basaglia tivesse lido Lacan, haveria dito que o fechamento dos manicômios é uma troca de discurso e que o discurso do analista pode motivar "a posteriori" essa passagem (aquela que Lacan chamou passe). É uma afirmação difícil de sustentar ao se pensar na feroz oposição basagliana à psicanálise. Para fazê-la, deverei mostrar como o ensinamento de Lacan traçou um sulco essencial no terreno da saúde mental.

 

1- A abertura do manicômio

Somos habituados a pensar a abolição do manicômio como o maior êxito da obra de Basaglia, mas isto acaba por reduzir sua intervenção a um mero fato legislativo. Seria como considerar que a contribuição essencial da psicanálise para a cura da doença mental tenha sido a promoção da lei de 1989 sobre Ordem das Psicologias e o reconhecimento do psicoterapeuta. Em ambos os casos, a relação entre a "reforma do entendimento" e a reforma legislativa se prestam a considerações contraditórias, no momento em que a novidade introduzida pela lei tende a fechar propriamente o princípio nuclear do pensamento que se supõe havê-la inspirado.

Pode-se dizer, de fato, que as novas ordens são criadas jogando fora da bacia, junto com a água suja, também o bebê: a Medicina fala abertamente do discurso do louco, assim como a Psicologia fala do discurso do analista, isto é do seu desejo.

Vejamos tal questão de acordo com esse efeito de fechamento. Pode-se intuir, facilmente, que essas mudanças em nível legislativo e, de conseqüência, da organização social dos tratamentos, antes mesmo de modificar o tratamento da doença mental, introduzem uma rebelião em nível da clínica. É um fenômeno histórico do qual Foucault já havia estudado os episódios precedentes, em particular aquele que leva verdadeiramente ao "nascimento" da clínica, isto é, a uma nova e inédita visibilidade daquilo que é a doença. A mudança da organização social encontra, no início do século XIX, na anatomia patológica, o instrumento científico para inventar a forma moderna da doença.

Para reportar essa estrutura histórica ao nosso caso, parece-me útil, também, uma outra referência: a antropologia de Levy-Strauss. Ele nos mostrou como as classificações sociais - e aqui podemos colocar também a classificação das doenças - tendem a persistir mesmo depois que tenham passado por substanciais mudanças demográficas. A exemplo, o nome de uma tribo que se extingue virá a designar um subgrupo de outra tribo que, se torna muito maior. Tudo isto para colocar-nos atentos sobre uma aparente continuidade entre a abertura do manicômio e as políticas de saúde mental (com um jogo de palavras podemos dizer: de fechamento de manicômio) ou entre psicanálise aplicada à saúde mental e psicoterapia.

Um pequeno sinal de que se está produzindo mudança em clínica pode ser encontrado na substituição do termo "doença" como "incômodo" e a um outro nível - como "distúrbio de personalidade". A aparente desmedicalização revela, subitamente, uma outra face: a do exponencial acréscimo no investimento terapêutico do mal-estar social. Põe-se ao lado dos médicos toda uma série de outros terapeutas.

Em outros termos, o adiamento dos processos terapêuticos tende a ocultar, se não a tornar a enviar no real o intratável, as mudanças da clínica. Veremos como a obra de Basaglia se aproxima da de Lacan, no que se refere ao esforço de caminhar do outro lado da terapia para tornar atual e transmissível a novidade clínica1.

 

2- Antipsiquiatria, antipsicanálise?

Nos anos 60, o ensinamento e a experimentação de uma gestão psiquiátrica alternativa, iniciada em Gorizia, aglutinou em torno de Basaglia um movimento próprio, verdadeiro e antecipador daquele, legado às hipóteses de gestão alternativa de uma outra instituição, a Universidade. Não creio que o efeito de antecipação vá ser procurado em uma analogia qualquer entre a instituição manicomial e a universitária, mas no próprio fato de que, no manicômio, uma experimentação alternativa assim se articulasse estreitamente com um ensinamento. O manicômio, escola de vida social e de transformações culturais. Veremos como na França, nos mesmos anos, encontra-se essa particular ligação entre a experimentação de uma gestão alternativa da instituição analítica e o ensinamento de Lacan. Veremos como essa vizinhança estrutural teve um peso que tende a tornar-se histórico, para citar o witz Lacaniano quando falava do emoi de mai.

O ensinamento de Basaglia tinha, ao menos, duas raízes:

- a denúncia do tratamento dos doentes mentais, que os privava de todo direito humano e os fechava em lugares de exclusão social. Tal tratamento não só não curava, mas reforçava o estado de marginalização dos internados. Essa denúncia torna-se um paradigma daquela mais geral da sociedade neocapitalista, se formada sobre o terreno da clínica;

- a abertura da psicologia marcada, primeiramente, pela fenomenologia e, depois, pelo existencialismo - as teorias sociológicas anglo-saxônicas que se demonstravam subversivas à psicologia enquanto tal.

A dimensão social vinha sendo sentida como capaz de revolucionar para si a concessão da veiculada subjetividade da psiquiatria. Devemos notar que nesse movimento vem assimilado tudo o que era "psico", e a psicanálise foi totalmente envolvida na contestação da psiquiatria, de cuja ideologia era considerada a expressão mais refinada.

Creio que para essa assimilação concorreram dois elementos. De uma parte, a política geral (isto é, da oficialidade IPA) da psicanálise apontava a conquistar para si um posto nas instituições universitárias e de tratamento, misturando-se com as disciplinas psiquiátricas e psicológicas. De outra parte - e de conseqüência - o alvo da contestação não pode ser, como logicamente deveria ser, a concessão psicológica inerente à psiquiatria, para o próprio fato de que essa ficava implícita. A psiquiatria2, isto é, o receptáculo prático e institucional de todas as teorias psicológicas, compreendida a psicanálise - de Musatti a padre Gemelli.

Devo precisar rápido que para seguir o meu fio, que é aquele da ligação, devo novamente remeter o exame da valorização histórica que Basaglia tinha da psicanálise e, depois, dos motivos pelos quais não a retinha como aliada útil. Faço, pois, a hipótese de que, na Itália, a obra de Basaglia pode assumir - do exterior - aquele dever de denunciar desvios e erros da psicanálise que, na França, o ensinamento de Lacan tinha inicia- do proclamando - do interior - a necessidade de retornar a Freud.

 

3- Paranóia e instituição

Em 1969, Lacan, em pleno clima de contestação, vai a Vincenne para falar aos estudantes e tenta explicar a eles onde a Universidade os está traindo. Naquele ano está se formalizando a estrutura do vínculo social, que chama de "discurso", a partir daquele fundamental - o discurso do Mestre - que se articula como "o avesso da psicanálise". Essa oposição é a base para se estabelecer o lugar de outros dois discursos: o discurso da histérica e o Universitário. Quatro discursos e não mais; e a passagem de um para o outro consiste em um quarto de giro de quatro elementos (sempre aqueles: S1, S2, a, S), em quatro posições fixas: o agente, o Outro, o produto e a verdade.

A perversão contemporânea do discurso universitário é ligada à sua contaminação com o discurso do Mestre: o saber (S2) posto no lugar de comando, fora do seu contexto discursivo, e o caminho à sua incorporação com S1.

Essas perversões das estruturas discursivas, produzidas pelo saber da ciência, são características do capitalismo que age sobre o discurso humano, abolindo a impossibilidade lógica do mesmo discurso, aquela da relação entre produto e verdade. A revolução que Lacan propõe é a que faz o giro dos quatro discursos. Ao repassar para o discurso do analista, pode-se recuperar, também para o saber, um lugar que não seja de poder e, assim, devolver à universidade a capacidade discursiva de produzir sujeitos divididos ao invés de professores3.

A afirmação de Lacan é explícita: o lugar e a função da psicanálise no social são aquelas de boucler, o giro revolucionário dos discursos. O matema do discurso serve a Lacan para selar, definitivamente, o fato de que o vínculo social não se baseia sobre a intersubjetividade, mas sobre a mesma estrutura do sujeito. O inconsciente é relação com o Outro, discurso do Outro, que não se pode reduzir à cadeia significante para a qual o vínculo social se estabelece no tempo de recuperação, de gozo da parte do sujeito: o fato mais íntimo da experiência, a nomeação do objeto originário e perdido é, ao mesmo tempo, a raiz do vínculo social. Essa lógica representa o fruto maduro do trabalho de Lacan sobre "fato psíquico fundamental"4, a paranóia, iniciado com a tese de doutorado e que o havia levado a Freud.

Naqueles mesmos anos, Basaglia e seu grupo partiam da paranóia para interrogar o ponto de união entre doença mental e contexto social. Como dizia, esses não eram os pontos precedentes à corrente do trabalho de Lacan sobre paranóia (em particular o Seminário III - As psicoses5) e, portanto, não puderam adotar a fundamental denúncia que Lacan havia feito do prejuízo psiquiátrico. Pode-se resumir da seguinte forma: tudo na clínica leva a reter que o perceptum alucinatório e, em geral, todo "fenômeno elementar" da psicose não é atribuível a um percipiens que coincida com o Eu psicológico. Ao contrário, este último deve dar sentido a um perceptum completamente alienado para reintegrá-lo - em um segundo tempo - no sistema do Eu e esse é, propriamente, o trabalho da paranóia.

Naquele momento, na França, Lacan havia aderido a um projeto político de crítica da psicologia promovido por Politzer; tanto que a publicação da sua tese foi assinalada por Paul Nizan como precursora de mudanças no tratamento social da doença mental. O trabalho de Basaglia não interrogou a especificidade subjetiva da experiência psicótica. Veremos como será, a partir dessa falta, que toda sua crítica histórica ao tecnicismo psicológico não conseguirá separar-se do nível puramente estratégico. De resto, a falta de um encontro com a análise de Lacan foi favorecido pela censura quase total. Faz-se exceção para a voz de Fachinelli, que a psicanálise italiana pôs sobre a obra de Lacan, à procura de uma integração própria com aquela degeneração universitária que Lacan estava denunciando.

O grupo de Basaglia não tomou em exame a paranóia a partir da clínica, de caso a caso, mas a partir da análise feita por uma certa sociologia americana. Em particular, Basaglia estudou o escrito de Norman Cameron The paranoid Pseudocommunity6, no qual se afirmava que "o comportamento psicótico é o de reter em si o resultado ou a manifestação de uma desordem na comunicação entre indivíduo e sociedade"7. Mais precisamente, "paranóide é aquele que, em situação de stress não usual é impelido - a causa da sua insuficiente capacidade de aprendizagem social - a reações inadequadas... O paranóide organiza simbolicamente uma pseudocomunidade em cujas funções ele percebe como seu ser é focalizado"8. O psicótico seria, pois, qualquer um que reagisse de modo conflitante a essa "comunidade imaginada".

Basaglia utiliza essa análise de modo bem mais surpreendente: atribui a falsidade dessa "comunidade" ao vínculo social como tal (como se quase tivesse lido Lacan) e, em conseqüência, "coloca em questão o fato de que o indivíduo possa ser um dado suficiente ao estudo da paranóia"9. Mas trata-se somente de uma intuição não sustentada pela teoria e que, de fato, demonstra não conhecer a crítica lacaniana à fenomenologia do percipiens. Aqui não posso encontrar embasamento para tal intuição. Ao contrário, Basaglia passa a atacar a psicanálise como o saldo maior da concessão Kraepelimiana da psicose como "condição ou síndrome constituída por sintomas", cuja casualidade vem a ser encontrada na "prisão da evolução psicossexual".

A denúncia do preconceito de um percipiens como sujeito do fenômeno elementar psicótico vem, assim, tomar duas estradas opostas e diversamente críticas. Lacan, ao partir da experiência clínica da transferência, demonstra que a interpretação da alucinação ficou viciada pela atribuição preconceituosa ao sujeito da consciência e a reporta a um déficit do significante que organiza a separação do S1 de S2 e o ponto do fino fio que os conecte posteriormente. Portanto, trata-se da posição do sujeito na linguagem. Basaglia, ao invés, partindo da hipótese sociológica de uma pseudocomunidade paranóica, tende a colocar esse elemento cognitivo em um contexto de relações políticas, a fim de isolar nele a articulação real no fato de que "'os outros' reagem de modo diferente em seus confrontos, e essa reação, habitualmente, se não sempre, implica uma ação secretamente organizada e um comportamento conspirativo no sentido do tudo concreto".10

Parece-me que o ensinamento que permanece válido da via basagliana em nível da clínica seja aquele que leva a distinguir, a opor conceitual-mente, a patologia - aquela que para Lacan é do sujeito, também na psicose - e o sintoma que, quando não chega a ser o parceiro do sujeito, é o que origina o tratamento do psicótico por parte dos "outros".

 

4- Uma contradição do pensamento de Basaglia

O ponto de fragilidade do ensinamento de Basaglia, a meu ver, está em uma linha de fratura que se mantém por todo arco de sua vida e que, creio, possa ser suturada com os instrumentos da psicanálise de Lacan. Como Lacan, Basaglia sempre esteve aderido ao seu lado psiquiatra, guiado pela sensibilidade e pela inteligência clínica, centradas sobre o sofrimento particular do doente. Na teoria, ao contrário, utilizou o discurso filosófico sem chegar a revertê-lo para seu interior. Podemos vê-lo na resposta que sempre deu à pergunta "Que coisa é a loucura?", a qual sempre respondeu em dois níveis, encontrando-se, assim, a necessidade de manter uma certa oscilação entre elas:

- "É a miséria, a indigência e a delinqüência, submete a mudança da linguagem racional da doença".11

- "Não sei que coisa seja a loucura. Pode ser tudo e nada. É uma condição humana".12

Esta última frase é de 1979, um ano antes de sua morte. Até o fim, manteve essa oscilação para combater, especularmente, a resposta psiquiátrica que diz "interrompemos a questão" e, no entanto, fala ao lugar do louco. Sua estratégia foi manter a loucura no âmbito enigmático de sua dramaticidade; mais precisamente, negar a loucura como produto social para poder encontrá-la como sofrimento.

Era uma estratégia; por trás disso estava a idéia de que se tratasse somente de uma etapa para a transição para uma sociedade mais justa e humana. A luta para a liberação dos loucos se unia àquela mais geral de liberar a sociedade inteira da invasão da lógica do lucro. Para Basaglia, para ser psiquiatra deve-se sair do próprio rol e confrontar-se com os problemas gerais da sociedade: "ou tem o corpo do poder ou tem o corpo de todos nós"13 e aquele do louco é um corpo que sofre, "traço de uma subjetividade que reage e refuta o cerco do qual é objeto"14.

Como se vê, tal estratégia leva Basaglia a homologar a loucura a um sintoma neurótico, a uma mensagem decifrável, em que a decifração será um "trabalho de transmissão" entre o que se pode considerar produto do internamento e isto que é o de reter-se o núcleo da originária doença. Como veremos, o trabalho de Basaglia se prende de frente a essa segunda parte.

Poder-se-ia reassumir o projeto como Foucault + "otimismo da prática": liberamos o silêncio do corpo como inexprimível e irracional e trazê-mo-lo na sociedade. E será a sociedade a transformar-se, a acolher o irracional como componente "normal" da vida social.

A falta daquela sutura ou, para melhor dizer, de uma operação de torção interna da linguagem que o ato de falar da loucura, sem "acercar" o louco, leva Basaglia a confiar só na prática. "A necessidade de uma nova 'ciência' e de uma nova 'teoria' se insere naquilo que impropriamente vem definido como 'vazio' ideológico e que, na realidade, é o momento feliz no qual se poderia começar a afrontar os problemas de modo diferente".15 É exatamente essa operação que Lacan pôde completar a partir do inconsciente Freudiano: no discurso do analista esse vazio é colocado na função, sem preenchê-la, como base estrutural que cava no Outro do saber um objeto causa de desejo. O desejo do analista vem do princípio de uma prática que, ao mesmo tempo, renova a teoria do sujeito e da loucura.

Isso nos leva a encontrar um ponto de aplicação na frase: "Eu creio que a história do homem seja um pouco a batalha entre o seu ser e o seu corpo: o homem, encarcerado no seu corpo, busca na substância viver em uma relação dialética entre o seu ser e o seu invólucro."16 É a dialética que preside a subjetivação e que Lacan, no Seminário XI, formaliza como alienação - separação -, centrando-a sobre a perda do gozo, introduzida pela alienação e sobre seu reconhecimento como mais-gozar (objeto a) na separação. Basaglia, ao invés, deve confiar a superação dessa dialética a uma ética social: "não pode ser que um corpo socialmente e realmente inserido"17, entretanto é o sistema produtivo que "identifica corpo social e corpo econômico".18 Ainda assim, comentando a foto de Che morto: "Tenta-se integrar o seu corpo morto no sistema que Che Guevara - morto ou vivo - continua a negar, e nós não queremos ser as testemunhas mudas deste segundo assassinato".19

Em síntese, Basaglia intui que para derrubar o prevalecimento do discurso científico e a sua importância de universalização deva-se opor ao real tratado da ciência, aquele da contingência. Este porém, não vem formalizado como o real da clínica e fica, assim, confiado a uma ética que tende simplesmente a negá-lo ou talvez a sublimá-lo. É uma ética que o leva a formular duas imposições:

1- dar atenção ao particular, trabalhar sobre o que é específico da própria situação institucional, conhecer e responder as necessidades reais do usuário, individualizando, junto a ele, para restituir-lhe a subjetividade. Isso o leva a considerar que o principal obstáculo seja a frustração: "o trabalho em um hospital psiquiátrico em transformação não é, pois, tão revolucionário."20 Por isto ocorre:

2- sair do específico da psiquiatria para atacar a lógica do estado burguês: "[...] aquilo que nós temos afrontado é um problema mais vasto que se alarga a todos os setores, é o problema do qual toda a gente fala, aquele da própria liberação".21

 

5 - Técnicos ou intelectuais?

A necessidade de fazer calar todos os discursos da psiquiatria deixou Basaglia privado de um discurso que fundasse a ética do operador: agente de uma revolução ou de uma "vanguarda"?

A ética de Basaglia pode ser lida como uma ética do sacrifício; ele fala de renúncia, de uma "escolha de autodestruição nossa, pessoal, ao serviço dos internados".22 Isso que nos impede de considerar essa autodestruição como figura do desejo é a constatação de que, no passar do universal ao particular, o operador encontra nela a frustração. Trata-se de uma passagem hipotizada como movimento subterrâneo, tenaz, mas infinita; uma revolução silenciosa através da qual a sociedade retornaria à loucura.

Mais realisticamente, Lacan não nos propõe um retorno da sociedade à loucura, a partir do momento em que esta já a contém - definitivamente como normalidade23 - mas um retorno do gozo, preso no círculo superegóico do capitalismo, ao desejo do sujeito. A análise não é o atravessamento das ilusões por meio das quais o gozo se põe como causa do desejo, a fim de que se produza um desejo que é, ao invés, desejo de saber. É o quanto se pode contrapor à técnica.

Nessas condições, parece-me que seja promissor que o ataque ao particular e a fidelidade à clínica que Basaglia nos ensinou se encontre com a ética da psicanálise, assim como Lacan a redescobriu, para não naufragar na moral do sacrifício ou da suportabilidade da frustração. Para concluir, queria passar, em resenha, os motivos da oposição basagliana à psicanálise e, com base neles, examinar essa hipótese de trabalho.

A psicanálise que Basaglia concebe era aproximada ao problema da doença mental à luz da via aberta por Jaspers (vide H. Hey). Essa se aplicava às "relações de compreensão" para deixar à ciência o fenômeno psíquico fundamental, o núcleo orgânico da doença. Lacan, rapidamente, refutou, com veemência, a ilusão desse dualismo e propôs novamente a hipótese de uma ciência que incluísse o inconsciente. Basaglia simplesmente refutou o compromisso maniqueista como "ciência burguesa".

Em conseqüência daquele compromisso, a psicanálise operava um auto circuito entre o doente e o terapeuta ("privatização do conflito"), ao invés de colocar a subjetividade em um circuito muito mais amplo, introduzindo o lugar do Outro como descentramento da relação intersubjetiva.

Em síntese, na refutação da psicanálise havia motivação do tipo histórico. A estratégia basagliana se opunha àquela que seguiam os psicanalistas não Laca-nianos que entravam nos hospitais psiquiátricos "paralisando neles os processos de mudança, aumentando os sistemas de aliança e reforçando a corporação dos psiquiatras".24 Por isso se constatava que, em nível político, o ingresso das teorias psicanalíticas permitiam modernizar e, depois, estreitar a instituição manicomial. A experiência francesa do setor era avaliada dessa forma.

Hoje estamos em um novo tempo, e trata-se de colocar à prova o dispositivo do discurso analítico como herdeiro daquele uso foucaultiano do senso histórico25 que encontramos na obra de Basaglia.

Pode-se dizer, em conclusão, que proponho um Lacan que interpreta o desejo de Basaglia, repropondo a loucura como limite da liberdade humana.26

 

 

Endereço para correspondência
Carlo Viganò
E-mail: carlo.viganofastwebnet.it

Roseli Cordeiro Pereira
E-mail: barcia@barbacena.com.br

Helder Rodrigues Pereira
E-mail: rodrigueshelder@msn.com.br

Artigo recebido em: 10/3/2006
Aprovado para publicação em: 30/3/2006

 

 

*Psiquiatra e psicanalista radicado em Milão. Membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Casa Freudiana de Paris. Integrante da comissão de saúde mental da Associação Mundial de Psicanálise.
1 Podemos esquematizar essa obra que reside, essencialmente, em um ensinamento (outros diriam que é de natureza epistêmica) com um matema: (transmissão). Trata-se de um processo de ressignificação do tratamento, através da produção de um novo significante de tratamento, capaz de renovar a transmissão, de produzir uma discussão e uma autoridade (decisão) que renovam a clínica, tornando-a mais adequada ao real em jogo no desejo social. Como em toda significação se produz um resto, cabe a nós, os alunos, não fazer nele o núcleo de agregação para o fechamento da obra.
2 Che cos' è la psichiatria?, a cura de F. Basaglia, Amministrazione Provinciale de Parma, Parma, 1967; Einaudi, Torino 1973.
3 Le Seminaire XVII. L'envers de la psychanalyse. Le Seuil, Paris [19--].
4 J. Lacan, Della psicosi paranoica nei suoi rapporti con la personalità, Einaudi, Torino 1980.
5 J. Lacan, Il Seminario III. Le psicosi, Einaudi, Torino 1985.
6 American Journal of Sociology, 46, 1943, pp. 33-38.
7 Cit. In Franco Basaglia, La maggioranza deviante, Einaudi, Torino 1971, p. 39.
8 N. Cameron, cit.
9 F. Basaglia, Ibid., p. 41.
10 Id., p. 40.
11 F. Basaglia, Scritti, a cura di F. Ongaro Basaglia, Einaudi, Torino 1981, vol II, p. 430.
12 F. Basaglia, Conferenze brasiliane, trad. it. A cura di M. Cannone, D. De Salvia, A. Rolle, Centro di Documentazione di Pistoia Editrice, Pistoia 1984, p. 28.
13 Il giardino dei gelsi, intervista a cura di E. Venturini, Einaudi, Torino 1979, p. 225.
14 F. Gasaglia, Scritti, cit., p. 429.
15 Id., p. 472.
16 F. Basaglia, Il giardino dei gelsi, cit., p. 224.
17 Ibid., p. 225.
18 F. Basaglia, Scritti, cit., p. 427.
19 Ibid., vol I, p. 466.
20 F. Basaglia, Crimini di pace, Einaudi, Torino 1975, p. 67.
21 La nave che affonda, intervista a cura di S. Taverna, Savelli, Roma 1978, p. 88.
22 Ibid., p. 146.
23 No Seminário R.S.I., Lacan reverte a convenção na qual a normalidade para a psicanálise seria a neurose e diz que nada é mais característico da normalidade, do comum, se não a autonomia dos três registros (Real, Simbólico e Imaginário). A loucura é, de fato, a ausência do seu anodamento.
24 Intervenção de G. Gallio, in Follia e paradosso, Edizioni e, Trieste 1995, p. 146.
25 Uso parodístico, destruidor da realidade, dissociativo, destruidor de identidade, sacrifical, destruidor de verdade. Repensar o discurso do Mestre como o avesso da psicanálise leva à realidade de um sujeito dividido, ao desejo do analista como ruptura da identidade profissional, à verdade como causa e não mais como saber.
26 "[...] o ser do homem não só não pode ser compreendido sem a loucura, mas não seria o ser do homem se não tivesse em si a loucura como limite da sua liberdade". J. Lacan. Scritti, Einaudi, Torino 1974, p. 170.

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