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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.4 n.6 Barbacena jun. 2006

 

SEÇÃO CLÍNICA: PSICANÁLISE E INSTITUIÇÕES

 

Da instituição ao discurso

 

From the institution to the discourse

 

 

Carlo ViganòI*; Roseli Cordeiro Pereira (Tradução); Oscar Cirino (Revisão)

I Associação Mundial de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda as relações da teoria psicanalítica com as instituições. No primeiro tópico faz-se o percurso histórico do encontro de Freud com as instituições sociais. Em seguida, faz-se referência à abordagem lacaniana acerca do tema instituição, lembrando que Lacan procurou um vínculo social entre os analistas. Posteriormente, discute-se o Seminário 17 como modo de falar das experiências dos sujeitos e seus vínculos sociais em relação ao fantasma e reflete-se sobre as conseqüências de um trabalho institucional focado na palavra.

Palavras-chave: Psicanálise, Instituição, Freud, Lacan, Laço social.


ABSTRACT

The article approaches the relations of the psychoanalitic theory with the institutions. The first topic talks about the meeting of Freud with the social institutions. After that, there is a reference to the Lacan's thinking related to the institution. It also shows that Lacan looked for a social bond between the analysts. Later, the Seminary 17 is discussed as a citizens experience's way of saying and its social links with the fantasy. This article also brings reflections about the institucional work focused in the word.

Keywords: Psychoanalysis, Institution, Freud, Lacan, Social bond.


 

 

1- A experiência da psicanálise colocou Freud, rapidamente, diante do tema das instituições sociais. Antes de ser afrontado teoricamente, isso se apresentou como a dificuldade de propor a psicanálise nas instituições de tratamento. O aparato médico não estava pronto para acolher o saber que Freud elaborava a propósito do sintoma neurótico. De fato, o saber do analista não tem características da universalidade do tipo científico, mas nasce de uma posição de intérprete na transferência, posição que conjuga o universal com o particular (ver algoritmo da transferência).

Apesar disso, os primeiros alunos de Freud tentaram estender o tratamento analítico, convencidos dos seus efeitos sociais (prevenção, educação) aos extratos sociais menos favorecidos. Berlim foi palco de uma experimentação que tentava responder a uma demanda social com os instrumentos da psicanálise. A hipótese sobre a qual Freud sempre manteve suas reservas foi a de poder vencer a neurose até a raiz, revelando, aí, o enigma.

É importante notar que, do início ao fim, a questão institucional funde-se com a da organização dos significantes fundamentais que estão na base das instituições sociais e se revela uma questão de discurso. A esse respeito encontrei um testemunho, na tentativa de traduzir as datas da psicanálise nos termos da organização corrente do discurso social, em um livro com curadoria de P. Federn e de H. Meng nos fins dos anos 20. Das psychoanalytische Volksbuch recolhe breves ensaios divulgados, em sua maioria, por alunos de Freud e reagrupa-os em quatro seções: Psicologia, Higiene, Medicina psicológica e Cultura moderna.

Com o escrito Das Unbehagen in der Kultur, Freud lança as bases para demonstrar a impossibilidade desse projeto. Nele, Freud fala de dois "programas": um, subjetivo, do princípio do prazer e outro, social, do princípio da civilização e mostra como o segundo é correlativo à insuficiência do princípio do prazer na regulação da economia subjetiva das satisfações pulsionais.

Devemos notar como não foi possível para Freud pensar o que é a instituição social, o sujeito humano instituído nos termos de programas. O programa é aquilo que é escrito primeiro e permite prever o que podemos esperar na experiência. O além do princípio do prazer é o que torna sempre utópico programar os destinos humanos, e a única regulação pode vir dada pela norma edípica. De fato, o Édipo não se trata de um programa, mas de um mito.

O pessimismo de Freud foi verificado quando ele, para dar uma base institucional ao seu movimento, admite não haver outro recurso senão o modelo institucional que havia analisado em psicologia das massas: a identificação.

2- Uma nova linha de impacto com as instituições nasce quando o psicanalista começa a pensar, nos termos de sua experiência, o tratamento da psicose. Aqui, a contradição entre o universal da instituição e o particular do caso clínico parece menos aguda, no momento em que o real, em jogo na loucura, tem, todavia, uma pertinência social. A psicose gera problema no social, enquanto produz um Real insuportável para a própria sociedade, e não para o sujeito.

O princípio de uma psicanálise infantil e, em particular, a obra de Klein, parecem abrir uma visão da experiência analítica mais compatível com a instituição fundada sobre a hipótese de um estádio do desenvolvimento humano pré-edípico e, portanto, colocado sob o universal da genética.

As primeiras teorias sobre psicose de Lacan parecem fornecer aos seus alunos instrumentos úteis para pensar a contribuição da psicanálise às instituições para o tratamento da psicose. O poder da imagem e, depois, a teoria da foraclusão dão lugar, respectivamente, a uma psicoterapia institucional, a uma concessão da instituição falida e a um lugar para viver (OURY, MANNONI).

A nós, parece que a polêmica conduta de Lacan, no início do seu ensinamento contra os desvios do mundo analítico, e seu retorno a Freud é uma mostra da ilusão de uma instituição fundada sobre o saber do analista e sobre a sua capacidade de modificar o Outro social. Nenhuma prática institucional terá vontade de modificar, com seus meios, o Outro simbólico em relação ao qual o sujeito se estrutura. Lacan toma esse ato quando escreve à Jenny Aubry a propósito da posição da criança no fantasma materno (ORNICAR, nº 37, p. 14).

Em outros termos, qualquer movimento antiinstitucional não tem condição de definir o campo social diferentemente do que, depois, Lacan descreverá como "incapacidade do ponto de vista sociológico" (Seminário XVII). O peso "material" do significante, assim como o irresolúvel enigma do elemento quantitativo em Freud, deixa a toda reelaboração do terreno institucional uma valência imaginária que se opõe ao instituir-se de um sujeito do desejo.

Essa tendência do movimento antiinstitucional encerra a tentativa de repensar em termos de "comunidade". Em nível de discurso, estavam apegados no esforço de traduzir o discurso médico-psiquiátrico nos termos da dinâmica: iniciado na França com Henry Ey, hoje encontra, na América, uma expressão na Psiquiatria dinâmica de Gabbart.

3- Lacan retorna sobre o tema da instituição e, posteriormente, na ocasião da fundação da EFP, a "excomunga". Faz uma crítica da solução escolhida por Freud (quando, para garantir a transmissão da psicanálise, funda uma sociedade que está a meio caminho entre a Igreja e o Exército) e procura, na experiência analítica, os fundamentos para um vínculo social entre os analistas. Encontra-os na constatação de que existe um final de análise, algo além da transferência analítica.

Destituição subjetiva e dizeres não são apenas índices de uma "eticidade", mas podem fazer vínculo com uma transferência de trabalho e com um novo tipo de relação com o desejo e o saber. É um vínculo que rompe com a coincidência entre instituição e organização coletiva: a proposição cava um sulco entre a instituição na qual o vínculo produz um conjunto que se funda sobre UM e que se cria um tipo de vínculo, a partir do ato do "um por um". O cartel (elaboração do pequeno grupo bioniano) e o passe são dois tempos lógicos desse vínculo.

A referência a um tempo lógico foi a primeira pista seguida por Lacan para pensar a instituição humana, não mais nos termos da linearidade da descoberta própria ao programa, mas de modo coerente com l'aprés-coup da pulsão e dos seus destinos. Encontramos essa intuição no escrito Le temps logique et l'assertion de certitude anticipée, no qual o social vem prefigurado como o resultado de um movimento, de uma conclusão subjetiva que transforma o real do grupo. A nota posta por Lacan, no último grande escrito, chama novamente a estrutura freudiana do coletivo ("Le collectif n'est rien, que le sujet de l'ndividuel") e convida a prosseguir na leitura dos seus escritos. Como veremos, seu ensinamento levará a distinguir o coletivo com o discurso da Massen de Freud, centrado sobre a identificação a um traço. Pode-se dizer que o discurso implica o uso do fantasma, entretanto, a massa se coagula ao redor de um gozo compulsivo que inibe a via fantasmática.

A temporalidade aqui esboçada não ficará ligada no descobrimento que lhe dará Lacan ao gozo do carcereiro que, com a sua lei, identifica todos os prisioneiros em uma massa. No Seminário XX retoma essa lógica a partir de um novo fundamento do ponto de vista quantitativo: o impossível da relação sexual. O apólogo, então, revela, junto à trama identificatória, uma urdidura de tipo discursivo, o plus-de-jouir, alma da uniformidade dos prisioneiros, produzindo os efeitos de grupo (que são efeitos de discurso): Um + a. O ato do analista modifica as condições da massa (tornando-se, por isso, ato político) e introduz os afastamentos que permitem mudar o discurso. A nova condição, que permite passar do lugar de segregação para o lugar de um por um, consiste na formação de um pequeno grupo no qual um saber vem sucessivamente suposto e dessuposto. Esse grupo não funcionará no "tempo para compreender".

É interessante notar como a interpretação freudiana da melancolia, enquanto perda não elaborável, pode se reportar a essa lógica que se escreve como UM - a, em que o resultado deixa sempre inteiro o UM. Isso é o programa - tudo tem a estrutura da melancolia.

Na lógica das passagens de discurso, o social pode encontrar um fundamento distinto do mito paterno e da instituição para radicalizar-se sobre os efeitos da pulsão. Devemos, então, seguir as pegadas do esforço de Lacan de dar uma versão lógica do real em jogo na pulsão desse novo mito inventado por Freud.

4- Com o Seminário XVII, os dois tempos do passe e do cartel revelaram sua estrutura de discurso: da histérica e do analista. As passagens de discurso vêem elaboradas como algoritmos do atravessamento do fantasma para os quais, também, os discursos universitário e do Mestre podem ser aí verificados (revolução copérnica dos discursos). A instituição do Departamento e da Seção clínica responde à idéia de que a mãe de todas as instituições capitalistas, a universidade, possa ser transformada da passagem do discurso do analista ao discurso universitário.

A teoria dos discursos não é uma teoria social que se limita a descrever as mutações dos fenômenos coletivos. Esse é um modo de pôr a experiência do sujeito e de seus vínculos sociais não mais em função do sintoma, mas em função do fantasma e, por isso, da economia de gozo. O social, enquanto instituição, mostra o sujeito no instituído do sentido posto e a dimensão da certeza, enquanto a passagem de discurso mostra o sujeito, ao mesmo tempo, representado pela cadeia significante e implicado em uma falta. O ato analítico, na sua topologia de corte central de Moebius de um discurso representativo, gera um afastamento que faz o sujeito entrar no enigma no qual deverá encontrar uma resposta.

Referindo aqui ao grafo, podemos dizer que a pulsão fica no lugar do enigma. Isso pode reconduzir ao ponto de capiton da falta, através dos curtos-circuitos que passam pelo fantasma, ou lançá-lo em uma interrogação ("que queres?"), na qual encontraremos esboçado o destino, justamente na lógica das passagens de discurso.

Neste ponto a política inverte-se: não mais a tentativa de produzir uma nova instituição, apoiando-se sobre uma maquilagem do discurso, mas uma revolução dos discursos como ato de fundação e por uso de mudança do instituído. A afirmação de que se pode ir além do Édipo, com a condição de servir-se dele, corresponde à idéia de que o ponto essencial do trabalho do analista nas instituições consiste na construção do Outro, em uma época na qual o Outro tende a não existir, a ser refutado (como testemunham os novos sintomas sociais). Frente às novas viradas da histeria, o analista milita para fazer disso a obra de um sujeito como suplência da função paterna.

5- O ato analítico vem, assim, enganchado no paradigma hermenêutico e pode ser qualquer ato que instaure (institua) o sujeito da palavra. Todavia, a interpretação permanece "o ato por excelência". Façamos a hipótese de que isso signifique que a instituição e o sujeito, enquanto instituído, estão do lado das linguagens ditas "artificiais", metalingüísticas. O discurso, entretanto, veicula uma significação fundamental no interior da linguagem "natural", da função da palavra. A tensão entre enunciado e enunciação produz-se, hoje, em um campo de linguagem em que o Outro tende a ser refutado por isso como pura decisão.

O discurso do analista é sem palavras e diferente das linguagens artificiais (psicológicas, neuropsicológicas). A demonstração dessa diferença não é lingüística (e por isso metalingüística), mas de ordem clínica: o ato analítico produz uma passagem de discurso, isto é, um corte no interior da linguagem, de qualquer linguagem, que assim se transforma de artificial em natural.

Não temos mais que pensar que uma instituição seja analítica, mas pensar numa política que se dispõe a restaurar o Outro da palavra, de remetê-lo na tramitação de uma obra que implica o sintoma social ao nível do Outro que se propõe como a completude do saber sobre o gozo.

É por isto que as Seções clínicas asseguram-se nos grupos de coordenação do instituto e nas jornadas da escola para o trabalho psicanalítico em instituições de saúde mental.

6- Inserir no centro do trabalho institucional o ato da palavra, mais precisamente, o ato que cria a palavra, traz, ao menos, duas ordens de conseqüências:

- uma redefinição do sintoma no estilo da psicose, ao contrário do da neurose, suplência subjetiva na nominação do gozo, ao invés da metáfora e da mensagem. A clínica diferencial (neurose/psicose) afiança-se à alternativa transclínica letra/discurso;

- um repensar do tema da pulsão e da demanda. A pulsão é uma construção que se pode efetuar como um buraco dentro da lingüística cognitiva e não nas ciências humanas, ou cognitivas, ou conjeturais que predisponham nela o vazio estruturante.

7- Tudo isso leva a criar novas instituições, lugares de trabalho onde o discurso do analista possa ser operante e, por isso, centrado em torno de um vazio real de saber-poder.

E as instituições analíticas? O risco é que hoje tornam-se o veículo de ideais sociais prêt-à-porter (psicoterapia), pluralista, mas sem corrente real de grupo. Por isso uma instituição não pode ser a razão social que recolhe os pequenos grupos: o appetitus unitatis joga contra o affectio societatis e este último pode-se sustentar somente sobre uma passagem de discurso do qual é possível saber.

Para o analista a instituição é o lugar da obra, aquele no qual institui-se o sujeito do discurso (ou melhor, no discurso). Por essa razão Lacan não quis fundar a sua escola sobre Um, mas sobre o objeto posto em jogo nos pequenos grupos. São eles, no seu risco econômico, que desenham o vazio central que é o lugar da exceção do governo do conjunto.

Fica aberta a questão, muito atual, da qual podemos ter os índices de valorização de uma instituição instituinte, onde estão as razões econômicas e financeiras. Entre o capitalismo e o voluntariado pode-se pensar em um modo de transmissão que confie sua demonstração à lógica do testemunho.

 

 

Endereço para correspondência
Carlo Viganò
E-mail: carlo.viganofastwebnet.it

Roseli Cordeiro Pereira
E-mail: barcia@barbacena.com.br

Oscar Cirino
E-mail: ocirino@uol.com.br

Artigo recebido em: 10/3/2006
Aprovado para publicação em: 30/3/2006

 

 

* Psiquiatra e psicanalista radicado em Milão. Membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Casa Freudiana de Paris. Integrante da comissão de saúde mental da Associação Mundial de Psicanálise.

www.forumpsi.it

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