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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.4 no.6 Barbacena June 2006

 

ARTIGOS

 

Entre a clínica e o cuidado: a importância da curiosidade persistente para o campo da sáude mental*

 

Between clinic and care: the importance of a persistent curiosity in mental health's area

 

 

Doris Luz RinaldiI; Maria Cândida Neves de LimaII

UERJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No atual contexto da saúde mental, a noção de cuidado assume grande relevância, uma vez que engloba as novas práticas não excludentes que se instituíram a partir da reforma psiquiátrica. A noção de clínica, por sua vez, aparece ressignificada como clínica ampliada, clínica do cotidiano ou clínica do sujeito. Este trabalho pretende discutir essas duas noções, chamando a atenção para importância da "curiosidade persistente" como guia na clínica, concebida em sua dimensão de pesquisa a partir a da fala dos sujeitos atravessados pelo sofrimento psíquico.

Palavras-chave: Cuidado, Clínica, Curiosidade persistente, Psicanálise.


ABSTRACT

Currently, in the mental health's area, the concept of care assumes great relevance, since it globes new practices not excluding, which have been established since the psychiatric reformation. The concept of clinic, on the other hand, appears with a new signify, as an amplified clinic, a quotidian clinic or a subject clinic. This work intends to discuss those both concepts, emphasizing the importance of "persistent curiosity" as a guide for clinic, conceived on a research dimension, since the speech of the subjects pierced through psychic suffering.

Keywords: Care, Clinic, Persistent curiosity, Psychoanalysis.


 

 

Entre a clínica e o cuidado: a importância da curiosidade persistente para o campo da sáude mental

As transformações da assistência pública em saúde mental, com a criação de novos dispositivos de cuidado e atenção ao sofrimento psíquico, a partir da reforma psiquiátrica brasileira, vêm despertando o interesse de estudiosos e pesquisadores para o trabalho que se desenvolve nesse campo. Em particular, merecem atenção e reflexão as práticas de cuidado levadas a efeito nos Centros de Atenção Psicossocial, devido aos desafios que enfrentam ao buscar construir novas formas de lidar com o sofrimento psíquico, em especial com a psicose e com a neurose grave, que não incorram nos velhos métodos tutelares e excludentes, tão típicos da velha ordem psiquiátrica de caráter manicomial.

É nesse contexto que se fazem relevantes as discussões sobre as concepções de cuidado e clínica, levando em conta, de um lado, os novos paradigmas que norteiam a criação desses serviços e, de outro, a abertura ao trabalho em equipe interdisciplinar promovida pela reforma psiquiátrica, que vem revitalizar as práticas a partir da diversidade de saberes.

Em trabalho de pesquisa que desenvolvemos nesse campo, analisamos os dispositivos básicos que instrumentalizam as novas práticas assistenciais em saúde mental e, em especial, as possibilidades de vigência do discurso psicanalítico nos novos serviços e sua contribuição, como clínica do sujeito, aos propósitos da Reforma. O desenrolar da pesquisa, tanto teórica quanto empírica, conduziu-nos ao exame das práticas que privilegiam os dispositivos, tais como os da escuta e do acolhimento, numa perspectiva de cuidado ao usuário que se opõe à perspectiva tradicional da medicalização e do controle. Nessa perspectiva, ganharam destaque as categorias de cidadania e de sujeito, assim como a noção de clínica, que ressurge redimensionada nas novas práticas. A análise do dispositivo da escuta afigurou-se, nesse caso, como fundamental, tanto no sentido original que a ele é dado por Freud quanto em relação às apropriações que dele são feitas no contexto de uma clínica ampliada.

Neste artigo pretendemos destacar a importância do termo cuidado, que surge como categoria que engloba as novas práticas, utilizada de forma generalizada na legislação em saúde mental, na literatura sobre o assunto e na prática dos serviços, e a noção de clínica que, por sua vez, sofre uma série de transformações que vão desde a sua supressão, ao ser recoberta pelo cuidado, até a sua ressignificação como clínica ampliada ou clínica do cotidiano.

Tomamos aqui, como referência, Duarte que apresenta o cuidado como um campo que engloba "um conjunto de saberes e práticas que, contemporaneamente, vem sendo imbuído de novos sentidos e enunciados, constituindo-se, assim, em território interdisciplinar sob o signo da multiplicidade"1. Esse campo, inspirado pelos ideais de desinstitu-cionalização no setor de saúde mental, visa a produção de um trabalho que estabeleça acolhimento, vínculo, escuta e compromisso ético-político com os usuários, dirigindo a organização do trabalho para a elaboração de projetos terapêuticos que promovam a emergência do sujeito. Essa concepção de cuidado rompe com o antigo paradigma de saber em saúde mental2 cujo caráter assistencial ocultava motivações equivocadas e nocivas como sentimentos de compaixão e piedade, ou formas de coerção física, próprias do tratamento moral.

Verifica-se, a partir da reforma, a redefinição de seu objeto e de seu objetivo através de uma discussão profunda de seus instrumentos e técnicas3. Nessa perspectiva, as abordagens dirigidas ao sujeito orientam-se pela ética de valorização de uma vida digna, o que implica o compromisso de privilegiar a solidariedade, o respeito e a relação entre cidadãos. Essas atitudes, segundo Caponi4, indicam o reconhecimento do outro como sujeito autônomo capaz de tomar decisões e fazer escolhas, isto é, capaz de aceitar ou rejeitar as ações propostas pelos profissionais de saúde mental. Diferencia-se do afeto que infantiliza e reforça a maternagem, antecipando-se às demandas do usuário e, também, das práticas tutelares que envolvem processos de caridade e vitimização do sujeito. Portanto, as novas práticas e técnicas devem resultar em ações que aumentem as possibilidades de governabilidade dos sujeitos sobre sua vida5.

A noção de clínica, por sua vez, deve ser pensada desde o seu sentido original (inclinar-se sobre o leito) que expressa, como destaca Foucault6, o espaço primordial e imprescindível onde o saber médico se formou, ou seja, a relação universal da humanidade consigo mesma.

Com o advento da ciência, a sensibilidade para lidar com as próprias dores, passada de pai para filho, é substituída pela sistematização do conhecimento que reduz o olhar a um conhecimento objetivo do percurso da doença. O pensamento médico ocupa lugar determinante na vida do homem moderno porque, apesar de reafirmar a morte e reconhecer nela o anúncio sem trégua da finitude humana, vem substituir a salvação pela saúde. A doença se apresenta ao seu observador como um conjunto de sintomas e signos independentes, dissociados da existência do indivíduo, tratados de forma objetiva.

Essa dissociação está presente na Psiquiatria, primeira especialidade médica que, ao dar à loucura o status de objeto de uma terapêutica, transforma-a em "doença mental,"7 separando-a do homem, seja para relegá-la ao universo da desrazão, seja para reduzi-la a um distúrbio orgânico.

A descoberta do inconsciente e a construção do saber psicanalítico por Freud, contudo, subvertem a dissociação promovida pela ordem médica e redirecionam o sentido da "clínica" a partir da suposição da existência da razão inconsciente e da implicação do sujeito em seu sintoma. O próprio Freud assinala que a psicanálise nasceu da necessidade de compreender a natureza "daquilo que era conhecido como doenças nervosas 'funcionais'".8 O método se originou numa época em que os neurologistas recebiam forte orientação para se restringirem aos fatores anatômicos, físicos e químicos, período classificado por ele como "materialista, ou melhor, mecanicista", quando a medicina, apesar de seus avanços, demonstrava grande dificuldade em compreender "os mais importantes e difíceis problemas da vida".9

Certamente, as formulações da psicanálise tiveram influência nas modificações que a reforma psiquiátrica introduziu na noção de clínica, ao retomar a relação entre a problemática da doença e a existência do sujeito, ainda que não tenham sido decisivas na conformação desse novo campo, marcado também pelas preocupações com a reabilitação psicossocial e com o resgate da cidadania do louco.

No novo sentido dado a essa noção, a partir da reforma, a clínica não se confunde mais com a clínica psiquiátrica strictu sensu e passa a incluir os procedimentos de atenção psicossocial e a incorporar a dimensão do sujeito. O tratamento deve orientar-se pelas indicações do paciente, "tomando a fala do paciente não no registro da patologia, mas como índice de sua condição existencial [...]".10 Segundo Goldberg, a clínica deve permitir a construção de um projeto pessoal, crivado pelas vicissitudes da doença, mas com vontade e interesse para perseguir um horizonte almejado11. Procura-se, aí, criar condições para que se estabeleça um vínculo, seja pela relação individual com o paciente ou pelo agenciamento do próprio espaço coletivo como dispositivo. O campo da ação terapêutica incorpora preocupações e iniciativas que não são comumente associadas à clínica. O tratamento se converte no acompanhar da vida do paciente e, embora não dispense o saber psiquiátrico, incorpora outros saberes, outros instrumentos e práticas. A esse procedimento deu-se o nome de "clínica ampliada".

Ao levar em conta o sujeito, "dando voz aos pacientes", essa nova clínica não apenas revela a sua dimensão política, que gira em torno da luta pela cidadania do "louco", mas abre espaço para que se considere sua fala não unicamente no registro da doença, mas como índice de sua condição subjetiva. É por esse viés que consideramos fundamental a contribuição do discurso psicanalítico aos dispositivos clínicos que hoje se desenvolvem nos novos serviços de assistência em saúde mental, contribuição possibilitada pelo engajamento de psicanalistas nessas práticas de assistência e pela discussão permanente sobre a clínica.

Ao partir do referencial da teoria psicanalítica, consideramos que não se trata somente de dar voz ao paciente para que ele possa fazer suas demandas e escolhas e exercer seus direitos de cidadão, mas de levar em conta o que falar quer dizer, pois é por meio da fala, nos seus intervalos e tropeços, que podemos ver surgir efeitos de sujeito como resultado do trabalho clínico. No caso da psicose, trata-se de acolher cuidadosamente essa fala, muitas vezes incompreensível para nós, pois é nela e através dela que podemos entrever um sujeito e sua verdade.

A clínica psicanalítica parte do princípio de que o sujeito é efeito de uma estrutura, a da linguagem, que "recorta o seu corpo"12, mas que não diz respeito à anatomia. Essa estrutura é índice do modo de resposta de cada sujeito ao real da falta no Outro, falta essa com a qual todo ser falante está confrontado, uma vez que a linguagem não pode dizer tudo. Como resultado desse processo, que Freud chamou de processo primário, resta um gozo, e dele só podemos saber, no caso da neurose, pelo deciframento do sintoma, que consiste num nó de significantes constituídos em cadeias que se articulam no discurso, e, no caso da psicose, pela escuta dos delírios e das alucinações.

Qualquer um pode acolher e ocupar o lugar de intérprete de um discurso, mas na perspectiva da psicanálise, uma escuta efetiva implica tomar a fala de cada sujeito como fala verdadeira, ou seja, como expressão fidedigna de sua condição existencial. Em sua análise pessoal, o analista procura trabalhar a sua própria fala, de modo a poder utilizá-la de forma não comum, ou seja, colocando-a em reserva para permitir que seu paciente possa "dizer-lhe as próprias palavras em que ele reconhece a lei de seu ser" 13. Nesse sentido, o analista porta a palavra falada, mesmo em seu silêncio, quando se cala ao invés de responder. A não-resposta tem aí a função de possibilitar o desenvolvimento da fala do sujeito.

Isso não significa que só os psicanalistas têm acesso a essa verdade. Lacan diz que "uma prática não precisa ser esclarecida para operar"14 e lembra que, antes mesmo da elaboração da noção de inconsciente, os médicos já lidavam com a loucura e, por vezes, acertavam por meio das palavras. Encontramos nas instituições de saúde mental muitos profissionais que, mesmo não sendo analistas, levam em conta a fala de seus pacientes. Ao dar voz ao paciente psicótico, é preciso, contudo, que estejamos empenhados em escutar o seu testemunho sobre essa verdade que nos determina e nos põe a trabalhar e não utilizar a clínica e o cuidado para ocultar o que Lacan denomina "humanitarismo sentimentalóide de encomenda com o qual se vestem nossas atrocidades", ou seja, uma tendência a impor o nosso modo de gozo e a considerar o Outro como um subdesenvolvido.15

Por isso é importante que nos coloquemos em posição de aprender, em relação à clínica da psicose, a partir de um esvaziamento dos saberes prévios que possibilite perceber as indicações que o próprio paciente traz para seu tratamento. Essa é, aliás, recomendação de Freud em relação à clínica psicanalítica como um todo, quando diz que cada caso deve ser tomado como se fosse o primeiro e que o analista deve esquecer o que sabe para poder escutar. No caso da psicose, a posição de não-saber por parte do psicanalista é particularmente apropriada para possibilitar o encontro com um sujeito que detém um saber sobre si, tomado por ele na dimensão da certeza, e para provocar efeito positivo no tratamento, no sentido de não alimentar invasões e perseguições de transferência.

Tal posição deriva de uma ética que se funda na aposta de que há, ali, um sujeito e seu desejo, que pode emergir como resultado do trabalho clínico. Ao contrário de uma postura moral que tem, em seu horizonte, um ideal de cura como ideal de bem e que parte de modelos prévios sobre o que é melhor para o sujeito, a ética da psicanálise dirige-se ao sujeito em sua diferença radical para que ele mesmo trace o caminho possível para a sustentação de seu desejo. É ancorado nessa ética que o psicanalista sustenta seu próprio desejo - desejo do analista - que não se confunde com o seu desejo pessoal, mas se constitui no desejo de que haja análise, isto é, de que um trabalho psíquico possa se realizar a partir da fala e dos atos do paciente. Saber acompanhá-lo nesse trabalho e procurar perceber o percurso que ele mesmo indica para seu tratamento implica, para o psicanalista, colocar o seu próprio saber em reserva e assumir o trabalho clínico em sua dimensão de pesquisa.

1- A importância da curiosidade persistente:

Evolução, civilização, educação são equivalências à espécie, raça, indivíduo; exista a espécie, diferencie-se a raça, reúnam-se os indivíduos em sociedade, e pela própria força que os anima estes destinos se cumprirão. Assim para frente; para trás a observação é idêntica. Tenhamos, pois, a boa fé de procurar em nós, principalmente no meio em que vivemos, as causas dos nossos males: não criemos palavras sonoras que contentam a ignorância ociosa, mas não bastam à curiosidade persistente.16

Para ilustrar a importância de se colocar em posição de aprendizagem e pesquisa em relação à clínica institucional das psicoses, tomaremos um artigo, do início do século passado, de dois nomes eminentes da psiquiatria brasileira: Juliano Moreira e Afrânio Peixoto, "A paranóia e as síndromes paranóides".17 Marco na história da psiquiatria brasileira e na investigação psicopatológica realizada no país, o artigo representa uma inflexão nesse campo de saber, uma vez que seus autores, orientados pelas contribuições da psiquiatria alemã, fundamentalmente da escola psicopatológica de Kraepelin, contrapuseram-se à tradicional orientação francesa dos alienistas brasileiros de sua época.18 A partir de vasta observação clínica, com a descrição pormenorizada de inúmeros casos em que consideravam as histórias de vida e as falas dos sujeitos que manifestavam sintomas paranóicos, os autores pretenderam fornecer o maior número de elementos que facilitasse o diagnóstico diferencial da paranóia.

As formulações contidas no artigo nos interessam pelo modo como os autores operam no sentido de afastarem-se do discurso médico que, na época, ocupava-se do caráter hereditário dos sintomas para trazer a discussão para o nível das relações do sujeito com o Outro. Sustentados por uma curiosidade persistente, Moreira e Peixoto buscaram a verdade contida na fala de seus pacientes, ao contraporem-se ao que chamaram de ignorância ociosa (dos alienistas), colocando o seu próprio saber (médico) em reserva para aprender com os sujeitos sobre a sua condição e delimitando, com precisão, os fenômenos observados na estrutura paranóica. No entanto, como para os autores a paranóia era uma doença, toda essa fundamentação psicológica não foi capaz de libertar os verdadeiramente paranóicos da sua posição de objeto, objeto do saber médico.

Comparamos a curiosidade persistente, que iluminou a pesquisa desses autores, ao desejo do analista, pois exigiu uma postura de não-saber, imprescindível para a emergência da verdade do paciente. Escutar atentamente cada um dos casos em que se observavam idéias de grandeza e de perseguição significou não tomar a fala do paciente apenas enquanto expressão de um saber referencial, mas como índice de um saber textual sobre sua existência.19 Esse ato possibilitou romper com as balizas utilizadas pelo saber médico da época, e, graças à sensibilidade dos autores para as questões que afetam o ser falante, alcançaram alguma sintonia com aquele valor de verdade do qual o louco é testemunha.

Mas, por outro lado, essa curiosidade persistente se distancia do desejo do analista quando permite que nossos autores se excluam da verdade que escutaram. Embora aparentassem possuir grande respeito à singularidade de cada paciente, a tentativa de produzir um saber sobre a verdade ouvida serviu ao propósito de mantê-los no nível das ciências. Desse modo a paranóia, enquanto doença, ficou aprisionada no campo da Medicina, e a normalidade, enquanto resultado da adaptação do homem à sua condição existencial, foi considerada tarefa da Educação, ciência responsável pela aquisição de mecanismos de correção da realidade.

Não basta, portanto, boa intenção racional, disposição para escutar e acolher; é necessário, também, saber o que fazer com o que se escuta, o que depende da perspectiva que se assume diante da clínica das psicoses. Isso vale não apenas para os eminentes psiquiatras citados, como também para os novos atores do campo da saúde mental que, nas instituições, se dedicam a essa clínica.

A fundamentação de qualquer prática depende do posicionamento daquele que a sustenta face ao referencial teórico escolhido. Na perspectiva da psicanálise, a clínica deve ser concebida não como lugar de aplicação de saber, mas de sua produção, um campo virtual de construção de discursos que possibilitam aprender sobre a estrutura e as soluções que ela encontra para si mesma, o que implica um aprimoramento constante dos profissionais que ali trabalham. Nem todos os que trabalham com saúde mental estão efetivamente atentos à demanda dos pacientes e preocupados com a forma de responder a ela. A fala do sujeito pode ser tratada como algo natural ou como um excesso. Pode também ser amplamente detalhada e, ainda assim, a escuta não se fazer presente.

Concordamos com Zenoni, quando afirma que na clínica da psicose, concebida segundo o referencial da psicanálise lacaniana, "mais que fenômenos de linguagem ou delírio, trata-se [...] do gozo e dos seus modos de retorno no corpo e no agir"20, o que nos lembra, guardadas as devidas distâncias teóricas, as palavras de Foucault, quando diz que ao tornar-se doente, o corpo denuncia, através das alterações que a doença produz nos órgãos, o modo singular de articulação desse sujeito com a idéia de sua própria morte, podendo ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de seu próprio conhecimento.21 Nessa perspectiva não se trata, na clínica, de comparação simples de sintomas, mas de comparação que revela ordenação própria, a forma e a freqüência como se sucedem e sua determinação recíproca para cada sujeito.

Nosso referencial teórico, o conjunto de saberes que utilizamos para sustentar o exercício de nosso ofício, baseia-se nas concepções resultantes de nossa leitura da realidade. Trata-se de um conjunto dinâmico, em constante construção, mas que demanda um posicionamento sem o qual é impossível operar. A experiência clínica produz efeitos sobre os sujeitos que trabalham com as psicoses, remete-nos à nossa verdade e gera resistências que precisam ser trabalhadas para que o trabalho possa avançar. A psicanálise, nesse sentido, tem muito a contribuir para a formação dos profissionais que atuam no campo da saúde mental, o que não significa que todos os profissionais que trabalham nesses serviços devam, necessariamente, estar em formação analítica, mas que a presença de psicanalistas na equipe possibilite certa transmissão do que estamos chamando de desejo do analista.

No desejo do analista, diz Lacan, precisamos levar em conta o que pretendemos fazer com nossos pacientes e, também, o que consentimos que eles façam conosco22. Ouvir verdadeiramente significa aceitar o lugar de destinatário de uma fala que é sempre do Outro e que diz sempre a verdade, ainda que pela metade. O analista é fisgado pelo valor de interrogação dessa fala e, exatamente por não prejulgá-la, cria um lugar vazio onde o sujeito pode aparecer.

A relação entre saber e verdade está em jogo o tempo todo em nossas vidas e no exercício de nossa função profissional; o artigo de Moreira e Peixoto é um pequeno exemplo de como ela se articula no campo das instituições, no qual se busca resposta coletiva para a loucura. Como relacionar as verdades particulares aos saberes dos profissionais que trabalham nessas instituições? Foucault nos fornece subsídios para pensar essa relação quando, em O nascimento da Clínica, afirma que "estamos historicamente consagrados à história, à paciente construção de discursos sobre os discursos, à tarefa de ouvir o que já foi dito"23. Para ele, essa atividade de comentar, estranha atitude da linguagem, demonstra que ao interrogar o significante, pode-se explicitar um significado. Embora significante e significado possam ser considerados de forma autônoma e portem múltiplas significações virtuais, é na trama entre os dois que o homem mostra, ocultando, a marca de sua origem histórica. Sem esse ato, a experiência clínica se restringe à dialética simples da espécie patológica e do indivíduo doente, de um espaço fechado e de um tempo incerto.

2- Para frente, para trás, a observação é idêntica.

A leitura do artigo de Moreira e Peixoto nos chamou a atenção pela atualidade das questões que formula. Julgamos que ele nos poderia ser útil para refletir sobre as dificuldades e os impasses que surgem, hoje, no trabalho que se desenvolve por meio dos novos dispositivos de assistência à saúde mental, criados a partir da reforma psiquiátrica brasileira, tais como os Centros de Atenção Psicossocial.

Esses novos dispositivos trazem as marcas das influências que o movimento da reforma no Brasil sofreu em seu nascedouro. De um lado, como herdeiro da psiquiatria democrática italiana, ele enfatizou a dimensão política e social - através da luta pela cidadania do louco -, ao propor a superação da clínica. De outro, pela influência da psicoterapia institucional francesa, ele valorizou a clínica, ao considerar a especificidade da loucura e a necessidade de acolhê-la de forma positiva na instituição. Essas duas perspectivas atravessam o campo da saúde mental e provocam uma tensão que traz conseqüências na organização dos serviços e na orientação do trabalho.

É na dimensão do cuidado, categoria que ganha relevo nesse processo de construção de novas formas de lidar com a loucura, que essa tensão se inscreve e assume múltiplas formas. A importância dessa noção para a saúde mental pode ser auferida pelo tema sugerido pela III Conferência Nacional de Saúde Mental (III CNSM), que se realizou no final de 2001, em Brasília: "Cuidar sim, excluir não", apresentado como convocação dirigida não apenas aos profissionais da área, mas à sociedade como um todo, para a tarefa de cuidar e incluir o sujeito afetado pelo sofrimento psíquico no convívio social, visando o exercício de uma possível cidadania. Cuidar, nessa perspectiva, significa incluir, em oposição à exclusão, ao descaso e ao abandono que caracterizaram as práticas psiquiátricas tradicionais, de caráter manicomial. Se na origem essas instituições poderiam também considerar cuidados - cuidados médicos - seu desenvolvimento histórico as transformou no contrário do cuidado.

A atual ênfase no cuidado que marca a reforma e define institucionalmente os novos serviços, por meio de sua presença na legislação e no discurso que os sustenta, tem o sentido de não apenas humanizar o tratamento, mas de dar outra resposta social à questão da loucura. A instituição, nessa nova perspectiva, tem a função social de acolher e proteger sujeitos que apresentam determinados quadros clínicos graves, que demandam uma estrutura coletiva de resposta, assim como oferecer-lhes possibilidades de tratamento, às quais eles podem aderir ou não.

Ao se ressalvar a importância crucial dessa transformação, em nível institucional, fundamental para o desenvolvimento de um trabalho que leve em conta o sujeito em sua singularidade, não se pode deixar de chamar a atenção para determinados riscos que o trabalho na instituição implica. Por exemplo, o de tomar o mandato social da instituição como instituição de cuidados como um conjunto de saberes e normas ideais que definem o que é melhor para o sujeito, pelo viés da reabilitação psicossocial. Ao se assumir uma postura pedagógica que visa recuperar a autonomia e o poder de contratualidade dos psicóticos, ou seja, de resgatar sua competência social, o que se pode calar o sujeito, com seu desejo e seu modo próprio de se inserir no mundo. Por sua vez, ao se assumir a responsabilidade pela intervenção em todas as esferas da vida dos pacientes - trabalho, moradia, lazer, relações familiares etc. -, corre-se o risco de se adotar uma postura assistencialista e de tutela, que limita qualquer iniciativa do próprio sujeito em prol de uma suposta eficácia dos métodos de intervenção.

A contribuição da psicanálise nesse campo está na direção oposta daquela que valoriza a clínica como clínica da fala, por meio da qual o sujeito pode aparecer, o que pressupõe para o profissional um 'desfazer-se' dos saberes prévios para poder acompanhar cada sujeito na especificidade de sua estrutura e nos caminhos possíveis que ele encontra para sua recuperação. Nesse processo, destaca-se a "curiosidade persistente" que Moreira e Peixoto defenderam em sua época. A idéia propiciou uma reviravolta nas abordagens estabelecidas, na medida em que chama a atenção para a dimensão da pesquisa que nos coloca não apenas como psicanalistas, mas como equipe de profissionais que trabalha no campo da saúde mental, especialmente no trabalho com a psicose, como aprendizes da clínica. Em termos de instituição, essa postura favorece o trabalho em equipe porque desconstrói as hierarquias tradicionais e o imaginário que as cerca, assim como a disputa entre saberes. Do ponto de vista do psicanalista, trata-se de sustentar o desejo do analista não somente no tratamento oferecido a cada sujeito, mas também nesse espaço de discussão clínica, no sentido de possibilitar uma transferência de trabalho que viabilize esta prática entre muitos.24

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua São Francisco Xavier, 524 - Bloco B - sala 10.024
20550-900 Rio de Janeiro - RJ
E-mail: doris@uerj.com.br

Artigo recebido em: 3/1/2005
Aprovado para publicação em: 14/1/2005

 

 

* Este trabalho é o resultado da pesquisa "Clínica do sujeito e atenção psicossocial: novos dispositivos de cuidado no campo da saúde mental" (UERJ/CNPq), coordenada por Doris Luz Rinaldi, apresentada no X Simpósio de Pesquisa e Intercâmbio Científico da ANPEPP, no período de 24 a 28 de maio de 2004, em Aracruz, ES. Um esboço deste artigo foi apresentado no IV Congresso Norte-Nordeste de Psicologia, realizado em Salvador no período de 25 a 28 de maio de 2005.
I Psicanalista, pós-graduada em Psicanálise - Instituto de Psicologia. Professora adjunta do Mestrado em Psicanálise do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora do Curso de Especialização em Psicanálise e Saúde Mental do Programa de Pós-graduação em Psicanálise do mesmo instituto.
II Psicanalista, mestre em Psicanálise pelo Programa de Pós-graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ.
1 DUARTE, Marco José de Oliveira. Por uma cartografia do cuidado em saúde mental: repensando a micropolítica do processo de trabalho de cuidar em instituições. In: BRAVO, Maria Inês S. et al. (Orgs.) Saúde serviço social. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: UERJ, 2004. p. 150-163.
2 VASCONCELOS, Eduardo Mourão. Breve periodização histórica do processo de reforma psiquiátrica no Brasil recente. In: VASCONCELOS, Eduardo Mourão (Org.). Saúde mental e Serviço Social: o desafio da subjetividade e da interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 2000.
3 BEZERRA, Jr. e Amarante, P. (Org.) Psiquiatria sem Hospício. Contribuições ao estudo da Reforma Psiquiátrica. Cidade: Ed. Relume Dumará, 1995.
4 CAPONI, Sandra. Da Compaixão à Solidariedade: uma genealogia da assistência médica. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2000.
5 MERHY, Emerson Elias & ONOCKO, Rosana. Agir em Saúde: um desafio para o público. São Paulo: Hucitec; Buenos Aires: Lugar, 1997.
6 FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. p. 60.
7 RINALDI, D. A ordem médica: a loucura como 'doença mental'. Em Pauta, Revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ, Rio de Janeiro, n. 13, p. 104, jul. - dez. 1998.
8 FREUD, S. (1924 [1923]). Uma breve descrição da psicanálise. In: Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1990. Vol. XIX. p. 239.
9 Id. Ibid., p. 268.
10 TENÓRIO, F. A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 67.
11 GOLDBERG,J. - Cotidiano e Instituição: revendo o tratamento de pessoas com transtorno mental em instituições públicas (Tese de Doutoramento) São Paulo: FM-USP, 1998. p. 8.
12 LACAN, Jacques. Televisão (1974). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 19.
13 LACAN, Jacques. Variantes do tratamento-padrão (1955). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 361.
14 LACAN, Jacques. Televisão (1974). p. 20.
15 Id. Ibid., p. 58.
16 MOREIRA, Juliano e PEIXOTO, Afrânio. A paranóia e as síndromes paranóides. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental IV, São Paulo, n. 2, jun. 2001. p. 139.
17 MOREIRA, Juliano e PEIXOTO, Afrânio. A paranóia e as síndromes paranóides. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental IV, São Paulo, n. 2, jun. 2001. p. 134-167.
18 ODA, Ana Maria Galdini Raimundo e DALGALARRONDO, Paulo. A paranóia, segundo Juliano Moreira e Afrânio Peixoto. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental IV, São Paulo, n. 2, jun. 2001. p. 125-133.
19 JULIEN, P. O estranho gozo do próximo: ética e psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1996, p. 16.
20 ZENONI, A. Qual instituição para o sujeito psicótico? Revista Abrecampos - Ano 1 - Nº 0 - Junho/2000. p. 19
21 FOUCAULT, op. cit., p. 227.
22 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, Cap. XII, p.151.
23 FOUCAULT, op. cit., p. 59.
24 ZENONI, A., op. cit., p. 16.

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