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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.4 n.6 Barbacena jun. 2006

 

ARTIGOS

 

"O enviado": uma interface entre a psicopatologia e a espiritualidade1

 

"The envoy": an interface between psychopathology and spirituality

 

 

Luanna BarbosaI, II,*; José BizerrilI, III,**

I UniCEUB
II UCB

III UnB

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste estudo de caso discute-se as limitações interpretativas dos critérios psicopatológicos. Objetiva-se analisar os fenômenos ditos psicóticos no campo da espiritualidade, visto que o sujeito possui características que podem ser vistas pelas óticas médica e religiosa, num contexto de simbolismo cristão popular, inserido em uma experiência idiossincrática e típica de profetas com missão divina, em uma realidade de dissidência e marginalidade social. Ao afastar-se do debate quanto à objetividade de sua fala, deseja-se produzir inteligibilidade sobre sua experiência, tendo como base o relativismo prático (JACKSON, 1996), a interconexão espiritualidade/psicopatologia (FULFORD, 2003), a construção social da loucura (FOUCAULT, 2002, 2004), a anti-psiquiatria (COOPER, 1989; LAING, 1988; BASAGLIA, 2004), a liminaridade (TURNER, 1974) e a subjetividade (GONZALEZ-REY, 2005).

Palavras-chave: Antropologia da religião, Zonas de sentido, Psiquiatria e anti-psiquiatria, Esquizofrenia, Liminaridade.


ABSTRACT

This case study analyzes the interpretative limitations of psychopathological criteria. The objective is to analyze the so-called psychotic phenomena in the field of spirituality - since the subject possesses characteristics that can be seen both by medical and religious perspectives, in a context of popular Christian symbolism, inserted simultaneously in a indiosyncratic and typical prophetical experience, in a reality of dissidence and social marginality. Avoiding the debate on the objectivity of his speech, one aims to produce intelligibility concerning his experience, based on practical relativism (JACKSON, 1996), on the interconnection between spirituality and psychopathology (FULFORD, 2003), on the social construction of madness (Foucault, 2002, 2004), on antipsychiatry (COOPER, 1989; LAING, 1988; BASAGLIA, 2004), on the liminality (TURNER, 1974) and on the theory of the subjectivity (GONZALEZ-REY, 2005).

Keywords: Anthropology of the religion, Zones of meaning, Psychiatry and antipsychiatry, Schizophrenia, Liminality.


 

 

"O Enviado": uma interface entre a psicopatologia e a espiritualidade

"Sistemas de crenças idiossincráticas que são compartilhados por poucos adeptos provavelmente serão considerados como delirantes. Sistemas de crenças que, mesmo sendo irracionais, são compartilhados por milhões de pessoas são chamados de religiões mundiais" (STORR, 2003, p. 87).

"Eu tenho nome de profeta, eu tenho nome de pastor, eu tenho nome de Jesus" (MESSIAS).

 

Introdução

Este trabalho consiste em um estudo de caso de um homem de 45 anos que, aqui, chamaremos de Messias. Antes, porém, gostaríamos de fazer referência ao que menciona Wilson (1994) sobre a escuta etnográfica. Apesar do tão discutido relativismo cultural (BIZERRIL, 2003), é comum que os antropólogos, ao voltarem de sua pesquisa de campo e iniciarem o trabalho de escrita e de análise do discurso do nativo, iniciem seus parágrafos com algo como "segundo o nativo" ou "de acordo com o nativo". Não queremos tender à ingenuidade romântica de desconsiderar outros ethos que não o do nativo, inserindo-nos, desse modo, no contexto dele ou, de certo modo, ocupando o papel de nosso interlocutor. Trata-se, também, de um recurso lingüístico que evidencia o sujeito que fala, a quem se refere o discurso em um texto. Entretanto, é sabido que muitos antropólogos, quando utilizam esse recurso, estão, na verdade, ocultando uma certa condescendência com a idéia do nativo, que não ocupa seu lugar de detenção do conhecimento e do poder, e não compartilha de suas crenças - principalmente quando se refere a questões de percepção extra-sensória ou a crenças que escapam por demais à esfera do normal (WILSON, 1994; BIZERRIL, 2003). É por esse motivo que queremos clarificar, antes de tudo, que, quando nos referirmos à fala ou ao contexto de Messias, não serão usados eufemismos desse tipo, pois acreditamos que tal recurso lingüístico encobre, na verdade, um instrumento sutil de poder e de exclusão social. Tudo o que for dito a respeito do discurso de Messias será feito da mesma posição da qual se fala a análise dos autores sobre o assunto.

Antes de entrar no universo da discussão religiosa, cabe lembrar o que diz Jackson (1996) acerca das crenças do nativo. Partimos do pressuposto de que é necessário não verificar se os fenômenos extraordinários existem, mas reconhecer como vivem as pessoas em um mundo em que eles, de fato, existem.

Jackson assinala que para a maior parte das culturas do mundo a intervenção de seres ou forças espirituais é parte da experiência extraordinária de seus membros. Com esse propósito, o autor desenvolve o conceito de relativismo prático:

The suspension of inquiry onto the divine or objective truth of particular customs, beliefs or worldviews in order to explore them as modalities or moments of experience, to trace out their implications and uses. Ideas [...] are seen as approximate expressions rather than exact explanations of experience (JACKSON, 1996, p. 10).

Portanto, é válida a discussão de compreender, por hora, como vive um indivíduo em um universo onde se possui uma missão a ser realizada no mundo, designada por Deus e apenas para ele. Afastamo-nos, desse modo, de toda discussão em torno da legitimidade do papel ocupado por Messias como enviado de Deus, discussão a priori infrutífera, ao se lembrar das premissas do relativismo cultural (BIZERRIL, 2003). Se uma idéia produz significado para a subjetividade do nativo, não cabe ao antropólogo questionar a validade de tal significado. Mesmo a ciência é, antes de tudo, um sistema de crenças e depende de uma perspectiva histórica e social (GROF, 1987).

 

Metodologia

Foi utilizada, neste estudo de caso, a metodologia qualitativa, que tem como base teórica a epistemologia qualitativa proposta por González-Rey (2005). Atuamos com o objetivo de produzir o que o autor nomeia de zonas de sentido, ao abrir a possibilidade de abordar o caso não de acordo com uma classificação pré-estabelecida e fundada no "real" e no linear, mas de acordo com um espaço de inteligibilidade que se vai construindo numa produção de sentido entre interlocutor e pesquisador, sem que hipóteses defasadas sejam trazidas a campo, como "a prioris" que se prestam apenas ao propósito de objetificar o sujeito pesquisado. A respeito das zonas de sentido, o autor afirma:

Tal conceito tem, então, uma profunda significação espistemológica que confere valor ao conhecimento, não por sua correspondência linear e imediata com o "real", mas por sua capacidade de gerar campos de inteligibilidade que possibilitem tanto o surgimento de novas zonas de ação sobre a realidade, como de novos caminhos de trânsito dentro dela através de nossas representações teóricas (GONZÁLEZ-REY, 2005, p. 6).

O dado bruto, em si, não possui sentido, e é justamente nessas zonas de sentido que uma inteligibilidade a respeito de um dado pode ser construída (GONZÁLEZ-REY, 2005). Nessa perspectiva, Laing (1988) enfatiza a necessidade de respeitar nosso objeto de estudo como nossa fonte de conhecimento - neste caso, o interlocutor - e critica a tentativa ingênua, por parte dos cientistas, de objetificar a realidade, afastando-se da experiência, que, a priori, não é objetificável. Segundo Bauman (1998, p. 106), "é difícil ver os conteúdos da experiência através das paredes da teoria", e, muitas vezes, é necessário desconstruí-las para enxergar aquilo que ocultam.

Ainda segundo González-Rey (2005), o sujeito que participa na pesquisa como interlocutor precisa ter uma necessidade, nesse sentido, que se desenvolve não como pressão exercida pelo pesquisador, mas como configuração subjetiva de ambas as partes, o que se torna imprescindível para a formação do vínculo na pesquisa de campo. A díade pesquisador-interlocutor produz, assim, uma narrativa que não parte, exclusivamente, de nenhuma das partes e que se constrói em uma instância em que ambos estão qualitativamente envolvidos de modo semelhante.

Desse modo, o objetivo deste estudo de caso é abrir nova zona de sentido em que se possa investigar a inteligibilidade de um caso complexo, que não pode ser enquadrado em categorias existentes na "realidade", sejam sociais, religiosas, políticas ou institucionais.

 

Estudo de caso

Diante do fato de que Messias possui uma história incomum no contexto urbano brasileiro de nossa época, pretendemos proteger sua identidade, o que não foi feito a seu pedido, mas pela questão moral de que se reveste sua situação no contexto da pesquisa.

Messias foi encontrado casualmente, quando passávamos por uma região periférica de Brasília. Chamou-nos muito a atenção sua aparência: usava barbas longas e vestia uma longa túnica branca, no estilo de alguns santos católicos de imagens devocionais, com os dizeres de "PAZ" (na parte da frente) e "O ESCOLHIDO DE DEUS" (atrás). Andava calmamente e portava apenas uma sacola de tecido branca. Abordado por nós, aceitou prontamente conceder-nos uma entrevista. Explicamos-lhe o motivo de nosso interesse como estudantes de antropologia cultural, o que foi recebido com muita simpatia: "Se vocês estão aqui para falar comigo é porque Deus quer". E explicou como nos encontrou apenas por vontade do Divino Espírito Santo, pois seu percurso não correspondia originalmente àquele.

Messias havia sido "empossado" pelo Divino Espírito Santo, há oito anos, em 1998. Até então, tinha estudado apenas até a terceira série do ensino fundamental e trabalhado em restaurantes e panificadoras, além de ter sido bicheiro:

Eu antes de começar esta missão, eu vivia no mundo, a compromisso do mundo, cumprindo os compromissos da sociedade (...) Eu saí trabalhando, com meus próprios pensamentos (...) Eu vivi em São Paulo, em Salvador, trabalhei com artesanato, fui hippie, vivi nas ruas, mas até esse ponto eu não tinha nada de pensamento, eu não fui praticante de religião (...), eu vivia no mundo, trabalhando, eu tinha o espírito do mundo, porque hoje eu sou guiado pelo Espírito Santo (...) Quando você começa a seguir o Espírito do Pai Eterno (...) você começa a desligar (...) das coisas mundanas (...) todos os profetas começam assim (...) Quando eu estava na Bahia, em 1998, eu fui empossado pelo Divino Espírito Santo, mas para isso a gente tem que passar por muitas coisas, para aquela força ativa de Deus cair sobre a pessoa (...) mas eu tive que ser preso, três vezes (...) por nada (...) na terceira vez, eu fiquei pensando comigo, eu não pratiquei ato nenhum (...) por que eu estou ficando preso? (...) porque eu tava na rua, bagunçando (...) será que não é alguma coisa divina, eu tô passando por isso (...) para alguma coisa espiritual se apossar de mim? (...) Eu tava na rua, eu tava bebendo, acontecia alguma coisinha, algum delito, para eles me prenderem (...) Então aquela força me puxou [do quadro católico que estava na parede da casa de sua mãe], aquela força me tirou fora da casa da minha mãe, para debaixo de um pé de jaca (...) tudo o que eu triscava eu tomava choque (...) o corpo esquentava que parece que tava pegando fogo (...) Ele [Deus] falou que eu tinha que ler noite e dia, vinha no pensamento, é quando você tá empossado, é quando o espírito toma conta da pessoa (...) aquela força era do alto, era uma coisa espiritual e universal, vinha uma mão bem levinha e tocava na minha mão (...) mas aquela invocação não saía, que eu tinha que ler noite e dia (...) e eu nem gostava de ler (...) aí quando eu tô sentado no sofá apareceu um ratinho (...) veio na minha direção e ficou olhando para mim (..) peguei um cabo de vassoura e saí correndo atrás dele (...) aí o rato passou, eu peguei o cabo de vassoura, larguei nele (...) e o rato entrou dentro da caixa (...), quando eu virei a caixa, caiu uma bibliazinha desta aqui (...), uma desta e uma do Santo Cristo (...) e quando caiu eu tirei meu sentido do ratinho (...) aí de noite já comecei a ler (...)

Após esses sinais que recebeu de Deus, Messias rompeu com sua vida social e com sua identidade civil. Abandonou seu RG, seu CPF, suas roupas, seus amigos, sua família e pôs-se a seguir o caminho que lhe indicava Deus. Passou a pautar sua vida segundo o que lhe falava Deus, incluindo os locais para onde seguia, o que comia, com quem falava, onde dormia ou o que lia.

A primeira missão dada a Messias por Deus havia sido a de visitar todos os santuários sagrados por onde passasse, independente da religião a que pertencessem. Esse ecumenismo lhe permitiu visitar a Igreja Universal do Reino de Deus, os Testemunhas de Jeová, a Renovação Carismática, os centros espíritas, as igrejas católicas e de outras religiões. Lamentou-se pelo fato de ainda não ter visitado centros budistas ou islâmicos, mas apresentava relativo conhecimento sobre tais religiões.

Começava, naquele momento, a segunda missão designada por Deus, ou seja, levar a palavra do Pai Divino aos homens, independentemente da religião, principalmente àqueles detentores do poder (a "alta sociedade"), que poderiam efetuar mudanças no mundo material.

Na análise de Littlewood (2003), experiências ditas psicóticas podem ser o mecanismo de toda inovação religiosa. E algo claro no discurso de Messias é seu objetivo de levar ao mundo a palavra de Deus, conforme sua recorrente fala: "Eu vim bulir no coração da alta sociedade... eu tô aqui para fazer a vontade de Deus e não a vontade do mundo" ou "Eu sou um agente secreto no meio da raça humana, e ninguém sabe disso".

A vida de Messias está ligada à dimensão espiritual e não à material ("Eu não sou mais cobaia do mundo"). Já passara dias sem comer, já andara cerca de 12 mil quilômetros porque não tinha licença para andar de carona. A partir do momento em que obteve licença para pegar carona, pegava-a com quem lhe oferecesse. Do mesmo modo, falava com quem lhe solicitava e com quem Deus permitisse. Antes de conhecer o sistema dos albergues, que lhe foi permitido por Deus desde 2003, descrito a seguir, já dormira pelas calçadas, sob árvores, sob viadutos ou pontes. Quando perguntado sobre suas sandálias, que já estavam rotas, respondeu que andava descalço, se Deus assim o quisesse, e que aquela ainda lhe permitia caminhar quilômetros. Sua mente estava ligada a Deus durante as 24 horas do dia e, embora falasse conosco, seu pensamento estava Nele. Era a vontade de Deus que ele conversasse conosco, assim como o era o fato de ele haver ido a Brasília. Tudo em sua vida era determinado pela vontade de Deus, inclusive a túnica que usava, que lhe fora permitida desde 2003.

Messias estava em Brasília, no albergue do Areal, por tempo limitado, e, assim que o instruísse Deus, seguiria para Rondônia, próximo ponto de sua missão. Cabe aqui uma descrição sumária dessa instituição. O albergue do governo, presente em algumas partes do Brasil, é um local construído para receber pessoas com necessidade de auxílio (financeiro ou médico, por exemplo), abrigando-as por, no máximo, seis meses. Durante esse período, o albergado recebe roupas, vales-transporte, alimentação, tratamento médico e local para dormir. Geralmente, sua permanência no local corresponde a um período de espera por uma passagem, fornecida pelo albergue, ou por um emprego.

Os albergues se constituem naquilo que Bauman (2005) chama de depósito de lixo social, ou seja, a representação demográfica da marginalização social. As pessoas que o freqüentam, geralmente, não possuem qualquer outro recurso - não têm emprego, estão longe da família e da cidade natal, estão doentes, enfim, representam justamente a parcela da sociedade que o autor (2005) nomeia de "pessoas supérfluas" ou refugo da sociedade.

O que queremos ressaltar aqui, e que será válido para análise posterior, é que Messias conseguiu local para sua estadia no albergue e, inclusive, a promessa de passagem para Rondônia. Quando interrogado sobre a aceitação diante de seus motivos peculiares, respondeu que não houve qualquer objeção por parte da administração do albergue.

Messias estava em Brasília visitando templos locais, à espera do momento em que Deus determinasse que poderia ir a Rondônia. Carregava em sua bolsa apenas alguns livros bíblicos, um documento de delegacia, que atestava que seu RG havia sido extraviado, e sua segunda túnica, que estampava, na frente, um coração, ao modo dos pintados em quadros católicos devocionais (possivelmente o Sagrado Coração de Jesus) e, atrás, "O CAMINHO A VERDADE I A VIDA E DEUS". Era o que permitia o Divino Espírito Santo.

Algo que merece destaque em relação ao albergue é o fato de que os albergados deveriam levar seus pertences para onde quer que fossem, pois estavam sujeitos ao furto, principalmente dos "moradores" mais antigos. Reconhece-se, assim, a formação de uma estrutura de poder paralela à administração, que tinha conhecimento dessa questão e alertava os recém-chegados quanto a ela. Nesse contexto, Messias diferenciava-se dos outros albergados pelo fato de portar apenas uma sacola de tecido com livros religiosos, por não usar roupas de "marca", por dividir qualquer alimento com os companheiros e, sobretudo, por sua aparência incomum. Era chamado, dentro do albergue, de "na paz" ou de "doido".

À época de seu "empossamento", Messias passou a comunicar-se com Deus e também a ter sonhos premonitórios. Diversas vezes, sonhou com fatos que aconteceram, tanto em sua vida privada como na esfera pública e nacional. Sua família, nesse período, questionou-o:

Os parentes são os primeiros a repudiar(...) eles me chamam de doido, de maluco, de beberrão(...) os meus parentes, eles não acreditam em mim(...) meus parentes não sabem onde é que eu tô(...) Eu já falei lá: 'vocês não se preocupam mais comigo de hoje em diante'(...) Eu saio de madrugada, eu saio de noite, eu faço o que Ele diz, eu não mando nos meus pensamentos(...) O homem, quando passa a ser espiritual, ele passa a ser guiado pelo Divino Pai Eterno [...].

Entretanto, nunca fora acusado de insanidade nem nunca houve qualquer tentativa de internamento porque Deus não permitia. Por outro lado, Messias era sempre vítima de questionamentos, de acusações, de humilhações, de desconfianças e da marginalização social: "as pessoas humilham, destratam", "já teve igreja que eu pedi dormida e me mandaram para um posto de maternidade" ou "já teve evangélico que me chamou de satanás, que me xingou nas estradas". Entretanto, tais fatos não lhe entristeciam, pois sabia que eram parte da missão do único enviado de Deus.

Quando perguntado se alguém já o quisera acompanhar em sua missão, disse que, por vezes, fazia contato com algumas pessoas, por alguns dias; entretanto, aponta:

é verdade, o escolhido dentre de (sic) milhões da raça humana, pra Deus eu sou o único. Vestir as túnicas e as roupas do Messias não é pra qualquer um não. Viver uma vida de peregrino, de eremita, passando por crítica, por discriminação, por repudiação, entrando na alta sociedade e as pessoas discriminando, dormindo em qualquer lugar... Eu já dormi debaixo de viaduto, debaixo de árvore, eu não conhecia esse negócio de albergue e não acontece mal à gente porque Deus não permite.

 

Perspectivas teóricas

Iniciamos a análise do caso de Messias apontando a necessidade de o médico, na prática clínica, estar acessível ao paciente e ocupar o lugar de alguém que deseja ouvir, posicionando-se de forma semelhante, e não superior, ao paciente, em vez de, simplesmente, diagnosticar. Ao analisar o discurso de Messias, do ponto de vista de uma ciência ortodoxa que age como instrumento do poder, da violência e da exclusão político-social (BASAGLIA, 2001), podemos assumir, por hora, as classificações, para fins de diagnóstico, encontradas nos manuais mais recorrentemente usados.

Encontram-se na CID-10 (1998) algumas sintomatologias e categorias que poderiam ser úteis no diagnóstico de Messias. Sintomas como delírios (de grandeza), alucinações (tátil e visual), inserções de pensamento e delírio de controle estão expostos, em forma e conteúdo, em seu estudo de caso: "eu não mando nos meus pensamentos" ou "tem coisa que vem no meu pensamento que vem direto do Divino Espírito Santo". Uma posição médica ingênua poderia classificar Messias como esquizofrênico. Entretanto, ao analisar seu caso, de acordo com a CID-10 (1998), Messias não se enquadra na categoria F-20 (esquizofrenia) pelo fato de que, apesar de preencher sintomas de G1 (inserção de pensamento, delírio de controle, delírios persistentes), não pode ser diagnosticado como paranóide, hebefrênico e catatônico.

Messias também não se enquadra em categorias como a esquizofrenia simples por não satisfazer seus critérios (a respeito da categoria esquizofrenia indiferenciada - F-20.3 -, ver comentários adiante). O caso não satisfaz à categoria de F-23.0 (transtorno psicótico agudo polimorfo sem sintomas de esquizofrenia) por preencher critérios diagnósticos para F-20, como inserção de pensamento e delírio de controle, e por durar mais do que três meses; não satisfaz F-22 (transtorno delirante) pela presença da inserção de pensamento e do delírio de controle; não satisfaz F-23.1 (transtorno psicótico agudo polimorfo com sintomas esquizofrênicos) pelo fato de os sintomas esquizofrênicos durarem mais que um mês.

Aparentemente, seu caso poderia ser enquadrado em F-22.8 (outros transtornos delirantes) por preencher sintomas esquizofrênicos insuficientes para satisfazerem os critérios para F-20 (delírio de controle e inserção de pensamento). Outra categoria em que Messias poderia ser encaixado é a do distúrbio esquizotípico (F-21), por preencher os (quatro) critérios seguintes por, ao menos, dois anos: comportamento ou aparência estranhos, excêntricos ou peculiares; pobre relacionamento com os outros e tendência a retraimento social; crenças estranhas ou pensamento mágico influenciando o comportamento e inconsistentes com as normas subculturais; episódios quase psicóticos com intensas ilusões e idéias deliróides, que usualmente ocorrem sem estímulo externo. Além disso, Messias também não satisfaz os critérios para qualquer transtorno em F-20. À primeira vista, aparentemente, o diagnóstico pode ser F-22.8 ou F-21. Entretanto, essas categorizações podem ser desconstruídas quando se analisa o conteúdo de seus delírios e alucinações, o que será feito adiante.

A questão torna-se crucial quando se questiona a legitimidade de classificar o comportamento de alguém como "excêntrico", o relacionamento com as pessoas como "pobre", as crenças como "estranhas" e os pensamentos como "ilusórios" - tal tipo de critério para diagnóstico está revestido de uma epistemologia científica ingênua, imbuída de preconceito e de etnocentrismo. Além disso, percebe-se a insuficiência dos critérios diagnósticos da CID-10 (1998) quando se pensa na própria categoria F-22.8 (ou mesmo em esquizofrenia indiferenciada - F-20.3 - ou esquizofrenia não especificada - F-20.9, além de todas as categorias nomeadas por "indiferenciado", "não-especificado" ou "outros"), o que equivaleria a dizer a um paciente que sua pressão arterial é indefinida. Quando se pensa na extensa gama de categorias da CID-10 nomeada por "outros" ou "indefinidos", percebe-se, de forma sutil, uma tentativa de classificá-las, por meio do instrumento, como categorias reconhecidamente psiquiátricas, mesmo que falte compreensão suficiente a respeito dos fenômenos.

Com relação ao DSM-IV-TR (2002), o caso de Messias não pode ser enquadrado no diagnóstico de esquizofrenia por não haver disfunção social, cognitiva nem emocional

que acometam a percepção, o pensamento inferencial, a linguagem e a comunicação, o monitoramento comportamental, o afeto, a fluência e produtividade do pensamento e do discurso, a capacidade hedônica, a volição, o impulso e a atenção (DSM-IV-TR, 2002).

Pode-se apenas mencionar, como sintomas típicos da esquizofrenia, o delírio e a alucinação (Critério A), ambos sem insigth e sem se associarem de forma que resultem no diagnóstico que "envolve o reconhecimento de uma constelação de sinais e sintomas associados com prejuízo no funcionamento ocupacional ou social".

Com relação ao tipo indiferenciado de esquizofrenia e ao transtorno psicótico sem outra especificação, aplica-se as mesmas observações sobre as categorias da CID-10 (1998). O caso não se enquadra no diagnóstico de transtorno esquizofreniforme por ter duração superior a seis meses.

O diagnóstico de transtorno delirante (tipo grandioso) pode tornar-se difícil para o caso de Messias pelo fato de a classificação do delírio encontrar-se numa área permeada pela definição cultural e pelo juízo de valor. O julgamento do que venha a ser um delírio bizarro é altamente sujeito ao juízo de valor - o mesmo pode ser dito em relação ao diagnóstico da esquizofrenia (na ocasião de delírios bizarros, estes se tornam suficientes para a classificação).

Também se torna incerto, em razão do juízo de valor, classificar seu comportamento como bizarro ou não. A desconstrução do tema do que viria a ser diagnosticado como delírio, no caso de Messias, será feita no decorrer deste artigo, pelo fato de não concordarmos com sua classificação em transtorno delirante ou mesmo em esquizofrenia.

Ambos os manuais mostram-se insuficientes como sistema de classificação para o caso, principalmente no que se refere a um diagnóstico preciso. As sintomatologias e as categorias descritas são incertas, generalistas e imprecisas. O que se percebe dos manuais mais utilizados pela Psiquiatria e pela Psicologia é que casos como o de Messias, mesmo com a ressalva feita no DSM-IV-TR (2002) ("características específicas à cultura e ao gênero") e na CID-10 (1998) ("modos de expressão e comportamento cultural ou subculturalmente influenciados"), tornam-se incompreensíveis e deslocados, o que equivale a, na clínica médica, comunicar ao paciente, após examiná-lo, que não existe diagnóstico para o caso dele e, no caso de existir, este pode estar entre quatro possibilidades diversas. Por outro lado, trata-se de um caso complexo que não cabe em diagnósticos e que precisa ser examinado à luz da configuração subjetiva do sujeito, não se restringindo a categorias que não esgotam ou, sequer, esboçam a compreensão do caso. Trata-se de uma situação de ambivalência classificatória, análoga à problemática levantada por Fulford (2003), por apresentar uma fenomenologia que poderia ser pensada como portadora de características psicóticas, ao mesmo tempo em que não oferece subsídios para um psicodiagnóstico coerente por não vir acompanhada de morbidade e disfuncionalidade social.

Com relação ao check list prático sugerido por Sims (2003) para fazer a distinção entre morbidade psiquiátrica e experiência religiosa, consideramos o modelo reducionista, pois a experiência subjetiva, principalmente quando se trata de experiências espirituais, é complexa por demais para ser enquadrada em um check list. Messias apresenta, segundo o check list, sintomas claros de ambos, o que não ajuda a elucidar a problemática da distinção. Sims (2003) aponta o reconhecimento do livre-arbítrio (ou seja, ausência de delírio de controle) - uma categoria que só se define em uma determinada esfera de compreensão cultural, sobretudo pautada por uma definição individualista moderna de sujeito e que não pode ser levantada como distintivo de enfermidade - como fator que distingue o diagnóstico da experiência espiritual da esquizofrenia. Messias negaria essa distinção ao afirmar que "só faz aquilo que Deus permite".

O diagnóstico é um juízo de valor inserido em uma realidade cultural ou de quem diagnostica (FULFORD, 2003). Analisando a proposta do autor, fenômenos extraordinários na experiência religiosa são de ordem da normalidade e não podem, a priori, ser enquadrados nas categorias da psicopatologia:

[...] fenômenos patológicos e psicótico-espirituais não podem ser distinguidos por somente forma e conteúdo [...]; pelas suas relações com outros sintomas ou com causas patológicas [...] ou por referência ao critério descritivo de doença mental, pressuposto no modelo 'médico'. [...] a distinção depende, antes, da maneira segundo a qual os próprios 'fenômenos psicóticos' estão inseridos nos valores e crenças da pessoa envolvida. [...] os fenômenos [...] diagnosticáveis como 'sintomas patológicos' [...] podem ocorrer no contexto de experiências espirituais não-patológicas e, mesmo, essencialmente benignas" (FULFORD, 2003, p. 9-10).

Queremos, inicialmente, levantar a discussão de Fulford (2003) a respeito do fato de que, muitas vezes, experiências com conteúdo e forma semelhantes a sintomas psicóticos podem, essencialmente, ser fenômenos adaptativos e de caráter inspiracional, criacional. Ademais, ressaltamos que para Messias, sua experiência foi benigna e não levou à deterioração de suas funções vitais nem acarretou disfuncionalidade social. Entretanto, mesmo esses conceitos, como analisa Fulford (2003), não são ainda suficientes para analisarmos este caso: alguns contextos que levam à deterioração das funções vitais, como a preguiça, não podem ser classificados como doenças, e mesmo a noção de ser benigno, ou não, está sujeito a juízo de valor. O conceito de disfuncionalidade (como no DSM-IV-TR) não se aplica ao nosso sujeito, pois não existe incapacidade para lidar com a realidade. Sua credencial se trata justamente da circulação e de sua capacidade de convencer as pessoas de que não é louco.

O caso deve ser descrito num campo mais amplo do que o do modelo médico tradicional, que encaixa as experiências complexas e idiossincráticas do indivíduo em um mapa pré-determinado de sintomas e sinais a serem preenchidos. Há, portanto, o perigo de que se confunda o mapa com o território, e, nesse ponto, a teoria deixa de prestar-se ao seu objetivo de compreensão da realidade, tornando-se ela própria o cenário a ser descrito (LAING, 1988).

Segundo Foucault (2004), a loucura é uma denominação construída socialmente, que depende da época e do contexto social em que se insere. É uma definição estabelecida pela sociedade e que usa o psiquiatra como instrumento da exclusão social, ao legitimar uma prática que encobre, por meio da ciência, seu objetivo da violência política (BASAGLIA, 2001).

Descartamos, portanto, a possibilidade de enquadrar Messias em uma definição psicótica. Levantamos, aqui, a discussão da antipsiquiatria inglesa no que se refere ao fato de o paciente mental (caso Messias fosse enquadrado nessa noção) perceber a realidade com mais lucidez do que a normalidade estagnada (COOPER, 1989). É recorrente em seu discurso uma articulação extremamente lúcida - e até elevada para quem freqüentou apenas até o terceiro ano fundamental - "quando eu digo que fiz o terceiro primário, eles dizem: 'Não, você é formado e não quer dizer'" - dos fenômenos político-sociais, da decadência dos valores sociais, da degeneração política que leva à exclusão e à marginalidade sociais. Suas declarações de revolta em relação à exclusão e à guerra no mundo são constantes. Consideramos também a contribuição essencial de Foucault (2002) ao afirmar que não se pode encontrar a loucura em estado selvagem, posto que é dependente de toda uma construção social que rotula e exclui aqueles que estão à margem das normas que definem o comportamento da esfera do normal.

É legítimo discutirmos a facilidade com que Messias consegue transitar entre a marginalidade social, articulando-se com as pessoas conforme lhe são dados os desígnios de Deus. Sua articulação, sua coerência e o modo como consegue fazer transitar sua identidade pelo mundo social permitem-lhe receber, muitas vezes, apesar da desconfiança, uma legitimidade social ("as pessoas acham que sou louco, mas depois viam que não").

Messias possui um arcabouço de simbolismo do Cristianismo popular, que lhe confere legitimidade. Entretanto, suas experiências originais cristãs beiram o heterodoxo, pois não se encaixam em nenhuma religião. Não obstante, essa questão se encontra na história das religiões de profetas e de personagens como Antônio Conselheiro, Padre Cícero, São Francisco de Assis, ou mesmo de revolucionários como Lutero. Ela está presente em toda a história da religião cristã, embora não conte com a legitimidade do Cristianismo erudito oficial.

A história da religião é uma história de inovações. Pode-se pensar a experiência individual de Messias com seu background cultural e sua mobilidade pelo território nacional como referentes a uma capacidade bem articulada de legitimar sua experiência, ao fazer uso de símbolos tradicionais na religiosidade popular.

Ao se traçar um paralelo entre o cultural e o teológico, tem-se que uma das características de Deus, segundo o Cristianismo, é a onipotência. Não é incoerente, portanto, o fato de Messias afirmar a existência do controle de Deus sobre sua vida, pois isso se enquadra na perspectiva cristã e com a história dos profetas citados. Ouvir a voz de Deus é fato legítimo na história, de acordo com essa perspectiva. Além disso, a vocação é um tema cristão. Queremos, desse modo, negar o estatuto delirante das idéias de Messias, pois estas têm apoio em um contexto cultural, mesmo que apropriado de forma idiossincrática.

Quando defrontamos sua compreensão "espiritual" com sua vida "material" de até então, podemos enfocar o aspecto da transformação subjetiva da crise que é sucedida por uma ressignificação e adaptação. O momento do empossamento de Messias coincidiu com um período de crise financeira quando vivia em uma favela, era bicheiro, ingeria bebidas alcoólicas em excesso, já havia sido preso três vezes por pequenos conflitos (em estado de embriaguez) e fazia uso de cigarros e de substâncias psicoativas. Há, segundo o relato do próprio sujeito, uma modificação radical de seus hábitos, de sua rotina e uma ressignificação subjetiva. Para Messias, há uma noção de empoderamento (FULFORD, 2003; VASCONCELOS, 2005), aliada à comunicação com Deus, que lhe confere segurança e subsídio para pôr em prática sua missão de forma ativa. Fenômenos que pertencem aparentemente à vida cotidiana, desse modo, transcendem a experiência material e pertencem à ordem Divina das coisas.

Nesse sentido, Messias é um personagem liminar (TURNER, 1974), que ocupa uma região limítrofe, pelo que foi exposto até então. Se tomarmos a concepção do autor sobre liminaridade como condição espiritual permanente, podemos encontrar um espaço para um personagem que socialmente não se encaixa em um papel específico.

Os atributos de liminaridade [...] são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e de posições num espaço cultural. [...] como seres liminares, não possuem 'status', propriedades, insígnias, roupa mundana indicativa de classe ou papel social, posição em um sistema de parentesco [...]" (TURNER, 1974, p. 117).

Cabe observar os atributos de Messias que o aproximam do sujeito da liminaridade: o comportamento passivo, humilde e bondoso, "o sentimento com relação à humanidade", o descuido pela aparência pessoal, o "levar ao máximo as atitudes religiosas", a suspensão dos direitos e das obrigações de parentesco, a "loucura sagrada", a aceitação da dor e do sofrimento e a falta de espaço social e político, aliada a "poderes sobrenaturais" como ouvir Deus, sonhar com acontecimentos futuros e ter pressentimentos. Além disso, ressalvamos que, mesmo antes de ser "empossado", Messias já era um sujeito liminar, pois fora hippie, e como define Turner (1974), os hippies "'optaram' fugir (sic) da ordem social ligada ao 'status' e adquiriram os estigmas dos mais humildes, vestindo-se como 'vagabundos', ambulantes em seus hábitos, 'populares' em seu gosto musical e subalternos em qualquer ocupação casual de que se incumbam" (TURNER, 1974, p. 137-138).

Como menciona ainda o autor, a literatura popular é rica em figuras simbólicas como os "mendigos santos" - e aqui lembramos a condição de Messias de só se alimentar quando Deus quer, quando alguém lhe oferece algo. Usa um vocabulário cristão, não prega, não catequiza, a não ser que Deus assim o indique, quando alguém lhe solicita.

Neste ponto cabe um paralelo com o renunciante hindu (DUMONT, 1992) que apresenta características comuns a Messias. O renunciante, nomeado por Dumont (1992) de "fora do mundo", é caracterizado pela renúncia, pela conduta de "não-violência", pelo desapego e pela transcendência do mundo social:

Pela renúncia, um homem pode morrer para o mundo social, escapar à rede de estrita interdependência [...] e se tornar para si mesmo seu próprio fim [...], a ponto mesmo de ser quase cortado da vida social. [...] o renunciante abandona seu lugar na sociedade, morre simbolicamente para o mundo [...]. [...] ele vive de esmolas e prega aos homens-no-mundo. [...] abandonar a sociedade é renunciar ao papel concreto que ela atribui ao homem [...] e assumir diante dela um papel universal [...]. O renunciante [...] abandona seu papel social para assumir um papel ao mesmo tempo universal e pessoal (DUMONT, 1992, p. 244-245.)

Apesar de não ser legitimado por uma instituição social, como na sociedade hindu, Messias é uma figura que pode ser entendida por meio desse paralelo.

Ainda que Messias não se encaixe precisamente na análise de Bauman (1998, 1999, 2005) acerca da inclusão e da exclusão social na pós-modernidade, por não ser uma figura plenamente pós-moderna, visto que sua mobilidade deriva de uma fonte de significação tradicional - a experiência religiosa -, cabe uma referência ao argumento desse autor. Messias é um caso que, devido, ainda, à falta de teorias que combinem a discussão sobre liminaridade à teoria da subjetividade em contextos de religiosidade popular, permeia uma instância ambivalente. Nesse sentido, no que se refere à mobilidade pós-moderna, Messias não pode ser visto nem como o turista global e membro das elites econômicas nem como o vagabundo local e aprisionado. Messias não está fixado em sua localidade e, por isso, não pode ser segregado espacialmente; por outro lado, passa por privações (que não lhe foram impostas, mas assumidas como missão) e pela degradação social (que lhe é desconfortável).

Apesar de não fazer parte da elite, não se sente ansioso quanto ao seu destino. Encaixa-se na figura do vagabundo por ser visto como mendigo ou louco (o "entulho social", nas palavras do autor), em certos momentos, embora seja socialmente livre para fugir da localidade. Messias flutua livremente pelo território nacional, mas não está descomprometido com os problemas locais (pode deixar a "sujeira" para trás sem descomprometer-se com esse "lixo").

Ele despreza as fronteiras geográficas ("eu posso hoje estar aqui, mas amanhã eu não estou mais, é só o Pai Eterno querer") e as restrições do corpo, além de estar livre dos problemas materiais, embora não seja detentor de poder. Sua extraterritorialidade e "onipotência" não se devem aos recursos econômicos, mas à sua libertação da comunidade por meio da missão que lhe foi outorgada por Deus ("eu não tenho mais compromisso com o mundo").

Messias não alia sua desterritorialização à necessidade de segurança. Está isolado dos locais fisicamente ocupados pelas elites (pela "alta sociedade") e, não obstante sua exclusão social, tácita em sua fala, não está vinculado a guetos. Suas tentativas de expressar seu desconforto em relação à exclusão não são acompanhadas de hostilidade, mas da imposição de sua idiossincrasia na esfera social.

Messias não ocupa o papel do consumidor eternamente insatisfeito pós-moderno, e seus desejos (ou suas viagens) não refletem inclinações individuais, mas a razão onipotente de Deus. Nosso interlocutor, ao mesmo tempo em que é expulso dos locais onde está, viaja independentemente e seguindo os desígnios divinos; suas ocupações não refletem desejos nem faltas de opções, ou ausência de liberdade. Sua mobilidade afasta-o da condição de espacialidade do vagabundo, embora esteja em contato com o refugo social. Sua identificação não se dá nem pela via do turista, que viaja ao sabor de seus desejos, nem pela do vagabundo, que, sem liberdade, é empurrado pela compressão inóspita daquele.

Messias não aspira às benesses de ser um membro da elite - apesar de desejar aceitação -, não está obnubilado pela frustração que assola o vagabundo local, entretanto, não está preso às limitações deste, apesar de constituir a categoria do estranho que atemoriza o turista global. E, apesar de estar em contínuo movimento, não ter como finalidade a "estação" e nem planejar seu destino ou estadas, para usar os termos de Bauman (1998), essa flexibilidade e as "relações epidérmicas"2 daí resultantes não são frutos do desejo pessoal de não-fixação, mas da missão divina.

Um ponto relevante nessa comparação é que a posição ocupada por Messias de "presente contínuo" (BAUMAN, 1998), ou seja, o fato de não controlar o futuro e cortar o passado não é dado pela inserção cultural pós-moderna, mas por sua missão, simbolicamente tradicional, como foi mencionado. E embora tenha a capacidade de "adequação" - "a capacidade de se mover rapidamente onde a ação se acha e estar pronto a assimilar experiências quando elas chegam" (BAUMAN, 1998, p. 113) -, Messias não se enquadra no eixo pós-moderno de evitar, a todo custo, a fixação da identidade, algo pautado por uma íntima imbricação com os poderes e desejos divinos.

A posição ocupada por Messias até a época de seu "empossamento" era a do vagabundo, mas sua missão divina levou-o a um espaço que não é mais o deste mundo, nem tampouco o da elite globalizada, inclusive porque essa experiência não produziu um deslocamento radical em sua posição de classe. Os eventos que têm cenário em sua vida poderiam ser denominados, segundo o vocabulário de Bauman (1998), episódios, ou seja, eventos fechados em si mesmos e cujas conclusões nunca são definitivas: "Eu, primeiramente, vou [...] só [...] ver se tá liberado (a passagem). Mas isso é se Deus permitir, porque se ele não permitir, talvez tenha mais algo pra mim fazer aqui, ainda!".

Messias, ao não se encaixar mais como um vagabundo, permanece como um "estranho":

[...] os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo [...], por sua simples presença deixam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma coerente receita para a ação e impedem a satisfação de ser totalmente satisfatória [...] poluem a alegria com a angústia, ao mesmo tempo que fazem atraente o futuro proibido [...] obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas [...] geram a incerteza, que [...] dá origem ao mal-estar de se sentir perdido [...] - cada sociedade produz esses estranhos. [...] os seres humanos que transgridem os limites se convertem em estranhos [...] (BAUMAN, 1998, p. 27).

É especialmente aos fracos, não detentores de poder na sociedade, que o estranho atemoriza, pois sua "viscosidade" ameaça a pureza de identidade e a individualidade, tão árduas de serem construídas na pós-modernidade pluralista, multicultural e instável (BAUMAN, 1998).

 

Conclusão

Nossa análise nos leva a perceber que, por se tratar de um caso complexo, Messias não pode ser classificado nas categorias relativas a transtornos psicóticos. Refutamos, com base no exposto, sua categorização psiquiátrica aventada de início - Outros Transtornos Delirantes (F-22.8 - CID-10), Transtorno Esquizotípico (F-21 - CID-10), Esquizofrenia (DSM-IV-TR) ou Transtorno Delirante (DSM-IV-TR). Percebemos na pós-modernidade a falta de um lugar social para indivíduos que fogem às normas e aos padrões considerados dentro dos parâmetros da normalidade. Sujeitos liminares ou "estranhos" encontram-se fora de qualquer lugar classificável, e essa posição exterior à estrutura social é vista por aqueles que ocupam papéis sociais estabelecidos como perigosa e ameaçadora (TURNER, 1974; BAUMAN, 1998, 1999, 2005).

Messias cria, em sua própria biografia, uma maneira de burlar o sistema e de sair da rota da padronização social. Ao não ser um "produto útil" nem um "refugo", mas um dissidente, não deixa de ser um andarilho na rota paralela à que conduz os deslocados ao depósito social (BAUMAN, 2005).

Mesmo que contundentemente se afirme que Messias é um caso de esquizofrenia e se ignore a análise feita no artigo, torna-se necessário fazer o questionamento (já levantado pela luta antimanicomial): não seria a "esquizofrenia" uma outra forma de ser? Não seria a forma de tratamento médico um modo de negar que essa mente pode perceber a realidade de uma forma mais legítima que a maioria da sociedade? Pensar nas ressalvas recentemente feitas no DSM-IV-TR (2002) e na CID-10 (1998) acerca da cultura é pensar que, na epistemologia médica, a psicose se inscreve no limite de fenômenos que não são aceitos como norma pela cultura. Reconhecemos a possibilidade de marginalização social por parte de qualquer indivíduo que ouse ocupar uma posição liminar e fora dos padrões de adequação, não apenas Messias, mas todos aqueles que, por alguma razão, não possam ou se recusem a adequar-se ao modelo padrão de experiência definível como real: os que apresentam deficiências físicas ou mentais, os que experimentam fenômenos de percepção extra-sensória, aqueles nomeados por Bauman (2005) de refugo ou lixo social ou simplesmente os dissidentes.

 

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Endereço para correspondência
Luanna Barbosa
SHCGN 703, Bl. G, apto. 105
70730-707 Brasília - DF
Tel.: 55-61 3326-9895
E-mail: luannamirella@hotmail.com

José Bizerril
E-mail: jbizerril@yahoo.com.br

Artigo recebido em: 16/12/2005
Aprovado para publicação em: 15/3/2006

 

 

* Graduanda em psicologia pelo UniCEUB - Brasília, membro do grupo de estudos interdisciplinares Diálogo (UNiCEUB) e do grupo Pedagogia de Resistência (UCB - Brasília).
** Mestre e Doutor em antropologia social pela UnB - Brasília, professor do curso de Psicologia do UniCEUB - Brasília, coordenador do grupo de estudos interdisciplinares Diálogo (UniCEUB).
1 Agradecimentos a Vívian Dayrell e a Camila Néri, graduandas em Psicologia pelo UniCEUB - Brasília e aos membros do grupo interdisciplinar Diálogo, pela participação na pesquisa de campo e no estudo de caso.
2 Dentro da perspectiva da psicopatologia, Márcia Oliveira (comunicação pessoal) afirma que, na compreensão atual da orgonomia e da análise do caráter reichiana, a couraça caracterial do homem pós-moderno poderia ser nomeada de borderline e seria marcada pela incapacidade do estabelecimento de vínculo, tema também abordado por Bauman (1998), ainda que em outros termos, quando analisa a pós-modernidade.

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