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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.4 no.7 Barbacena Nov. 2006

 

ARTIGOS

 

O Gap1 da psiquiatria, entre clínica e biologia2

 

The psychiatry's GAP between the clinic and the biology

 

 

Carlo ViganòI, II*; Roseli Cordeiro Pereira (Tradução); Vanda Pignataro Pereira (Tradução)

IAssociação Mundial de Psicanálise - França
IICausa Freudiana de Paris - França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No artigo, aborda-se a dificuldade de se realizar uma reforma estrutural nas redes de assistência à saúde mental. Ressalta-se que tal dificuldade reside no desnível que se faz presente nos confrontos do desenvolvimento do saber clínico acerca da subjetividade. Conclui-se a discussão com a proposta de um trabalho em rede que seja subjetivado e considere o mal-estar dos participantes.

Palavras-chave: Psiquiatria, Psicanálise, Subjetividade, Instituição, Saúde mental.


ABSTRACT

The article approaches the difficulty to proceed a structural reform in the mental health assistance's net. It stands out that such difficulty is a consequence of the diferences present in the confrontations of the clinical knowledge's development related to the subjectivity. The article ends with a proposal of a subjectivity's work in net that considers the malaise of the participants.

Keywords: Psychiatry, Psychoanalysis, Subjectivity, Institution, Mental health.


 

 

Sustento a tese de que a maior dificuldade que o mundo ocidental encontra hoje para afrontar uma reforma estrutural real das organizações de saúde mental reside na forma como se construiu o desenvolvimento da organização pública da psiquiatria e também ao fato de que as respostas sociais a problemas como a procriação assistida e as patologias neonatais, as toxicodependências, a anorexia-bulimia e demais dependências patológicas, o pânico, a crise do controle das emoções etc, funda-se, cada vez mais, sobre um Gap1 nos confrontos do desenvolvimento do saber clínico no que concerne à subjetividade. É um Gap1 que, depois de feito, envolve também o saber científico como tal.

O saber da clínica resguarda a intencionalidade humana que, com o proceder da secularização da sociedade, libera-se da ética religiosa e também da filosofia para conectar-se diretamente com a pragmática da comunicação. Ora, toda doença é também uma maneira de comunicar; elas são, em particular, as formas de mal-estar das quais se ocupa o psiquiatra. Após a descoberta Freudiana do inconsciente, a "relação de compreensão" da fenomenologia e, posteriormente, da hermenêutica foram tentativas extremas de levar para a prática médico-psiquiátrica essa dimensão.

Pode-se também demonstrar que a clínica do sujeito segue, como uma sombra, o crescimento e o estender-se do poder da ciência em Biologia e em Medicina. Basta pensar na droga ou no distúrbio alimentar em relação ao desenvolvimento da farmacologia e da ciência alimentar. O real da satisfação do sujeito, que é um componente essencial da saúde mental, encontra sua forma sintomática relacionada ao desenvolvimento do saber científico, assim como as paralisias histéricas foram as formas sintomáticas do mal-estar feminino no momento do progresso da Neurologia ou a mania, a forma do mal-estar na época na qual se desenvolvia um saber sobre as paixões humanas.

A clínica é a dimensão do sintoma que nele contamina a causalidade natural e o insere em uma mensagem cultural. Distorce a fisiologia em uma disputa de causa multifatorial que assume valor de comunicação, de presença subjetiva, até embaraçosa ou cômica, como o pânico na sociedade do bem-estar e dos seguros. O saber clínico, por isso, depende do universal, a exemplo das neurociências, mas resguarda a resposta particular do sujeito no seu impacto com os efeitos da ciência, muitas vezes, muito imediativos.

Isso coloca aquele que procura a verdade na clínica em uma posição de descarte, se não de condenação. O clínico é o que entende disso no caso particular (o caso clínico, precisamente) e não responde às leis gerais. Por isso, entre clínica e ciência não existe conflito; existe, simplesmente, particularidade entre os sujeitos, assim como entre o fenótipo e o saber do genoma.

Mais precisamente podemos dizer, hoje, que o sujeito da clínica é o que se insere profundamente na causalidade natural como embrião, traço de uma decisão, de uma criação original na área de plasticidade biológica entre natureza e cultura, entre saber da ciência e ambiente simbolicamente predeterminado. É uma área de interseção que a própria psiquiatria teria o interesse de não interpretar em termos conflituosos. Todavia, aqui, o médico é mais tolerante, mais curioso nas defesas de causa.

O psiquiatra, entretanto, tende a ser militante da visão universalista da ciência. Seria fácil dizer que seu cientificismo é compensatório de uma carência de saber científico. Não é só isso; o pouco de ciência se abre sobre um campo de saber ainda mais fascinante, aquele que concerne o real da contingência. Para aventurar-se no caminho desse saber, o clínico não tem a sustentação da humanidade, que foi seduzida pela ciência, até o ponto de fazer dela o emblema da verdade. O clínico, no seu amor pela verdade, encontra-se só e isolado. Por isso, muitas vezes, ao invés de perseguir o seu saber, cede às adulações do capitalismo para o qual o problema da verdade não se coloca mais, já havendo cedido à sustentação do saber científico.

Dessa forma o psiquiatra, para fugir à posição de descarte no qual coloca seu saber de clínico, decide por um grande salto. Nem pede mais hospitalidade na neurologia e proclama seu saber específico, a epidemiologia, o cálculo estatístico de distúrbios do comportamento. É um saber científico, falsificável e anunciado? Neste ponto deixamos a questão à universidade e retornemos à organização dos tratamentos.

A sociedade contemporânea segue as utilidades diretas, imediatas. Não se podem colocar problemas epistemológicos. Ela age, como já fez, frente a outros problemas éticos, isto é, de decisão de sujeito. Não opta pela ciência nem pela clínica e se limita a exigir uma técnica que se possa controlar, cujos êxitos são mensuráveis. Para isso, o reformador se volta ao clínico e ao biólogo para pedir-lhes que adaptem sua descoberta mais avançada a tais exigências. Hoje, esses são para a clínica o modelo relacional. E eis as Técnicas Cognitivas Comportamentais &– TCC; para a biologia, as localizações cerebrais. Há na expectativa da eletroestimulação, uma melhora na aceitação das regras para a intervenção química.

O Gap1, por isso, é estrutural no momento em que o saber clínico é subtraído no seu desenvolvimento atual na aplicação caso a caso, e o científico é reduzido a um formalismo técnico.

O primeiro corolário dessa tese é, hoje, visível na França, onde se abriu um debate em torno da reforma Klery-Melin. Tal discussão revela como o mal-estar mental constitui o ponto sensível de uma série de transformações culturais e sociais que ainda não se tem condições de alcançar. O nó do debate resguarda a estrutura sanitária como o recipiente mais inadequado para a clínica do sujeito. Também aqui existe um ponto mais sensível, a ponta do iceberg e a rebelião do mundo das psicoterapias: a Medicina está se desenvolvendo em sentido sempre mais científico e se desfaz daqueles componentes psicoterápicos, que eram do médico. Por isso não pode, ao mesmo tempo, fazer-se de regulador e organizador desse mundo.

Como conseqüência, o modelo clínico promovido é de uma psicoterapia que desvitaliza a descoberta Freudiana, reduzindo-a à técnica de TCC. Chega-se à conclusão da pesquisa, tendo, como conseqüência, o silenciamento do sujeito. Logo, a pesquisa científica vem subtraída na integração clínica para usar nele um produto técnico, que é o fármaco fora da transferência.

A falta de integração entre os dois saberes, o biológico e o clínico, revela onde está o nó do Gap1: na universidade moderna, aquela que hoje se tornou garantia da cientificidade para a sociedade civil. Aqui existe uma responsabilidade histórica da Psiquiatria e de seus "astros". Quando, no início do século passado, nasce a universidade democrática, a Psiquiatria não entrou nela diretamente; os psiquiatras permaneceram fechados nos manicômios e se contentaram em ser representados no mundo acadêmico pelos neurologistas. Quando, nos anos sessenta, os psiquiatras se desembaraçaram da Neurologia, não só era tarde, como também o fizeram pelos mesmos interesses de poder acadêmico, e não para dar espaço à pesquisa clínica na universidade. Simplesmente tinham encontrado um novo expoente na farmacologia, certo que menos exigente do que o do neurologista.

A academia sempre fez resistência ao dado da subjetividade, isto é, ao real do sujeito, seja sob a forma da teoria da sexualidade de Freud, seja sob a da pulsão de morte. A censura sempre usou o argumento de uma causalidade direta, de tipos naturalísticos. Primeiro, com o argumento da lesão anatômica e depois, com a da alteração bioquímica.

A clínica do sujeito, ao contrário, introduz outra lógica da causalidade, a do aprés-coup, do feedback, da cultura sobre a natureza, para as quais a pulsão humana não é instinto e nem a impressão etológica; essa interfere com a causa natural, biológica, nos modos da plasticidade, como o ambiente e a constituição interagem com o genótipo para formar o fenótipo. O retardo acadêmico resguarda, propriamente, a especificidade dos elementos ambientais (culturais, históricos) que interagem com a Biologia.

É claro que ao elaborar essa teoria do GAP1, afasto-me do discurso mais tradicional que é impostado pela ciência. Esse discurso, ao revelar uma diferença axiomática de saber clínico a respeito da ciência, limita-se a decretar a morte dele.

No campo do tratamento, é necessário atentar para uma epistêmica histórica (como nos ensinou Foucault). Segundo essa perspectiva, pode-se facilmente observar como a universidade tornou-se a instituição social que organiza o consenso em torno das formas de saber que se impõem como "socialmente úteis" qualquer que seja sua pertinência científica. Logo, a ciência, em sentido estrito, vive nos lugares de pesquisa que se sabe encontrar, dentro e fora da universidade. Um exemplo clamoroso disso foi o acolhimento entusiasmado e a patente de cientificidade que a universidade, ao menos na Europa, reservou à Psicologia, especialmente àquela forma de ideologia da qual Foucault havia colhido a origem funcional ao desenvolvimento capitalista da sociedade.

Recordo as etapas fundamentais deste Gap1 entre instituição social e saber clínico. A primeira etapa é, enfim, notada: as exigências sociais do desenvolvimento industrial nas primeiras sociedades capitalistas levam a criar aquilo que Foucault chamou "a grande internação", as estruturas asilares do século dezenove. O modelo clínico foi o da epidemia social mais recente: a lepra. No século asilar se produz o saber da Psiquiatria clássica sobre o que hoje chamaremos "psicose", e a resposta institucional, com o início do novo século, foram os manicômios.

Um modelo para pensar essas estruturas foi a demência precoce estruturada como a paralisia progressiva. Como foi expresso por Henry Ey, "as condições de nascimento da Psiquiatria foram desastrosas para o doente mental". A anatomopatologia dominante no século precedente foi determinante para a posição, para o modelo de doença que inspirou os reformadores institucionais. Com os anos 60, a antipsiquiatria tornou sensíveis os políticos acerca da importância do vínculo social no tratamento da doença, e as novas estruturas se modelaram sobre "relações de compreensão" como dado adquirido pela fenomenologia psiquiátrica. Isso levou às estruturas "territoriais".

Hoje estamos frente a uma nova crise institucional, cujo dado visível é o aumento exponencial do uso das estruturas (primeiro pelas depressões, depois pelos distúrbios de personalidade juvenis e as dependências patológicas). A pergunta que surge espontaneamente se refere a qual modelo os novos reformadores se inspirarão. A luta para pescar uma imagem de doença da clínica prevalente, nos apenas quarenta anos transcorridos, está aberta. Tenho a impressão de que o modelo que tende a prevalecer é o do distúrbio de humor e, por isso, de uma resposta social baseada sobre o fármaco e sobre protocolos relacionais de tipo reeducativo.

Nessa visão panorâmica me referi a modelos que falam da "mentalidade" que está na base das reformas institucionais. Tais reformas nada têm a ver com o desenvolvimento do saber clínico acerca do feito psiquiátrico e do sujeito que é protagonista-vítima delas. Ao contrário, elas são construídas sobre a abolição da categoria clínica do sujeito real. Isso vem substituído por um elemento virtual, a personalidade, no qual se avalia, estatisticamente, o percentual do distúrbio. Trata-se de modelos que têm referência na clínica, são filtrados por meio da divulgação de massa e encarnam idéias espontâneas, ingênuas, do distúrbio e de sua natureza.

A origem do Gap1 está exatamente na organização material dos tratamentos, que, por sua vez, não está em condição de atingir um saber clínico de nível especializado. Essa organização não se conforma sob um saber, mas sob uma norma estatística e, assim, sob um modelo estatístico-massificado de saúde. A começar pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que promove uma idéia "sem qualidade" de saúde mental, substituindo o sujeito por uma soma multifatorial objetivante.

Por esse motivo, o resto (refugo) do valor ético da clínica permanece inalterado até hoje, seja pela Neurociência, seja pela Genética. Ele se abre às teorias lingüísticas e ao modelo da plasticidade biológica, de uma intencionalidade que realiza uma mais-valia com respeito ao conjunto das causas. É tolhido do psiquiatra (assim como do médico) o espaço para reivindicar a autoridade moral necessária para que possam assumir as responsabilidades éticas que a função social deles comporta. A passagem ao ato, e não só as passagens ao ato suicida, constitui sempre um resgate que faz esse profissional recuar frente à necessidade clínica de ocupar o lugar de pai real. Ele aprendeu na universidade que a consciência se reduziu à ciência e que, então, ninguém o apoia diante do risco médico-legal de um ato ético. O higienismo científico tomou a direção do vento e sufocou as exigências éticas da clinica; expulsou-as da instituição para relegá-las ao espaço asfixiante do privado.

A necessidade de tratamento é tida como qualquer outra necessidade do mercado do consumo. A referência à cientificidade no nosso campo é de todo imaginária e selvagem. O objeto de vidro que brilha é tomado como pedra preciosa; o tratamento que se dissimula de formalismos tecnológicos como, por exemplo, as estatísticas, assume o brilho da cientificidade. Dito em termos mais rigorosos, pula-se a etapa do conhecimento clínico, dos axiomas que permitem um novo olhar sobre o fato subjetivo (por exemplo, todos aqueles que se derivam da ciência da linguagem) para ir diretamente à técnica.

Ora, na clínica, ainda que sempre mais ligada à ciência, permanece um saber sobre o fato subjetivo (como diz a etimologia, kliné é o leito, isto é, a observação do paciente, do caso clínico, contingente). Trata-se de um saber que, na sua lógica específica, não é ciência. Não vive de uma lógica causal, mas de uma lógica indiciária (como o saber histórico, mas também aquele econômico ou estético). A arte do diagnóstico consiste no possuir a lógica da conjectura, além de, naturalmente, o máximo de conhecimento científico.

Citei, de início, a universidade como o passo omitido, saltado, da clínica e, também, do reformador institucional. Se o saber específico sobre o mal-estar subjetivo é de natureza clínica, como na universidade isso é pouco presente e, sobretudo, não é o saber que foi transmitido aos operadores da saúde mental? Creio que se não se responde a essa pergunta; não se poderá superar o Gap-1 entre psiquiatria, entre estruturas sociais de tratamento e de clínica.

Um exemplo mais atual é o da psicoterapia que, nos últimos quarenta anos, despiu-se muito do saber clínico que ia se formando. As terapias cognitivas comportamentais assumem aí o formalismo (por exemplo, a terapia motivacional nas dependências patológicas), mas esvaziam-se de seu conteúdo clínico, que consiste num saber que se depositou no tempo acerca do uso da transferência, daquele poder que, um dia, foi do médico. Esse poder também reside no uso lingüístico daquilo que não se pode reconduzir ao aspecto semântico da linguagem: o afeto (a angústia), o gozo, como chama Lacan.

Dado que o Estado tem a universidade como referência para o saber, a universidade garante que esse saber seja compartilhado, certificando nele o valor democrático ou politicamente correto. Então, o quesito (saber universitário) concerne à presença ou aos motivos de uma ausência de saber clínico na universidade. De fato, a universidade bloqueia o saber conjetural, o saber em sua forma de suposição, aquele que está em jogo na transferência.

Um exemplo dessa impermeabilidade acadêmica ao saber clínico é o livro de um importante professor da Universidade de Nova Iorque, publicado na América, em 1985: Erdelyi: Psychoanalysis: Freud´s Cognitive Psychology que, em italiano, foi traduzido como Freud Cognitivista. Nessa tradução está toda a surdez da universidade: Freud antecipou, em pouco menos de um século, o início da Terapia Cognitiva. Basta cortar de sua obra a teoria da sexualidade e da transferência!

A ciência psicológica, por não se confrontar com a história pode fazer essa operação: deixar de fora o saber clínico sobre a transferência e a enorme prática que isso gerou: mais de oitenta anos de uma prática clínica que interessa a uma população talvez superior àquela que acede aos serviços psiquiátricos não é reconhecida pelo consenso acadêmico e, sobretudo, não entra na formação dos operadores da saúde mental.

Seria demorado fazer a história dessa impermeabilidade que se dissimula num uso impróprio de argumentos filosóficos e epistemológicos, mas que é de natureza cultural e mercadológica. Certamente foi encontrada cumplicidade no mundo da psicanálise, não obstante a militância de personagens como o próprio Freud ou Lacan para introduzir o ensinamento da psicanálise na universidade.

Pensei em levantar a questão do Gap-1 a partir de uma base mais restrita e mais próxima ao tema da reforma possível: um ensino que desenvolvo há cerca de doze anos junto à Escola de Especialização em Psiquiatria da Universidade de Milão e que chamei "Construção do caso clínico".

Trata-se de um laboratório no qual colaboram operadores de serviços públicos de saúde mental, particularmente sensíveis ao tema da clínica, com os estudantes. Foi estabelecida uma grade segundo a qual é operada a construção de um caso trazido pelo profissional (psiquiatra, psicólogo, enfermeira). Ela foi testada de modo a não conter conceitos que fossem exclusivos de uma escola ou de um pensamento e, portanto, compreensível por todos. O pressuposto é que um caso é um evento, ou melhor, uma série de eventos que sucedem a um sujeito e aos sujeitos com os quais possui vínculo social. O evento chega construído não só num sentido histórico, mas também no sentido de que a construção é, freqüentemente, a pré-condição de tal evento. Por isso, a construção do caso é ensinada como protótipo do trabalho em equipe.

A construção chega por meio de uma série de leitura-escritura, cujas escansões, cortes ou descontinuidades se revelam, a posteriori, como indício do ato, isto é, da cumplicidade do sujeito. Os textos a ler são aqueles do discurso do sujeito, mas também os dos familiares e das instituições atravessadas pelo sujeito (esses, quase sempre, diretamente escritos). Trata-se de uma leitura que implica da parte dos profissionais diversos níveis de escrita (diário, apontamentos, verbais) até o texto de apresentação do caso para discussão.

A discussão tem como objetivo a construção, o tornar vivo o sujeito e seus atos, sem a finalidade de interpretar; apenas orientar os atos e as decisões singulares, de provocar nelas (nas decisões) responsabilidade. Dito de outro modo, a construção tem o objetivo de produzir o sujeito arriscando-se no ato sintomático. Ela torna-se, por isso, a premissa indispensável para que um projeto opere mudança, mas não se trata somente disso; é um tempo de compreender (que é também um esclarecer) ao qual poderá seguir o tempo de concluir. Por isso não se trata de uma supervisão. De fato, não há um condutor depositário do saber, mas o saber sobre o sujeito - a única liderança do grupo. Na ação, cada um responde por si próprio e à instituição na qual se age. A construção do caso tem valor formativo e também validade de verificação qualitativa.

No fundo, essa não se distancia muito da construção do caso de uma empresa, como praticada nas Escolas de Negócios (Ciências Econômicas). Se a enfermidade é a metáfora de uma demanda frente ao distúrbio (e não a causa do mal-estar), como dizia Susan Sontag ao falar do câncer, então a Psiquiatria deve poder recolher a demanda em tempo real. Essa não pode esperar, sob o pretexto da verificação científica, que as técnicas terapêuticas calem a componente invocante da doença e, por isso, recomendem aquelas terapias que demonstram silenciar a componente invocante do sintoma, como fez na França o relatório do INSERM, hoje retirado do Ministério da Saúde. Não é essa reeducação ao silêncio, ao "fim do entretenimento", que abre a criatividade do sujeito.

Concluo, com um esboço daquela forma de mal-estar à qual me referi e que, do meu ponto de vista, torna-se, em parte, obsoleta: o modelo da psicoterapia. Hoje, a patologia se apresenta menos sob a forma do sintoma, isto é, daquela formação que o sujeito elaborou no tempo e através da repetição e na qual se solidifica sua forma de gozo até tornar-se insuportável.

Mais freqüentemente vemos crises que, do ponto de vista social e também da vida pessoal, tem aspectos de alta gravidade, mas não se encaixam em classes de doenças. A redução do controle das emoções tem componentes biológicos e de personalidade que não se adaptam à forma tradicional da doença psiquiátrica. Não convém encaminhar o paciente ao tratamento psiquiátrico a pretexto de cuidar daqueles que iniciam com internação, ainda que breve, mas que nem mesmo estão enganchados na forma do colóquio pelo qual não há demanda subjetiva. O tratamento, além disso, é impensável sem a participação de outros (familiares, professores, conviventes e, às vezes, empregadores). Fala-se, por isso, de trabalho em rede, mas o que é essencial é uma preliminar que permita subjetivar o mal-estar e distribuí-lo entre os protagonistas para que se torne curável.

Trata-se, em suma, de fazer nascer uma demanda cuja ausência está na raiz da crise. Freqüentemente a demanda nasce a partir de qualquer um que não o "paciente designado", isto é, daquele que passou ao ato.

 

 

Endereço para correspondência
Carlo Viganò
E-mail: carlo.vigano@fastwebnet.it

Roseli Cordeiro Pereira (Tradução)
E-mail: barcia@barbacena.com.br

Vanda Pignataro Pereira (Tradução)
E-mail: Vcpp.bh@terra.com.br

Artigo recebido em: 3/10/2006
Aprovado para publicação em: 25/9/2006

 

 

*Psiquiatra e psicanalista radicado em Milão. Membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Causa Freudiana de Paris, integrante da Comissão de Saúde Mental da Associação Mundial de Psicanálise.
1Nota de tradução: Gap: palavra de origem inglesa que significa desnível.
2Texto confeccionado para apresentação no XXIII Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em Belo Horizonte - MG, em outubro de 2005.

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