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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.4 no.7 Barbacena Nov. 2006

 

ARTIGOS

 

O olho e o conto: as pulsões fazendo histórias

 

The eye and the narrative: the instincts building stories

 

 

Maria Auxiliadora Cordaro Bichara*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Brasil
Instituto Sedes Sapientae - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo são tecidas algumas articulações sobre a teoria das pulsões, a partir da segunda tópica freudiana, ilustrada com os fragmentos clínicos. Ressalta-se o paradoxo entre a pulsão escópica e a pulsão de morte. A pulsão escópica é analisada como constituinte da subjetividade, portadora de angústias intensas, geradora de desfusão pulsional e de algumas patologias. A pulsão de morte é uma interrupção radical. Ela pode direcionar para uma busca epistemológica que reconheça a relação com o ignoto, o que ajuda a reencontrar um novo rumo através de novas perguntas e de novos descobrimentos para os mal-estares contemporâneos.


Palavras-chave: Olhar, Pulsão escópica, Desfusão pulsional, Pulsão de morte, Pulsão de vida.


ABSTRACT

This article brings some articulations about instinct's theory, according to Freud's theory (self, unconscious and superego), enriched with clinical fragments. The look's instinct is analysed as a part of the subjectivity that holds profounds agonies and produces the instinct's separation and some other pathologies. The death's instinct is a radical interruption. It can drive to a epistemological search that recognizes the relation with the unknown. It help to find a new direction again, through new questions and new discoveries to the contemporaneous moral indisposition.

Keywords: Look, Look's instinct, Instinct's separation, Death's instinct, Life's instinct.


 

 

"Ver algo e captar propriamente com olhar aquilo que se vê são duas coisas diferentes".
Heidegger

 

O sintoma é como um quadro, se descreve na tela e deixa os olhos piscos...

- "O problema são meus filhos. Minha filha Renata me preocupa muito, desde os quatro ou cinco anos, quando eu soube que ela mexia no pipi de todos os coleguinhas na escola. Minha amiga Rute, que trabalhava lá, conversou com Renata sobre esse assunto e ela lhe contou que seu pai sempre a deixava mexer no pipi dele."

Ao conversar com sua filha sobre a possibilidade de abuso sexual, a criança confirma as atitudes do pai. Indagado, o pai diz nada saber sobre esses acontecimentos.

- "Desde então, todos começaram a me cobrar muito. Minha família dizia que eu não fazia nada. A psicóloga do meu filho me cobrou. Ela ia me denunciar, caso eu não tomasse alguma providência. Me separei dele faz um ano. Mas será que ele fez tudo isso mesmo? Eu estou tão ausente... não tenho vontade mais para nada...".

Quando eu lhe fazia alguma pergunta, respondia nada saber, não expressava nenhuma emoção e arregalava os olhos. Esse movimento ocular se repetiu nos encontros por quase um ano e, desde a primeira vez, me intrigou; havia algo de paradoxal: seu corpo, semelhante a uma escultura de bronze, apoiada em uma coluna de gelo, inesperadamente, se movia.

Ao final dessa primeira entrevista, o que pude entrever nessa escultura foi um corpo robotizado, que desencadeava em mim um mal-estar e me deixava com os olhos piscos. Porém, havia algo que, ao mesmo tempo, me indicava que, se ela pudesse "olhar", esse corpo se humanizaria. Nessa escultura havia uma força inquietante: o "arregalar de olhos".

Imediatamente, formulei uma hipótese: que pacto denegativo1 havia se estabelecido nessa família, onde todos estavam cegos e nada sabiam sobre o rompimento do tabu do incesto? O discurso da paciente me remetia a um drama de Sófocles; seu sofrimento se referia "à perda de seu marido para a própria filha, agora sua rival". Diante disso, me perguntava: o que acontecia com ela, nesse drama, que a levava a desempenhar uma função cênica como a cúmplice cega?

Durante os atendimentos, na transferência, eu assistia a um espetáculo: a paciente, quase em transe, encenava sua violenta tragédia. As sessões, com um ar de circo fantástico de horror, tornavam-se momentos de grande impacto, com um certo tempero erótico e resultavam em fascínio e sideração. Diante da cena, eu nada podia dizer... somente ver.

Ao observar esse quadro, cenas imaginárias desenrolavam-se diante de meus olhos e se transformavam em anamorfoses (LACAN, 1964), em figuras em perspectiva deformadas, que me trasladaram a um passeio por esse desconhecido: um enigma visual. Foi lançado um jogo. Como espectadora recebi uma "demonstração, em primeira pessoa, de que o lugar a partir do qual ele (o espectador) vê é um lugar sujeito ao imprevisível desejo de um outrem" (SILVA, 1999, p. 23) e, agora, enlaçado a um imprevisível desejo de um outro a esse enigma. Iniciado com a cegueira, o "arregalar os olhos", somados às minhas imagens, levaram-me à hipótese de que a possibilidade de despertar o olhar seria a saída para a cegueira da paciente: expandir sua subjetivação com o abrir dos olhos. Mas, ao mesmo tempo, me perguntava: como despertar o olhar, a pulsão escópica diante da desfusão pulsional? Uma reflexão sobre esse paradoxo será o objetivo deste trabalho.

"ver é violento
que golpe
aplicar no vento?"
P. Leminski

 

II - Ver é violento...

A pré-história da psicanálise se dá em um contexto onde se privilegiou o espetáculo visual: Charcot hipnotizando as histéricas no Salpètriêre para seus alunos e convidados. Freud participou, fascinado, desse teatro. Mais tarde, após intensa investigação e tratamento das histéricas, ele rompeu com a festa ocular. Introduziu a livre associação e o divã. Não se colocou mais olho a olho com o paciente. A escuta é seu novo instrumento terapêutico e de investigação. No entanto, em toda sua obra, o olhar tem lugar de destaque.

Seguindo os passos da psicanálise, a cegueira de minha paciente com seu "arregalar os olhos" remete à questão do olhar e da histeria, dois aspectos tão intimamente relacionados à constituição da própria psicanálise. Ela perde a visão e abre os olhos ao máximo: não ver/ver tudo?

Esse paradoxo ver/não ver, conforme Freud, sugere uma cegueira histérica, isto é, são cegos só para as questões da consciência; no inconsciente vêem. Esse paradoxo passa pelo inconsciente/consciente e resulta na dissociação: "as histéricas não vêm, porque são cegas em conseqüência da dissociação entre processos inconscientes e processo consciente no ato de ver" (ASSOUN, 1999, p. 24).

A paciente põe em tela um acontecimento escópico, manifestado na singularidade da clínica. Esse acontecimento é o efeito de vários mecanismos: de uma dissociação entre inconsciente/consciente, do corpo robotizado e o olhar paralisado. Freud descreve como causa desse sintoma a dinâmica de um grupo de representações que resulta no desvanecimento do olhar: ocorre uma oposição entre o ego e um "grupo de representações". Tais representações formam uma ilha, uma cisão e atingem o olho, enquanto órgão, inibindo-o.

Segundo o ex-neurólogo, o olho é um local investido de energia libidinal, produtor de excitação. Ele é movido por duas pulsões: a pulsão parcial sexual e a pulsão de auto-conservação. Isso aparece em seus escritos sobre distúrbios psicogênicos da visão, onde explicita o conflito entre essas duas pulsões, porque há uma excitação do órgão. Além de perceber as mudanças e os riscos do mundo exterior, fundamentais para a vida, o olho é movido por excitações libidinais. Ele percebe objetos cujas propriedades são de caráter amoroso e de desilusões.

O olho, além de controlar os riscos do mundo exterior para a conservação da vida, é o guardião: ele vasculha o corpo do outro, o objeto erótico. Ele o despe com o olhar. No caso da pulsão de conservação, bastaria estar de olho no mundo. Mas, para atender sua função de objeto erótico, o olhar surge no olho. O outro, o objeto, aquele que ele agarra, que não pode somente ver: é preciso que se olhe; exige do sujeito um olhar. O Outro quer provocar uma fenda por um olhar. É disso, de uma fenda ou dissociação, que a histérica sofre.

A patologia histérica do olhar é reveladora desse conflito pulsional: o erotismo do olhar que fascina com os poderes visuais. Dessa forma, a cegueira da paciente é aquilo que ela não vê por ter-se tornado invisível diante do brilho ofuscante que a captura, numa sedução dirigida ao outro e, ao mesmo tempo, por ter recebido, em pleno olho, o olhar do outro.

Talvez a histérica busque fascinar o outro, por meio do erotismo de seu olhar, porque esse mesmo ato foi realizado com ela na origem de seu psiquismo. Seu olhar foi visto pelo olhar do outro percorrendo seu corpo. Ela, agora, se oferece ao olhar do outro, porque foi fonte de excitação escópica, que queimou seu olho por ter sido muito visível ao outro, permanecendo, desse modo, em constante estado de excitação escópica, sem nada poder ver.

Outro aspecto a ser apontado no par "arregalar os olhos/cegueira" é a indicação de um jogo de alternância: atividade e passividade. A alternância revela um jogo complementar entre o olhar e o ser olhado. Nota-se, no momento ativo, um movimento pulsional em direção ao objeto, enquanto que no momento passivo, ele é um meio de manter a continuidade narcísica, isto é, na etapa preliminar da pulsão escópica, o prazer de ver tem o próprio corpo como objeto. Essa pulsão se relaciona com o narcisismo, que é passivo e possui caráter masoquista.

No caso da paciente, sua cegueira ganha visibilidade pela predominância dos momentos de passividade durante as sessões, a robotização, um sono intenso e um cansaço contínuo. Essa cegueira, o fato de manter-se passiva, de não ver, significa proteger o ego, afastar o olhar; é erogenizar o próprio ego e abandonar os objetivos sexuais, promovendo uma dessexualização, "uma espécie de sublimação" (FREUD, 1923, p. 44). Tornar-se passiva é salvar a posição narcísica. Por outro lado, nessa reversão narcísica, permanecer nas mãos do ego será um destino masoquista.

Mas, por que a paciente utilizaria tais mecanismos psíquicos? Seria outro respiro para seu aparelho psíquico, além da própria dissociação? Não esqueçamos que a paciente viveu uma situação de extrema violência. Houve separação do casal, ocasionada pela descoberta do abuso sexual de seu marido para com sua filha de quatro anos. Será que ela viu e gozou?

Essa descoberta foi desencadeadora de conseqüências psíquicas, de caráter traumático, muito semelhante às mencionadas por Freud em Mais além do princípio do prazer, de 1920, referentes aos acidentes ferroviários ou bélicos - um excesso de violência e de intensidade pulsional. Seu espaço psíquico, seus sentidos e suas representações foram invadidas por uma intensidade pulsional e se paralisaram. Havia na paciente uma desestruturação produzida pela ansiedade primária, ameaçadora da integridade de suas aquisições psíquicas.

Em seu contexto familiar, o que ela encontrava era uma infinita cobrança por sua passividade diante desse acontecimento. E a própria paciente fazia cobranças severas a si mesmo e se punia com a cegueira, como Édipo diante da revelação de sua origem. Não havia um continente para as angústias primitivas, mobilizadas por essa vivência sinistra. Estava em situação de extremo desamparo, na qual pairava uma ameaça para sua continuidade narcísica; uma ameaça de ser despossuída de si mesma. Fazia, ainda, um esforço defensivo para barrar o processo de desfusão pulsional para manter algum vínculo em seu ego com a pulsão de vida.

Esse movimento de barrar a desfusão pulsional implicava resgatar o masoquismo erógeno ou primário. Porém, o resultado do sofrimento provocado por esse conflito era o masoquismo moral (um imperativo - dever fazer), o que acarreta "um a mais" em seu sofrimento. Por outro lado, a paciente não encontrava em sua história de vida outra força egóica, outro apoio, diante desse acontecimento sinistro e violento. O conhecido e o já vivido eram a cegueira histérica vinculada a esse masoquismo moral.

Ao mencionar a "desfusão pulsional" como resultante do masoquismo moral, como um a mais em sua passividade, é preciso recorrer, novamente, às explicações de Freud em Mais além do Princípio do prazer, de 1920, onde se encontram novos elementos para se compreender tal operação. Nesse texto ele introduz um novo conceito, a "pulsão de morte".

A pulsão de morte provocou, em seus discípulos, desde o rechaço até o mais profundo esquecimento. Atualmente, diante do surgimento de novos mal-estares na civilização e, em decorrência, na própria clínica, os psicanalistas retomaram os estudos dessa pulsão e a reincluíram na escuta e na própria concepção do sujeito psicanalítico. O sujeito psíquico é regido e constituído pelo princípio da dualidade pulsional. Essa dualidade, a pulsão vida e a pulsão de morte são elementos em conflito: a vida psíquica será a vivência de união e desunião dessas duas pulsões, o que pode ocorrer de forma imprevisível.

O conflito entre essas duas pulsões se configura pela busca de metas diferentes de cada uma delas. No caso da pulsão de morte, em seu silêncio avassalador, a meta é retornar ao inanimado, enquanto a pulsão de vida busca unificar o sujeito dividido, desejante, a complementaridade, a englobar o objeto da satisfação [...] "ao barulho de Eros, onde pulula a vida, opõe-se o silêncio da pulsão de morte" (QUINET, 2002, p. 85). Ambas são forças constantes nos aparelhos psíquicos dos sujeitos e tendem a caminhar juntas, por vias diversas. No entanto, em determinadas situações, desencontram-se, o que pode ocasionar determinadas patologias; entre elas, a cegueira histérica.

Na tentativa de desvendar o enigma visual, seguindo os fragmentos deixados na análise, foram encontrados, até aqui, a cegueira histérica; a atividade/passividade; a retirada do olhar, da pulsão escópica do mundo externo para o ego; o aumento de potência das pulsões egóicas para a preservação das aquisições psíquicas através do narcisismo; o masoquismo moral resultante da desfusão entre a pulsão de vida e a de morte. Com a introdução da desfusão pulsional, fonte geradora do masoquismo moral, instaura-se um enigma subjetivo: como despertar o olhar, fio condutor desse trabalho, lutando com pulsão de morte.

O tema da desfusão pulsional e a pulsão de morte será retomados nos próximos capítulos. É importante ressaltar o que foi encontrado até aqui em minha pesquisa bibliográfica. Primeiramente, os autores pesquisados abordam o tema do olhar, privilegiando como motor desse ato a pulsão escópica e a pulsão de autoconservação. Essas duas pulsões se agregam em 1920 e tornam-se uma só: "a pulsão de vida". No que se refere à pulsão de morte como constituinte do sujeito psíquico e, portanto, como elemento presente nesse ato paradoxal sobre o olhar há poucas referências. As reflexões dos autores consultados são realizadas, segundo meu ponto de vista, de forma breve e, a maioria deles, privilegia os poderes destrutivos da desfusão e não valorizam a capacidade de promover transformações criativas, presentes nessa força pulsional.

"Disfarça, tem gente olhando,
Uns, olham pro alto,
cometas, luas, galáxias.
Outros, olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
De frente ou de lado, sempre tem gente olhando,
Olhando ou sendo olhado".
P. Leminski

 

III - De frente ou de lado, sempre tem gente olhando ou sendo olhado...

A psicanálise, até 1920, considerava que as neuroses representavam perturbações da vida sexual e que os sintomas neuróticos eram mantidos pelas pulsões parciais sexuais, pelas fantasias, e não estavam vinculados à sexualidade enquanto reprodução. Posteriormente, Freud considerará a etiologia das neuroses resultantes da relação entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, mais precisamente, entre a fusão e a desfusão pulsional.

A sexualidade é produto das pulsões. Elas provocam a excitação, a tensão de alguma parte do corpo, que impulsionam para a busca da satisfação. A satisfação é o alívio da excitação e sua finalidade. Para obtê-la, as pulsões dispõem de vários objetos: qualquer coisa ou pessoa, diversas partes do corpo, do seu e de outro. Toda pulsão é sexual e, em seu início, é auto-erótica. O auto-erotismo é um elemento da dimensão sexual da pulsão.

As pulsões sexuais se constituem, simultaneamente, em fonte de prazer e de ameaça de desintegração; é também o alvo privilegiado das defesas. Daí a instauração de conflito, cuja natureza é sexual, portanto, causador das neuroses. Suas peculiaridades se constituem em labilidade, plasticidade, combinam-se umas às outras, substituem-se e invertem-se. Esses movimentos foram, em 1915, definidos por Freud como o destino das pulsões.

O olhar faz parte das chamadas pulsões parciais sexuais porque é um ato realizado a partir de uma mobilização, de uma ação pulsional que busca a satisfação e o alívio de tensão. O olhar é objeto da pulsão, ao mesmo tempo em que ele resulta em uma ação: o olhar agarra, ele domina e é constituinte do sujeito. O sujeito se olha, olha-se no membro sexual e, nesse movimento auto-erótico, processa-se a pulsão escópica. Para Freud há três tempos: olhar-se, olhar e ser olhado; o olhar-se é um olhar-se do corpo, é um olhar-se da parte sexual para os olhos.

Para Lacan (1964), ao ampliar os conceitos de Freud, a pulsão escópica é a própria sexualidade. A sexualidade, por sua natureza, está associada ao desejo, e a pulsão escópica, em especial, está ligada ao desejo do Outro e difere, portanto, das pulsões orais e das anais, que estão no estágio do pedido ao Outro.

O desejo do Outro é o desejo do corpo do Outro, do olho do Outro; é o olhar que o sujeito teria, um dia, encontrado e, logo, perdido: o olhar da mãe. Esse olhar que implica fascinação visual, como por exemplo, um quadro que me ofusca, fascina, capta-me nessa experiência silenciosa de fascinação... "se estou fascinado pelo quadro, termina a fascinação, volto a meu estado de lucidez normal e começo a falar, preciso falar do quadro. A gente fica com vontade de falar com a pessoa do lado" (NASIO, 1992, p. 71). O olhar é um apoio do desejo do Outro e, por estar perdido, será sempre procurado, o que o torna um veículo para o estabelecimento de laços entre os sujeitos.

O olhar tem uma significação sexual, relaciona-se à função fálica e ao complexo de Édipo. Ele permite a visão da ausência do pênis da mãe, introduzindo o sujeito, propriamente, na sexualidade. É a percepção visual da castração do Outro sexo que a relação com a realidade se estabelece. Na castração, olho e o olhar têm função crucial: ela é imaginada como punição, entre outras modalidades, pela própria curiosidade sexual.

A aceitação da possibilidade da castração dá início ao complexo de Édipo nas crianças femininas e se difere nos meninos. Freud, em 1931, afirmou que "o complexo de castração nas meninas também se inicia ao verem os genitais do outro sexo".

A menina reconhece rapidamente a diferença, sente-se gravemente lesada e sucumbe à inveja do pênis, porque não se conforma, acreditando na possibilidade de um dia chegar a tê-lo. Esse desejo do pênis será, mais tarde, substituído pelo desejo de ter um filho. A menina substitui seu amor pela mãe, afrouxando sua terna ligação com ela e, ao mesmo tempo, decepciona-se por ela não ter um pênis, ou pelo fato de a mãe não ter-lhe dado um. Ela se dirige ao pai e deseja dele um filho. No caso da paciente em estudo, sua passagem pelo complexo de Édipo torna-se mais difícil do que costuma ser para as meninas.

Para se compreender a dificuldade dessa passagem, é preciso transitar pelas fantasias edípicas, conforme formuladas no texto freudiano "Uma criança é espancada", de 1919. Em linhas gerais, ele destaca que, no desenvolvimento da sexualidade infantil emerge uma fantasia que se desdobra em três fases:

- o pai espanca a criança que eu odeio e, por isso, meu pai me ama. Isso é consciente. O sujeito assiste com sadismo, excita-se e sente um prazer auto-erótico, que se desdobra em amor incestuoso, já que meu pai me ama. É gerador de culpa, pois o amor incestuoso implica castigo: ser espancado. É, então, recalcado; torna-se passivo e masoquista e transforma-se em:

- sou espancado pelo meu pai. Como é derivado do "meu pai me ama", do amor incestuoso, leva ao masoquismo e é inconsciente devido ao recalcamento;

- espanca-se uma criança, sendo essa criança sempre do sexo masculino e o pai não está em cena. O sujeito da fantasia assiste a castigos e humilhações que se desdobram do espancamento. Tal processo é consciente.

No caso da paciente, o pai é narrado como executor de atos violentos, quase diários, dirigidos à ela, à mãe e aos irmãos. Ele odeia as mulheres, porque sua própria mãe o separou de seu pai e foi morar com outro homem. O pai permaneceu com a avó e, mais tarde, ela o expulsou de casa, o que o levou a mudar de país (vir para o Brasil) para encontrar seu pai. Com essa narrativa, a paciente justifica o fato de ela ser espancada pelo pai, desde pequena até os 14 anos, quando ele parou com as agressões por ter se tornado religioso.

Para a paciente, essa fantasia - bate-se em uma criança - se realiza: o pai espanca as crianças e ela assiste; ela é espancada pelo pai, os outros assistem; ela vai para o quarto, goza, deita na cama e entra em devaneios; o pai espanca os meninos, enquanto ela assiste, é espectadora e o pai desaparece.

Nessa relação se rompe o tabu do incesto com o ato de violência do pai contra a filha. Em sua fantasia, a violência paterna se transforma em relação amorosa e incestuosa, sem interdição e diferenciação entre ela e os demais membros da família. No caso da paciente, a violência e o rompimento do tabu do incesto se dá quando o marido bolina a filha; para Renata, também, a fantasia se realiza.

Freud, afirma em "O problema econômico do masoquismo", de 1924 (p. 211): "[...] sabemos agora que o desejo, tão freqüente em fantasias, de ser espancado pelo pai se situa muito próximo do outro desejo, o de ter uma relação sexual passiva com ele". A agressividade paterna obtura-se em uma tendência, atividade ou fantasia que comporta um elemento de gozo ou de excitação sexual e provoca nela um estado de prazer, o que se torna, para ela, ações de caráter criminoso que terão, como um dos efeitos, o masoquismo moral.

Após várias sessões que relatavam a violência paterna, a paciente passa a falar da mãe. Ela desempenha, contraditoriamente, através de uma função passiva (a de cozinhar), uma função ativa. Tal função se realiza na escolha dos cardápios diários e em seu conluio com a violência paterna. O pai obriga os filhos a comerem qualquer coisa:

- "Todas as noites minha mãe fazia sopa, batia tudo no liquidificador! Era aspargo, cenoura, beterraba, tudo misturado! Eu detesto aspargo, gordura... e tinha de engolir, sem reclamar; caso contrário, meu pai me batia!"

Durante algum tempo, continua narrando a ausência e a conivência da mãe com os atos violentos do pai. Aos poucos, percebe a violência materna contida nesse conluio. Assim, passa a perceber que, como ela, a mãe estava ausente, em devaneios, nos momentos em que era solicitada. Sua mãe também esteve cega.

A paciente também se queixa de estar engordando: "Só de olhar para a comida, eu já engordo!" Esse novo fragmento me causa estranheza, e me pergunto que movimento é esse da pulsão escópica para a oral. Qual a relação entre a mãe ausente e cega, que obriga os filhos a comer e deixa o marido fazer qualquer coisa com a filha, com o enunciado "só olhar para a comida já engorda"?

Esse olhar "para a comida que engorda", dito pela paciente, refere-se a um olho mau. Todos sabemos que o modelo cultural de beleza feminina é o da anoréxica. No caso, a paciente não come e, ainda, engorda. Isso só pode ser um mau olhar! Esse mau olho surge quando a mãe é colocada em cena, o que pode se tratar do olhar da mãe sobre ela.

Sobre o olho mau, podemos novamente acompanhar o raciocínio de Freud: o mau olhar da mãe trata de emoções da própria paciente, que não podem ser expressas em palavras por serem indesejáveis e, se ditas, ganham a potência de ação, de uma irrepresentável ferocidade sobre a mãe, o ódio que ela sente pela intrusão e pela ausência de seu olhar. Aparece uma imago materno onipotente, perseguidora e devoradora, revelada por meio da passividade e da cegueira.

A imago materna tem dupla representação: a mãe que não olha e a outra que a invade e vasculha com o olhar. A ausência do olhar é sentida como a ausência do amor materno:

- "Minha mãe conta que foi forçada a ter relação sexual com meu pai quando ela ficou grávida de mim; não foi com ou por amor. Desde que eu nasci, ela passava o dia de costas. Ficava sentada na máquina de costura, trabalhando muito, o tempo todo de costas... fechada para todos os problemas da casa... como uma concha!"

A ausência do olhar da mãe é a denúncia da falta do desejo do Outro. O bebê, antes mesmo de se ver no espelho, já é olhado pela mãe. Torna-se visível, preso e descoberto, exposto ao olhar do Outro. O olhar é, então, apelo ao Outro: todo olhar é, portanto, suplicante, um olhar do Outro. O olhar do outro, de um lado, liga-se ao desejo &– um registro pulsional que toca o desejo do Outro. Mas, além disso, ele lembra essa súplica, uma demanda ao Outro, que constitui a pulsão oral: há, portanto, uma "avidez" escópica, um comer com olhos (ASSOUN, 1999), um pedido de outro olhar, aquele constituinte da subjetividade:

-"Minha mãe me amamentou até um mês de idade, depois minha avó cuidava de mim... mas ela preferia a minha mãe, depois meu irmão... o imperador da casa" (faz alusão ao seu nome, o mesmo de um imperador da história antiga).

Com a ênfase de seu discurso na imago materna, pode-se estabelecer um paralelo e uma complementaridade entre a pulsão escópica e a oral: [...] "pelo olhar eu desejo ao outro, assim como, por meio do seio, eu demando ao Outro: os registros oral e escópico se refletem como 'posturas pulsionais', respectivamente do lado da demanda e do desejo &– mas é o que faz com que haja, no olhar, algo de "ilegítimo" (ASSOUN, 1999, p. 91). "Só de olhar eu engordo".

Mezan (2002) aponta para outro aspecto interessante, no qual o olho e o olhar não se dirigem ao pênis nem ao pai e sim ao sexo da mulher, em especial ao da mãe. Ele diz que nesse terreno, "as fantasias associadas a essas representações mergulham num terreno mais profundo, mais arcaico e, por isso mesmo, portador de uma angústia muito mais intensa" (p. 66) que o olho e o olhar revelador da castração. Assim, o olho e o olhar revelam a triangulação edipiana e um outro, mais arcaico, ligado a fantasias em que está ausente a representação do pai.

Freud (1933) confirma que o temor da castração está presente nos meninos, enquanto que nas meninas o que causa ansiedade é o temor da perda do amor da mãe (a separação) e de que essa perda se estenda até que a criança perceba a ausência da mãe. A possibilidade da ausência da mãe ou a retirada de seu amor permite que elas não se sintam em segurança em relação à satisfação de suas necessidades, o que as coloca em situação de desamparo e mobiliza angustiantes sentimentos de tensão.

Com o enfrentamento da dupla imago materno, revelado através da expressão em palavras, das intensas e ferozes emoções relacionadas com seu olhar intruso e sua ausência, a paciente está assumindo os motivos de sua separação, carregada de sentimentos de ódio. Ela também revela a seus filhos o abuso sexual sofrido por Renata e a agressividade exacerbada de seu marido na relação com o filho. Essa revelação implicou nova desestruturação para todos os membros da família. Até mesmo na situação analítica, a paciente vai acompanhada da filha nas sessões, o que também provoca desestabilização da analista. A paciente regrediu e passou a reproduzir alguns comportamentos anteriores como o sono, o cansaço e as novas exposições à situação de risco.

A partir da entrada em cena da imago materna, com sua dupla representação, abrem-se várias perspectivas tanto para a paciente como para a discussão metapsicólogica do olhar. Primeiro, rompe-se com alguns modelos padronizados do pensar psicanalítico sobre a pulsão escópica, somente relacionada com a revelação da castração. Segundo, ao acompanhar a cadeia associativa da paciente, chega-se ao olhar da mãe, que é anterior à fala e mais arcaico, portador de angústias mais intensas e, talvez, gerador de desfusão. Por último, a positivação do olhar no originário da patologia da neurose. No entanto, ainda surge novamente a compulsão à repetição.

"Outros olham para baixo
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido,
Raros olham para dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso
a alma, esse conto de fada".
P. Leminski

 

IV &– Raros olham para dentro, já que dentro não tem nada...

Após alguns meses no processo analítico, a paciente apresenta progressos, no sentido de poder simbolizar alguns afetos e sensações corporais. Isso a leva a revelar aos filhos os motivos de sua separação. No entanto, ocorre nova desestruturação, que desencadeia uma reação terapêutica negativa e uma compulsão à repetição. Freud, ao observar esses mesmo fenômenos em sua clínica, formula o conceito de pulsão de morte e encontra outras origens para as patologias: elas não estão na pulsão de vida e tampouco na pulsão de morte. Essas duas pulsões podem ser convocadas tanto nas situações de normalidade quanto nas de adoecimento psíquico [...] "ambas são responsáveis pelos fenômenos normais quanto pelos patológicos do psiquismo" (SILVA, N., 2002, p. 6). O adoecimento será resultado da relação - a fusão e a desfusão - entre essas duas pulsões, mais especificamente com a desfusão pulsional. Aqui se coloca uma questão: como se dá a desfusão?

Ela pode ocorrer das vivências de situações traumáticas, das "frustrações irremediáveis da libido, novas influências colaterais entre as pulsões, novas irrupções das pulsões em certos períodos da vida" (SILVA, N. 1998, p. 142) como, por exemplo, na adolescência, na menopausa etc.

No caso da paciente, já verificamos que a desfusão aconteceu em função das experiências traumáticas vividas tanto na sua infância, ocasionadas pela violência paterna com a anuência materna, quanto na repetição dessa experiência traumática, sem a menor benevolência do destino (FREUD, 1937), com a revelação do fato de sua filha ser abusada pelo pai.

Além dessas experiências exteriores, há o trauma interno, inevitável por ser constituinte do aparelho psíquico, causado pela invasão de forças pulsionais constantes e pelas possibilidades reduzidas de elaboração psíquica desse montante de energia. Os traumas são causadores da desfusão, por causa de sua violência e de sua intensidade. A desfusão traz como conseqüência psíquica a ausência, a falha ou a paralisação dos processos de ligação, de nominação, de simbolização e de subjetivação.

A desfusão pulsional se revela (apesar de ser silenciosa, talvez possa ser visível) nos momentos de passividade, por meio da cegueira da paciente. Essa cegueira tinha como finalidade proteger o ego, ao afastar dele o olhar e tentar salvar uma posição narcísica, erogenizando o próprio ego. Ao retirar a libido dos objetos e investir no ego, acontecia a dessexualização, o que diminuia a potência de ligação da pulsão de vida, liberando a pulsão de morte. Nessa regressão ao narcisismo, permanecer nas mãos do ego será um destino masoquista, que faz com que a paciente desempenhe uma função cênica de cúmplice cega.

Nesse tratamento, o masoquismo se evidencia pelo intenso sentimento de culpa da paciente em relação ao pai (de um lado, pelo ódio de ter sido espancada e, de outro, pela realização da fantasia edípica), em relação à mãe (sentimentos de ódio pela intrusão do olhar e por sua ausência) e também à filha (por não ter impedido o abuso). Diante desse montante de culpa, só lhe restava, para amenizá-la, a inibição do olho através da dessexualização do olhar, a sublimação e a punição de si mesma.

Ao explicar, em 1923, a função do superego e do sentimento de culpa no masoquismo, Freud diz que se de um lado o superego é portador de resíduos das escolhas objetais incestuosas do id, de outro, contraditoriamente, é uma formação reativa enérgica contra essas mesmas escolhas. Isso porque foi formado através da identificação com essas figuras parentais dessexualizadas, com a missão de recalcar o complexo de Édipo. Para realizar esse recalque e domar o ego, ele se dirige ao ego com dois mandatos - "seja como seu pai" e "você não pode ser como seu pai" - sob a forma da consciência, impingindo nele o sentimento de culpa.

O ego, por sua vez, mediante o trabalho de identificação e sublimação, ajuda a pulsão de morte a obter o controle sobre a pulsão de vida. Mas, também ele corre o risco de se tornar objeto da pulsão de morte e perecer. O trabalho de sublimação do ego resulta numa desfusão da pulsão e numa liberação da agressividade do superego, que luta contra as pulsões sexuais, expondo-se ao perigo de maus tratos e morte e, diante disso, ataca o ego. Com esse ataque do superego, o ego pode sucumbir. A moralidade do superego funciona desta forma, atacando o ego. E o ego frente ao trauma, diante ao perigo, ao desamparo, à desfusão, abandona-se por não se sentir protegido pelo superego. O superego preenche a mesma função de proteger e salvar que, no passado, era feita pelo pai e pela mãe. Esse poder parental se modificará para o poderoso poder do Destino e caberá a ele a tragicidade ou não da vida (FREUD, 1924).

O sentimento de culpa faz emergir uma necessidade de punição e, para isso, é preciso realizar ações pecaminosas, que devem ser expiadas e castigadas pelo poder parental do Destino:

"a fim de provocar a punição através deste último representante dos pais, o Destino, o masoquista deve fazer o que lhe é desaconselhável, agir contra seus próprios interesses, arruinar as perspectivas que se abrem para ele no mundo real e destruir sua própria existência" (FREUD, 1924, p. 211).

Essa necessidade de ser punida conduzia a paciente a situações de extremos riscos e a levava a fazer severas exigências a si mesmo e, principalmente, a seu filho de onze anos de idade.

Em 1933, Freud fez outra revisão ao aprofundar seus estudos sobre a ansiedade e o fator quantitativo na vida pulsional. Complementou suas afirmações sobre o sentimento de culpa, ao afirmar que ele é originado pelo medo da castração, que foi transformado no medo da morte e no medo da consciência. Tais medos causam uma ansiedade neurótica entre o ego e o superego. Essa ansiedade, vinda do superego sob ego, deixa-o incapaz de manter a unidade, a fusão com a pulsão de vida e o torna incapaz de pensar, pois suas forças eróticas foram suprimidas pela sublimação, resultando, daí, a desfusão pulsional. Com a sublimação, grande parte da consciência do ego é desvanecida, o que ocasiona na paciente uma dissociação, como vimos no início desse trabalho: o ego esvanece parte da consciência e permanece cego e "morto". Sua capacidade de simbolizar e pensar foram abolidos diante do desvanecimento do ego e da dessexualização pulsional. Parecia procurar novos sofrimentos ou seria que com esses atos, buscava uma produção de sentido, de ligação e de subjetivação?

Em diversas ocasiões, a paciente esteve driblando e beirando a volta ao nirvana; andava pari passu com o retorno ao inanimado. Namorava e mantinha um relacionamento sexual com uma pessoa desconhecida (cujo contato foi estabelecido por meio da internet). Após encontrá-lo, voltava sozinha, de um bairro bastante distante do seu, de madrugada. Deixava os filhos sozinhos ou com uma empregada muito jovem.

As atitudes autodestrutivas da paciente decorriam da desfusão e demonstravam um aumento desses conteúdos no interior de seu psiquismo. A presença da pulsão de morte em ação, com meta de retorno ao inorgânico, expressava-se na compulsão à repetição pela procura de situações de risco. Ela reproduzia, no tratamento e na vida cotidiana, suas experiências recalcadas e esquecidas, que ultrapassavam o princípio do prazer ao repetir, infinitamente, a autodestruição. Mas, qual seria o papel da pulsão escópica nesse processo? Essa pergunta é um dos objetivos deste trabalho.

Caso estivesse utilizando para esta reflexão apenas a metapsicologia da primeira tópica freudiana, já a teríamos visto no capítulo anterior, e a pulsão escópica no processo de adoecimento da paciente seria retomada da seguinte forma: a paciente sofria de uma neurose derivada das perturbações da vida sexual, provocada pela excitação oriunda das pulsões sexuais parciais, no caso a escópica, pelas fantasias incestuosas, geradora do masoquismo moral. A patologia estaria relacionada com a invisibilidade, a completude, a não aceitação da castração - da falta - a não resolução do Édipo e a não aceitação das diferenças entre os sexos e as gerações. Esses elementos, em conflito, resultariam no sofrimento psíquico da paciente.

Porém, desde 1920, a pulsão escópica é a pulsão de vida e, caso só houvesse essa pulsão, não haveria paradoxo. Mas, na clínica, o paradoxo se faz presente, e a segunda tópica assevera que a pulsão de morte está em fusão com a de vida que, por sua vez, contém a pulsão escópica e, imprevisivelmente, ambas querem obter satisfação por vias diferentes. O olhar pode servir a duas senhoras. Há o olhar favorecedor da desfusão, do retorno ao inanimado, que tem parentesco com a morte, na medida em que ocasiona o incremento quantitativo da intensidade pulsional irrepresentável, através da visão de certos fenômenos que, pelo excesso de visibilidade, queima os olhos.

Em determinadas situações, talvez no próprio masoquismo, o olhar colabore para desfusão pulsional e faz com que ele seja mortífero, trágico e angustiante por ser um olhar acusatório de si mesmo. Ele próprio pode ser o olhar da morte. O olhar que atrai pode se revelar o olhar que fere. O olhar o belo, a arte, a pintura que atrai e fascina representa a sublimação, a dessexualização das forças eróticas.

No exemplo clínico, temos o olhar mortífero da mãe pela intrusão. Ele presentifica aquele olhar que penetra como um objeto do Outro, severo e feroz, como se o Outro pudesse eliminá-la, não assegurar sua existência física e psíquica e/ou implantar sua sexualidade de forma violenta. E, ainda, o olhar enraivecido e/ou sedutor do pai, que violenta e odeia as mulheres e, ao mesmo tempo, excita-a, juntamente com a mãe, pelos olhares que percorreram seu corpo, que queimaram seu olho por tornar-se demais visível ao Outro. Assim, ela precipita-se no vazio: retira-se da cena e da vida, permanece cega e/ou em devaneios, no quarto, a espera de um novo trauma que a faça reviver esse mesmo passado de dessubjetivação.

Ao mesmo tempo, pode-se imaginar que o despertar do olhar, o "arregalar os olhos", o visual, forma, paradoxalmente, os fios para restabelecer a fusão entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. Por meio do olhar, da nominação, da simbolização dos afetos e das sensações corporais, obtem-se a expansão da subjetivação: a apropriação de si e de sua história.

O olhar e ser olhada pela analista, a fala ativa da paciente e "o acolhimento da palavra - do analisando e do analista - em relação ao vazio, relação essa anterior da palavra com outras palavras" (SILVA, N. 1999, p. 26) produzem uma ruptura crucial com a passividade da servidão e possibilita uma circulação erógena por meio da criação de uma história subjetiva, um efeito e uma abertura para outros caminhos psíquicos reveladores de suas sutilezas e mazelas.

Certa vez, por pouco, a paciente não se afogou ao fazer rafting. Logo em seguida, envolveu-se numa enchente, com seu carro, ao ir namorar. Essa procura mortífera desenfreada foi amenizada quando sua filha e a prima sofreram, novamente, abuso sexual por um vizinho da rua. Desse fato de caráter repetitivo e de desfusão pulsional e em meio ao caos, algo criativo pôde emergir: a paciente, a princípio, desnorteada, chamou o ex-marido e o cunhado para contar o que havia acontecido. No entanto, eles disseram apenas que "desse guaraná para as meninas" e permaneceram jogando futebol. Inconformada, a paciente "arregalou os olhos" e assumiu uma posição ativa diante desse acontecimento: chamou a polícia, e o vizinho foi detido para averiguações.

Esse modelo freudiano de subjetividade, criado a partir da pulsão de morte, permite se adotar uma visão de sujeito que alberga em si, em seu espaço psíquico, aquilo que não é a negatividade radical. Nesse espaço há lugares ao vazio, à abertura, ao nada, ao inominável, ao branco, ao irrepresentável. É uma ruptura que possibilita aprender com o desconhecido, a ausência e o impensável, presente nos sujeitos como "uma subjetividade aberta para além do desejo, do princípio do prazer", como afirma Silva, N. (1998, p. 137), e da destruição.

A pulsão de morte é uma suspensão radical, um estancamento, enquanto a idéia de morte é a morte em si mesmo. Essa suspensão promove uma busca epistemológica que reconhece a relação com o ignoto, o que favorece a discordância com as explicações demasiadamente fáceis ou sistemáticas. A pulsão de morte ajuda a reencontrar um novo rumo através de novas perguntas e de novos descobrimentos para os mal-estares contemporâneos. Com isso, os analistas devem abandonar um saber teórico rígido, deixarem-se conduzir pela incerteza (SILVA, N., 1999) e acolher na escuta a relação do incógnito, consigo mesmo e com o paciente.

 

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Endereço para correspondência
Rua Machado Bittencourt, 317 - Cj. 12 - Vila Mariana - 04044-000 - São Paulo SP - (11) 5083-2954
E-mail: dorabichara@terra.com.br

Artigo recebido em: 18/9/2006
Aprovado para publicação em: 27/9/2006

 

 

*Psicanalista, mestre em Psicologia Social do Núcleo de Psicanálise, doutoranda em Psicologia Social pelo Núcleo de Psicanálise e Sociedade da PUC-SP, membro do Instituto Sedes Sapientae do Depto. de Psicanálise.
1René KAËS &– Lo Negativo &– Figuras y Modalidades, p.158. Esse pacto se refere a negação da negatividade radical. É pacto sobre o desconhecido; a não experiência, o não vínculo. É um acordo inconsciente entre vários sujeitos sobre a repressão, o desmentido e a recusa. Seus efeitos podem contribuir para a formação do pensamento ou criar pensamentos de ataque a si mesmo, destruir a vida psíquica dos outros ou fetichizar o vínculo. Tradução da autora.

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