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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.4 no.7 Barbacena Nov. 2006

 

RESENHAS

 

 

Ronaldo Calçado Junior; Thomyres Teixeira Costa*

Universidade Presidente Antônio Carlos - Brasil

 

 

ROUDINESCO, E. A Análise e o Arquivo. Tradução André Telles; revisão técnica Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 80 p. ISBN 85-7110-901-x.

Elisabeth Roudinesco é historiadora e psicanalista; leciona na École Pratique des Hautes Études em Paris. Entre suas obras, publicadas no Brasil, destacam-se: "A família em desordem"; "História da psicanálise na França"; "O paciente, o terapeuta e o Estado"; "Por que a psicanálise?"; "De que amanhã... Diálogo" (com Jacques Derrida); "Dicionário de psicanálise" (com Michel Plon); "Filósofos na tormenta" (a ser publicado). A cada um dos livros que publica, Roudinesco se evidencia como atenta observadora do sistema psicanalítico, combinando, com propriedade, os recursos de historiadora com o saber inaugurado por Freud. Produz obras de grande interesse, em que sua habilidade literária se coloca ao alcance de um público bastante extenso.

Em "A Análise e o Arquivo", a autora apresenta intervenções divididas em três aspectos, intitulados de "O poder do arquivo", "Lacan: o estádio do espelho" e, por último, "O culto de si as novas formas de sofrimentos psíquicos". Cada uma delas apresenta as devidas particularidades e tem o propósito de tornar claro para o leitor o vínculo entre as três conferências. Isso nos permite perceber quando a primeira e a segunda intervenção demonstram como o arquivo para a História e para a ciência pode ser submetido a uma determinada análise e interpretação, e como o arquivo pessoal de Freud e de Lacan evidencia, cada um com suas peculiaridades, a perpetuação não só da obra como do ser humano.

Na primeira conferência, vemos uma investida narcísica pela preocupação excessiva de deixar informações. No segundo, uma imortalização, não menos narcísica, justamente em seu inverso, a ausência de informações. A terceira conferência vem como produto exemplar dessa variedade de significações dos arquivos. Nela é abordado o arquivo de si ou o culto de si mesmo. Assim, podemos dizer que narcisismo e arquivo oferecem, de forma interessante e inovadora, o fio condutor da obra.

O poder do arquivo se fortalece quando a autora demonstra, adequadamente, com suas palavras e fatos históricos, que ele é produto de inúmeros conteúdos explicativos, e que a memória de um documento e sua emergência podem conduzir a vários significados. Isso porque um arquivo não oferece, de antemão, o significado dos acontecimentos; ele precisa ser lido, interpretado e, muitas vezes, reinventado, mostrando o quanto a História, assim como a ciência, apresenta somente uma verdade parcial.

[...] se tudo está arquivado, se tudo é vigiado, anotado, julgado, a história como criação não é mais possível: é então substituída pelo arquivo transformado em saber absoluto, espelho de si. Mas se nada está arquivado, se tudo está apagado ou destruído, a história tende para a fantasia ou o delírio, para a soberania delirante do eu, para um arquivo reinventado que funciona como dogma (p. 9).

A autora nos mostra as implicações causadas pelo excesso e pela falta de arquivo por aqueles que, de posse dele e com seu respaldo, passam a utilizá-lo em benefício próprio ou colocam em dúvida a verdade ou o pensamento de quem o escreveu. E como historiadora, traça um relato histórico sobre a trajetória do arquivo de Freud - excessivo por sinal - e de Lacan que, ao contrário de Freud, nada deixou documentado; seu arquivo é a sua fala.

Sobre a trajetória do arquivo de Freud, Roudinesco relata o desejo de seus seguidores em tornar conhecida a obra do mestre, o empenho de Ernesto Jones, os movimentos das escolas norte-americanas e inglesas, a escolha dos locais de depósito para os arquivos e as atividades historiográficas. Apresenta, também, as medidas tomadas para a montagem desse arquivo que, em alguns momentos, foram desastrosas, incluindo as proibições e o poder soberano dos membros da IPA. A entrega de parte do arquivo àqueles que não eram pesquisadores ou historiadores e passaram a fazer uso indevido dele ou o utilizaram em benefício próprio, recriando uma interpretação "[...] uma espécie de real incontrolável, um lugar de gozo, suscitando significações ilimitadas impossíveis de conter ou simbolizar" (p. 18).

Ainda sobre a trajetória relativa ao arquivo de Freud, a autora nos mostra o quanto é desastroso o acesso de não profissionais aos arquivos, além de nos fazer refletir sobre o papel do historiador e seu desejo angustiante. E conduz o leitor ao mundo de Freud, o seu arquivo pessoal: sua casa em Londres, o Freud Museum de Londres, a casa em Viena, em Bergasse, que, vazia, contém apenas fotografias e alguns móveis, como se quisesse expressar o vazio da Psicanálise em Viena.

Ao contrário das obras de Freud, a autora nos diz que o trabalho de Lacan se tornou conhecido através de sua fala - é oral. Por não existir manuscritos ou notas tanto da obra quanto do próprio Lacan, Roudinesco mostra o ressurgir dessa obra e desse autor, imaginário e soberano, por meio dos vestígios. A transcrição dessa obra pelo genro, cujo enunciado não possui notas ou referências, é a maneira que o próprio autor encontrou para estar sempre presente, interminável, narcísico, fazendo do apagamento do arquivo a sua própria imagem.

Em "Jaques Lacan: o estádio do espelho", a segunda conferência, Roudinesco faz seu trabalho de historiadora ao buscar fragmentos e depoimentos de um arquivo apagado e reconstrói, como ela mesma afirma, a gênese e a história do texto "O estádio do espelho". Ao realizar esse trabalho, apresenta não só a construção desse texto como nos apresenta características de um Lacan que vai do ridículo ao triunfal, desde sua conferência em 1936. O texto é marcado por datas, referências e comentários próprios de quem busca e constrói a história, proporcionando ao leitor informações e comentários sobre a obra e o conteúdo da proferida conferência.

São nas elucidações e nas exemplificações de fatos históricos da psicanálise que a obra ganha capacidade de instigar o leitor. Esse chega ao último capítulo do livro, "O culto de si e as novas formas de sofrimentos psíquicos", em um processo de total identificação com a leitura. Roudinesco nos transmite o que um arquivo possivelmente falho no quesito interpretativo pode produzir no aparato psíquico do sujeito moderno. O tema nos permite entender o modelo de distribuições de doenças fora dos padrões de normalidade, no qual são apresentados os discriminados distúrbios pelos recursos organizacionais de classificações (DSM IV, CID-10).

Tudo isso se dá por um fator realmente significativo desse último tema, o poder da identidade Narcísica. Com ele, a autora oferece ao leitor o resultado desse tipo de comportamento, nos dias atuais, em relação à saúde e à produção de saúde. Também com tom de denúncia, a autora esclarece que tais conflitos têm origem na desordem em que a psicanálise se encontra, na ausência de um arquivo subjetivo do passado, da memória excluída. Essa deficiência teve, como conseqüência, uma exacerbação do estado narcísico do individuo pós-moderno - de possuir um arquivo de si, voltado unicamente para si, em forma de ódio e amor.

Apesar de ser dirigida ao público acadêmico, por possuir termos técnicos não acessíveis aos leigos, a obra não deixa de ser uma leitura prazerosa. A autora tenta mais que, simplesmente, contar uma história ou corroborar um novo conceito no campo técnico da Psicologia. Ela nos passa a idéia de que "a análise" e o "arquivo" são elementos que possuem diferenças em suas respectivas funções. Propositalmente, determina o nome do livro com a inserção da conjunção "e" para, ao mesmo tempo, equivaler e distinguir as palavras "análise" e "arquivo", na intenção de submeter o leitor a refletir sobre o real arquivo - o do outro e o de si mesmo.

 

 

*Alunos do 8º período do curso de Psicologia - UNIPAC - Ubá.

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