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Mental

Print version ISSN 1679-4427On-line version ISSN 1984-980X

Mental vol.4 no.7 Barbacena Nov. 2006

 

RESENHAS

 

 

Paulo Roberto Almada Ferraz*

Universidade Presidente Antônio Carlos - Brasil

 

 

RUDGE, Ana Maria (org). Traumas. São Paulo: Escuta, 2006. 188p. ISBN 85-7137-250-0

Numa abordagem bastante atual, em função das circunstâncias que a humanidade vive, a obra é realmente pertinente ao trazer para discussão o tema "traumas". É o resultado da reunião de diversos trabalhos apresentados no I Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e VII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, realizado em setembro de 2004, na PUC-Rio.

Ao ter a expressão "trauma" como significado, no âmbito psicológico, de alteração na personalidade do indivíduo causada por experiência emocional violenta que modifica o seu psiquismo, os organizadores desse volume, prefaciado por Ana Maria Rudge, foram pertinentes ao trazer para discussão o assunto. Embora não seja um exemplar endereçado para leigos, foi estruturado de forma clara, objetiva e coerente com as questões suscitadas por pacientes nas sessões analíticas atuais.

O livro está dividido em doze partes, além de trazer um prefácio e uma sucinta bibliografia sobre cada autor, que permeia cada tópico, com propriedade, para estudiosos da Psicologia, em função do uso de termos e de expressões próprias desse meio, tanto freudianas quanto lacanianas. Com narrativa instigante, os organizadores fazem uma viagem pelo tempo, demonstrando os vários momentos em que o homem é acometido pelos arreveses que o desequilibram emocionalmente, em função das mais diversas circunstâncias. A obra nos permite voltar os olhos para as várias facetas da dualidade amor e ódio vivida pelo sujeito, nos mais diferentes momentos da vida, que culmina na forma de violências e de traumas.

A leitura nos faz repensar não apenas quanto à expressão "trauma", mas também quanto ao papel da psicanálise no tempo hodierno, em que os pacientes já não são como os de antes, assim como as problemáticas levadas ao setting terapêutico. As discussões são frutos de considerações analíticas de vários pesquisadores, que estimulam a reflexão quanto ao posicionamento do analista frente a esse sujeito, novo não apenas em sua maneira de ver e sentir o mundo, mas também no que tange às novas e singulares queixas. Somos remetidos às falas de Freud (1909), quando já considerava que, para tratar o sujeito, era necessário que tal trabalho fosse realizado por meio da observação dele no meio em que vive, junto à coletividade, com seus percalços e os obstáculos próprios de cada cultura.

Percebemos quão atuais são os conceitos trabalhados pelo Pai da Psicanálise, tais como o mal-estar cultural, a pulsão de vida e a pulsão de morte, realidades tão presentes no sujeito do século XXI, que precisa viver numa linha tão tênue entre o amar e o odiar.

Os textos nos induzem a uma análise do caos por que passa o homem, desde os tempos dos campos de Auschwitz até as barbáries praticadas no presente, em nome da paz, da religião, da política, que têm, como conseqüência, o trauma psíquico do próprio homem. Apresenta-nos a necessidade de análise da influência dos traumas em cada sujeito, em função de que cada indivíduo percebe os transtornos emocionais de maneira singular, mas não descarta a possibilidade de pensar o trauma coletivo em que estamos sujeitos. Até mesmo porque as guerras, os assassinatos em massa, e os atos de terrorismo têm ocorrido de maneira generalizada em todo o planeta como uma "cultura" de morte, em que para cessar a matança do outro é preciso matá-lo... e tudo em nome do bem.

É um chamamento, segundo Eliane Mendlowicz (p. 51), para a tentativa de verificar que contribuições a psicanálise pode prestar a esse sofrimento moderno, numa necessidade premente de aprofundar a investigação dos fenômenos depressivos. Com essa preocupação, a autora faz referência aos fatores que hoje assolam o sujeito moderno e que não podem ser desconsiderados pela influência nefasta que causa no psiquismo do indivíduo. Mendlowicz ainda insiste que não se pode mais considerar traumáticas apenas as experiências negativas de natureza sexual, haja vista os inúmeros casos atestados na rotina das clínicas psicoterápicas nos dias de hoje.

Veremos como a psicanálise se encontra inserida no contexto histórico atual, em que se observa a banalização do mal. A mídia contribui com essa questão, mostrando cenas em que o sujeito é coisificado, tornando-se algo que pode ser descartado quando não mais dele se precisa.

Seremos levados a questionar, também, a voz de um Outro, o Estado e suas forças parceiras, no controle e na punição do indivíduo, sob o pretexto de medidas de segurança e de proteção. Esses também são fatores que fazem surgir, para a psicanálise, nova demanda de atendimento, em função das novas exigências levadas pelo sujeito na terapia. Sujeito esse que se vê oprimido, submisso a uma força potencial que se configura como ilusória realização de si mesmo. Eis o desafio da psicanálise: auxiliar esse sujeito num contexto político dominador.

Outro fator complicador, também inserido no processo da análise terapêutica, abordada pelos autores, diz respeito à toxicomania, além de outras formas de violência, como o alcoolismo, a delinqüência etc. Os autores lançam a pergunta: "Por que o homem contemporâneo não consegue barrar sua autodestruição? Esse processo de autodestruição pode ter sua origem na agressividade do homem por ser castrado, de acordo com as falas de Lacan (1966), haja vista que essa agressividade tem estreita relação com a identificação narcísica do sujeito.

Os autores nos direcionam a ver o homem da atualidade como desamparado, ao apresentar uma série de situações que provocam essa falta produtora de angústia, que está sempre ligada às diversas perdas que o sujeito é acometido ao longo de sua vida, seja de si mesmo, de seu objeto de desejo, ou de seus ideais. São, conforme afirmam, os acontecimentos traumáticos recentes que produzem as depressões da atualidade, devido às inúmeras pressões psíquicas pelas quais passa o sujeito nesta sociedade frenética, em que o desemprego bate à porta, os postos de trabalho são extintos, as relações de maior significado para o indivíduo desmoronam etc. Em tais circunstâncias, o sujeito se vê invadido por uma força psíquica que quebra as resistências mais seguras e lhe causa enorme vazio e, em conseqüência, a perda da auto-estima. Nessa concepção, perceberemos que até mesmo as pequenas tragédias podem ter valor de pulsão de morte muito grande, em função de seu significado junto ao Eu do sujeito envolvido que, ao ter sua estrutura narcísica abalada, perde o sentido da vida.

Freud (1919) já aprofundava seus estudos acerca das neuroses traumáticas desde a Primeira Guerra Mundial, embora a abordagem naquelas circunstâncias apresentasse um sujeito diferente de hoje, em função das também diferentes características daquele tempo. No entanto, respeitadas as particularidades, o texto nos remete a uma reflexão sobre a potencialidade das diferenças entre um tempo e outro. Em ambas as épocas, no entanto, o sujeito carrega o peso dos traumas sofridos. Nesse contexto, o psicanalista se vê à mercê de ter que enfrentar a questão da pulsão de morte. Mudaram-se os nomes, de Guerra Mundial para atentados, seqüestros, assassinatos em massa etc, mas os transtornos a que estão expostos os sujeitos continuam sendo um fardo para seu psiquismo suportar.

É retratado, também, a força traumática e sacrificial com a inserção do Nome do Pai, trauma originado pelo encontro com o real. Essa situação é apresentada, na obra, pelas observações feitas por Gerez-Ambertin (p. 67), quando menciona a interpretação de Lacan (1963) de textos bíblicos que envolvem Abraão (pai) e Isaac (filho a ser sacrificado), fazendo ainda uma relação com "Totem e Tabu", de Freud (1912).

Para o sujeito viver em sociedade, há uma integração com sua cultura na qual existem perdas e ganhos. No entanto, a falta ou o excesso na satisfação das pulsões leva o indivíduo à violência. Segundo um dos autores, Ceccarelli (p. 122), "a tendência que temos em atribuir à atualidade maior violência se deve a questões eminentemente narcísicas!".

Outra questão destacada, com ênfase, na obra diz respeito aos transtornos oriundos das paixões, nos quais o sujeito se vê à mercê de Outro e entregue a suas fantasias e aos seus devaneios.

Fica claro que o homem sempre esteve acompanhado dos traumas psíquicos desde os primórdios, fossem eles oriundos de desastres, guerras, acidentes, incêndios, crimes ou outros fatores. Em todos esses momentos, principalmente, nas guerras, é inegável o sofrimento de veteranos acometidos por sintomas de neurose traumática. Atualmente não temos as mesmas guerras, mas enfrentamos outros conflitos, de monumental sofisticação tecnológica, além da criminalidade globalizada e o terrorismo, que deixam o sujeito com as estruturas psíquicas e o comportamento alterados, a ponto de levá-lo a viver em constante "estado de sítio" dentro de sua própria casa.

Essa realidade apresenta-se cada vez mais próxima e insuportável e faz com que o homem sinta-se impotente diante da força comercial da indústria da droga, principalmente nas grandes capitais. É nesse contexto, de acordo com a fala de um dos autores, Rouanet (p. 141), que a psicanálise deve atuar. Ela deve buscar analisar a situação na qual o trauma atinge o sujeito e a forma que com que ele elabora o material recalcado pelos transtornos sofridos. O autor vai além dessa questão, quando aborda a questão traumática de forma coletiva ao relembrar o episódio de 11 de setembro de 2001.

Há também uma reflexão sobre o papel da religião junto ao homem da contemporaneidade. A religião tenta consolá-lo, mesmo com explicações não corroboradas pela ciência. Somos compelidos, ainda, a enxergar, no século XXI, a possibilidade de ter a neurose traumática como a doença psíquica do século, assim como a histeria o foi no século XIX.

Trata-se, portanto, de uma obra interessante e válida dentro do contexto analítico psicológico sobre as causas das aflições atuais do ser humano.

 

 

*Acadêmico do 6º período de psicologia UNIPAC/Ubá.

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