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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.5 n.8 Barbacena jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Interdisciplinaridade e equipes de saúde: concepções

 

Interdisciplinarity and health staffs: conceptions

 

 

Rosemary Pereira Costa*

Universidade Presidente Antônio Carlos - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo objetivou-se identificar as concepções que os profissionais de saúde que atuam em equipes multiprofissionais em dois centros de saúde do município de Contagem, em Minas Gerais, têm sobre a interdisciplinaridade e o impacto dessa concepção nas ações realizadas pelas equipes. Foi realizada pesquisa qualitativa na qual foram entrevistados 16 profissionais de nível universitário, no período de abril a maio de 2002. A análise das entrevistas buscou abranger o relato específico de cada profissional, o conjunto de relatos de cada centro de saúde e, posteriormente, o conjunto da amostra, de acordo com o contexto do município. Os dados apontaram as dificuldades de definição de interdisciplinaridade pelos profissionais. Quanto à prática cotidiana, os profissionais relataram o esfacelamento das ações; a concepção da interdisciplinaridade foi definida como encaminhamento de pacientes aos demais profissionais da equipe.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade, Equipes, Saúde Pública.


ABSTRACT

This article aims to identify the conceptions that the health professionals, who work in multiprofessional staffs in two health centers in the city of Contagem - MG, have in relation to interdisciplinarity and its impacts on their actions. A qualitative research with 16 professionals was realized in april and may in 2002. The analysis of the interviews tried to regard each professional's specific report, the group of reports of each health center and, later, the sample group. The analysis always considered the city's context. The data pointed to the professionals' difficulties in defining interdisciplinarity and to the consequent distortions such difficulty causes on the professionals' praxis. In terms of daily practice, the professionals reported the dismemberment of the actions and the concept of interdisciplinarity as heading the patients to the other professionals of the staff.

Keywords: Interdisciplinarity, Staffs, Public health.


 

 

Introdução

A experiência como profissional de Psicologia em instituições públicas de nível primário foi um dos fatores que desencadearam os questionamentos do presente artigo. A inquietação com o lugar ocupado pela Psicologia nessas instituições e na equipe multiprofissional direcionaram este estudo para a saúde pública. A forma fragmentada como o trabalho era realizado no cotidiano fez surgir indagações sobre o trabalho em equipe e seu trabalho interdisciplinar. Por que razão os conceitos de trabalho em equipe e trabalho interdisciplinar não se transformavam em prática se já faziam parte do discurso dos profissionais e das instituições?

Para buscar responder a tais questões, é necessário perceber que o "fazer" em saúde e mesmo a representação da saúde e do adoecimento estão diretamente condicionados pelo momento histórico, pelo modo de produção, pelas relações de poder e de cultura de um povo. O surgimento da doença não é fruto do acaso. Ela tem determinações (modo de vida, faixa etária, profissão, desenvolvimento científico, fatores psicológicos, culturais etc.), insere-se no social e influi nas relações dos sujeitos. Ao longo do tempo, as tentativas de entender e de trabalhar esses nexos levaram à construção de práticas assistenciais e sistemas de saúde característicos. Assim, os elementos a quem cabiam os cuidados de saúde, a divisão das tarefas, a apropriação dos conhecimentos sobre saúde e sua transmissão foram se modificando continuamente. Ao analisar esse movimento, verificamos a verticalização dos conhecimentos, a maior divisão do trabalho e a marcante fragmentação das ações em saúde.

Diante dessa realidade, indagamo-nos sobre uma forma possível de as equipes construírem algo novo em seu interior que possibilite intervir em sua própria fragmentação. Deparamo-nos com o trabalho interdisciplinar. Seria essa uma possibilidade?

 

O trabalho em saúde e a interdisciplinaridade

A interdisciplinaridade ganha relevância no mundo ocidental a partir da década de 1960. Fazenda (2001), ao historicizar a evolução do conceito, demarca três passagens: na década de 1970, buscava-se uma definição de interdisciplinaridade; na década de 1980, tentava-se construir um método para a interdisciplinaridade e a partir da década de 1990, tenta-se a construção de uma teoria da interdisciplinaridade.

O conceito de interdisciplinaridade se relaciona com outros termos, tais como: disciplinaridade, multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade. É importante entender esses termos.

Japiassu (1976) conceitua disciplinaridade como área homogênea de estudo com fronteiras bem delimitadas. É necessário explicitar a relação de poder que subjaz a disciplinarização, colocando-a como forma de controle da produção do discurso. A disciplinarização cria, ilusoriamente, uma identidade que perpetua e reatualiza constantemente as regras.

A multidisciplinaridade implica uma justaposição de diversas disciplinas. Não pressupõe, necessariamente, trabalho em equipe e coordenação. Na multidisciplinaridade, bem como na pluridisciplinaridade, não se acordam conceitos e métodos. A segunda implica um nível maior de relação entre as disciplinas.

A interdisciplinaridade é conceituada pelo grau de integração entre as disciplinas e a intensidade de trocas entre os especialistas; desse processo interativo, todas as disciplinas devem sair enriquecidas. Não basta somente tomar de empréstimo elementos de outras disciplinas, mas comparar, julgar e incorporar esses elementos na produção de uma disciplina modificada.

A transdisciplinaridade iria mais além: não se restringiria às interações e à reciprocidades entre as disciplinas, uma vez que propõe a ausência de fronteiras entre elas. Muitos pesquisadores situam a saúde nesse campo.

Apesar de ser teoricamente correto considerar a saúde como campo transdisciplinar, pela complexidade de seu objeto, ao observarmos os serviços de saúde que contam com atendimento de equipe multiprofissional, percebemos que a organização de serviços se faz de forma fragmentada. Não queremos fazer coincidir aqui, a terminologia trabalho em equipe multiprofissional com interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade, mas o trabalho de equipe multiprofissional pode expressar a possibilidade de integração das disciplinas científicas, pois elas se apóiam e se operacionalizam em tecnologias que se refletem no fazer cotidiano. Peduzzi (2001) comenta que o trabalho coletivo não é feito pelo trabalhador, mas pelo usuário, que peregrina de sala em sala e, até mesmo, de serviço em serviço. No plano da retórica, o trabalho em equipe é considerado o ideal das práticas em saúde e, miticamente, assume o lugar de solução apaziguadora para os conflitos entre as diversas áreas profissionais inseridas nesse contexto.

No Brasil, a partir da década de 70, diante das políticas de cunho racionalizador adotadas pelo setor de saúde, as equipes ganham destaque como forma de alcançar os objetivos propostos.

Com o movimento da Reforma Sanitária e as propostas de mudança do modelo assistencial, que se processaram no fim dos anos 80 e têm tentado se efetivar desde a década de 90, as equipes ganham relevância como forma de buscar a integralidade das ações e melhor qualidade dos serviços. Peduzzi (2001) nos alerta que, apesar de encontrarmos, em inúmeros trabalhos, relatos sobre equipes que atuam no campo da saúde, é necessário problematizar a ação parcelar que ainda existe no trabalho nessa área, que é contrário ao conceito de equipe. Um conjunto de pessoas que trabalham juntas só se torna equipe quando há elemento de identificação (de natureza simbólica) que as una, seja física ou virtualmente.

Pensamos esse elemento como resultante de um processo de inter-relação entre os trabalhadores em saúde e deles com os usuários na produção da saúde. Tal processo aponta a existência de redes de significados compartilhados culturalmente e socialmente que sustentam a construção da significação de episódios patológicos. Essas redes de significados são constituídas por elementos cognitivos, afetivos e experiências, aglutinados nas relações sociais e nas configurações culturais.

O trabalho em equipe, quando visto como processo, demanda o repensar dos papéis, das relações de poder e dos conteúdos já instituídos. O trabalho assim organizado superaria a inércia burocratizada dos serviços públicos de saúde e interviria na divisão vertical do processo de trabalho, considerada impeditiva da resolubilidade dos serviços. Fica claro que o trabalho em equipe nos serviços de saúde só se efetivará quando forem trabalhadas as relações de poder, que se expressam, também, por meio da disciplinari-zação desse campo. Assim, reencontramos nosso tema - a interdisciplinaridade - agora como necessidade interna desse campo, seja devido à complexidade de seu objeto ou como forma de relativizar e trabalhar as relações de poder implícitas na disciplinarização.

Ao historicizar essa questão, Luz (2000) afirma que o campo da saúde pública se torna interdisciplinar, em meados do século XX, quando a crise político-ideológica que imperava no setor impulsionou modificações no conceito de saúde e foram introduzidos, gradualmente, outros saberes para pensar seu campo. A introdução de disciplinas como Direito, Ética e Ciências Sociais reforça e apóia outras ciências, até então sufocadas por disciplinas biologicistas, ligadas somente à preservação da vida. Luz (2000) enfatiza:

uma possível interdisciplinaridade no campo da saúde, incluindo as ciências sociais (e sua produção), está sendo construída a partir das exigências institucionais de gestão envolvendo o adoecimento das populações, que atingiram, nesta conjuntura de capitalismo globalizado, uma complexidade inimaginável. [....] a saúde passa a ser vista agora como um domínio de conhecimento e intervenção, domínio compartilhado com outras disciplinas, e não mais como um mero objeto, por mais complexo que seja esse objeto (LUZ, 2000, p. 62).

Corroborando as colocações de Luz, Gomes e Deslandes (1994) acreditam que a ampliação do conceito de saúde exige nova postura na produção do conhecimento e na práxis em saúde. Eles demarcam o campo da saúde pública como campo de correlação de forças no qual disciplinas se articulam, tendo, como pano de fundo, a consciência social e política que emerge no confronto das práticas.

Os autores pontuam, ainda, quatro obstáculos que a interdisciplinaridade enfrenta nesse campo: a tradição positivista e biocêntrica; os espaços de poder que o encastelamento disciplinar propicia; a falta de comunicação entre as instituições de ensino e pesquisa; as dificuldades próprias à interdisciplinaridade - operacionalização de conceitos, métodos e práticas entre as disciplinas.

Nunes (1995) aponta que a possibilidade de haver interdisciplinaridade está na articulação entre o conhecimento do fato humano e a prática. Para ele, não existe desejo puro de saber, um saber descontextualizado. É necessário um projeto no qual os profissionais invistam seus esforços para a transformação de suas práticas cotidianas e a construção de novas formas de saber. Apesar de otimista quanto à possibilidade da prática da interdisciplinaridade, que, para ele, traz a marca da criatividade, Nunes comenta sobre o fato de estarmos diante de algumas dificuldades: a formação segmentada de recursos humanos na saúde e a necessidade de que as demais disciplinas não atuem somente como complemento à visão biológica na saúde. Ele pontua a importância de se criar ações de caráter prático e de intervenção que possibilite um caminho mais dialogado. A terceira dificuldade seria a de entender o universo como dinâmico, de abordar o universo como algo em contínua construção, como um processo.

Nesse sentido, Costa e Creutzberg (1999) comentam a postura do profissional de saúde necessária à prática interdisciplinar, ressaltando dois termos: singularidade e transformação. Quanto ao primeiro, podemos pensar na experiência, nas vivências e nos caminhos teóricos escolhidos pelo profissional e que perpassam sua prática cotidiana. A transformação diz respeito à postura de questionamento e à inquietude em busca de soluções e novos aprendizados. Ser interdisciplinar é se arriscar na busca do novo.

Minayo (1991) avalia que a interdisciplinaridade na saúde só pode ser construída a partir de uma visão sóciofilosófica que faça crítica ao fragmentário e à visão funcionalista tradicional, mas que também consiga criar uma proposta epistemológica com axiomas comuns a um conjunto de disciplinas. Para ela, essa perspectiva é viável:

Partindo da criação de um paradigma mais abrangente que supere a dominação do modelo bio-médico e as concepções reducionistas das ciências sociais, o âmbito científico da saúde tem a seu favor sua ligação direta e estratégica com o mundo vivido, o mundo do sofrimento, da dor e da morte com o qual é chamado a se confrontar diariamente. Esse apelo cotidiano do serviço e da política social traz a área da saúde para a arena inquestionável da vida. E é no diálogo com esse radicalmente humano que está seu escudo para o salto qualitativo interdisciplinar (MINAYO, 1991, p. 76).

Diante da colocação de Minayo, fica clara a necessidade de reformulação do discurso e da práxis da saúde pública. Essa reconstrução deve se dar dentro de uma lógica interdisciplinar, pois só assim será possível retomar a complexidade do objeto da saúde. Esse processo só será legitimo se envolver todos os atores sociais participantes desse campo.

Pensando nesse aspecto, objetivamos, neste artigo, identificar as concepções que os profissionais de saúde que atuam em equipes multiprofis-sionais, em dois centros de saúde do município de Contagem, Minas Gerais, têm sobre a interdisciplinaridade e o impacto dessas concepções nas atividades realizadas pelas equipes.

 

Metodologia

O presente artigo apresenta recortes de uma pesquisa - estudo de caso - que se realizou em dois centros de saúde do município de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, durante os meses de abril e maio de 2002.

A opção em eleger, como campo de pesquisa, os centros de saúde se deveu à sua importância quanto ao cuidado e à resolução dos problemas de saúde da população. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a atenção primária em saúde pode resolver até 80% dos agravos de saúde da população.

Os centros de saúde pesquisados foram selecionados por apresentarem mais diversidade de categorias profissionais e montarem grupos de educação em saúde com a participação de trabalhadores de diversas categorias profissionais (somente de nível universitário) e por serem referência de programas de saúde mental e de Hanseníase.

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semi-estruturadas, feitas com profissionais de nível universitário. Foram entrevistados 16 profissionais de diversas categorias: dois assistentes sociais, um odontólogo, três enfermeiros, um fisioterapeuta, sete médicos e dois psicólogos.

Na caracterização dos profissionais entrevistados, observou-se que 68,75% são do sexo feminino, 68,25% têm mais de dez anos de formação e contam com sólida experiência profissional. Quanto ao tempo de trabalho na instituição, 37,5% encontram-se com até cinco anos de inserção no serviço, 25% na faixa de 5 a 10 anos, 18,75% entre 10 e 15 anos e 18,75% têm mais de 15 anos de serviço. Quanto ao vínculo empregatício, 87,5% dos profissionais são concursados e 12,5%, contratados.

Para a análise dos dados, tomamos por base os pressupostos de Yin (2001). Para esse autor, a análise dos dados pressupõe examinar, categorizar e recombinar as evidências, tendo em vista proposições iniciais de um estudo.

Nossa análise buscou abranger a totalidade dos relatos das entrevistas e as relações possíveis entre elas. Nesse sentido, consideramos o relato específico de cada profissional, o conjunto de relatos de cada centro de saúde e, posteriormente, o conjunto da amostra.

Essa leitura nos possibilitou identificar as repetições, os antagonismos, os paradoxos e as representações emergentes a serem trabalhadas por meio do referencial teórico proposto.

Yin deixa claro que as técnicas para analisar as evidências de um estudo de caso ainda não foram bem definidas. Ele sugere uma análise baseada nos pressupostos teóricos que levaram ao estudo de caso: "os objetivos e o projeto originais de estudo baseiam-se em pressupostos que refletem o conjunto de questões da pesquisa, as revisões feitas na literatura sobre o assunto e as novas interpretações que possam surgir" (YIN, 2001, p. 133). Essas pressuposições formatariam a coleta de dados e estabeleceriam a prioridade e a estratégia analítica, servindo como um guia da análise do estudo de caso. Nesse estudo, elegemos, como nossa prioridade de análise, as concepções que os trabalhadores têm a respeito da interdisciplinaridade.

 

A concepção da interdisciplinaridade na visão dos profissionais

A interdisciplinaridade passou a ser exigência interna do trabalho em saúde. Porém, como observado por alguns autores que trabalharam o tema junto a equipes de saúde, ela continua tendo um conceito indefinido entre os trabalhadores. No cotidiano, a interdisciplinaridade está mais no plano do desejo e menos no campo da prática.

Ao indagarmos aos profissionais sobre a concepção que têm do termo, com base em sua prática diária, observamos desconhecimento e respostas que podemos agrupar em duas categorias: interdisciplinaridade como integração de profissionais e saberes, e interdisciplinaridade como trabalho em equipe multiprofissional. "Atuação de vários profissionais da área de saúde juntos... isso é multidisciplinar..... interdisciplinar?... Não sei". Esse profissional retrata a dificuldade de se ter definição e delimitação claras do tema no cotidiano do trabalho em saúde. Ele aponta certa confusão, entre as noções de interdisciplinaridade e trabalho multidisciplinar, expresso nas equipes multiprofissionais. A dúvida desse profissional retrata uma confusão que se expressa como certeza, na fala de outros profissionais. Eles estabelecem equivalência entre a interdisciplinaridade e o trabalho em equipe multiprofissional:

- "Acho que é o conjunto, a equipe toda";

- "É uma troca de conhecimento realizada por uma equipe com diferentes categorias profissionais a fim de superar a fragmentação do saber individual e proporcionar um atendimento mais amplo ao paciente";

- "É a participação efetiva de toda a equipe no trabalho, um sendo importante para a atuação do outro".

Podemos ler essas colocações por meio da teorização de Peduzzi (2001) que, ao trabalhar essa aparente equivalência feita pelos profissionais, deixa claro que a interdisciplinaridade não guarda relação direta com a multidisciplinaridade, expressa na multiprofissionalidade. Para ela, a multiprofissionalidade estaria constituída pela divisão do trabalho, pelas questões referentes à autonomia desses trabalhadores e as inter-relações entre o agir instrumental e a interação processada no interior das equipes. A interdisciplinaridade estaria mais ligada à investigação científica e ao ensino acadêmico. Essa posição, que parece circunscrever a interdisciplinaridade somente ao mundo acadêmico e da pesquisa científica, é amenizada pela autora, que salienta que os campos disciplinares se apóiam e são criados somente a partir das práticas sociais, sendo delas dependentes.

A partir dessa proposição, ela nos alerta para o fato de que esses campos se operacionalizam em tecnologias que se expressam no fazer cotidiano. Assim, o trabalho em equipe multiprofissional não equivale à interdisciplinaridade, mas é uma prática que expressa a possibilidade de integração das disciplinas científicas. Desse modo, a mediação entre a bagagem do conhecimento acadêmico e a do saber prático refletido é o desafio a ser enfrentado pela multiprofissionalidade e a interdisciplinaridade, cada uma delas dentro de seu escopo, na construção de caminhos que visem abarcar as diversas dimensões do objeto em saúde.

Podemos, ainda, supor que a sobreposição de interdisciplinaridade e multiprofissionalidade se faça devido ao fato de que é no interior das equipes que se processa o alinhamento acerca da significação dos fenômenos trabalhados. Essa partilha sobre o que significa conhecer é um dos componentes do processo de trabalho e se coloca como um dos pressupostos da interdisciplinaridade.

Outra forma concebida pelos entrevistados para a interdisciplinaridade é a da integração dos profissionais e dos saberes:

- "A interdisciplinaridade é a inter-relação, troca de opiniões, discussão de casos comuns à clínica";

- "É o entrosamento de profissionais de diversas categorias. Às vezes aparece um caso, e não sabemos resolvê-lo sozinho porque não temos conhecimento de outras áreas. Quando discutimos o caso com outro profissional, ele fica tão claro! Aí a gente pensa: era só isso? Ainda bem que eu não trabalho sozinha";

- "É a interseção de diferentes disciplinas na elaboração e execução de um projeto comum. Interseção mesmo, sabe? Igual na matemática, aquela área comum. Acho que aqui isso acontece muito pouco, de forma geral. Comigo, acho que trabalhando no grupo de puericultura com a pediatra e discutindo algum caso com a equipe de saúde mental".

Ao se observar essas falas, percebemos a repetição de algumas idéias, de forma explícita ou implícita: integração, objetivo comum, partilha, alívio diante do fato de poder contar com a ajuda de outro profissional, interseção. Percebe-se que, para esses profissionais, a interdisciplinaridade seria uma forma de ampliar seus horizontes, o que permitiria o fim da visão restrita disciplinar e incluiria outras dimensões das situações trabalhadas. Para eles, o outro profissional é elemento fundamental desse processo.

Outro ponto a ser destacado é a idéia de unicidade, que faz com que os trabalhadores busquem ajuda de outros profissionais para construir uma visão mais global do objeto, o que não descaracteriza as disciplinas, mas impulsiona o profissional a obter melhor conscientização dos limites e das possibilidades de cada campo de saber e o faz ter maior abertura ao trabalho coletivo, que surge, aí, como construção imprescindível.

As profissões ligadas à área da saúde, segundo Follari (1995), constituem-se, em sua maioria, como tecnologias, por serem eminentemente práticas e poderem ser definidas "como aplicações empíricas dos elementos de conhecimento possibilitados pelas ciências". A interdisciplina é constitutiva desde o início da carreira ou após formação disciplinar. O autor acrescenta que a interdisciplinaridade, nesse campo, não poderia ser novidade e deveria se constituir como parâmetro para esses profissionais.

Cabe, ainda, destacar a abordagem de um profissional que destaca a interdisciplinaridade como interseção. Encontramos nessa fala o eco das proposições de Minayo (1991), que definem o campo da saúde como espaço no qual as questões da vida e da morte nos impulsionam a construir soluções e linguagens comuns para lidar com as angústias e os sofrimentos impostos pela existência.

Percebemos, no discurso dos profissionais entrevistados, algumas dificuldades em delimitar o tema da interdisciplinaridade. Tal fato, no entanto, não nos impossibilitou de perceber o valor que atribuem à integração dos saberes e à construção do trabalho coletivo que possibilite essa integração.

Ao indagarmos sobre a forma como ocorre o trabalho interdisciplinar nas equipes, encontramos discrepância entre os dados numéricos, que nos apontam a existência maciça de práticas interdisciplinares. 93,75% dos profissionais apontam sua existência, mas os discursos dos profissionais refletem o esfacelamento das ações, além de a idéia de interdisciplinaridade estar simplificada como o ato de encaminhar pacientes aos demais profissionais. Isso é exemplificado na fala de um profissional:

- "No programa de hanseníase existe muita interação da equipe, muito estudo e discussão conjunta; acho que é trabalho interdisciplinar mesmo! Como um todo, no centro de saúde, vejo acontecer só em alguns momentos. Falta interesse dos profissionais. Nas reuniões é sempre aquilo: chega tarde, sai cedo. É uma participação precária. Acho que falta incentivo e cobrança da Secretaria Municipal de Saúde".

No entanto, encontramos, também, nessa proposição e em outras, a vinculação da prática interdisciplinar a um projeto. Assim, de antemão, podemos supor que, nos centros de saúde pesquisados, práticas inovadoras convivem com práticas tradicionais.

Essa discrepância talvez possa ocorrer devido ao fato de que alguns profissionais de saúde pensam a interdisciplinaridade como prática de encaminhamento, o que aponta um equívoco na conceituação de interdisciplinaridade por parte deles:

- "A interdisciplinaridade ocorre quando precisamos da assistente social ou da gerência para encaminhar algum caso";

- "É muito pouco freqüente, ocorre nas conversas informais entre os colegas. Acho que falta envolvimento dos profissionais; claro que não me isento dessa crítica";

- "Ocorre quando o paciente é avaliado por mais de um profissional da equipe por um problema comum. Ocorre de forma espontânea, sem coordenação formal".

Esses profissionais apontam a informalidade como fato corriqueiro na execução das ações. Isso traz à tona a fala de outro profissional que, durante a entrevista, pontuou a dificuldade que enfrentava ao exercer essa prática, por ter que contar sempre com a "boa vontade" de outros profissionais, o que nem sempre ocorria e prejudicava o trabalho.

Percebe-se que a prática interdisciplinar não se processa só pela alocação de vários profissionais de categorias diversas em um único local de trabalho. Ela está vinculada à responsabilidade individual que advém do envolvimento do profissional com o projeto, com as pessoas envolvidas e com a instituição. Esse fato nos remete à questão, já discutida, referente ao processo de trabalho em saúde estar ainda ligado a um modelo tradicional. Peduzzi (2001) assevera que cabe ao paciente fazer a integração das ações, sendo ele levado a percorrer vários profissionais, sem que essas visitas estejam vinculadas a um projeto assistencial, uma vez que as equipes trabalham em processo de justaposição das ações, e não de integração.

Percebemos, nas posições adotadas, a omissão dos profissionais com a prática coletiva. Esse fato deve ser problematizado, pois pode revelar a tensão existente em torno da autonomia de cada agente de saúde e as relações de poder expressas nas vivências cotidianas dessas instituições. Vale, ainda, ressaltar o fato de que a prática interdisciplinar não se faz sem intencionalidade e que, dessa forma, vê-se comprometida nesse contexto. A prática interdisciplinar sempre se encontra relacionada a algum projeto. Essa idéia coincide com as entrevistas de alguns profissionais:

- "A prática interdisciplinar é visível em alguns momentos. Por exemplo, no grupo de puericultura, onde (sic) se une a psicologia e a medicina. Nesses momentos, a fala de uma completa a da outra. Já conseguimos formar um discurso único; já fazemos há muito tempo o grupo. É um trabalho que gratifica muito";

- "Às vezes, principalmente nos trabalhos em grupo, nas discussões de casos, comunicação com outros colegas dentro da unidade";

"Nas reuniões de saúde mental, quando falamos dos casos novos que chegaram na semana, é muito interessante ouvir como as escutas podem clarear o caso, e fica mais fácil também encaminhar o paciente. Acho que exige mais da gente, porque temos de nos expor mais, contar da nossa prática e até ficar exposto às críticas, mas não é isto que é formar equipe? Acho que com os profissionais de saúde mental fica mais fácil, sabemos lidar melhor, isto é, deveríamos saber trabalhar a transferência que rola nessas reuniões".

Nessas proposições, fica claro que existe desejo de fazer o trabalho acontecer por parte dos profissionais e que eles têm algo de sua subjetividade implicada nesse fazer. Os impasses e as dificuldades de cada um deles nos mostram que o trabalho interdisciplinar está sendo construído na prática diária e no repensar dessas práticas pelo grupo.

Outro dado importante, detectado na fala dos profissionais é a formulação de que, no convívio interdisciplinar, existe uma exposição maior de suas limitações e potencialidades, podendo esse convívio, ainda, ser desvelador dos conflitos e das relações de poder latentes nas equipes. Essa questão se coloca como um dos desafios da interdisciplinaridade. Podemos dizer que o trabalho interdisciplinar, por explicitar questões dessa ordem, vai trazer um quantum de angústia e de inquietações a ser trabalhado pelas equipes, sob pena de dissolução do trabalho, caso não se consiga administrá-lo.

A partir das concepções apresentadas pelos profissionais entrevistados, podemos supor que eles vivem nos centros de saúde, o que Bastide (apud Nunes, 1995) chamou de "integração multidisciplinar prática". Essa forma está muito mais ligada à pluridisciplinaridade e se faz pelo auxílio prestado por um profissional a outro, sem nível significativo de integração.

Se utilizarmos a tipologia descrita por Japiassu (1976) para entender os trabalhos apresentados pelos profissionais como interdisciplinares, podemos supor que a interdisciplinaridade ainda é embrionária nessas instituições. E a pensaremos como linear, ou seja, ainda não há ruptura total da hegemonia de determinados saberes e uma reciprocidade total entre eles. Mesmo ocorrendo dessa forma, os profissionais a reconhecem como importante e demarcam-lhe vários pontos positivos.

 

Considerações finais

O questionamento sobre a concepção da interdisciplinaridade entre os trabalhadores inseridos em equipes de saúde nos serviços estudados nos permitiu perceber os avanços e os impasses desse processo. A práxis da interdisciplinaridade deve ser considerada fundamental para a efetivação dos pressupostos estabelecidos pelo Sistema Único de Saúde. É urgente que os serviços públicos de saúde consigam criar formas de trabalho que considerem as reais necessidades dos sujeitos que os procuram, atendendo-os de forma mais humanizada, resguardando os princípios de eqüidade e integralidade (entre outros). Essa mudança, porém, que também representa disputa com o modelo hegemônico em saúde, só será possível diante da clareza da necessidade de novos projetos em saúde aos quais se alie parte dos trabalhadores como sujeitos do processo de mudança.

A construção de novos projetos não pode vir de esforços solitários dos profissionais. Ela deve ser alicerçada pelo apoio institucional, que deve possibilitar espaço de autonomia e de criatividade aos profissionais e alavancar os processos de qualificação e formação de equipes no interior dos serviços. Para isso, é necessário romper com a prática histórica de apoio ao corporativismo e inovar as práticas de gestão.

É importante perceber a equivalência que se faz entre o trabalho multiprofissional e o trabalho em equipe. Deve-se ter em mente, de forma clara, que um não se superpõe ao outro. O trabalho multiprofissional pode ser realizado, como é visível em alguns momentos da pesquisa, na qual surge de forma esfacelada, fragmentada. O trabalho em equipe implica trabalho coletivo no qual cada profissional coloca seus conhecimentos, seus sentimentos e suas expectativas em função de um objetivo partilhado. Logo, é mister que exista inter-relação entre os agentes, os usuários e o mundo vivido (sociopsíquico) e que dessa inter-relação surja um processo de produção de vínculos e de saúde.

Na pesquisa, ficou visível a percepção dos profissionais de que o objeto da saúde só pode ser abordado em um trabalho coletivo, mas ainda existem vários fatores que dificultam sua efetivação. É unanimidade, entre os trabalhadores, a importância da interdisciplinaridade para o trabalho em saúde, mas existe dificuldade em defini-la. Ela é vista como encaminhamento de pacientes de um profissional para outro, como trabalho em equipe e como integração entre os profissionais. Essa dificuldade em conceituá-la gera distorções na prática das atividades e nos levam a perceber que a ocorrência da interdisciplinaridade, nas instituições estudadas, é praticamente inexistente, exceto nos projetos específicos.

Podemos concluir que os centros de saúde deveriam se constituir em campos férteis para essa criação de novas tecnologias, vindas da práxis coletiva, se houvesse espaços de reflexão para esse fazer coletivo. Não encontramos, de forma geral, entre os trabalhadores, resistência a novas aprendizagens e ao trabalho interdisciplinar. Encontramos, sim, enorme "não saber como fazer". Essa postura nos mostra um processo de abertura em relação à hegemonia do modelo biomédico, que embasa as práticas tradicionais em saúde. Esse processo de mudança é marcado por avanços e retrocessos, pois continuam sendo embaraçados por diversos fatores. Entre eles, podemos citar a formação acadêmica fragmentada dos agentes, que não encontram, nos serviços, treinamentos que possam ajudar na integração das equipes e também na adequação de seu trabalho à realidade.

Sabemos que a interdisciplinaridade só é realizada por meio da intencionalidade, baseada no plano institucional, que pode fomentá-la com políticas e projetos, mas também, e principalmente, com o desejo de cada profissional de aderir a esses projetos e de se engajar na construção da prática coletiva. Avaliamos que a disponibilidade de cada profissional para aderir a projetos desse cunho defina a sua forma de lidar com o saber. Seu desejo de saber, seu diálogo particular com sua disciplina, sabendo-se construtor e construído por ela, irá torná-lo capaz de transitar pelos diversos saberes encontrados no interior das instituições ou o imobilizará em um saber engessado e uma prática estéril. A postura interdisciplinar exige trocas entre os profissionais e a abertura para questionar e ser questionado quanto ao respeito ao reconhecimento mútuos.

Devemos considerar, ainda, que a interdisciplinaridade não pode se constituir nos serviços de saúde como modismo ou "camisa de força" para os trabalhadores. Deve ser uma construção reflexiva coletiva que analise e problematize as práticas cotidianas e as relações de saber e de poder em seu interior a fim de construir práticas mais efetivas e formas de trabalho mais satisfatórias para trabalhadores e usuários.

 

Referências

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Endereço para correspondência
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Artigo recebido em: 14/2/2007
Versão recebida para publicação em: 6/5/2007
Aprovado para publicação em: 16/5/2007

 

 

*Psicóloga, especialista em Saúde Mental, mestre em Engenharia de Produção - UFSC e professora da UNIPAC/Contagem

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