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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.5 n.8 Barbacena jun. 2007

 

RESENHAS

 

 

Anália Tatiana de Oliveira*

Universidade Presidente Antônio Carlos - Brasil

 

 

INGLEZ-MAZZARELLA, Tatiana. Fazer-se herdeiro: a transmissão psíquica entre gerações. São Paulo: 2006. 176p. ISBN 85-7137-255-1

Tatiana Inglez-Mazzarella é pedagoga e especialista em Psicologia Clínica. Seu mestrado rendeu importante fruto, a obra Fazer-se herdeiro: a transmissão psíquica entre gerações, um estudo que certamente alcança aquilo que diversos analistas da atualidade vêm pensando como momento significativo de reestruturação teórica.

Munida de muita coragem, embasamento teórico e experiência clínica, a autora se engajou no desbravamento da mente humana. Ela propõe que, por meio da pesquisa e da experiência na clínica infantil, possa-se encontrar respostas que sustentem a idéia sobre o papel da transmissão psíquica na constituição subjetiva do sujeito.

Os questionamentos que impulsionaram a construção do pensamento da autora vêm de fontes distintas, e sua ousadia em articular as mais diversas concepções psicanalíticas não foge de sua fidelidade ao pensamento lacaniano. A escuta que temos na obra parte da relação com o paciente e sua demanda. A autora tem, por premissa, o fato de que uma teoria, por mais completa que seja, diante da dinâmica clínica, torna-se insuficiente.

A experiência de Tatiana com crianças, na clínica, ampliou sua escuta e suscitou questionamentos. O caso Bárbara serviu como ponto de partida para a idéia de herança psíquica. Bárbara é uma criança que não consegue parar de se masturbar e repete compulsivamente o sintoma que se encontra marcado na neurose de seus ancestrais, no caso sua mãe e avó materna. Tais sintomas estão presentes na constituição psíquica de Bárbara e se apresentam como entrave para sua estruturação como sujeito. Os passos da análise com essa criança são descritos detalhadamente, permitindo ao leitor se situar no terreno das descobertas da autora. Perante o atendimento infantil, a escuta deve ser constantemente trabalhada e direcionada para um discurso plurissubjetivo, ou seja, aquele em que vários discursos estão presentes em um só.

A autora percorre os caminhos freudianos e seus textos fundamentais, para conhecer o processo no qual o herdeiro maneja o material herdado, sem que seja o Outro a transmitir a herança. Esse é um trabalho psíquico que permite a diferença ou a alienação na história familiar.

As obras freudianas que utiliza permitem conhecer tanto a faceta positiva quanto a negativa da transmissão geracional: Totem e Tabu (1913-1914) fala sobre a transmissão da culpa e sobre o sujeito herdeiro do crime parricida dos ancestrais; Sobre o narcisismo: uma introdução (1914), trata da transmissão pela via narcísica; O Estranho (1919) descreve a questão do duplo.

Além desses textos técnicos, a autora utiliza trecho da autobiografia de Althusser para ilustrar a questão da transmissão do nome, elemento importante na constituição do sujeito. O preço que se paga por receber o mesmo nome pode ser alto demais; desvencilhar-se da possível perda do eu requer dispêndio subjetivo e trabalho psíquico grandioso.

Uma contundente explanação sobre a forma com que se dá a transmissão psíquica geracional é feita após os esclarecimentos que suscitaram e embasaram a escolha do tema. Para tanto, Mazzarella ampara-se em importantes temáticas da psicanálise, como a compulsão à repetição e seu papel na constituição do sujeito. Menciona as brincadeiras infantis, como o jogo do for da, que adveio da observação do neto de Freud e na qual o ato criativo infantil é postulado. O jogo é "fundamental para a diferenciação entre o eu e o não-eu, entre o eu e o outro, para a instalação do como se, no lugar do sempre é, para a abertura ao campo representacional" (p. 68).

O jogo permite o direcionamento da transmissão pela via da marca e da inscrição. A importância do elo narcísico entre pais e filhos é mencionada como investimento inicial, imprescindível para que, aos poucos, o bebê tenha imagem única de seu corpo. A autora explicita a posição inicial de objeto, o eu ideal (narcisismo primário) e o retorno da libido narcísica objetal para o eu (narcisismo secundário), em que o ideal de eu não se perde, transforma-se e permanece no sujeito adulto, contendo em si as marcas herdadas. Aqui, encontra-se imbricada a compulsão à repetição.

Mazzarella percorre os caminhos da discriminação entre o positivo e o negativo da transmissão, nos quais estão em jogo os conteúdos transmitidos, o não dito, os traumas infantis e os recalcamentos.

Premissa importante na obra é descrita pela autora, ao mencionar que o sujeito também é responsável pelo que é. Fazer-se herdeiro traz uma citação de Goeth feita por Freud: "aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu" (p. 81). A citação nos remete ao que caracteriza a posição de cada subjetividade em processo de constituição, em poder transformar a herança psíquica em algo próprio.

O interesse da autora pela forma negativa da transmissão psíquica geracional é prerrogativa máxima na obra. Ela dedica um capítulo inteiro ao estudo aprofundado dos caminhos que favorecem a alienação psíquica.

Na transmissão do negativo, opera aquilo que não pode ser contido, o que não se retém, o que não se lembra; o que não encontra inscrição na vida psíquica dos pais e/ou das gerações precedentes e que vem depositar-se ou enquistar-se na psique da criança: a falta, a doença, o crime, os objetos desaparecidos sem traço nem memória, pelos quais não se realizou trabalho de luto e, na maioria das vezes, dos quais nem se falou. Assim, o que não se pode pôr em palavras nas situações de excesso, sejam elas pulsionais ou da ordem da realidade, fica aprisionado no retorno da coisa sob a égide da repetição (p. 86).

Lacan, Maria Torok e Nicolas Abrahan são nomes fundamentais na bibliografia da autora, para esclarecer conceitos como identificação, introjeção e incorporação, articulá-los com a repetição como insistência da cadeia significante ou como insistência de algo que nem está nela. Os trabalhos desses autores são utilizados para falar daquilo que é estruturante e do que é patológico na relação com o transmitido.

Tendo como pano de fundo três casos clínicos, a dimensão do segredo é abordada para falar do não-dito. O segredo é importantíssimo elemento da transmissão psíquica geracional. Ele atravessa gerações e as relações parentais, diferencia o segredo não-dito do proibido de dizer e do inominável, aquele que se encontra fora do registro do inscrito, que não pode ser simbolizado, sendo o segredo o ponto de alienação do sujeito.

A obra traz um ensinamento importante. O questionamento da análise com crianças deve ser feito no limiar do sintoma: quem carrega os sintomas de quem, os pais ou os filhos? Podem estar envolvidos na análise sintomas transgeracionais?

Entre filmes, trechos de livros e trabalhos, a autora utiliza recursos para falar da dimensão do indizível diante de catástrofes e de horrores como o nazismo. Em tragédias como essa, temos retratada a insuficiência das palavras para lidar com o que foi vivido. É dada atenção para a dimensão simbólica, que é somente o "que possibilita ao ser humano sair de uma posição passiva ou fascinada diante do absoluto" (p.146).

O estudo se completa, como toda boa pesquisa. Mazzarella coloca a importância do tema para a atuação na clínica. O conhecimento a respeito da transmissão psíquica geracional é um instrumental a mais para a escuta analítica. O objetivo é possibilitar ao sujeito uma escuta que lhe permita chegar a um ponto de diferenciação das gerações anteriores e devolver a ele, por meio de uma potencialização subjetiva, possibilitada pela análise, a capacidade de separar o que é dele e o que é do outro.

A obra é de grande relevância tanto para o profissional como para o acadêmico. Ela trata daquilo que deve ser pensado e trabalhado na contemporaneidade; trata-se de nova forma de articulação teórica que atende as necessidades subjetivas sem perder as raízes dos referencias que sustentam a visão masculina da autora.

O livro não ensina a arte de escutar, já que ela é um método próprio, não ensinado, mas pode ajudar a apurá-la. O livro possibilita direcionar a escuta para além do que é dito, além das palavras e das gerações, para conhecer, estudar, atuar e possibilitar as escolhas de cada sujeito que tece sua própria maneira de ser herdeiro.

 

 

*Aluna do 7º período de Psicologia da UNIPAC/Ubá

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