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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.5 n.9 Barbacena nov. 2007

 

ARTIGOS

 

Imperativo de gozo e propaganda no laço social da sociedade de consumo1

 

Imperative of enjoyment and propaganda in the social tie of the consumer society

 

 

Conrado Ramos*

Universidade Paulista - Brasil
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Propõe-se que a sociedade do consumo produz um saber sobre o gozo que afirma a alienação narcísica. Como laço social, a propaganda encontra sua eficiência como fiadora desse saber que aliena o outro no fazer que se repete no ato de consumo. Discute-se o sentido contemporâneo do "valor de troca", questionando-se o quanto ele deixa de ser um "atributo da coisa" para ser a própria coisa: a "troca-valor" produzida no ato coisificado, como atributo de si mesmo, abstraído de qualquer objeto. Dentro dessa compreensão, a propaganda é situada como rede cultural de distribuição de "matrizes fantasmáticas" enquanto a "troca-valor" e o consumismo são compreendidos como atos por meio dos quais se dão as satisfações sexuais neuróticas recortadas nas montagens de gozo culturalmente compartilhadas pela propaganda.

Palavras-chave: Sociedade de consumo, Propaganda, Gozo, Laço social, Indústria cultural.


ABSTRACT

We propose that consumer society produces a knowledge concerning enjoyment that affirms narcissistic alienation. As a social tie, advertising finds its efficiency as a cosigner of this knowledge that alienates the other in doing what is repeated in the act of consumption. The contemporary meaning of "exchange value" is discussed, questioning how much it stops being a "thing's attribute" and becomes the thing itself: the "value-exchange", produced in the reified act, as its own attribute, removed from any object. Within this understanding, advertising is positioned as a cultural network for the distribution of "fantasmatic matrixes" whereas "value-exchange" and consumerism are understood as acts through which neurotic sexual satisfaction is derived in the staging of enjoyment that is culturally shared by advertising.

Keywords: Consumer society, Advertising, Enjoyment, Social tie, Culture industry.


 

 

A propaganda e o saber sobre o gozo como fixação alienante do sujeito

Em nossas investigações atuais sobre as relações entre o imperativo de gozo e a indústria cultural, deparamo-nos com a propaganda, em especial a de televisão, como uma montagem que confere ao laço social um atributo da perversão, qual seja, a sustentação de um saber de gozo. Frente a isso, neste artigo, defendemos que a sociedade do consumo produz um saber do gozo, não um saber como meio de gozo, mas um saber sobre o gozo que afirma a alienação narcísica e oculta, dialeticamente, que o que não se sabe é que se goza na ideologia contemporânea sustentada pela indústria cultural. Isso traz como problema o fato de que, embora se saiba o quanto a indústria cultural é ideologia, desconhece-se o quanto e como nela se goza, levando-se a afirmações de uma adesão cínica à sociedade de consumo ou a articulações que propõem uma cultura narcísica cuja base recai sobre uma concepção monadológica do indivíduo. Ainda que tais articulações com o narcisismo, pensado a partir do conceito de indivíduo, tragam importantes contribuições para o esclarecimento da dominação social sofrida pelo particular, encontramos como obstáculo para o avanço das investigações a concepção de um eu centrado na idéia freudiana de percepção-consciência e responsável pelo ajustamento do indivíduo à sua realidade subjetiva. Essa compreensão de indivíduo confere ao eu uma posição, ao nosso ver, problemática, que acaba levando à lógica de enfraquecimento/fortalecimento do eu, que esbarra em noções de autonomia e centralidade questionadas pela própria psicanálise. Pensamos, assim, em investigar os mecanismos de dominação do particular, amparados nos conceitos lacanianos de sujeito e de laço social.

Retornando agora à idéia de um saber de gozo, vale dizer que encontramos (RAMOS, inédito), em comerciais de televisão, formulações discursivas que regulam o gozo a partir do suposto saber do consumidor: "Tang: mãe sempre sabe", "Sundown: deixa o sol do seu jeito", "Recreio: a diversão joga do seu lado"2. Por trás do imperativo "Compre!" perpassa a mensagem "você sabe o que quer!", o que leva à concepção de Adorno e Simpson (1994) de pseudo-individuação:

Por pseudo-individuação entendemos o envolvimento da produção cultural de massa com a auréola da livre-escolha ou do mercado aberto, na base da própria estandardização. A estandardização de hits musicais mantém os usuários enquadrados, por assim dizer, escutando por eles. A pseudo-individuação, por sua vez, os mantém enquadrados, fazendo-os esquecer que o que eles escutam já é sempre escutado por eles, 'pré-digerido' (p. 123).

A propaganda, ao nosso ver, "implanta" no outro uma convicção de tal forma sobre o saber de seu gozo que o leva à ação imediata e irrefletida, isto é, ao consumo. Como laço social, a propaganda encontra sua eficiência como fiadora do saber do gozo do outro: ela garante esse saber que aliena o outro no fazer e que se repete no ato de consumo. Tudo o que é oferecido pela propaganda aparece envolto pela aura do "é isto o que você sempre quis". Um produto novo exige, assim, um novo saber gozar, ficando aquele que resiste ao consumo taxado com "você não sabe o que é bom". Há sempre a produção de uma justificativa para o consumo: o porquê trocar de carro duas vezes no mesmo ano, o porquê comprar uma terceira televisão, o porquê comprar novas roupas, mesmo com tantas ainda não usadas, o porquê experimentar a nova marca ainda gostando da antiga, o porquê trocar de marido pela quarta vez, o porquê sair com "outras" mulheres, enfim: o porquê do fazer do "a mais", do excesso e da exceção "uma regra".

O gozo do consumo vem sempre acompanhado de justificativas que, muitas vezes, não são anteriores ao ato de compra, mas precisam vir como "saberes" que legitimam, a posteriori, o gozo, naturalizando a compulsão ao consumo e tranqüilizando o sujeito. São explicações utilizadas para sustentar o gozo e não como meios ou causas dele. Por sua condição de "desculpa", de "pretexto" para o gozo, o "saber sobre o gozo" deve ser compreendido não como causa, mas como produto da sociedade de consumo, isto é, como aquilo que é construído para sustentar o gozo não como um "eu sei por que faço" (pois é na razão oculta do fazer, isto é, na fixação narcísica, que compreendemos situar a dimensão alienante desse fazer), mas como um "eu sei, porque faço", ou ainda: "faço, logo sei" (isto é, um saber condicionado pelo fazer do gozo - racionalização como falsa consciência, sem que o próprio gozo possa ser condicionado a um saber, ou seja, à razão como consciência). Assim, esse saber como "cinismo" não vem separado da culpa (como propõe SAFATLE, 2005), mas está secretamente associado à ela, na medida em que na sociedade do consumo são construídos saberes para que a promessa de gozo não perca sentido, o que ameaçaria com o desvelamento do imperativo de gozo, seu esvaziamento e a queda da máscara ideológica.

O saber "cínico" sobre o gozo atende ao imperativo, uma vez que a ausência de sentido da promessa de gozo e o não-gozar levariam o sujeito à confrontação direta do supereu e, possivelmente, à transformação social. Essa dinâmica funda no "não saber sobre o gozo" não só a crítica, mas o mal-estar da sociedade do consumo: é apenas quando perde o sentido (quando cai seu saber) que a repetição do ato de compra se revela em sua compulsão e como sintoma. Paira na sociedade do consumo, em cada indivíduo, a desconfiança de que não se precisa daquilo que se compra e de que, portanto, as pessoas são levadas a comprar. Os inevitáveis dilemas "por que comprei? / por que não comprei?", "por que comi /por que não comi?", "por que gastei? / por que não gastei?" apontam a encruzilhada alienante em que o sujeito, posicionado como consumidor, tem que lidar, por um lado, com uma resposta ao Outro que lhe dita o gozo e com a ideologia que sustenta a sociedade do consumo e, por outro, com a inadequação radical e mal adaptada de seu desejo e a conseqüente queda da posição de "consumidor".

Sem a produção de um saber gozar, o dever gozar não se sustentaria a ponto de transformar o consumo no significante-mestre de uma sociedade. Assim é que, em nossos dias, vemos proliferar a produção de saberes de gozo, dos livros de auto-ajuda às dicas de conquista dadas pelas revistas femininas, dos comerciais de cerveja à divulgação de substâncias para ter o corpo perfeito, da música gospel ao estimulante e ao anti-depressivo, tudo sustenta a promessa de felicidade pelo prazer para quem "sabe o que quer". Há sempre alguém vendendo o verdadeiro caminho para a satisfação, seja pela via do misticismo ou da ciência. Mais importante que os objetos para gozo é o saber sobre ele que é produzido e vendido na sociedade do consumo (por meio do marketing e da propaganda), saber que aparece na forma da promessa, conforme tantas vezes observado por Horkheimer e Adorno (1991, p. 130) em relação à indústria cultural:

A indústria cultural não cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está continuamente a lhes prometer. A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é prorrogada indefinidamente: maldosamente, a promessa a que afinal se reduz o espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado deve se contentar com a leitura do cardápio. Ao desejo, excitado por nomes e imagens cheios de brilho, o que enfim se serve é o simples encômio do quotidiano cinzento ao qual ele queria escapar.

 

Do valor-de-troca à troca-valor: transformações do fetiche na sociedade do consumo

Severiano (1999, p. 76-7) chama a atenção, de modo bastante lúcido, para uma certa tendência, presente já em Baudrillard, de compreender a abstração das relações capitalistas de produção e de comércio - representada pela emergência da "marca" como identidade do objeto de consumo - como uma autonomização sígnica do objeto. Por essa compreensão, de modo equivalente à lógica estruturalista da linguagem, um objeto de consumo adquiriria seu significado e seu valor na diferença com os demais produtos e segundo um código hierarquizado de significações. Concordamos com Severiano (1999, p. 77) quando diz:

Acreditamos que o que ocorre é uma pseudo "autonomização" do signo por motivos ideológicos. Defendemos aqui a tese de que o objeto, em sua forma sígnica, contemporânea, não está, em absoluto, livre das determinações anteriores. Nele, todas as etapas do desenvolvimento do sistema capitalista, que apontamos anteriormente, estão incluídas; todas as significações históricas estão presentes. Não desapareceram, estão simplesmente "ocultas". O signo, na realidade, não passa da abstração última de um modelo geral do sistema que vai desde a concreção (valor de uso - formas pré-capitalistas), passando pelo valor de troca ("capitalismo de mercado"), até a sua forma sígnica mais abstrata (valor signo - "sociedades de consumo"). O esquecimento dos níveis anteriores é o que transforma o signo em simulacro: ausência absoluta de qualquer determinação. Dupla fetichização, em que são ocultadas a história do objeto e a do sujeito.

Na autonomização sígnica das marcas, isto é, no "valor-signo", uma vez que sentidos e valores surgem das próprias relações entre as marcas, os processos histórico e de produção capitalista dos objetos e das marcas, com todas as relações sociais envolvidas, ficam ideologicamente ocultados. Quando a esfera da produção de valores fica ideologicamente circunscrita à dimensão simbólica, torna-se fácil compreender o poder do discurso da propaganda que tem, como premissa de sua eficiência, o manejo e a articulação de símbolos no âmbito da lei e do saber sobre o gozo e de seus efeitos no desejo do consumidor. A eficiência da propaganda, assim, não deve servir como demonstração e afirmação da autonomia sígnica do objeto do consumo, mas sim como a preocupante confirmação da força ideológica dessa aparência simbólica da sociedade do consumo, da qual se removeu a possibilidade de compreensão das mediações e determinações materialistas.

O fetichismo do período pré-capitalista, ao colocar-se na relação entre os homens e não na forma mercadoria, sustentava sobre o senhor uma aura que garantia a dominação de modo explícito. A relação de poder pré-capitalista caracterizava-se pela submissão dos súditos/escravos ao senhor pelo cerceamento da liberdade que, sem precisar ser ocultado, era, no entanto, ideologicamente legitimado pelo poder conferido ao senhor como se lhe fosse mais um de seus atributos naturais (e, por causa disso mesmo, fetichizado). Quando do estabelecimento da forma capitalista de produção e a desmistificação das relações sociais, supostamente "livres", entre os donos dos meios de produção e os vendedores da força de trabalho, o fetichismo deslocou-se para a forma mercadoria e as relações de dominação foram ocultadas com as relações entre os homens transformando-se em relações entre coisas, o que inaugura, por assim dizer, o terreno propriamente marxiano da ideologia (ZIZEK, 1996).

Em nossos dias, com a promessa da sociedade do consumo de suspender o adiamento da satisfação, por tanto tempo sustentado pela civilização em nome de seu desenvolvimento, a busca de satisfação adquiriu uma positividade moral, ao mesmo tempo em que o acesso ao objeto descobriu, no lugar deste, uma negatividade construída historicamente pela própria estruturação da forma-mercadoria como o véu do fetiche que se interpõe entre o sujeito e o objeto do consumo em sua alteridade. Ali onde o fetiche falha com a abertura para a insatisfação diante da imposição do gozo, a ideologia cai e a dominação aparece em seus mecanismos e intenções. No entanto, a impotência imposta pela totalidade ao particular transforma a adesão ao sistema que o sacrifica na única saída ainda possível.

Houvesse satisfação de fato, a civilização teria alcançado sua utopia; houvesse um gozo suficientemente administrado, a sociedade permaneceria numa condição temporária de equilíbrio, mas mantida num estado de falsa consciência. A insatisfação resultante da promessa de felicidade que já se diz realizada, mas não se sente cumprida, talvez seja o que resta de resistência do particular, isto é, aquilo que faz despontar o que há de ideológico na promessa (imposição) de felicidade (gozo), recolocando em movimento a contradição existente entre o desejo do sujeito e as necessidades do capital.

Diante dessa circunstância, a crítica deve orientar-se no sentido de politizar a insatisfação e tomá-la como suporte material das tensões vigentes entre totalidade e particular esclarecendo, por meio dela, que a adesão do indivíduo à ideologia explícita não é uma "reconciliação cínica", mas um ato defensivo ou, nos termos de Horkheimer e Adorno (1991), um sacrifício para a autoconservação. A politização da insatisfação não pode ser compreendida desse modo, sem que se leve em conta a dimensão histórica que permite o entendimento dos processos de construção das fetichizações compartilhadas num dado momento de uma sociedade.

Também na esfera do sujeito é o tempo e a história o que pesam sobre o objeto em sua forma mercadoria, tirando-o de sua abstração fetichista atemporal e transcendental para colocá-lo de novo em sua materialidade degradante, fungível e limitada. É no tempo que o uso e o gasto do objeto faz com que ele se descole do seu lugar fálico, explicitando a armadilha significante na qual se enredou o desejo do sujeito. O consumo destrói o objeto como suporte da função fálica e fonte do gozo, carecendo sua rápida substituição. Há algo de serial killer no consumidor compulsivo, assim como há algo de consumidor compulsivo no serial killer: em ambos há uma distância temporal entre o traço que se consome e a materialidade do objeto portador - a eternidade do primeiro emerge justamente da fungibilidade do segundo. A eternidade do inesgotável objeto sublime só pode materializar-se na contínua substituição ordinal do efêmero como portador. Nas palavras de Zizek (1996, p. 303):

Tocamos aí num problema não solucionado por Marx, o do caráter material do dinheiro: não da matéria empírica e material de que o dinheiro é feito, mas do material sublime, daquele outro corpo "indestrutível e imutável" que persiste para além da degradação do corpo físico - esse outro corpo do dinheiro é como o cadáver da vítima sádica, que suporta todas as torturas e sobrevive com sua beleza imaculada.

Entretanto, se podemos pressupor que se encontra na insatisfação do consumidor e na fungibilidade do objeto o apoio substancial à crítica do fetichismo em sua forma mercadoria, precisamos questionar em que medida a forma mais abstrata e avançada alcançada pelo valor no mundo capitalista, a marca, não representa, inversamente e segundo a teoria freudiana, a experiência mais regressiva de fetichismo na cultura. O atual fetichismo do objeto de consumo nos remete aos banquetes totêmicos e ao fetichismo canibalista tal como Freud (1988 [1913]) os considerava, isto é, assim como se acreditava assimilar a coragem do guerreiro inimigo alimentando-se dele, ou reatar laços totêmicos pelo banquete do animal expiatório, hoje cremos que o consumo/uso de certos objetos nos trarão características particulares reconhecidas e valorizadas pela comunidade, tais como liberdade, poder de sedução, beleza etc. Além disso, certos produtos são bastante representativos quanto ao significado grupal que apresentam, marcando não só a identidade particular, mas servindo de garantia simbólica de pertinência a uma dada coletividade. No entanto, não podemos nos deixar enganar pelo caráter "totêmico" ou pseudocoletivo dos objetos de consumo, pois, conforme afirma Severiano (1999, p. 151):

Diferentemente das instituições militares ou religiosas, exemplificadas por Freud, que, de alguma forma, davam a "ilusão" de amar e proteger "igualmente" os seus membros, fornecendo-lhes prescrições e normas de conduta para os integrantes destes grupos, a ideologia do consumo, apesar de "paparicar" seus membros, prometendo-lhes a realização plena de seus ideais, os interpela isoladamente. Tal peculiaridade é de extrema importância: a ideologia do consumo, expressa na publicidade, não exige compromisso social, não há feitos a realizar, em comum, por seus membros, sua única exigência é a adesão.

Se a dimensão da produção de valor na sociedade capitalista contemporânea não responde mais exclusivamente à esfera do produto industrial em si, mas também à administração da comunicação e do marketing - o que transfere o enfoque da propaganda para o consumidor e não para a produção (FONTENELLE, 2002, p.161) -, devemos questionar o quanto a própria esfera da produção não foi transformada. Segundo Fontenelle (2002, p. 167-8):

[...] na análise da forma-mercadoria Marx deixou claro como sua grandeza de valor era determinada pelo tempo de trabalho. Na nova forma de produção, segundo Cocco, não importa mais o tempo de trabalho, mesmo porque não é o trabalho imediato que interessa. Como não há mais o trabalho padronizado da era fordista, pelo menos no que se refere aos aspectos fundamentais da geração de valor, "a categoria clássica do trabalho produtivo aparece em toda a sua insuficiência". A nova atividade produtiva passa a se estruturar em torno de uma série de relações estabelecidas nas várias fases que compõem a "economia da informação", nas quais o que conta, fundamentalmente, é o trabalho conceitual e interativo, ou seja, inserido em redes de informação, nas quais o próprio "consumo da rede cria riqueza, a transação se transforma no produto".

Encontramos nesse trecho dois elementos de extrema importância para as considerações que estamos desenvolvendo. O primeiro deles diz respeito à idéia de que "o que conta, fundamentalmente, é o trabalho conceitual e interativo", que dá à propaganda (associada à esfera da administração) um papel de elevada relevância na produção do valor: "o marketing tem tudo a ver com a criação de valor na mente dos consumidores" (ZYMAN, apud FONTENELLE, 2002, p. 162). A propaganda, o marketing e a administração se consolidam, assim, como instituições de forte participação na esfera da produção da sociedade do consumo, produção na qual o que conta "é o trabalho conceitual e interativo" de "criação de valor na mente dos consumidores"; em suma, o que viemos chamando de produção do "saber sobre o gozo".

O segundo elemento de importância no trecho acima citado é aquele que nos remete à transação transformada no produto. Para facilitar o entendimento do que propomos, imaginemos a seguinte cena que consideramos paradigmática dos deslocamentos do fetiche na sociedade contemporânea: "dois grandes empresários se encontram e um deles revela seu abatimento e preocupação por ter recebido uma nota falsa (xerox) de US$ 100. O colega, então, oferece uma nota de US$ 100 verdadeira em troca da falsa. Após a troca, o primeiro empresário, perplexo, questiona o gesto aparentemente generoso e enlouquecido do segundo empresário que, ao misturar a nota falsa ao seu maço de notas verdadeiras, responde: 'vou passar para frente, pois não precisa ser verdadeira; basta parecer com uma nota, é isso que importa'"3.

Essa cena aponta a queda do dinheiro como fetiche: o dinheiro perde, como propriedade sua, uma certa "singularidade mágica", como sendo um objeto com atributos próprios independentes das relações que o sustentam. Passa a ser percebido justamente a partir de tais relações.

Porém, surge a questão: isso não revela um deslocamento do fetiche do objeto dinheiro para o próprio ato de troca? O segundo empresário do exemplo dado não pressupõe, justamente, que o que vale é a troca como ato que possui sua própria lógica fetichizada, como se carregasse em sua realização atributos que lhe são próprios e, por isso, independentes das relações e dos objetos que a sustentam?

A troca aparece, aqui, como dado inquestionável e independente, que domina os atores e os objetos que a sustentam e não o contrário, o que dá ao objeto um caráter coadjuvante; ao ato um sentido performático e aos atores o aprisionamento da encenação (daqueles que sabem que há uma distância, uma "fratura de falsidade" entre o que fazem e o sentido do que fazem, mas, mesmo assim, não têm escolha: fazem-no).

Esse deslocamento do fetiche, do objeto para o ato, não vem justamente na esteira da "desmaterialização" do capitalismo? Não haveria correspondência entre o deslocamento do fetiche da mercadoria para o ato de troca e a passagem da ideologia do "saber" para o "fazer" (ZIZEK, 1996)?

O "valor de troca" deixa de ser um "atributo da coisa", garantidor do fetiche da mercadoria (como aquilo que lhe pertenceria para além das relações que a produzem) para ser a própria coisa: a "troca-valor", produzida no ato, coisificado em si mesmo, como atributo de si mesmo, abstraído de qualquer objeto. Desse modo, a dimensão fetichizada da troca se produz no deslocamento metonímico "inserido em redes de informação, nas quais o próprio 'consumo da rede cria a riqueza, a transação se transforma no produto'" (S S' S'' S'''...): a "troca-valor", assim como o sujeito, produz-se nos intervalos, está em "" e não nos "Ss".

Ao nosso ver, o "valor-signo" como suporte narcísico da adesão imediatista ao consumo oculta não mais apenas a fetichização do objeto, mas também a da própria troca, na sociedade do consumo. A "experiência da marca" (FONTENELLE, 2002), mediada pelo saber sobre o gozo produzido pela propaganda corresponde, assim, à dimensão ideológica e narcísica daquilo que vem legitimar, explicar e justificar o consumismo e afirmar como única saída possível, por decorrência, aquela que leva à pseudo-individuação, à falsa liberdade da pretensa diversidade de estilos, à acumulação do capital e à dominação da subjetividade por meio não apenas da produção de objetos idealizados, mas cada vez mais pela administração do gozo com o ato de troca. Com o avanço das tecnologias de produção, o investimento pulsional do objeto, pelo prazer material que ele proporciona, implica um "ponto de basta" temporário à troca. É preciso que a troca acompanhe o ritmo da produção: "desinvestir" o objeto para investir num "valor-signo" (marca) que promete um gozo narcísico e só se realiza de modo efêmero pelo ato de aquisição do objeto para logo dele se descolar, como uma obsolescência programada, e empurrar a outro ato. Compreendemos que essa dinâmica contém as relações topológicas e econômicas necessárias à aceleração do consumo como meio de gozo do sujeito adequado à sociedade contemporânea, marcada pelo capitalismo "desmaterializado" e pela cultura do descartável, isto é, a cultura da "troca-valor".

 

A propaganda como montagem perversa

Para Calligaris (1986, p. 33), "o neurótico é estrábico: seu olhar divide-se entre o medo e a fascinação que lhe inspira o gozo do Outro, por um lado, e, por outro, a esperança perversa". Isso nos leva a pensar que o imperativo de gozo "utiliza-se" do "estrabismo" neurótico, ou seja, de sua "esperança de ser perverso", que é a esperança de apropriar-se do saber do gozo do Outro. Em sua aproximação da perversão, o saber do gozo é reduzido a um saber instrumental sobre o "bom uso" do instrumento (falo imaginário). Nas palavras de Calligaris (1986, p. 35):

[...] Mas o que a clínica nos mostra é que este saber do qual o sujeito se apropria é o saber sobre o bom uso de um instrumento. Algo que, de certa maneira, aparece no fetichismo, mas não somente aí. Nesse quadro aproximativo do que seria a perversão, o saber sobre o bom uso de um instrumento - é claro que o saber em si é instrumental -, podemos escrevê-lo assim: à demanda imaginária do Outro responde um saber instrumental e um instrumento do qual o saber conhece o bom uso.
Por que escrevo +φ, na álgebra lacaniana? Porque trata-se, de fato, de um valor fálico, mas instrumental, positivo e imaginário. Escrevo +φ1 e +φ2 para dizer saber e instrumento, para distingui-los. É uma distinção bastante arbitrária, já que o saber mesmo é instrumental.

O que o neurótico produz, sob o imperativo de gozo, é esse saber instrumental, dominado pela racionalidade tecnológica sobre o bom uso do instrumento, cujo lugar é socialmente preenchido pela mercadoria-fetiche.

Mas nesse ponto devemos nos perguntar: afinal, o que é a esperança de ser perverso?

Evidentemente é a esperança de dominar o gozo do Outro, de se apropriar do saber que o neurótico supõe no lugar terceiro, pois, se eu disponho do saber do pai, do ao menos um que saberia como dominar o gozo do Outro, posso, portanto, produzir este gozo sem perder-me aí ou oferecer-me como objeto real (CALLIGARIS, 1986, p. 35).

Na medida em que o objeto fetiche escapa ao neurótico diante do desejo do Outro, sua ilusão (e seu gozo) se sustenta na repetição da "apropriação do saber terceiro", o que implica a montagem perversa:

Um semblante de gozo do Outro bem sucedido e dominado graças a uma tal montagem, isto é, graças ao fato consumado em vários, distribuindo entre estes vários o saber sobre o bom uso do instrumento que são eles próprios, um tal semblante para o neurótico não tem preço. Esta formação perversa tem uma vantagem a mais, um efeito de obscuridade a mais, porque faz apagar, para os que nela estão presos, a face obscena do Outro. E de que maneira a apaga? Fazendo da montagem entre semelhantes uma figura do Outro. Estamos juntos para dominar o gozo de um Outro que não é outro senão nosso próprio funcionamento conjunto. É por isso, aliás, que uma tal montagem requer sempre mais, não podendo ir senão em direção a um funcionamento cada vez mais perfeito. É por isso que esta montagem é abstrata, pois é o funcionamento o que conta (CALLIGARIS, 1986, p. 37-8).

Se a montagem perversa leva ao apagamento da face obscena do Outro, quando bem sucedidas, as montagens compartilhadas na sociedade de consumo produzem a escotomização do próprio imperativo do consumo, fazendo do "aparato da produção dominante" uma grande montagem entre semelhantes que figura um Outro: "estamos juntos para dominar o gozo de um Outro que não é outro senão nosso próprio funcionamento conjunto".

Nas palavras de Zizek (1991, p. 162):

Que há de obsceno nisso? Poderíamos dizer que o obsceno é precisamente o fato de gozar na própria forma, no que deveria ser apenas a forma neutra, livre de qualquer gozo. Tomemos o caso do edifício ideológico autoritário (do fascismo) que se sustenta num imperativo puramente formal: temos de obedecer porque temos, e não devemos formular pergunta sobre as razões dessa obediência, ou, em outras palavras, devemos renunciar a qualquer gozo, devemos sacrificar-nos sem ter o direito de saber com clareza o sentido desse sacrifício - o sacrifício é em si seu próprio fim, e é nisso que a renúncia ao gozo produz por si só certo mais-gozar. O caráter intrinsecamente obsceno do fascismo prende-se a que ele nos deixa ver diretamente a forma ideológica como seu próprio fim, isto é, como algo que, no final das contas, não serve para nada (a definição lacaniana do gozo): o gozo com a forma surge aí diretamente. Em termos exemplares, basta lembrar esta resposta de Mussolini à pergunta 'qual é o programa a título do qual os fascistas pedem para governar a Itália?': 'Nosso programa é muito simples: queremos governar a Itália.'

Ou, nas palavras de Horkheimer e Adorno (1991, p. 87):

A estrutura arquitetônica própria do sistema kantiano, como as pirâmides de ginastas das orgias de Sade e os princípios das primeiras lojas maçônicas burguesas (a imagem cínica que a espelha é o rigoroso regulamento da sociedade de libertinos das 120 journées) anuncia uma forma de organização integral da vida desprovida de todo fim tendo um conteúdo determinado. Mais do que o prazer, o que parece importar em semelhantes formalidades é o afã com que são conduzidas, a organização, do mesmo modo que em outras épocas desmitologizadas, a Roma dos Césares e do Renascimento, ou o barroco, o esquema da atividade pesava mais do que seu conteúdo. Nos tempos modernos, o esclarecimento desligou as idéias de harmonia e perfeição de sua hipostasiação no além religioso e, sob a forma do sistema, deu-as como critérios às aspirações humanas. Depois que a utopia que instilara a esperança na Revolução Francesa penetrou - potente e impotente - ao mesmo tempo na música e na filosofia alemãs, a ordem burguesa estabelecida funcionalizou completamente a razão. Ela se tornou a finalidade sem fim que, por isso mesmo, se deixa atrelar a todos os fins. Ela é o plano considerado em si mesmo.

Pois bem, de modo sintético, compreendemos, juntamente com Poli (2004), que o laço social deve ser pensado tendo como referência o complexo de Édipo, como a atualização, para cada sujeito, da cena fantasmática que compõe sua neurose:

As relações sociais, também - da mesma forma que os neuróticos tomados individualmente -, organizam-se em torno de um fantasma que recorta seus limites na referência a um ideal fálico, que representa de modo positivo o pai morto e um objeto de gozo interditado, o corpo materno. Sua expressão superegóica - o herdeiro do complexo de Édipo - não deixa espaço para engano: o ideal é aí designado como Lei e o gozo interditado se precipita no objeto, representando-o como dejeto (POLI, 2004, p. 52).

Concluímos, assim, que na sociedade do consumo o imperativo do gozo consumista representa o ideal "designado como lei", enquanto o fetiche da mercadoria responde como o gozo interditado que "se precipita no objeto". De um lado, podemos encontrar a dimensão invocante e fálica que se opera na cadeia significante e se articula com o plano da ideologia (do ideal como lei) de outro lado, temos a dimensão do objeto (a), que se opera na esfera das pulsões e se articula com o plano da alienação. Dentro dessa compreensão, a propaganda pode ser situada como rede cultural de distribuição de "matrizes fantasmáticas" (montagens perversas de gozo) enquanto a "troca-valor" e o consumismo podem ser compreendidos como sintomas sociais, ou seja, como atos por meio dos quais se dão as satisfações sexuais neuróticas desenhadas e recortadas nas montagens culturalmente compartilhadas pela propaganda.

 

Referências bibliográficas

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FONTENELLE, Isleide Arruda. O nome da marca: McDonald's, fetichismo e cultura descartável. São Paulo: Boitempo Editorial / FAPESP, 2002.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Rua Abílio Soares, 932, Paraíso. São Paulo - SP. 04005-003
Telefone/fax: (11) 3887 0781
E-mail: conrado_ramos_br@yahoo.com.br

Artigo recebido em: 19/9/7
Aprovado para publicação em: 5/10/7

 

 

*Psicanalista, Pós-Doutorando do Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC/SP, Doutor em Psicologia pela USP, Coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Psicologia e Educação da UNIP.
1Este artigo faz parte de nosso projeto de pesquisa, no estágio de Pós-Doutorado, no Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC/SP, sob supervisão do Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho.
2Podemos encontrar, nos slogans dos comerciais de TV, um discurso de regulação social do gozo que pressupõe um saber gozar: "A sua melhor diversão", "O sol na sua medida", "Mexa-se e pegue a sua". Há sempre a afirmação do direito de gozo, mas não de um gozo qualquer e sim de um gozo regulado, seja por limites de escolha, medida ou quantidade: em "Mexa-se e pegue a sua" fica implícito que há a dos outros, aguardando por eles, desde que se mexam também; trata-se de uma imagem da sociedade do excedente (sociedade afluente), pois está garantido que há mercadorias para todos, que todos têm direito a elas e que todos sabem o que querem, bastando o "movimento" que consiste nas regras do mercado. Encontramos, assim, a fixação nas posições alienantes de gozo como contrapartida subjetiva do imperativo de gozo como ideologia da sociedade do consumo (RAMOS, inédito).
3Este exemplo foi apresentado pelo Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho, em reunião de 16/3/2007, no Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC - SP, justamente para promover discussão sobre as transformações do fetichismo na sociedade capitalista contemporânea.

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