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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.5 n.9 Barbacena nov. 2007

 

ARTIGOS

 

A constituição dos laços na família em tempos de individualismo

 

The constitution of loving bonds in the family in times of individualism

 

 

Maria Consuêlo Passos*

Universidade São Marcos - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo discute-se a constituição dos laços afetivos na família, com ênfase nas transformações que vêm sendo processadas, hoje, nesse espaço. Verifica-se que em tempos de individualismo exacerbado as relações eu-outro têm se tornado cada vez mais utilitaristas, o que repercute na parentalidade e, conseqüentemente, no processo de subjetivação dos filhos. Nesse contexto, as referências são cada vez mais nebulosas e vulneráveis, dificultando os investimentos no interior do grupo familiar. Sugere-se ainda, no texto, uma visão mais flexível que permita refletir as várias formas de ser família, para além do modelo patriarcal.

Palavras-chave: Família, Parentalidade, Laços afetivos, Individualismo, Subjetividade.


ABSTRACT

This article discusses the constitution of loving bonds in the family, as it emphasizes the transformations that have been occurring in this matter today. In times of an exacerbated individualism, one can notice that the I-other relations have become more and more utilitarian, something that affects parentality, and therefore, the subjectivation process of the children. In this context, the references are becoming more and more hazy and vulnerable, thus making the investments in the family more difficult. A more flexible view is also suggested in the text, in such a way that one can reflect upon the different forms of being a family beyond the patriarchal model.

Keywords: Family, Parentality, Loving bonds, Individualism, Subjectivation.


 

 

Quando Freud, em 1930, refletia sobre os malefícios trazidos pela civilização, indagava por que não era possível ao homem ser feliz, mesmo em tempos de calmaria, quando havia cessado a guerra. Isso talvez ocorresse, segundo sua forma de pensar, por causa dos conflitos psíquicos com os quais temos que aprender a conviver. Mas, de imediato, concluía que isso não respondia integralmente às suas indagações. Prosseguindo inquieto, sugeriu três fontes como possíveis causas das infelicidades: a força impetuosa e destruidora da natureza; a fragilidade do corpo humano, que adoece e morre, e a precariedade da condição humana para suportar os impasses das relações dos homens entre si.

Muitos anos se foram desde que Freud, ensimesmado, chegava a essas conclusões. A Engenharia tem encontrado muitas soluções para os descontroles da natureza; a Medicina e as tecnologias médicas têm criado alternativas para driblar a fragilidade corporal e promover mais longevidade; entretanto, os homens continuam a fazer guerra e a destruir uns aos outros. A violência prolifera, sua força destrói vidas e se dissemina, seja nos espaços públicos ou na intimidade da família, não obstante os movimentos generalizados que buscam a paz. Não temos aqui nenhuma intenção de encontrar respostas para questões relacionais tão insuperáveis; pretendemos apenas refletir sobre algumas contingências que marcam a dinâmica de configuração dos laços afetivos no espaço da família - origem dos demais laços sociais -, procurando observar sua inscrição em um tempo no qual proliferam o individualismo e o desamparo.

Diante das múltiplas possibilidades que se tem hoje de vida conjugal e parental, é preciso encontrar referências que permitam construir uma concepção de família, sem negar suas diferentes formas de expressão. Os laços de afeto são princípios que servem a esse propósito. Eles estão nas bordas, constituindo e sustentando tanto as relações internas quanto as externas, bem como as interfaces entre ambas. No interior da família, a criação dos laços depende de um processamento psíquico cujo dispositivo central é uma economia de investimentos libidinais, dos quais decorrem os lugares e as funções de cada membro, indispensáveis ao processo de subjetivação.

Embora a constituição dos laços conjugais, parentais e fraternos dependa de operações intrapsíquicas, é preciso considerar as incidências do contexto social e cultural nessas operações. Em cada época, ganha força um ou outro tipo de intersubjetividade, de acordo com as nuances que qualificam a cadeia relacional da sociedade e, particularmente, da família. No contexto patriarcal, por exemplo, a autoridade paterna é acentuada, os vínculos pais-filhos são ressaltados e todos os outros laços são significados em função da autoridade parental.

Hoje, de modo geral, verifica-se uma espécie de dispersão nas relações humanas, com importantes repercussões no contexto intersubjetivo do grupo familiar. As fronteiras entre os subgrupos são muito tênues e as relações entre os sujeitos têm se tornado inconsistentes, o que repercute significativamente nas produções subjetivas. Isso não quer dizer que a relação sujeito-outro tenha caído em desuso. Sem o outro não há sujeito, todos nós sabemos. A parceria sempre foi e continuará sendo indispensável, no entanto, encontra-se, hoje, muito empobrecida em seu valor simbólico: de autoridade, de amor, de cumplicidade etc. Nesse sentido, as funções dos indivíduos no grupo e, mais especificamente, diante de cada elemento complementar vêm se tornando cada vez mais frágeis e facilmente descartáveis.

Todas essas facetas vinculares são típicas de um mundo individualista, no qual as relações se tornam mais idealizadas e se fragilizam à medida que prepondera a busca do outro para a confirmação do eu. Para Lipovetsky (2004, p. 83),

[...] o indivíduo se mostra cada vez mais aberto e cambiante, fluido e socialmente independente. Mas essa volatilidade significa muito mais a desestabilização do eu do que a afirmação triunfante de um indivíduo que é senhor de si mesmo. Testemunho disso é a maré montante de sintomas psicossomáticos, de distúrbios compulsivos, de depressões, de ansiedades, de tentativas de suicídio, para nem falar do crescente sentimento de insuficiência e auto-depreciação.

Nesse jogo entre os sujeitos, ganha força o processamento que mantém cada um voltado para si mesmo, mas, ao mesmo tempo, assujeitado ao outro. Essa contradição mostra a potência do psiquismo capaz de criar singularidades, sem relegar o ambiente ao qual estamos inevitavelmente submetidos. Revela também a necessidade de convivermos com os paradoxos inerentes à formação dos laços afetivos, numa conjuntura em que o indivíduo busca sua soberania.

É nessa armadilha que estamos atualmente: sem laços não nos humanizamos, não existimos como sujeitos, não temos referências que nos orientem, que nos contenham. Aquelas que encontramos estão vulneráveis, voláteis e vazias. Em conseqüência, prosseguimos a procura cega e idealizada de um complemento que não exija reciprocidade, posto que estamos presos em nossas próprias sombras.

 

Sobre a constituição dos laços

A existência da família depende do jogo produzido na realidade interna do grupo, a partir da relação entre os membros individuais e suas intersecções com a realidade externa ou social. Entretanto, esse movimento não faz sentido se o tratamos apenas em seu sentido grupal e negligenciamos a constituição de cada sujeito na cadeia familiar. É aí que o espaço interacional ganha sentido como lugar onde a subjetividade é potencializada a partir da presença de um outro, seja esse um indivíduo ou o próprio grupo.

Nesse sentido, evidencia-se que o sujeito só pode ser pensado a partir do enredamento com um parceiro em uma trama de múltiplas possibilidades. Ressalto aqui o potencial humano para criar esse outro; no entanto, ele não pode ser fruto exclusivo do nosso imaginário. Como dizia Winnicott, nós o criamos, mas ele está lá para ser criado; ele apresenta uma materialidade necessária a essa criação. Em outros termos, é a presença que permite sua concepção simbólica. Trata-se, portanto, de paradoxos que se instituem entre o estar com e o estar só, uma vez que conceber um outro é, em última análise, uma expressão do eu que só existe em função do diferente.

De acordo com Birman (1997, p. 33),

A constituição do sujeito implica a assunção de uma dívida face ao outro, sem o qual o sujeito não teria condições de existir. De fato, se o sujeito não é a causa de si mesmo e apenas pode advir a partir do outro, sendo um conjunto de identificações, então a constituição do sujeito implica o estabelecimento de uma dívida inefável com as potências que lhe oferecem as possibilidades de ser produzido.

Essa dívida se impõe muito antes do que podemos supor: vem dos nossos ancestrais, atravessa gerações e instaura a transmissibilidade psíquica como primeiro eixo na relação intersubjetiva eu-outro, que tem a família como contexto e suporte. O processo de transmissão psíquica depende de uma cadeia que permite a continuidade dos conteúdos psíquicos entre gerações.

Assim, esses movimentos interdependentes que possibilitam a criação dos laços adquirem sentidos em espaços e tempos próprios e podem ser entendidos como dispositivos que unem uma pessoa a outra. Para Maldavsky (1991), o enlaçamento dos sujeitos não depende apenas dos desejos de cada um, mas de um processamento psíquico no qual coexistem defesas organizadas a partir de uma trama intrapsíquica e interindividual. Tal dinâmica depende dos investimentos libidinais recíprocos, e são eles que sustentam as defesas.

A natureza e a qualidade dos investimentos fundamentam os diferentes tipos de laços com especificidades de duas ordens: uma se refere àquilo que é próprio à estrutura psíquica dos sujeitos e outra diz respeito às posições que eles ocupam em dada relação. No primeiro caso podemos pensar, por exemplo, na dimensão narcísica que, embora revele nuances e especificidades diferentes em cada sujeito, está presente em todo laço.

A outra característica dos investimentos depende da natureza de cada relação (parental, fraterna ou conjugal) e de como as parcerias se movimentam reciprocamente em função do contexto do qual fazem parte. Assim, leva-se em conta, de forma significativa, o entorno social que configura a relação, sem que haja negligência dos aspectos intrapsíquicos. A relação conjugal, por exemplo, apresenta um processamento psíquico totalmente distinto daquele que sustenta a parentalidade e a relação entre irmãos. Cada uma dessas parcerias é constituída por uma economia e uma dinâmica de investimentos própria.

A título de síntese, é possível afirmar que o processamento psíquico dos laços apresenta as seguintes peculiaridades: uma rede formada por elementos da realidade intrapsíquica e intersubjetiva; uma dinâmica de investimentos com diferentes especificidades, dependendo do tipo de relação, e a formação de um conector ou intermediário. Esse último indica que a formação dos laços exige, para além dos dois elementos básicos, um terceiro elemento, que possibilite a conexão entre ambos. Para Kaës (2005, p.11), esse conector

permite fazer a mediação, a ponte entre duas ordens de realidade que possuem sua lógica própria, que são heterogêneas e que, por conseqüência, não podem ser reduzidas uma à outra. Trata-se, então, de construir um conceito que, sem destruir a ordem própria do social e sem reduzir a ordem própria da realidade psíquica, permita ultrapassar o afastamento que organiza esses dois espaços.

É, portanto, esse elemento intermediário que assegura que dois sujeitos se conectem, criando pactos e acordos inconscientes. Assim, o processamento psíquico dos laços é facilitado à medida que possibilita as interfaces entre os sujeitos, organizando o que é comum a todos e o que é singular a cada um deles. É preciso, porém, considerar a existência de alguns dispositivos que sustentam a formação dos laços, fornecendo recursos por meio dos quais os sujeitos se aproximam, afastam-se, criam e recriam suas diferentes relações.

Dentre esses dispositivos Maldavsky (1991) ressalta os investimentos recíprocos que permitem, a cada sujeito, assumir posições no grupo; uma comunicação entre inconscientes e outra que propicia a comunicação de superego a superego; o contágio afetivo; as identificações e projeções e, por fim, as defesas intrapsíquicas. Em conjunto, eles organizam um funcionamento integrado do qual resulta a constituição dos laços e a preservação das singularidades em cada modalidade de relação.

 

Individualismo e laços

Como pensar a formação dos laços intersubjetivos em uma cultura que privilegia as individualidades? Antes de mais nada, é preciso rever o desafio a que estamos submetidos desde os primórdios de nossa existência: encontrar co-autores com quem possamos escrever a nossa história, ao mesmo tempo em que somos instados a transformá-los ao longo da vida, como condição para a subjetivação. Na conjuntura atual, a presença desse outro tem se tornado cada vez mais opaca e nebulosa e, dessa forma, torna-se difícil criar e recriar os laços, como é esperado no amadurecimento e no processo de humanização.

A dinâmica implícita à formação de laços é processada por meio de deslocamentos e condensações dos afetos. Ela pressupõe uma rede complexa, formada pelo cruzamento entre as demandas de cada sujeito e as metamorfoses sociais. Assim, é preciso refletir sobre as transformações que vêm ocorrendo na sociedade contemporânea, organizadas a partir de rupturas e descontinuidades de variadas intensidades, levando-se em conta, evidentemente, o espaço macro e micro social onde se insere. Nessa realidade, as fronteiras eu/outro têm sido expandidas - no que se refere à crescente diversificação das relações afetivas e amorosas -, tornando cada vez mais evidente o fato de que as possibilidades de autocontenção e de autonomia psíquicas dependem também das implicações de fenômenos sociais mutantes.

Dentre os estudiosos que se ocupam das transformações nos cenários sócioculturais e suas repercussões na produção das subjetividades, Lipovetsky se destaca, principalmente, pela ênfase dada à noção de personalização, que indica o quanto a sociedade atual substituiu os parâmetros da coletividade pelo culto à individualidade, à personalidade e à realização pessoal. A dimensão racional que colocava os laços entre os sujeitos e, conseqüentemente, a responsabilidade entre eles como um bem supremo da humanidade, vem se tornando cada vez mais obscura e frágil. Nos dias de hoje, privilegia-se a lógica do prazer pessoal como prerrogativa para a existência coletiva. Eleva-se, assim, à máxima potência, o dito popular: “Cada um por si e Deus por todos”.

Ao refletir sobre essa questão, Lipovetsky (1983) afirma:

Sem dúvida, o direito de o indivíduo ser absolutamente ele próprio, de fruir ao máximo a vida, é inseparável de uma sociedade que erigiu o indivíduo livre em valor principal e não passa de uma última manifestação da ideologia individualista; mas foi a transformação dos estilos de vida associada à revolução do consumo que permitiu este desenvolvimento dos direitos e desejos do indivíduo, esta mutação na ordem dos valores individualistas.

Segundo seu ponto de vista, não existem fatos sociais mais significativos em nossa época do que a possibilidade de viver livre e a busca de cada um por seu próprio modo de existência íntima.

Tudo isso contribui para incrementar o potencial narcísico dos sujeitos, que passam a ser regulados, principalmente, pelos desejos individuais, pelo cultivo da imagem de si e pelo enaltecimento da realização emocional e física. Isso não quer dizer que não haja mais interesses coletivos; eles permanecem, mas numa versão minimalista, na qual prevalecem manifestações de pequenos grupos. Neles busca-se o convívio e a conexão com micro-organizações especializadas, de modo que não se pode dizer que nessas micro-organizações haja um apagamento do narcisismo nem que este torna obscura a vida social. Esse movimento promove uma espécie de retração dos princípios universais da convivência e supervaloriza a experiência nos pequenos espaços onde as pessoas se identificam com outros “idênticos” e formam redes de trocas que aumentam as possibilidades de acolhimento entre semelhantes, facilitando as resoluções de problemas individuais. Reflexo disso é a proliferação de grupos cada vez mais especializados.

Quanto mais os indivíduos buscam alento e acolhimento em pequenos grupos - como, por exemplo, associações de pais solteiros, famílias homoafetivas, pais de homossexuais, adictos de vários tipos etc. -, mais plausível se torna para essas pessoas encontrarem soluções para os problemas individuais e específicos. Nesse sentido, Lipovetsky afirma que esses movimentos estão longe de contradizer a lógica do individualismo e de uma performance narcísica do sujeito; ao contrário, eles reafirmam tal lógica, na medida em que sustentam as demandas individuais, embora elas se expressem em pequenos núcleos de identificação e de solidariedades recíprocas.

Ao ampliar e dar complexidade à sua análise, o autor chama a atenção para a contradição produzida pelo sistema de relações vigente:

Estamos no extremo do deserto; já atomizado e separado, cada um de nós se torna agente ativo do deserto, estende-o e aprofunda-o, incapaz que é de ‘viver’ o outro. Não satisfeito com produzir o isolamento, o sistema engendra o seu desejo, desejo impossível que, logo que realizado, se revela intolerável: o indivíduo pede para ficar só, cada vez mais só e simultaneamente não se suporta a si próprio, a sós consigo.

Busca-se, no outro, amparo, suporte para a solidão; no entanto, como não há possibilidade de se investir nesse outro, não lhe resta outra alternativa senão o refúgio no próprio eu. Esse movimento contínuo e incisivo, que marca a desafecção nos dias de hoje, leva o sujeito mergulhar em um vazio que o faz sofrer e se penalizar com a dor do outro, muito embora seja incapaz de compartilhar com ele a vida.

 

Repercussões nas novas famílias

Até aqui sustentamos que não há sujeito se não há um outro para reconhecê-lo. Essa afirmação, no entanto, merece exame mais cuidadoso, já que não se trata apenas da presença de um outro, mas das qualidades que ele apresenta como elemento intersubjetivo e complementar no processo de constituição psíquica e de subjetivação. Essa aproximação entre eu e outro deve considerar, além das contingências nas quais os investimentos afetivos e os laços são constituídos, as tensões que lhes são próprias. Abordá-las, entretanto, exige reflexão em diferentes perspectivas.

Seria simplista definir o individualismo apenas por sua ótica narcísica. Quando se trata de família, ele apresenta algumas peculiaridades dignas de nota. É comum, por exemplo, a idéia de que o culto às individualidades inviabiliza os valores próprios à família, como a concepção de filhos, já que esse culto levaria à preponderância dos desejos puros de cada um (se é que isso é possível). Embora essa afirmação, em parte, seja verdadeira, constatamos que, de maneira geral, a demanda por filhos continua em alta. Se por um lado essa constatação contradiz a idéia de auto-suficiência, por outro destaca a concepção como a alternativa que produz um ideal a ser perseguido: a continuidade de si. Nesse caso, não se trata de sacrificar a vida para ter filhos, como expressavam os princípios do patriarcado, mas, tê-los como forma de usufruir da alegria que acrescentam à vida dos pais e, mais que isso, pelo prazer obtido com o prolongamento narcísico assegurado pela continuidade geracional.

Nesse sentido, a família não deve mais ser vista como um fim em si mesmo; ao contrário, ela se configura como espécie de prótese dos indivíduos que precisam ter preservados seus direitos e deveres subjetivos. De contexto obrigatório para a procriação e a perpetuação das realizações parentais, a família tornou-se aberta e flexível às múltiplas demandas afetivas dos casais. Isso nos mostra que os sentidos e os valores da grupalidade têm sido apagados, dando lugar à supervalorização das unidades parentais, ou seja, das relações pais-filhos, em detrimento do contexto inter-relacional que abrigava, antes, os diferentes tipos de relações intersubjetivas numa integração grupal.

Talvez esse fato justifique o aumento da dedicação dos pais em relação aos filhos. Longe de anular ou reduzir os deveres e os compromissos parentais, a sociedade individualista os exacerbam. Disso parece decorrer, em muitos casos, a tão falada tirania dos filhos, prontos a evidenciar e a denunciar as falhas e intensificar as culpas dos pais, quando estes não atendem a todos os seus interesses. A impressão que temos é a de que vem sendo produzida uma cultura na qual a concepção de filhos passa a ter sentidos mais utilitaristas. Nela os filhos estão, cada vez mais, a serviço do cumprimento da pauta narcísica dos pais. Nesse caso, os filhos deixam de ser considerados por si mesmos e passam a ser vinculados ao ganho que oferecem aos pais. Como compensação por isso, obtêm o domínio “tirânico” sobre eles.

A questão que se coloca aí é: como esse utilitarismo repercute, desde o início, na constituição psíquica da criança que demanda um outro na figura da mãe, em primeiro lugar, e depois, na presença do pai. Parece evidente que o exercício materno de doação ou devoção, como preferia Winnicott, terá nuances distintas em função dos interesses gerados pela futura chegada do filho. Aqui, poderíamos indagar, usando a metáfora tão conhecida do espelho (de novo Winnicott): qual imagem o bebê encontrará no rosto da mãe? Quais facetas estarão reveladas nessa visão especular da mãe e do filho, quando este foi concebido nas condições vigentes em uma sociedade que tem exagerado o culto de si e negligenciado os sentidos de solidariedade e de cumplicidade da família?

Parece haver, nessa imagem recíproca, uma posição materna de antecipação de um lugar para esse filho, sem que haja para isso uma construção processual e consistente. Esse lugar, fruto do reconhecimento do bebê como filho, é naturalmente construído à medida que surgem os investimentos de afeto que ensejam a criação do laço mãe-bebê. Esse vínculo será a matriz dos futuros enlaçamentos da criança em seu processo de humanização e subjetivação. Há, nesse processo de reconhecimento, uma espécie de servidão em relação ao filho, o que, certamente, antecipa a posição deste no grupo e dificulta sua inserção em um contexto no qual caberia a ele também negociar seu espaço.

Em outros termos, o investimento e os laços constituídos na relação pais-filhos - e, mais tarde, no contexto do grupo familiar - parece ter hoje a marca de uma certa instrumentalidade. Isso significa dizer que os sujeitos estariam se relacionando de forma que o outro complementar teria sempre uma função instrumental de manutenção das demandas marcadas pelas individualidades. O sentido de cumplicidade e de entrelaçamento recíproco, inerentes à formação do grupo, permanece, no entanto, com outras bases. Prepondera a busca por segurança e por gratificação pessoal, fruto de um contexto social no qual a descartabilidade e a desafecção produzem um outro inconsistente. Digo inconsistente não porque sua presença tenha sido desvalorizada, mas sim por estar sendo invadido por solicitações que, no limite, inviabilizam suas próprias qualidades. No caso dos filhos, sua valorização aumenta à medida que crescem as prerrogativas sociais e jurídicas da criança e que, não obstante as mudanças de rumo da família, a procura por filhos permanece e se amplia em muitas realidades. Isso não quer dizer que tenha aumentado o número de filhos por casais, mas indica que independente de constituírem família, as pessoas procuram, hoje, exercitar seus direitos de conceber filhos. Essas demandas decorrem, em grande parte, das diversas formas de assistência médica à concepção e também da busca, cada vez mais incisiva dos pares homoafetivos por obterem seus direitos legítimos de serem pais.

Essas constatações nos impõem uma preocupação em relação aos sentidos que têm hoje as funções paternas e maternas e como elas vêm sendo exercidas junto às crianças. Se argumentamos que pode haver uma busca por filhos, baseada principalmente nos interesses individualistas dos pais, é preciso admitir que o exercício dessas funções pode se tornar vulnerável, já que elas só têm sentido se respondem àquilo que a criança precisa para amadurecer em cada etapa de sua vida. Para atender à criança, é preciso que ela seja reconhecida como filho, com tudo que lhe é próprio. O não reconhecimento nessas bases poderá ter repercussões nefastas nos processos de constituição psíquica e de subjetividade infantil.

Um princípio fundamental na origem desses processos é exatamente a capacidade de as crianças criarem espaço próprio na família, matriz de todos os outros lugares que ocupará ao longo da vida. Isso significa que, ao reconhecer o filho em suas singularidades - no caso do bebê, seus traços biológicos e seu eu em formação -, os pais estarão subsidiando o filho na criação de si e de uma posição no mundo. A família tem aí papel muito importante, já que possibilita, por meio da relação com os vários membros - os irmãos são peças fundamentais -, que a criança viva um processo de diferenciação, ponto crucial para a subjetivação. No grupo há sempre um jogo de identificação que dá forma e sentido à constituição das diferenças. A criança, assim como o adolescente, precisa ser igual para se tornar diferente. Essa dialética faz parte das experiências primárias de subjetivação e de socialização, e é dela que surge um sujeito em condições de caminhar sempre em busca de sua autonomia, embora nunca a alcance integralmente.

A relação eu-outro é como um jogo com regras, leis e movimentos que vão sendo metamorfoseados ao longo da vida. Dele ninguém escapa. Pode-se, entretanto, reconstituí-lo, negociando suas imposições e encontrando saídas para os conflitos que lhes são implícitos. Essa saída revela a capacidade do sujeito de conhecer a si mesmo por meio do reconhecimento do outro, fundamento indispensável à socialização.

Nas circunstâncias em que o sujeito não é capaz de assimilar os princípios desse jogo e, tampouco, de sustentar os conflitos que ele suscita, pode ocorrer um retorno ao narcisismo primário e a busca incessante por uma imago materna sem forma nem sentido. A esse respeito, diz Roudinesco (2006):

[...] O narcisismo (primário e secundário) aparece como uma defesa contra as pulsões agressivas. Mas transformar o narcisismo em culto de si não é sinal de verdadeira conquista. Essa transposição resultaria antes de um rompimento interno correlato à existência de um vazio que se buscaria desesperadamente cobrir. Assim, é por uma espécie de desespero identitário que se chega à autoglorificação, numa busca desvairada de ser sempre admirado.

Essa avidez por si mesmo é parte de uma formação psíquica na qual o outro é odiado e rejeitado, num processo verdadeiramente autofágico. Isso porque o outro estaria sendo odiado como parte integrante do próprio sujeito.

 

Por fim...

Essas breves e inacabadas reflexões evidenciam que precisamos mudar, ou mesmo ampliar, o foco de estudo da família. Não cabe mais pensar sua estrutura a partir dos valores, dos padrões, das alianças e das premissas associadas ao modelo patriarcal. Em lugar disso, sugiro que a economia psíquica dos laços seja tomada como referência central nas investigações atuais. Ela nos permite incidir o foco de análise nas diferentes formas de compartilhamento da vida familiar, independentemente de conceitos e noções definidas a priori. Além disso, facilita a compreensão dos processos de subjetivação que decorrem das distintas maneiras de constituição dos laços e dos investimentos afetivos. Isso impõe a criação de novos paradigmas e a adoção de posturas mais comprometidas com as transformações processadas nas relações de afeto, sejam elas organizadas como grupo familiar ou não.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: mcpassos@uol.com.br

Artigo recebido em: 25/6/7
Aprovado para publicação em: 18/8/7

 

 

*Psicóloga, psicanalista, doutora em Psicologia Social pela PUC - SP, pesquisadora de família e desenvolvimento humano, coordenadora e docente do Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos, São Paulo.

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